Sumário: 1. À guisa de introdução. 2. Considerações iniciais. 2.1. A pesquisa de campo. 2.1.1. Atividades de pesquisa nos cursos noturnos da UEFS. 2.2 Concepção filosófica. 3. O ensino superior no Brasil. 3.1. O ensino jurídico no Brasil. 4. Considerações finais.
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo principal investigar sobre o próprio curso de Direito da Universidade Estadual de Feira de Santana/BA (UEFS), como uma espécie de processo de autoconhecimento, como a busca por um auto-retrato da graduação, o verdadeiro encontro da singularidade do estudante de Direito da UEFS frente à sua pluralidade. Com breves discussões sobre o ensino superior brasileiro e um sucinto panorama acerca dos cursos jurídicos no País, da sua criação, nos idos de 11 de agosto de 1827, dia do mês que se consagrou ao Advogado, ao período atual, foram os pontos introdutórios utilizados para apresentação dos dados coletados pela pesquisa realizada. No bojo do texto, são feitas referências a momentos marcantes do curso, interagindo, na seqüência do trabalho, as informações obtidas com a construção da história das Letras Jurídicas oriundas da Princesa do Sertão.
Palavras-chave: Estudantes; Direito; UEFS.
1 À guisa de introdução
“Precisamos conhecer a ciência fora da ciência”. (Luís Alberto Warat)
A Princesa do Sertão[1], pela primeira vez, está a formar o seu próprio abecedário jurídico. De acordo com Poppino (1968, p. 310), “a maior esperança, provavelmente, para o progresso de Feira de Santana estava no sistema educacional, que se vinha dotando no município em 1950”. Decerto, o desenvolvimento feirense no campo do ensino, ocorrido a partir daquele ano, ganhou importante impulso com a instalação da Faculdade Estadual de Educação de Feira de Santana (FEEFS), em 1968, se ampliando na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), com a atual denominação, desde 1976, significando “a maioridade do município e de sua região de influência”[2] (UEFS, 1997, p. 485).
Este trabalho traz um auto-retrato dos bacharelandos em Direito da UEFS. Um auto-retrato daqueles que se matricularam não apenas em um curso superior e foram levados adiante ao bel prazer do vento, mas, sobretudo, participaram (e participam) da vida institucional desta graduação, deixando patente a opção de protagonizarem a própria história ao invés de agirem como meros coadjuvantes.
Ao tempo em que o presente texto estava sendo redigido, diversos fatos aconteceram, os quais certamente passaram a integrar a galeria da história da UEFS, a exemplo da eclosão da greve dos estudantes[3], com a ocupação da Reitoria[4]; a inédita e lamentável presença de policiais militares no campus universitário, enviados por ordem da Juíza da Vara da Fazenda Pública da Comarca feirense, em deferimento ao pedido formulado pela UEFS[5] na ação de reintegração de posse contra os ocupantes do prédio da Administração Superior; sessão especial na Câmara de Vereadores, com ampla discussão sobre a situação vivida por esta instituição; o acampamento montado pelos grevistas na Praça da Reitoria, etc.
Quando se inicia uma graduação, muitas experiências serão vividas, muitas emoções e momentos marcantes. Porém, uma coisa é viver um curso, aprender durante o período acadêmico, outra é poder vivenciá-lo em sua gênese, construí-lo pouco a pouco, percebendo sua fase de maturação, o alcançar do primeiro ciclo: a formação da primeira turma do Bacharelado em Direito da UEFS.
Múltiplos temas (ou prováveis temas de monografia) surgiram desde o primeiro semestre. Não que se pensasse detidamente sobre o trabalho monográfico, a fim da obtenção do título de bacharel, mas como forma de interação com o saber, de construção do conhecimento, a realização de uma das vertentes daquilo que objetiva ser o ensino universitário: a pesquisa.
Os temas-candidatos – desde o relacionado a Direito e Internet até o Direito Penal, avassaladora paixão de inúmeros acadêmicos – acabaram por deixar o espaço ser ocupado por um tema óbvio, por se encontrar tão próximo, porém intrigante. O curso de Direito da UEFS, iniciado em 17 de agosto de 1998 (após a realização do Vestibular nos dias 19, 20 e 21 de julho de 1998, com resultado divulgado às 16 horas do dia 24 daquele mês e ano), completou cinco anos de existência, sem ainda ter formado sua primeira geração, devido a greves (por vezes de professores, por outras de alunos ou funcionários, em algumas ocasiões, dos três setores) deflagradas em 2000, 2001, 2002 e 2003.
Investigar sobre os próprios integrantes do curso jurídico desta instituição de ensino superior, faz com que os olhares se voltem para perceber se a entidade está sendo (ou se preparando para ser) mera expedidora de diploma na seara jurídica, conferindo grau a determinadas pessoas que alcançarem aprovação final, ou se sua função social está sendo alcançada (ou, ao menos, perseguida).
De onde vêm os estudantes de Direito da UEFS? Provêm de estabelecimentos educacionais situados em Feira de Santana ou advêm de Salvador? Ou será que vêm de outras cidades do interior da Bahia, confirmando, assim, a tão propagada idéia de que a UEFS serve – e bastante – às cidades interioranas de nosso Estado, sendo formado por inúmeros estudantes dos municípios da região?
É bem verdade que em determinados cursos, o índice de pessoas oriundas de classes menos abastadas é gritante, inclusive com tais indivíduos tendo cursado o ensino fundamental e médio em escolas públicas. A questão é que esses universitários, no mais das vezes, alcançam aprovação em cursos menos concorridos e – apesar de fundamentais para a sociedade – detentores de diferenciado status social, diversamente do que ocorre com graduações como Direito, Medicina e Odontologia, em que se verifica que a esmagadora maioria dos graduandos são oriundos de instituições de ensino privadas.
Assim, já se evidencia uma das vertentes quando o assunto é a privatização das universidades. Privatizar uma instituição de ensino superior não significa, necessariamente, aliená-la ao setor privado, deixando a cargo deste a administração da entidade. Os aprovados nos processos seletivos das instituições de ensino superior públicas, não raro, são oriundos de determinado segmento social, os quais tiveram mais oportunidades para aprender efetivamente, vez que estudaram em escolas mais qualificadas, mor das vezes sem preocupações outras que não o estudo e a preparação maciça e direcionada para o vestibular, relegando aos oriundos de escolas públicas graduações que nunca apeteceram, forçados pelas circunstâncias e determinados a ingressar numa universidade, independentemente do curso.
Daí porque tantos estudantes secundaristas, após várias tentativas, mudam sua opção. Tentam uma vez a aprovação em Odontologia, não conseguem; tentam Enfermagem e também não obtêm êxito; buscam aprovação em Biologia e a alcançam, sem demérito algum para os cursos aqui citados, principalmente o de Ciências Biológicas, último referido. A título de argumentação, procura-se demonstrar que não é o pretenso acadêmico, de formação escolar fundamental e média deficientes, que escolhe o curso superior e sim o nível da concorrência que determina se ele irá ou não integrar aquela graduação que, a princípio, é objeto de seu desejo.
Ainda que seja grande a vontade de o secundarista prestar novo processo seletivo para ser aprovado no curso dos seus sonhos, afiguram-se para ele dificuldades outras, caso pertença a uma camada da sociedade menos favorecida economicamente e, como contrapeso, não tenha tido oportunidade de freqüentar bancos escolares que lhe propiciasse melhor aprendizado, bem como não estivesse livre de problemas de diversas ordens (econômica, familiar, social, etc.) em sua casa, que nem sempre pode ser chamada de lar.
Aos mais abastados, nascidos em berço de ouro ou com genitores ou parentes que viabilizem, sob o viés econômico-social, uma vida mais direcionada para o estudo, a situação se apresenta bastante diferente. Não que estejam imunes a quaisquer infortúnios durante o viver, mas o anteparo é bem mais amplo. Não sendo aprovados no vestibular logo na primeira tentativa, terão a oportunidade de passar por entidades que oferecem treinamento especial para o vestibular (os cursinhos), mesmo que com algum sacrifício pecuniário em certas famílias, a fim de que se preparem devidamente para a próxima oportunidade.
E certamente não disputam apenas um único certame seletivo, mas se candidatam em todo e qualquer vestibular que lhes seja possível a aprovação. Aqueles outros – desprovidos de melhor situação econômica – não têm como deixar seus afazeres, seja por seis meses ou um ano, para permanecerem apenas estudando, se preparando para enfrentar esse concurso. Há que se auxiliar nas despesas domésticas, há que se trabalhar numa jornada diária de oito horas, há que se cuidar de filhos e parentes, aglutinando renda, uns aos outros, para sobreviverem juntos. Em primeiro lugar, a luta pela sobrevivência; logo depois (nem sempre tão logo assim), os estudos.
Diante da situação ora apresentada, aliado a fatores dos mais diversos matizes, como um sucinto e objetivo histórico da vida pregressa do acadêmico, seus passos durante o período universitário e suas pretensões após a obtenção do título de bacharel, buscou-se traçar um panorama do corpo discente do curso de Direito da UEFS.
Nas linhas seguintes, com o auxílio de dados percentuais para melhor explicitarem as informações, está a concretização deste trabalho, idealizado durante as madrugadas e finalizado no alvorecer. Alvorecer, também, para o curso de Direito da UEFS, prestes a escrever mais um capítulo da sua promissora história.
2 Considerações iniciais
Ciente de que o percurso da viagem é muito mais valioso do que a simples chegada, antes da apresentação dos dados encontrados em virtude da pesquisa realizada, serão tecidas algumas considerações.
Iniciado em 1998, conforme dito alhures, a primeira turma de Direito da UEFS contava com apenas 30 vagas, das quais 29 foram efetivamente ocupadas, pois um dos matriculados – também aprovado em Direito na Universidade Católica do Salvador (UCSal) – optou por estudar na capital baiana. Naquela oportunidade, 1.770 pessoas se inscreveram, com 59 candidatos disputando uma vaga, marca esta até hoje não superada.
A partir do segundo vestibular (cuja denominação também foi alterada, chamando-se, a partir de então, Processo Seletivo – ProSel), passaram a ser ofertadas, semestralmente, 40 vagas. Assim, a menor turma, na atualidade, é a primeira, constituída em 1998.2, com apenas 23 alunos. Dos 30 matriculados em decorrência da aprovação no vestibular em julho de 1998, 29 cursaram o primeiro semestre. De 1998 a 2003, uma graduanda foi aprovada em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), preferindo ocupar a vaga daquela entidade; outro, abandonou o semestre; dois foram reprovados e se dessemestralizaram (acabaram deixando de fazer parte, formalmente, da turma); um abandonou o curso (optou por estudar Medicina) e outro foi transferido ex officio para Mossoró, no Rio Grande do Norte, em decorrência de seu vínculo com o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Em síntese: dos 30 que se matricularam em 1998, 23 seguem em direção à reta final em 2003[6].
No total, o curso de Direito da UEFS conta hoje com 351 acadêmicos, dos quais 181 são do sexo feminino e 170 do sexo masculino. Em termos percentuais e considerando o número aludido, tem-se 52% de mulheres e 48% de homens, de acordo com dados fornecidos pela Gerência Acadêmica (GerAc)[7].
2.1 A pesquisa de campo
A escolha dos entrevistados não seguiu nenhum parâmetro específico, salvo o de pertencer a determinado semestre. Conforme Downing e Clark (2000, p. 222):
[…] o melhor sistema de escolha da amostra consiste em não adotar qualquer sistema, de modo completamente aleatório. O sistema deve ser delineado de forma que todos tenham a mesma chance de ser incluídos na amostra. […] Toda amostra aleatória está sujeita a alguma incerteza. Na prática, qualquer amostra está também sujeita a dificuldades, como o fato de algumas pessoas selecionadas não quererem participar da amostra, ou não darem respostas fidedignas.
Foram aplicados quatro questionários por semestre, após a devida aplicação do formulário-piloto, objetivando, dessa maneira, obter dados de, no mínimo, 10% de cada turma, ou seja, 10% do curso. O cômputo dos alunos dessemestralizados ocorreu justamente quando os mesmos se identificaram em tal condição, embora estivessem integrando determinada turma, a depender da disciplina cursada (Sociologia Jurídica, ofertada no segundo semestre, e Teoria Geral do Processo, pertinente ao quarto período, por exemplo). Malgrado a aplicação dos questionários tenha sido realizada de forma aleatória e por amostragem, o número de mulheres e homens participantes da pesquisa foi idêntico, isto é, 50% cada sexo.
2.1.1 Atividades de pesquisa nos cursos noturnos da UEFS
Antes de trazer à baila as informações colhidas, é de bom grado ressaltar que os trabalhos de pesquisa dos cursos noturnos não são oferecidos (tampouco procurados pelos estudantes) na mesma intensidade em que ocorre nos cursos diurnos. Um dos fatores é que os alunos que estudam à noite geralmente trabalham os dois turnos (manhã e tarde), tendo o período noturno para freqüentar a UEFS e realizar as atividades acadêmicas de sua responsabilidade, ou seja, ser submetido às provas, apresentar seminários e ser aprovado ao fim do semestre.
Atividades que lhes exijam maior dedicação do que as madrugadas e finais de semana não são bem vindas (nem bem vistas) pelos alunos das graduações ministradas no último período do dia. Não por uma questão de desinteresse e desgosto pela atividade, mas pelo desgaste enfrentado no dia-a-dia, no trabalho, deixando ao acadêmico, que precisa trabalhar para sobreviver, opção restrita ao labor, comprometendo o afazer científico.
Vale dizer que trabalho é diferente de estágio. Naquele, as exigências são bem maiores, ao passo que neste a carga de responsabilidade, por maior que seja, não se compara àquela, em virtude da própria natureza do vínculo, a não ser que o estágio não ocorra na área de estudo (ex.: acadêmico de Direito estagiando no setor administrativo de uma empresa de assistência técnica de eletrodomésticos). Situações como a apresentada, não raro, ocorrem com os discentes da graduação jurídica, conforme identificado nesta pesquisa.
Como trabalho de graduação, a monografia jurídica é a grande oportunidade para o acadêmico se debruçar sobre um assunto que lhe cause inquietude, que convoque (e não apenas convide) para maiores reflexões. Diante de tal provocação, abordagens de aspectos técnicos são de extrema importância, de grande valia, inclusive, para o futuro profissional. Porém, é de fundamental importância conhecer quem profere o discurso, em qual realidade o interlocutor está inserido, a maneira como ele percebe as relações sociais, quais os seus objetivos de vida. A partir daí, clarifica-se a leitura, melhor se interpretam suas manifestações.
Estudar Direito não é apenas conhecer dogmas, verdades incontestes, alocados fora da história, ou neles exercitar a subsunção, para, enfim, chegar a um ponto de remate. Comum já se tornou afirmar que o ensino do Direito não deve se ater ao ensino das leis. A lei serve para reger as relações sociais, assegurando a prevalência de determinado grupo no poder. O direito, assim como a sociedade, é dinâmico, e sua dinamicidade deve servir, outrossim, para agir em favor da sociedade, desigualando os desiguais para que sua aplicação seja coerente.
Falar de universidade pública, gratuita e de qualidade tornou-se lugar comum. Fazer dessa universidade realmente pública, gratuita e de qualidade é um enorme desafio. Mais ainda quando pensamos nela como instrumento de modificação social, como um aparato democrático, capaz de propiciar melhorias na comunidade, interagindo com ela.
O curso de Bacharelado em Direito da UEFS, de acordo com seu modelo pedagógico, tem como esteio filosófico a “concepção holística e tem por objetivo preparar científica e tecnicamente o aluno que nele ingressa, habilitando-o ao tipo de ação social que irá exercer” (COLEGIADO DO CURSO DE DIREITO, 2002, p. 5). Consoante tal vertente filosófica aplicada à seara jurídica, tem-se que o advogado deverá ser preparado para não se tornar um criador de litígios, mas um agente do exercício pleno da cidadania, um conciliador, com maior compromisso ético e profissional na resolução de conflitos.
De igual sorte, o juiz não deverá ser exclusivamente legalista, um mero aplicador da lei ao caso concreto, pois, se assim procedesse, poderia ser substituído por um computador com as mesmas características, devendo investir na sua sensibilidade para ajustar a lei aos fins sociais a que ela deve se dirigir, possibilitando a convivência pacífica das pessoas em sociedade. A abordagem holística no Direito é uma nova forma de regular o convívio das pessoas na sociedade, vez que seus operadores (juízes, advogados, promotores, etc.), atuariam com mais sensibilidade, visando atender aos anseios da sociedade, interpretando a lei de maneira mais eqüitativa e menos inflexível.
A princípio, o Direito se apresenta como a tentativa da normatização de condutas e solução de conflitos visando o bem-estar da população, que vive em sociedade; todavia, na prática, o juiz se distanciou dos anseios da sociedade, ao aplicar com frieza e lentidão a lei, o mesmo ocorrendo com a maioria dos advogados, que dentro de uma visão reducionista e segmentada, tornaram-se verdadeiros superespecialistas em suas áreas, dificultando a solução dos conflitos e tentam, como verdadeiros gladiadores, que prevaleça o ponto de vista unilateral de seus clientes.
Muitos juristas, por conservadorismo ou acomodação, são contrários a mudanças de paradigmas, porquanto se recusam ao avanço, às inovações, à criatividade e mesmo às críticas construtivas. A ausência de raciocínio verdadeiramente crítico, termina por cristalizar, burocratizar e enrijecer o conhecimento jurídico, que será transmitido e operacionalizado como um conjunto de informações, truncadas e departamentalizadas, com grave prejuízo para a percepção da visão de conjunto, da relação entre o todo e as partes que o compõem, dos vínculos e articulações entre o fenômeno jurídico e outros aspectos institucionais da sociedade.
3 O ensino superior no brasil
A educação é a pedra angular para a construção de um novo mundo, com perspectivas e oportunidades, principalmente para aqueles vitimados pelo apartheid social. O Brasil, comparado a outros países, encontra-se em situação ímpar, com acentuadas diferenças sociais, resultantes de uma das piores distribuições de renda no contexto mundial.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1998 a riqueza nacional estava distribuída da seguinte forma: 13,8% da riqueza nacional nas mãos dos 50% mais pobres da população, ao passo que 47,2% para os 10% mais ricos.
É importante mencionar tais números, face a intrínseca ligação entre o ensino superior e a estrutura social do Brasil. Em nosso País, causa descontentamento o reduzido número de matrículas nas universidades, principalmente por se tratar de uma potência econômica, com um PIB comparável ou superior ao de muitos países europeus, conforme salienta Chambouleyron (2001, p. 44). A situação do ensino superior reflete, e não poderia ser diferente, os traços cruéis da desigualdade. Cerca de apenas 12% dos jovens entre 19 e 24 anos estão matriculados em cursos de terceiro grau (UNIVERSIDADE XXI, 2003, p. 28).
O baixo número de matrículas não se traduz, necessariamente, numa pequena demanda. Há diferentes proporções de matrículas[8] em diferentes regiões brasileiras, vez que a quantidade de matrículas acompanha, pari passu, a riqueza da região. No ano de 1999, por exemplo, foram realizadas 2.369.945 matrículas no Brasil, tendo sido 1.537.923 em instituições privadas, o que corresponde a 65% do total, e 832.022 em instituições públicas, ou seja, 35%.
A Região Nordeste, com uma população de 44.766.851 e PIB/capita de R$2.603,00, matriculou 357.835 pessoas (68% em estabelecimentos públicos e 32% em entidades privadas). A Região Sudeste, por seu turno, com 67.000.738 habitantes e PIB/capita de R$7.706,00, contabilizou 1.257.562 matrículas (23,4% no ensino superior público e 76,6% em instituições privadas)[9].
Para garantir um futuro com dignidade para os jovens brasileiros nas próximas décadas, a causa educacional deve ser defendida com tenacidade, a fim de se oferecer oportunidades reais para o progresso social da vasta maioria da população. Permanecer na política educacional do presente (e passado) significa a rejeição de um melhor futuro para o País e o fortalecimento da segregação social que tem caracterizado a história brasileira.
De acordo com o ex-Ministro da Educação, Prof. Cristóvam Buarque[10] (Chambouleyron, 2001, pp. 69-72), o ensino superior nacional deve enfrentar cinco desafios:
a) universalização de cada universidade, com o abandono do pensamento de que a instituição está jungida somente ao Brasil, devendo interagir ainda mais com o saber mundial;
b) término do monopólio, por parte da universidade, da produção e da transmissão do saber, devido a imensa quantidade de criadores de pensamentos e idéias fora do ambiente acadêmico, como acontece na seara da informática;
c) o problema da permanência, em que o aluno somente é considerado como pessoa em aprendizado até colar grau, como se a graduação fosse capaz de, por si só, conferir ao estudante todo o cabedal necessário para o exercício da profissão e desenvolvimento de atividades conexas;
d) o desafio ético, devendo a universidade escolher se objetiva ser instrumento de uma civilização mais fracionada ou fomentar uma civilização em que ninguém seja excluído do essencial; e
e) como levar adiante as mudanças dentro da universidade, de modo a ultrapassar os quatros desafios citados.
O mundo universitário é altamente restrito a uma pequena parcela da população, alijada do ensino fundamental e médio de qualidade, praticamente inexistente nos estabelecimentos públicos brasileiros, devendo existir uma verdadeira democratização da universidade pública. De qualquer sorte, a universidade, por sua própria essência, já é elitista, no sentido de pensamento de elite. É a definição de universidade, é o ensino superior, isto é, ensino que se encontra em situação elevada frente aos demais. Todavia, não se pode conceber é que o pensamento de elite sirva apenas à elite social, aos mais abastados, como se estivesse apartado da sociedade.
3.1 O ensino jurídico no brasil
O ensino do Direito no Brasil tem início com a criação dos cursos jurídicos, através da Lei de 11 de agosto de 1827[11] (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1977, p. XXIX). O governo português não fundou universidades no Brasil colonial, diferentemente do procedimento do governo espanhol na América, onde as universidades surgiram sem muita tardança. Registre-se, por oportuno, o ocorrido com o deputado pernambucano Muniz Tavares, quando propôs, perante os deputados lusitanos, a criação de uma universidade no Brasil, tendo obtido como resposta que os brasileiros não precisavam de outras escolas que não fossem as primárias (ibidem, p. XXVI).
A classe social brasileira, de condições econômicas mais elevadas, buscava diplomar-se na metrópole, mais precisamente na Universidade de Coimbra. Com o advento da independência, fez-se necessário a formação de quadros para administrar o País, havendo, portanto, uma grande junção entre a criação dos cursos jurídicos e a própria estruturação do Estado nacional, haja vista que as escolas teriam por escopo reproduzir a sua ideologia. Prova disso é o teor do Projeto de Regulamento ou Estatutos para o curso jurídico, criado pelo Decreto de 9 de janeiro de 1825, cuja ordem era a observância do citado regramento, em caráter provisório, nos Cursos Jurídicos de São Paulo e Olinda, qual seja:
Tendo-se decretado que houvesse, nesta Corte, um Curso Jurídico para nele se ensinarem as doutrinas de Jurisprudência em geral, a fim de se cultivar este ramo da instrução pública, e se formarem homens hábeis para serem um dia sábios Magistrados e peritos Advogados, de que tanto se carece; e outros que possam vir a ser dignos Deputados e Senadores, e aptos para ocuparem os lugares diplomáticos e mais empregos do Estado, por se deverem compreender nos estudos do referido Curso Jurídico os princípios elementares de Direito Natural, Público, das Gentes, Comercial, Político e Diplomático, é de forçosa e evidente necessidade e utilidade formar o plano dos mencionados estudos; regular a sua marcha e método; declarar os anos do mesmo Curso; especificar as doutrinas que se devem ensinar em cada um deles; dar as competentes instruções, por que se devam reger os Professores e finalmente formalizar estatutos próprios e adequados para o bom regímen (sic) do mesmo Curso, e sólido aproveitamento dos que se destinarem a esta carreira. (ibidem, p. 588).
A elite nacional recruta quadros para operacionalização do Estado, com a manutenção do poder por intermédio da reprodução ideológica. O ensino jurídico no Império, caracterizado pela centralização e pobreza de recursos, a manutenção do status da formação jurídica no período da República Velha, aliado ao descompromisso com a realidade social e a transformação do País marcam, indelevelmente, o ensino do Direito.
A criação de muitas escolas de Direito e o conseqüente aumento do número de matrículas e de bacharéis não foram capazes de modificar a mentalidade preponderante no ensino jurídico, mantidas as deficiências do Império. Vale dizer que:
Na era Vargas, permanece na inércia o ensino do Direito, merecendo referência, aqui, o Estatuto das Universidades, do Min. Francisco Campos (1931), impondo mudanças no sistema de educação nacional, mas que não opera efeitos relevantes no ensino jurídico quase hermeticamente fechado às mudanças substantivas. O Direito e o seu ensino não acompanham as profundas transformações econômicas e sociais que desafiam a sociedade brasileira a esta altura. (CONSELHO FEDERAL DA OAB, 1997, p. 160).
Ressoa com bastante força a idéia de que a educação não é (e nunca foi) neutra, exprimindo sempre uma ideologia, entendida como a interpretação imaginária do real, como um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade “o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer” (CHAUI, 1980, p. 113). Assim sendo, a escola[12] é aparelho de qualificação para o mercado e também aparelho ideológico do Estado. A sua colocação fora da sociedade oculta sua função ideológica.
Não se pode deixar de observar que uma eventual avaliação do ensino jurídico não pode prescindir do questionamento acerca do que se deseja com este ensino. A resposta a esta questão vincula-se à concepção do Direito que se pretende ensinar. Se a formação construída na escola de Direito não conseguir desempenhar as atividades que dele se esperam, haverá um ambiente propício à crise, cuja alimentação se deu pela política governamental[13], iniciada no governo autoritário pós-golpe militar de 1964.
Com a expansão nada criteriosa da educação superior, as instituições privadas proliferaram, sem o devido controle de sua qualidade. No caso específico da formação jurídica, o aumento substancial do leque de opções para os bacharéis em Direito levou a um crescente aumento na procura deste curso, potencializando, sobremaneira, os lucros, vez que as instituições de ensino privadas, tendo o lucro como seu principal objetivo, preferem as ciências sociais, em razão da baixa necessidade de investimentos quando comparados a cursos da área de saúde, por exemplo. Contudo, a não absorção dos profissionais do Direito pelo mercado gera um exército de reserva, levando ao seu barateamento.
O ensino jurídico no Brasil tem sido alvo de severas críticas, principalmente no tocante ao vício do ensino meramente textual, “elidindo da reflexão e prática jurídicas a concretude da sociedade” (CONSELHO FEDERAL DA OAB, 1996, p. 23). Presos a uma visão napoleônica do mundo, os cursos jurídicos tratam os sujeitos de Direito como se fossem seres individuais, abstratos, portadores de uma vontade livre, átomos isolados e concorrenciais, que, por sua soma, formam as sociedades.
A sociedade, por sua vez e na qualidade de consumidora do mercado jurídico, certamente rejeitará o profissional do Direito e o ensino que o preparou, caso não venha a corresponder aos seus reclamos. O Direito, como instrumento de dominação social, há que ser substituído pelo Direito enquanto fator de emancipação, de transformação efetiva da sociedade.
Enquanto a vida moderna apresenta um curso extremamente rápido, determinado pelo progresso científico e tecnológico, pelo crescimento econômico e industrial, pelo influxo de novas concepções sociais e políticas, bem como por modificações culturais, o Direito tende a preservar formas que, em sua maior parte, se originaram nos séculos XVIII e XIX, quando não no Direito da Antiga Roma, manifestando-se, assim, inteiramente incapaz de adequar-se eficientemente às aspirações normativas da sociedade atual. (MONREAL, 1988, p. 11).
Na linha em que se encontra regido, ele serve à classe dominante e, em se tratando do Brasil, desde o tempo do Império, quando da implantação dos cursos jurídicos. Daí porque se perquirir sobre os graduandos de Direito da UEFS, a fim de conhecer, ainda que em linhas gerais, o seu passado, presente e pretenso futuro.
4 Considerações finais
“Tenho ainda ilusões. Creio ainda que a consciência do dever é alguma coisa; e que a fortuna pública não está só em um farto erário, mas também na acumulação e circulação de uma riqueza moral”. (Machado de Assis)
É chegada a fase da plena maturação da graduação jurídica da UEFS. Finalmente, os acadêmicos integrantes de sua primeira turma receberão o título de Bacharel em Direito e selarão esta etapa. Das escolas de Direito é que saem os profissionais que irão compor um dos Poderes do Estado. Magistrados, membros do Ministério Público, advogados e delegados de polícia, necessariamente, têm de passar pelos bancos acadêmicos para exercerem seu mister. Logo, uma melhor ou pior formação desses bacharéis implicará uma diferente formação da sociedade e a maneira de atuação de determinados segmentos estatais.
Nossa sociedade não necessita de heróis, do tipo que povoam desenhos animados e filmes de ficção, repletos de efeitos especiais, mas daquele tipo de herói feito de carne e osso, como todos nós, com sentimentos, garra, determinação, fraquezas e saudades; pessoas que simplesmente fazem aquilo que deve ser feito e agem de acordo com a consciência e não com a conveniência. É deste tipo de pessoa que o mundo precisa para mudar. É preciso acreditar nisto. É preciso viver cada dia como se nunca mais, colhendo da presença de cada um aquilo que possui de melhor, saboreando a companhia alheia, como se a última chance de realizar algo que está sendo feito somente pudesse se concretizar agora. A vida é o que acontece enquanto estamos fazendo outros planos, disse John Lennon. Acrescento: a vida é a arte de realizar sonhos.
Sonhos aparentemente frustrados quando o curso de Direito viu eclodir sua primeira greve interna, em 11 de janeiro de 2002. Em verdade era o despertar para que fosse possível permanecer sonhando, oportunidade em que paralisamos as aulas para não paralisarmos nossos ideais. Prédios não ensinam. Precisam ser ocupados por bons profissionais para orientarem os estudos dos acadêmicos. Fosse o contrário, estaríamos integrando uma livre discência.
Permito-me escrever na primeira pessoa estas considerações finais, depois de fenomenal esforço de falar daquilo que amo impondo, pelo bem do trabalho científico, a distância entre o objeto de pesquisa e o pesquisador. Não me contive. As lágrimas agora rolam em minha face, no alvorecer de mais um dia de primavera na Princesa do Sertão, sendo eu atingido pelos primeiros raios do Sol nesta manhã. E me vêm as lembranças dos dias 19, 20 e 21 de julho de 1998, quando ocorreram as provas do vestibular, com a divulgação do resultado em 24 de julho daquele ano, e me imagino com meus colegas na solenidade de colação de grau, cincos anos passados e tão presentes…
E o curso de Direito da UEFS, que num curto momento de sua vida se resumiu à turma de 1998.2, extremamente honrada por ter sido a primeira, vivencia seu dia maior, completando-se, fazendo a larva transformar-se em borboleta e sair do casulo, pronta para alçar vôos. Não basta sermos borboletas, é preciso sermos águias e nos lançarmos ao horizonte em busca de novos desafios, atravessando dificuldades, intempéries, mas certos de que alcançaremos os objetivos. Hoje esta graduação jurídica não mais se traduz, como em 1998, naqueles vinte e poucos jovens, recrutados para fazer parte da construção deste bacharelado. O tempo passou e, atualmente, os graduandos em Direito da UEFS apresentam a seguinte identidade:
a) são filhos de pais[14] que possuem diploma universitário e de genitoras com o Ensino Médio completo;
b) concluíram os Ensinos Fundamental e Médio em escolas privadas de Feira de Santana;
c) passaram por cursinhos pré-vestibular;
d) foram aprovados na primeira oportunidade em que se submeteram ao processo seletivo para a graduação jurídica desta instituição superior, quando tinham entre 17 e 19 anos de idade;
e) são solteiros;
f) residem em companhia dos pais no município feirense;
g) estagiam na área jurídica (principalmente na Advocacia, Magistratura e Ministério Público, nesta ordem);
h) ocupam quatro horas diárias com o estágio;
i) não atuam em atividades de pesquisa no âmbito institucional;
j) estão semestralizados;
k) freqüentam a UEFS em outros horários além das aulas;
l) não participam de nenhum organismo social, seja ele de caráter político, religioso, etc., bem como não participam do Movimento Estudantil;
m) acreditam que Movimento Estudantil é para quem tem tempo livre ou preferem estudar a participar dele;
n) cursam Direito por ideal de justiça;
o) pretendem prestar concurso público, para seguirem carreiras jurídicas (notadamente na Magistratura e Ministério Público);
p) desejam cursar pós-graduação (Especialização, Mestrado ou Doutorado), objetivando aprimorar conhecimentos;
q) e têm a intenção de residir em qualquer lugar do Brasil.
Esta é a singular pluralidade dos estudantes de Direito da UEFS. Plural porque o panorama Brasil afora, no tocante às graduações jurídicas, não se distancia muito do apresentado. Singular por conta da construção, do edificar de um curso, vivido desde sua gênese até o seu momento maior: a formação da primeira turma. Pertencer a uma graduação em que foi possível interagir e discutir caminhos a serem trilhados particulariza o curso e seus integrantes, guindando cada um à condição de personagem principal e não de singelo coadjuvante.
A máscara de oxigênio será colocada de lado, para serem utilizados os próprios pulmões, num verdadeiro respirar conhecimento e práxis jurídica. Ao longo da formação acadêmica, não basta adquirir conhecimentos tidos como verdadeiros e absolutos. É imprescindível relativizar e integrar esses saberes divididos em disciplinas e especializações, a fim de aprender a construir as próprias verdades relativas, tomando parte ativa na vida social e cultural. Enfim, para que sejamos protagonistas da nossa própria história, saindo dos muros da universidade, para a atuação no seio social em prol do bem comum, pois “o real é a realização de uma potencialidade” (BOFF, 2001).
Para que os ensinamentos jurídicos da UEFS se concretizem por intermédio dos seus futuros bacharéis, é preciso que estes desenvolvam suas pontencialidades, trabalhadas na graduação. A história não é feita conforme a simples vontade de seus agentes, porém pelas circunstâncias com as quais se deparam. Mais do que fazer parte de uma universidade que se proclama pública, gratuita e de qualidade, muito mais do que o compromisso de aprender e produzir conhecimento, os bacharelandos em Direito da UEFS estão construindo o primeiro e genuíno abecedário jurídico de Feira de Santana. Estão formando as Letras Jurídicas e a Princesa do Sertão.
[1]Conforme Poppino (1968, p. 5), a expressão Princesa do Sertão “parece que foi uma denominação legada à cidade [de Feira de Santana] por um jornalista local, no início do século XX”. Populares garantem que tal locução foi obra de Rui Barbosa, que a teria dito quando em visita à cidade.
Informações Sobre o Autor
Danilo Andreato
Professor de Direito Penal e Processo Penal do Curso Ordem Mais. Mestre em Direito (PUC/PR). Especialista em Direito Criminal (UniCuritiba). Assessor jurídico do Ministério Público Federal