Resumo: O presente artigo visa demonstrar a aplicabilidade, ao processo do trabalho, das regras correspondentes ao cumprimento da sentença previstas pela Lei nº. 11.232/2005, tratando-se de condenação que envolva pagamento de quantia certa. Para tanto, será implementada a análise dos critérios de heterointegração de sistemas de maneira a demonstrar a existência de lacunas ontológica e axiológica, que representam o ancilosamento do microssistema processual trabalhista, tornando possível a transposição das novas regras do processo civil, à luz dos princípios constitucionais da celeridade e duração razoável do processo.
Palavras-Chave: Lei 11.232/2005. Cumprimento de sentença. Processo do trabalho. Lacunas. Conceito de sentença. Princípios. Duração razoável do processo. Celeridade processual.
Sumário: Introdução. 1. Da Lei 11.232/2005. Mudança de paradigma. Ruptura do processo dicotômico. Alteração do conceito de sentença. O cumprimento da sentença como fase do processo cognitivo comum. 2. A aplicação da teoria da intersistematização processual como forma de dar concretude ao princípio constitucional da celeridade processual e da duração razoável do processo, no cumprimento da sentença trabalhista, em decorrência das inovações do processo civil. Considerações finais. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO.
O presente trabalho tem como objeto examinar a aplicabilidade do novo instituto do cumprimento da sentença – introduzido no Código de Processo Civil pela Lei n. 11.232, de 22 de dezembro de 2005 – ao processo do trabalho, considerando as peculiaridades, princípios, lacunas e sistemas que norteiam cada um.
Para tanto, partimos da idéia de sistema, não admitindo a transposição parcial de regras, sob pena de ferir o princípio da segurança jurídica.[1]
A importância do tema justifica-se pela ausência de consenso quanto à matéria, fato que redunda verdadeira insegurança aos jurisdicionados. A finalidade é fazer um estudo dos referenciais teóricos, buscando argumentos que sirvam de suporte à aplicabilidade do novo instituto processual comum ao processo trabalhista, a partir de uma análise histórica (ontológica) e valorativa (axiológica).
Focamos o estudo na importação do novo sistema processual civil ao processo do trabalho, especificamente com relação ao cumprimento da sentença que define obrigação por quantia certa[2]. Não serão tratadas, pois, as demais modificações do Código de Processo Civil, a exemplo da liquidação da sentença ou execução dos títulos extrajudiciais.
O presente ensaio tem como marco temporal as novidades insertas pela Emenda Constitucional 45 de 30, de dezembro de 2004, notadamente no que respeita aos princípios erigidos a garantias fundamentais da Celeridade e da Duração Razoável do Processo, bem como as alterações implementadas pela Lei 11.232/2005.
Inicialmente, será elaborada uma breve exposição das modificações introduzidas pela legislação processual, antes mencionada, no que respeita à alteração do conceito de sentença, à ruptura da divisão do processo entre conhecimento e execução, tornando-a mera ferramenta para a nova fase do processo cognitivo.
Em sequência, será avaliada a possibilidade de heterointegração entre o microssistema processual trabalhista e o sistema do processo comum, sempre à luz da garantia fundamental da duração razoável do processo e celeridade na sua tramitação, assim como em relação aos demais princípios vinculados.
1. DA LEI 11.232/2005. MUDANÇA DE PARADIGMA. RUPTURA DO PROCESSO DICOTÔMICO. ALTERAÇÃO DO CONCEITO DE SENTENÇA. O CUMPRIMENTO DA SENTENÇA COMO FASE DO PROCESSO COGNITIVO COMUM.
No processo comum, até a vigência da Lei nº. 11.232, de 22 de dezembro de 2005, havia a dicotomia entre processo de conhecimento e execução. A parte vencedora na ação de conhecimento detinha a incumbência de propor nova ação, denominada de execução de título judicial, objetivando ver satisfeita – cumprida – a obrigação constante no título.
A divisão entre processo cognitivo e execução é herança do Estado liberal clássico, pois ao juiz era dado apenas declarar (lato sensu) a vontade disciplinada pela lei, sem o poder de “dar força executiva às suas decisões”, conforme ensina Luiz Guilherme Marinoni.[3]
A partir da vigência da Lei 11.232/2005, o processo civil ganhou novos contornos, rompendo o vetusto conceito de sentença, que dispunha ser o “ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa”. Hodiernamente, dispõe o art. 162, § 1º do Código de Processo Civil que a “sentença é o ato do juiz que implica alguma das situações previstas nos arts. 267 e 269 desta Lei”. Dessa forma, não colocando mais fim ao processo, conseqüência lógica é a continuidade da ação, para promover-se o cumprimento respectivo nos mesmos autos.
A alteração legislativa, além de modificar as regras da liquidação de sentença, incluiu um capítulo específico destinado a regular seu cumprimento, a partir dos arts. 475-I, até o art. 475-R do CPC, revogando o processo de execução fundado em título judicial. Rompeu a clássica dicotomia entre o processo de conhecimento e execução. Dessa maneira, as decisões transitadas em julgados passam a ser cumpridas, ao invés de executadas. A execução, pois, é mera ferramenta (coercitiva) de instrumentalizar o cumprimento, caso a sentença seja voluntariamente olvidada. Em outras palavras, é por meio da execução que se realiza o cumprimento da sentença.[4]
O vencedor da ação, cuja sentença reconhece obrigação de quantia certa, não mais precisa ajuizar ação autônoma executiva para ver satisfeito seu direito reconhecido no título judicial.
Atualmente, é incabível cogitarmos a citação do devedor, para instá-lo a cumprir a condenação que lhe foi imposta. A citação é ato de chamamento ao processo, pelo qual se leva ao réu o conhecimento da ação proposta.[5] Evidentemente, como partícipe da ação cognitiva, a parte vencida já conhece (ou deveria conhecer) os termos da decisão judicial, razão pela qual não há falar em citação pela nova sistemática processual (pós Lei 11.232/2005).
Como estudaremos no capítulo seguinte, a CLT admite a importação das regras do Código de Processo Civil, na hipótese de omissão e compatibilidade com os preceitos do processo laboral. Nesse diapasão, é oportuno relembrar que o texto consolidado não define o conceito de sentença, obrigando ao intérprete suprir a lacuna pelas regras do processo civil.
A alteração do conceito de sentença, como ato judicial que não mais encerra o processo, modifica toda a estrutura que rege os atos processuais subseqüentes: não mais é necessária a propositura da ação executiva, pois há continuidade dos atos processuais destinados ao respectivo cumprimento.
Essa substancial alteração traz consigo, de modo indissociável, um efeito cascata que “contamina” o direito processual do trabalho, pois, a partir do momento em que se rompe o clássico conceito de sentença e o processo trabalhista necessita importar essa nova realidade (face à omissão), está colocado em xeque o microssistema de execução trabalhista previsto nos arts. 876 e ss. da CLT.
Em outras palavras, a sentença trabalhista não mais põe fim ao ofício jurisdicional, considerando a necessidade de buscarmos o conceito respectivo no processo civil, realizando uma interpretação sistêmica com o novo conceito estabelecido pelo CPC.
Em razão dessa alteração conceitual, a própria concepção de sentença trabalhista ganha uma nova roupagem e merece ser reinterpretada, notadamente em relação ao título executivo judicial, contendo obrigação de pagar quantia certa. Essa nova definição penetra no campo processual trabalhista e traz como corolário o cumprimento como fase subseqüente; uma conseqüência lógica do novo sistema. Trata-se, pois, de verdadeira mudança de paradigma, delineada pela nova significação desse importante ato judicial, que influencia e implica uma releitura do microssistema processual trabalhista, o que defendemos no presente trabalho.
Para tanto, faz-se necessário procedermos ao estudo da compatibilidade e os aspectos relacionados às lacunas, para fins de transposição da novel legislação (relativa ao cumprimento da sentença) ao processo do trabalho.
2. A aplicação da teoria da intersistematização processual como forma de dar concretuDe ao Princípio Constitucional da Celeridade Processual e da Duração Razoável do Processo, no cumprimento da sentença trabalhista, em decorrência das inovações do processo civil.
Na concepção de Claus-Wilhelm Canaris (2002, p. 12), o sistema fundamenta-se em duas características básicas: ordenação e unidade[6]. A ordem “resulta directamente do reconhecido postulado da justiça, de tratar o igual de modo igual e o diferente de forma diferente, de acordo com a medida de sua diferença” (CANARIS, 2002, p. 18). A “unidade”, por sua vez, tem estreita relação de intercâmbio com aquela e visa garantir que a ordem do direito não se disperse “numa multiplicidade de valores singulares desconexos, antes se deixando reconduzir a critérios gerais relativamente pouco numerosos.” (Op. cit., p. 21)
Ao tratar do conceito de sistema, prossegue Canaris (2002, p. 18-19):
“Mas a adequação racional é, como foi dito, a característica da ‘ordem’ no sentido do conceito de sistema, e por isso a regra da adequação valorativa, retirada do princípio da igualdade constitui a primeira indicação decisiva para a aplicação do pensamento sistemático na Ciência do Direito.”
Da lição acima, infere-se que o princípio da igualdade, albergado pelo sistema constitucional brasileiro, constitui fundamento primaz na aplicação sistemática do direito.
Ainda conceitualmente, sistema jurídico é o “conjunto de regras e de princípios jurídicos, que se instituem e se adotam para regular todo corpo de leis de um país.” (SILVA, 1978, p. 1458). Trata-se, pois, de uma rede aberta e axiologicamente hierarquizada de regras e princípios positivados no ordenamento jurídico, a partir da Constituição Federal, conectados no tempo e espaço.
Feitos esses prolegômenos, ainda preliminarmente ao tema, é imprescindível examinarmos, mesmo que sucintamente, o sistema processual trabalhista em matéria de execução.
Na realidade, a doutrina costuma denominar a execução trabalhista de “microssistema”[7] ou “subsistema”, pois a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) é concisa em relação ao assunto. De fato, o próprio texto consolidado se reconhece insuficiente, ao permitir a aplicação supletiva do processo comum, na forma do art. 769 respectivo.
Com efeito, a execução é tratada no texto da CLT por meio do Capítulo V (Título X), regrando, basicamente, as espécies dos títulos executivos e competência para executá-los (arts. 876 a 877-A), a promoção dela ex officio (arts. 878 e 878-A), a liquidação da sentença (art. 879), a expedição de mandado de citação e da penhora (arts. 880 a 883), os embargos à execução e impugnação à sentença de liquidação pelo exequente (art. 884), o julgamento e trâmites finais da execução (arts. 885 a 889-A) e a execução de prestações sucessivas (arts. 890 a 892).
Dissonante ao cumprimento da sentença, estabelecido pela Lei 11.232/2005, a CLT prevê a expedição de mandado de citação para o devedor cumprir a decisão ou acordo (art. 880). Se optar por não pagar, o texto consolidado faculta ao executado garantir a execução por depósito ou nomeação de bens à penhora (art. 882). No silêncio, prevê a expedição de mandado de penhora de tantos bens quantos suficientes à satisfação do principal e acessórios (art. 883).
O ato citatório, segundo a CLT, marca o início da fase executiva. Em nossa ótica, trata-se de providência judicial dispensável, pois é destinada a dar conhecimento ao devedor quanto ao acordo por ele descumprido ou em relação à sentença que lhe foi desfavorável (ainda que parcialmente), oferecendo-lhe prazo para honrá-lo(a), sob as penas da lei (penhora de bens, alienação etc.).
Questiona-se, pois, quanto à efetividade do art. 880 da CLT, ou mesmo sua adequação à Constituição, diante da superveniência, como garantia constitucional, do Princípio da Celeridade Processual e da Duração Razoável do Processo inserto no art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal de 1988, introduzido pela Emenda Constitucional nº. 45, de 30.12.2004, na medida em que a legislação infraconstitucional deve ser interpretada à luz da supremacia constitucional, conferindo-lhe máxima efetividade ou eficiência.[8]
Portanto, a partir da vigência do novel comando constitucional, as regras infraconstitucionais, à luz da hermenêutica, podem ser não recepcionadas[9] ou receberem uma nova “roupagem”, em adequação ao disposto pela Magna Carta, especialmente quando não se coadunam com os princípios constitucionais; não obstante seu caráter geral, os princípios são normas supremas do ordenamento jurídico (BONAVIDES, 2001, p. 243).
Humberto Ávila (2006, p. 97) destaca que os princípios possuem eficácia direta, pois “mesmo que um elemento inerente ao fim que deve ser buscado não esteja previsto, ainda assim o princípio irá garanti-lo.” Dessa maneira, toda vez que o intérprete for aplicar a norma ao caso concreto, o princípio será o balizador de sua aplicação[10] e, na inexistência da regra específica, o próprio princípio servirá de fundamento jurídico.
O art. 880 da CLT, ao que nos parece, entra em choque com o Princípio da Celeridade e Duração Razoável do Processo, pois contém providência processual inútil, já que é absolutamente dispensável proceder-se na citação (ato de convocação do réu para vir a juízo) ao devedor que já tem ciência do acordo descumprido e da sentença que lhe foi desfavorável.
Observa-se, pois, nítida desatualização do vetusto texto consolidado no aspecto. O Professor Luciano Athayde Chaves consigna que a exigência de
“mandado judicial a inaugurar a fase de execução, de que cogita o art. 880 da CLT, está indubitavelmente atingida pelo ancilosamento normativo, produzindo um espaço lacunoso diante da nova técnica processual e de seus novos valores (efetividade processual, mitigação das garantias do executado em benefício da duração razoável do processo, etc.), máxime quando não existe tal procedimento no âmbito dos Juizados Especiais (art. 51, inciso IV, Lei n. 9.099/1995), subsistema de identidade principiológica e valorativa com o processo trabalhista.” (CHAVES, 2007, p. 416).
Esse choque configura a não-receptividade da norma celetista, cabendo ao intérprete, diante da lacuna, valer-se da heterointegração do microssistema processual trabalhista[11], buscando em outros sistemas aquele que sintonize com a Constituição Federal.
Para o exercício da heterointegração ou intersistematização entre o microssistema processual trabalhista e o civil é necessária a existência de lacuna no texto da CLT, ainda que por aspectos axiológicos e ontológicos.
São diversas as teorias alusivas às lacunas do direito.[12]
Porém, trataremos apenas das lacunas ontológicas e axiológicas, com breves conceitos, objetivando demonstrar que a incompletude do microssistema processual trabalhista pode decorrer não somente da omissão pura da norma (lacuna normativa), mas de sua inadequação às necessidades atuais.
A lacuna ontológica afigura-se mesmo quando
“presente uma norma jurídica regular a situação ou caso concreto, desde que tal norma não estabeleça mais isomorfia ou correspondência com os fatos sociais, com o progresso técnico, que produziram o envelhecimento, o ‘ancilosamento da norma positiva’ em questão” (CHAVES, 2007, p. 406).
O art. 880 da CLT mantém a mesma essência[13] da sua redação original, desde 1943. Além de não recepcionado pela Emenda Constitucional 45, que incluiu na Constituição Federal o Princípio da Celeridade e Duração Razoável do Processo (art. 5º, inciso XXXVIII), o comando citatório do réu não encontra ressonância aos fatores sociais da atualidade[14], nem ao progresso técnico da ciência processual moderna. Essa regra entra em choque com o novo conceito de sentença, pois, não havendo o desfecho do processo pelo ato judicial referido, desnecessária a citação para início da execução.
Prossegue Chaves (2007, p. 401) ao afirmar que “o sentido ontológico da própria legislação processual especializada é dispor sobre institutos que garantam o desenvolvimento da jurisdição em razão dos escopos de sua existência: a realização e a efetividade do direito social disposto no plano material.” Essa idéia reforça que o microssistema de execução trabalhista não mais comporta as necessidades atuais, constituindo verdadeira lacuna ontológica.[15]
A lacuna axiológica, por sua vez, significa que existe a norma, mas se for aplicada, redundará solução injusta ou insatisfatória.[16] Luciano Athayde Chaves (2007, p. 411-412) pondera que as lacunas inautênticas (segundo Zitelmann) não correspondem necessariamente a uma
“ausência de regra para certa questão, mas uma atuação jurisdicional pautada sobre ela produziria uma ‘denegação de justiça’, de modo que ‘para chegar a uma resolução juridicamente satisfatória, o juiz precisa preencher a lacuna de regulação legal e, por certo, em concordância com a intenção reguladora a ela subjacente e com a teleologia da lei’” (Larenz, 2005, p. 528).
Dentro desse panorama axiológico, é forte o argumento de Carlos Henrique Bezerra Leite, quando questiona a situação dos novos jurisdicionados da Justiça Especializada, diante da ampliação da competência material. Afirma o jurista que esse alargamento da competência
“não pode redundar em retrocesso econômico e social para os seus novos jurisdicionados nas hipóteses em que a migração de normas do CPC, não obstante a existência de regras na CLT, impliquem melhoria da efetividade da prestação jurisdicional, como é o caso da multa de 10% e a intimação do advogado (em lugar de citação) do devedor para o cumprimento da sentença.” (LEITE, 2008, p. 905).
O Prof. Wolney de Macedo Cordeiro (2008, p. 25-30) distingue três hipóteses para o confronto dos sistemas do processo comum e trabalhista: casos de regulamentação inexistente (omissão plena); hipóteses de regulamentação referencial (quando a CLT agasalha determinado instituto processual, mas “não nos oferece um regramento sistematizado”[17]) e, por fim, as situações que envolvem regulamentação concorrencial (casos que a CLT regula sistematicamente a matéria).
Na última hipótese, faz remissão exemplificativa à execução trabalhista, comparando-a com as alterações introduzidas pela Lei nº. 11.232/05 ao processo civil. Enquanto nos demais casos (regulamentação inexistente e referencial) “a atividade inicial do intérprete se limitava à aferição topológica da omissão, na regulamentação concorrencial, a análise preliminar pressupõe uma ponderação de ordem valorativa”. (CORDEIRO, 2008, p. 29).
Nesse contexto, pois, reside o aspecto axiológico a ser examinado, mormente pelo “envelhecimento” da norma processual trabalhista em matéria executiva, se cotejada às modificações da Lei 11.232/05. Portanto, diante do ancilosamento do microssistema processual trabalhista em matéria de execução, necessário socorrer-se do diploma legislativo que mais atende ao vetor constitucional principiológico antes referido.
O art. 769 da CLT regula a aplicação subsidiária do direito processual comum ao processo do trabalho, nos seguintes termos: “Nos casos omissos, o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho, exceto naquilo em que for incompatível com as normas deste Título.”
Prima facie, uma interpretação meramente gramatical do preceito poderia ensejar a inaplicabilidade da Lei 11.232/2005, no que concerne especificamente ao cumprimento da sentença, já que a CLT não seria omissa em relação ao tema.[18]
Para alguns, ao contrário, o texto consolidado prevê expressamente a aplicação da Lei dos Executivos Fiscais às execuções trabalhistas (art. 889), de maneira que sequer omissão existiria, razão por que inaplicáveis as regras processuais comuns, ainda que mais avançadas no ponto de vista da efetividade.
Com a máxima vênia àqueles que pensam o contrário, as lacunas ontológicas e axiológicas da norma são fatores determinantes à releitura do sistema processual trabalhista.
Concebido sob a égide do Código de Processo Civil de 1939, o art. 769 da CLT servia de obstáculo à aplicação subsidiária do processo comum formalista na seara processual trabalhista. O jurista Jorge Luiz Souto Maior (2006, p. 22) enfatiza que a pretensão do legislador (aspecto teleológico da lei) foi
“impedir que a irrefletida e irrestrita aplicação das normas do Processo Civil evitasse a maior efetividade da prestação jurisdicional trabalhista que se buscava com a criação de um procedimento próprio na CLT (mais célere, mais simples, mais acessível). Trata-se, portanto, de uma regra de proteção, que se justifica historicamente. Não se pode, por óbvio, usar a regra de proteção do sistema como óbice ao seu avanço.”
Sua finalidade de criação, segundo Luciano Athayde Chaves (2007, p. 402), foi “manter a coerência do subsistema processual trabalhista e a sua fidelidade axiológica.”
A regra do art. 769 da CLT foi concebida como modelo de proteção, impedindo a penetração desenfreada das normas do processo civil, de conteúdo eminentemente individualista e calcada numa ideia de igualdade entre as partes[19]. Visava-se manter a autonomia da disciplina laboral, em relação às formalistas regras inerentes ao processo civil.
Todavia, o legalismo estrito não mais se amolda à realidade. A interpretação do sistema deve ser realizada no seu conjunto. Aqui reside, pois, a ordem e unidade que nos ensina CANARIS, elucidadas ab initio. Contraria a melhor hermenêutica proceder-se a leitura de uma regra isolada.
Urge, nesse contexto, uma releitura[20] do microssistema processual trabalhista, com a “mitigação do dogma consolidado na regra do art. 769 da CLT” (LEITE, 2008, p. 612), estabelecendo um
“diálogo das fontes normativas infraconstitucionais do CPC e da CLT, visando à concretização do princípio da máxima efetividade das normas (princípios e regras) constitucionais de direito processual, especialmente o novel princípio da ‘duração razoável do processo com os meios que garantam a celeridade de sua tramitação’” (ED 45/2004, art. 5º, LXXVIII) (LEITE, 2008, p. 612).
Luciano A. Chaves (2007, p. 405), citando Engisch, enfatiza que
“não pode o intérprete se manter fiel à vontade histórica do legislador (mens legislatoris) na determinação das lacunas de lege lata. Isso porque, nas suas palavras, ‘a mudança das concepções de vida pode fazer surgir lacunas que anteriormente não haviam sido notadas e que temos de considerar como lacunas do Direito vigente e não simplesmente como lacunas jurídico-políticas.”
Assim, são critérios norteadores do princípio da aplicação subsidiária do processo civil: a) ocorrência de lacunas ontológicas e axiológicas, demonstradas pelo anacronismo e letargia da legislação celetista em matéria de execução e b) a compatibilidade entre o novo instituto previsto na Lei 11.232/05 com o processo do trabalho.
Balizadores dessa releitura, os Princípios da Celeridade e da Duração Razoável do Processo, além de orientarem o intérprete, devem vincular a atividade jurisdicional, em todos os seus níveis[21]. Tal se justifica, pois o princípio em questão constitui garantia fundamental do cidadão, de aplicabilidade imediata (§ 1º, art. 5º, CF/88).
Sabemos que o processo nada mais é do que um instrumento de concretização do direito material, atribuindo ao Estado o monopólio jurisdicional, em busca da paz social. Partindo desse pressuposto, a solução ofertada pelo Poder Judiciário, em tese, foi dirimida à luz dos princípios e normas jurídicas aplicáveis, observando o valor máximo Justiça. O descumprimento das decisões judiciais fragiliza a legitimação estatal e, pela lógica, traduz a inquietação social, diante da ineficácia do poder jurisdicional.[22] Se essa decisão contempla, em última análise, a “vontade” do Estado, infere-se que o sistema processual deve se aparelhar de mecanismos suficientes para fazer cumpri-la.
A Lei 11.232/05, por sua vez, representa um exemplo de aceleração na entrega da prestação jurisdicional, imbuída desse espírito principiológico constitucional (art. 5º, LXXVIII), que deve servir de “diretriz obrigatória para o intérprete” (CORDEIRO, 2008, p. 14).
Não se deslembre, porém, de que o Poder Judiciário é único, partido em competências, objetivando melhor atendimento e especificidade no trato das questões jurídicas que lhes são submetidas.[23]
Nesse contexto, “a ciência do processo, como já se afirmou, é uma só e, do ponto de vista científico, não há autonomia alguma entre as teorias que procuram, por exemplo, tratar isoladamente o processo civil, o processo penal, o processo trabalhista, etc.”, segundo refere Valentin Carrion, citado por Humberto Theodoro Junior (CARRION apud THEODORO JUNIOR, 2006, p. 195).
Em síntese, se o Poder Judiciário é único, não justifica o argumento “desconectado, assistêmico e formalista-legalista de que não há omissão na CLT”, conforme assevera o Juiz do Trabalho Ricardo Hofmeister de A. Martins Costa, em decisão proferida nos autos do Proc. nº. 01310-2005-352-04-00-6, especialmente em se tratando de proteção ao crédito de natureza trabalhista, merecedor de maior atenção por parte da jurisdição.
Para conferir celeridade e duração razoável, as decisões devem ser tempestivamente proferidas e eficazmente cumpridas. A celeridade processual, contudo, não é inovação constitucional. O art. 765 da CLT há muito previa: “Os Juízos e Tribunais do Trabalho terão ampla liberdade na direção do processo e velarão pelo andamento rápido das causas, podendo determinar qualquer diligência necessária ao esclarecimento delas.” (sem destaque no original).
De qualquer forma, se os princípios são orientações máximas que norteiam o intérprete, é inegável que a transposição das regras do processo comum ao processo do trabalho, especialmente em matéria de cumprimento de sentença, traduz a concretização desses princípios constitucionais.
Exemplo das benéficas mudanças, a Lei 11.232/05 acrescentou o art. 475-J ao CPC, nos seguintes termos:
“Caso o devedor, condenado ao pagamento de quantia certa ou já fixada em liquidação, não o efetue no prazo de quinze dias, o montante da condenação será acrescido de multa no percentual de dez por cento e, a requerimento do credor e observado o disposto no art. 614, inciso II, desta Lei, expedir-se-á mandado de penhora e avaliação”.
A Justiça do Trabalho, atenta às percucientes reformulações do processo civil, na sua 1ª Jornada de Direito Material e Processual (23.11.2007), editou a Súmula nº. 71, imbuída de sentido principiológico: “ARTIGO 475-J DO CPC. APLICAÇÃO NO PROCESSO DO TRABALHO. A aplicação subsidiária do artigo 475-J do CPC atende às garantias constitucionais da razoável duração do processo, efetividade e celeridade, tendo, portanto, pleno cabimento na execução trabalhista.”
Nada obstante, desde 1943, o § 1º do art. 832 da CLT[24] já facultava ao magistrado definir as condições para o cumprimento da sentença, o que, a nosso sentir, já lhe permitia a imposição de multas.
Para corroborar, poder-se-ia invocar, inclusive, o princípio da eficiência contido no art. 37 da Constituição Federal, já que o “serviço jurisdicional constitui ato essencial à administração (pública) da Justiça” (LEITE, 2008, p. 900). Ainda, o Princípio da Igualdade inserto no art. 5º, caput, da Constituição Federal de 1988, representa a necessidade de impor tratamento igualitário entre credores em ações cíveis e trabalhistas. Com mais razão em relação ao processo do trabalho, onde se faz presente uma desigualdade substancial, fato que reclama maior carga de proteção ao hipossuficiente da relação, em regra o empregado, autor da ação.[25]
Para a Juíza Valdete Souto Severo (2008, p. 36), o Princípio da Proteção é fator determinante à aplicação das regras mais benéficas. Justifica que “não devemos perder tempo examinando o conceito de lacuna ou aplicação subsidiária, buscando eufemismos ou brechas no texto legal. Basta ampliarmos nossa visão.” Com efeito, embora pertinente ao direito material, o princípio da proteção tem influenciado sobremaneira o direito processual, enquanto instrumento de satisfação do primeiro.[26]
As demandas de natureza civil envolvem, de regra, créditos desprovidos de caráter alimentar, mas o sistema processual vigente lhes tutela no espírito do princípio da duração razoável do processo.
Se as disposições do CPC concentram regras mais eficazes, elas têm – sistematicamente – trânsito livre no processo do trabalho. Trata-se da aplicação primaz do princípio da proteção, mais precisamente no seu desdobramento de aplicação da norma mais favorável ao trabalhador.
Luciano Athayde Chaves (2007, p. 417) ensina que, em nome do Estado Constitucional, não é dado ao interprete “afastar uma solução mais satisfatória em nome da intangibilidade da ordem infraconstitucional.”
Essa visão principiológica, em busca da efetividade e rompimento da estrita legalidade (ou interpretação meramente gramatical), tem recebido destaque, inclusive, pelo próprio Tribunal Superior do Trabalho. Exemplo disso ocorre com a Súmula 303 da respectiva Corte, ao conferir aplicabilidade, no processo do trabalho, do disposto no § 2º do art. 475 do CPC, que dispensa o duplo grau de jurisdição quando a causa julgada em desfavor da Fazenda Pública não alcançar valor superior a sessenta salários mínimos ou estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou súmula do Tribunal Superior do Trabalho. Embora exista regra específica (art. 1º, V, do Decreto-Lei nº. 779/69), a Corte Superior Trabalhista decidiu em sintonia ao Princípio da Efetividade, Duração Razoável e Celeridade Processuais.[27]
A jurisprudência, nesse cenário, tem se inclinado à releitura do sistema, conferindo aplicabilidade, ao menos em parte, da Lei nº. 11.232/2005, especialmente no que concerne à multa do art. 475-J do CPC:
Ainda em abono à tese, até poder-se-ia falar de lacuna normativa, pois, embora a CLT sistematize a execução, é omissa no que concerne ao cumprimento da sentença, o que levaria a aplicação do novo instituto, especialmente pela modificação paradigmática no conceito de sentença, nos termos do capítulo precedente.
Além disso, o temor de descaracterizar o processo do trabalho, pela enxurrada de regras do processo civil, não justifica pensar diferentemente. Wolney Cordeiro (2008) demonstra que o processo do trabalho está calcado em aspectos ideológicos próprios (postura inquisitorial do juiz, regime de despesas processuais, concentração dos atos em audiência e sistema recursal próprio), de forma que a intersistematização não descaracterizaria sua essência nitidamente direcionada à tramitação célere e por tempo razoável.
Outrossim, o direito comparado também nos oferece subsídios. O Processo do trabalho argentino, por exemplo, adota o sistema eclético ou misto de aplicação subsidiária do processo do trabalho, tal qual o brasileiro. Vale dizer, por vezes indica pontualmente os dispositivos aplicáveis à seara processual trabalhista, mas mantém a supletividade aberta, nos seguintes termos: “Las demás disposiciones del Código Procesal Civil y Comercial de la Nación serán supletorias em la medida que resultem compatibles com el procedimiento reglado em esta ley” (art. 155 da Lei 18.345/69 – Organización y Procedimento Laboral), conforme bem apanhado por Brune Freire e Silva (2008, p. 80-81).
Pela leitura do dispositivo acima, o direito processual argentino não impõe a “omissão” como requisito de heterointegração; basta que a regra processual civil e comercial seja compatível com o direito processual do trabalho, para trânsito pleno na seara processual juslaboralista.
Por fim, embora tramite no Congresso Nacional o projeto de Lei nº. 7.152/2006, de autoria do Deputado Antonio Fleury, com a finalidade de acrescentar a utilização do processo comum, quando “permitir maior celeridade ou efetividade de jurisdição, ainda que existente norma previamente estabelecida em sentido contrário”, pondera Prof. Wolney de Macedo Cordeiro (2008, p. 7) que a aplicação subsidiária das novas regras de cumprimento da sentença “não implica uma alteração legislativa específica, sendo apenas necessária a atuação proativa do hermeneuta.”
CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Do apanhado acima, podemos deduzir, ao cabo, que as normas introduzidas pela Lei nº. 11.232/2005 ao processo civil, especificamente no que concerne ao cumprimento da sentença que define obrigação de pagar quantia certa (ou a ser fixada em liquidação), são aplicáveis ao processo do trabalho, pela análise principiológica do problema.
Dessa forma, pode-se
“justificar o desuso de determinados procedimentos pertencentes a um dado subsistema processual em favor de uma ferramenta nova que, embora do domínio de outro subsistema, seja com aquele compatível, seja no plano normativo interno, seja, principalmente, no plano valorativo e principiológico imanente ao subsistema, que lhe dá sentido e o orienta” (CHAVES, 2007, p. 412-413).
A aplicação da Lei 11.232/2005 encontra sintonia nos Princípios da Proteção, Celeridade, Igualdade, Eficiência e da Duração Razoável do Processo, de forma que obstaculizá-la ao processo laboral, por interpretação literal do art. 769 da CLT, significa violação dos mencionados preceitos.
Nesse enfoque, transgredir um princípio é muito mais grave do que violar uma regra. (LEITE, 2008, p. 613).
Como visto, a legislação deve ser interpretada dentro do conceito de sistema ordenado e unitário. Conforme ensina Claus-Wilhelm Canaris (2002, p. 22),
“longe de ser uma aberração, como pretendem os críticos do pensamento sistemático, a idéia do sistema jurídico justifica-se a partir de um dos mais elevados valores do Direito, nomeadamente do princípio da justiça e das suas concretizações no princípio da igualdade e na tendência para a generalização. Acontece ainda que outro valor supremo, a segurança jurídica, aponta na mesma direcção.”
Ideal seria, obviamente, que o legislador tomasse a iniciativa de promover as adequações necessárias, especialmente pelo novo conceito de sentença. Enquanto isso não ocorre, curial uma releitura do microssistema processual trabalhista, conferindo uma nova interpretação, por meio da heterointegração ou intersistematização entre o direito processual civil e trabalhista.
Portanto, não mais se sustenta a negativa de aplicação das regras de cumprimento de sentença ao processo do trabalho, se mais adequadas, axiologicamente, às necessidades atuais; basta realizarmos uma reinterpretação.
Informações Sobre o Autor
Ariel Stopassola
Advogado. Pós-graduado em Direito Processual do Trabalho pela Universidade de Caxias do Sul – Núcleo Universitário de Canela