Aspectos Constitucionais relevantes para o Cooperativismo Solidário

O presente artigo tem como temática central a análise dos aspectos constitucionais relevantes à nova vertente incorporada ao cooperativismo brasileiro que se apresenta como elemento de inclusão social, o cooperativismo solidário ou social, considerado como um novo cooperativismo (neocooperativismo), dadas as suas características peculiares voltadas para a promoção da pessoa humana em detrimento dos fatores econômicos. Visando atingir os objetivos propostos, o tema será abordado sob três perspectivas. A primeira delas terá por objetivo analisar o direito social condensado e o cooperativismo, enquanto instância de participação intermediária entre Estado e sociedade. Aborda-se o direito social condensado de Georges Gurvitch por tratar-se de um modelo que se enquadra dentro da perspectiva cooperativista, uma vez que se posiciona de forma intermediária entre o Estado e a sociedade civil, permitindo que o cidadão saia da posição de cliente e passe para a posição de participante. A segunda perspectiva tem por escopo analisar a evolução do Estado e do Cooperativismo com o propósito de identificar a influência dos eventos que deram causa ao surgimento do movimento cooperativista, situando-o dentro da evolução geral das estruturas da sociedade, uma vez que o mesmo foi fruto das dificuldades surgidas com as transformações por que passou o Estado, assim como analisar os reflexos do desenvolvimento das relações existentes entre sociedade civil e ordem estatal. Finalmente, a terceira perspectiva tem por objetivo analisar o tratamento constitucional dispensado ao cooperativismo e o surgimento das cooperativas sociais, assim como a sua relação com a cidadania participativa, tendo o neocooperativismo como forma de inclusão social, necessitando, para tanto, de um programa de políticas públicas voltadas a preparar a cidadania por meio da educação cooperativa e para fomentar a criação de novas cooperativas sociais.

Considerações Iniciais

O presente estudo busca analisar os aspectos constitucionais relevantes para o cooperativismo solidário, e a relação participativa entre Estado e sociedade civil, tendo por base a construção de um paralelo entre o pensamento de Georges Gurvitch acerca da teoria do direito social condensado.

Está com um problema jurídico e precisa de uma solução rápida? Clique aqui e fale agora mesmo conosco pelo WhatsApp!

Inicialmente, será abordado o direito social condensado de Georges Gurvitch, por tratar-se de um modelo que enquadra a perspectiva cooperativista, uma vez que se posiciona de forma intermediária entre o Estado e a sociedade civil, permitindo que o cidadão saia da posição de cliente e passe para a posição de participante.

Para tanto é essencial que se analise, inicialmente, a idéia de direito social de Gurvitch, suas características gerais e cada uma de suas espécies, detendo-se especificamente no direito social condensado. Em seguida, analisar-se-ão os pontos de contato existentes entre o direito social condensado e o sistema cooperativo, de modo a esclarecer se o referido sistema se enquadra dentro da espécie de direito social condensado.

1. O Direito Social Condensado de Georges Gurvitch

A proposta de Georges Gurvitch acerca de uma nova idéia de direito social leva para além do processo legislativo oficial a regulação e o controle das decisões, em função da estreita relação do direito com a vida social. Em sua obra Tratado de Sociologia, o autor esclarece que “a vida do direito encontra-se ligada a vida social por laços ainda mais estreitos e íntimos do que aqueles que unem esta última à vida moral e mesmo à vida religiosa”. (1968, p. 239)

A idéia do direito social de Gurvitch, segundo Morais (1997), surgiu para ir de encontro ao pensamento individualista existente no meio jurídico e seu objetivo era reformular a idéia de direito para aproximá-la da realidade social da época, ou seja, construir um pensamento que dissesse respeito a um outro direito não mais vinculado ao indivíduo isolado e sim ao grupo social onde está inserido. Dessa forma, passaria o Estado a ser o responsável somente pela regulação e promoção do bem-estar social caracterizando a idéia do welfare state.

Em verdade, essa nova idéia de direito social busca superar os limites próprios do Estado Social, concebendo a auto-regulação a partir da atuação dos sujeitos sociais, transformando as regras em normas interiores ao conjunto social e não mais  impostas pelo Estado, causando a desnecessidade de sancionamento. Ainda nesse sentido, segundo Hermany (2003), a concepção do direito social como resultado de um processo de auto-regulação por parte dos agentes da sociedade, que se traduz por um sujeito complexo, acaba por superar o formalismo do direito oficial pela construção de regras efetivamente legitimadas, produto da evolução e articulação social por si mesma, inexistindo, desse modo, qualquer relação causal ou de precedência.

Ainda conforme o autor, direito social é aquele direito que é produzido pela própria sociedade, sendo assim uma regulação autônoma de cada grupo social, permanecendo alheio ao direito posto pelo Estado, e tem como característica o fato de que cada grupo e cada conjunto possui a capacidade de produzir a sua própria ordem jurídica autônoma capaz de regular sua vida interna.

Na perspectiva exposta, esse direito social é “como um direito de comunhão, um direito de coletividades, um direito interior, onde não há separação entre produtores e consumidores e cuja efetividade não está atrelada à idéia de sanção incondicionada, como repressão ao comportamento desviante.” (MORAIS, 1997 p. 39).

Ainda nesse sentido, o direito social, ao permitir que os agentes sociais sejam emissores e receptores do direito, ao mesmo tempo aceita que se estabeleça uma lógica reflexiva com a teoria habermasiana. Segundo Hermany (2003), a proposta de Gurvitch, ao apontar o direito social como sendo um produto da articulação das organizações complexas, acaba assemelhando-se ao processo discursivo de ação comunicativa proposto por Habermas.

Segundo Habermas (1997), a participação do cidadão na construção de normas e decisões públicas são condicionantes de legitimidade destas e este processo se dá a partir de uma ação comunicativa, em que os atores sociais têm seus papéis fortalecidos.

Desse modo, conforme ensina o autor, o consenso obtido pela sociedade através de um agir comunicativo vincula o reconhecimento social ao direito de base reflexiva. Assim pode-se constatar que o direito encontra sua legitimidade na articulação reflexiva dos atores sociais, mantendo uma relação muito próxima com a sociedade devido às manifestações de vontade e opinião destes atores. Por isso, sendo os destinatários das regras e decisões públicas são também autores, cabendo à sociedade o duplo papel no processo decisório, em que são “os destinatários simultaneamente os autores de seus direitos”. (HABERMAS, 1997, p. 139)

Quanto aos tipos de direito social, cabe salientar a diferença entre o direito social considerado puro e a segunda modalidade, que se interliga com o Estado através do aparato jurídico positivo. É necessária essa distinção para que sejam melhor compreendidas as características do direito social. Nesse sentido, importa destacar que tais distinções são fundamentais para a compreensão das características que o direito social deve agregar visando evitar uma redução ao modelo de direito liberal, dessa forma viabilizando a caracterização da posição intermediária, que amplia a participação da sociedade no processo de formação e controle das decisões públicas, sem que isso, destaque-se, “implique a superação dos institutos representativos estatais.” (HERMANY, 2003, p. 40)

Para Georges Gurvitch, o direito social puro e independente é aquele que, em situação de conflito, se coloca em posição de igualdade ao direito estatal e não recorre à sanção incondicionada do Estado. Ainda nessa perspectiva, a definição de direito social puro e independente é a de que essa forma de direito é pura “na medida em que não busca recurso em uma sanção incondicionada e, é independente quando, em caso de conflito com o direito estatal, se coloca em igualdade com este”. Entretanto, no momento em que o direito social apresenta uma relação de subordinação ao direito estatal, este passa a ser um direito social puro, mas sujeito à tutela do Estado. (MORAIS, 1997 p.50)

Quanto às demais formas de direito social, importa referir que essas se apresentam em oposição ao direito social puro, pois, conforme Morais (1997, p.50), “o direito social anexado é, na verdade, o direito autônomo de um grupo posto à serviço da ordem estatal, e que, em razão de sua colocação a serviço da ordem jurídica estatal, perde a sua pureza”. Nesse caso, cabe salientar que a autonomia dessa forma de direito social apresenta uma relação de dependência ao regime de Estado ao qual está vinculado.

Nesse aspecto, é interessante observar, ainda, que, no caso do direito social anexado, a sua autonomia tem sua eficácia dependente do regime do Estado ao qual é incorporado. Dessa forma, ela será efetiva na razão direta do conteúdo democrático deste, mas o direito social anexado permanece sempre adstrito à característica sancionadora do ordenamento jurídico normativo estatal. (MORAIS, 1997, p.51).

O direito social condensado, por sua vez, se trata de uma forma muito especial de direito social, na medida em que se liga à ordem normativa estatal, transformando-se em produto de uma organização igualitária de colaboração, sem perder sua característica de ordem normativa social, mesmo sendo uma ordem estatal.

Posta assim a questão, é de se dizer que a teoria de direito social baseia-se em dois pontos fundamentais, de maneira que se configure essa forma de direito como uma ordem de integração, quais sejam: pureza e independência.

Pureza, ou seja, sua desvinculação relativamente ao aspecto sancionador próprio ao direito estatal, para que, assim, à norma de direito social não adira incondicionalmente uma sanção como forma de resposta jurídica ao seu descumprimento. O direito social retiraria sua eficácia de sua própria legitimidade como ordem normativa auto-instituída.

Independência , ou seja, como já dito acima, sua plena autonomia, ou mesmo sua soberania como ordem normativa desvinculada daquela própria ao Estado. O direito social se estruturaria, basicamente, como uma(s) outra(s) juridicidade(s), paralela(s) àquela emanada pelo poder soberano estatal. (MORAIS, 1997, p. 51)

Segundo Gurvitch (1932), o direito social, ao encontrar sua legitimidade na própria sociedade, possibilita que ele alcance os desejos e as necessidades sociais, através de uma normatividade distinta do poder social. Por isso, o direito social, ao encontrar legitimidade na sociedade, obtém garantia de vigência e eficácia através da democracia e dessa forma sua efetividade não está condicionada a uma ordem coativa, mas a um processo de auto-regulamentação e inserção social. Conforme afirma Hermany (2003), o direito, enquanto fato social que encontra sua legitimidade a partir da própria sociedade, forma uma lógica reflexiva, segundo os pressupostos habermasianos, pois os atores sociais são simultaneamente autores e destinatários do direito. Esse novo processo de elaboração normativa alcança o consenso social e a legitimidade através da sociedade. Ainda conforme o autor, “trata-se de um conjunto normativo resultante do complexo de relações que permeiam a sociedade, através das organizações oriundas da cooperação e de sua auto-organização”. (HERMANY, 2003, p.47)

Ainda, nesse aspecto, Gurvitch (1932) entende ser a sociedade capaz de produzir seu próprio ordenamento jurídico autônomo, com possibilidade de regular sua vida interna. Desse modo, ao estabelecer uma relação direta e imediata entre democracia e direito social, desenvolve a idéia básica de Direito Social Condensado. Entende o autor, assim, que o direito social condensado se refere a um sistema jurídico com origem na comunidade social subjacente, a partir de seus grupamentos locais, caracterizando o fundamento do direito social.

Nesse sentido, importa destacar que essa idéia de direito social compatível com a tutela constitucional permite a atuação reflexiva da sociedade numa estratégia de coordenação como elemento integrador e capaz de concretizar os princípios constitucionais. No entanto, impõe-se que esta articulação esteja acompanhada de um amplo compromisso democrático da sociedade. (HERMANY, 2003, p.42)

Inadequado seria esquecer, também, que Morais (1997, p. 76), ao descrever o direito social condensado de Gurvitch, afirma que:

(…) mesmo uma ordem normativa sancionada pode ser tida como uma ordem de integração social na medida em que esta normatividade seja penetrada pelo direito social da comunidade subjacente, através da incorporação pela ordem jurídica estatal das regras produzidas pelos grupos sociais, ou seja, o direito social que seria puro e independente se se mantivesse alheio ao ordenamento do Estado é transmutado em ordem jurídica deste, mantendo, contudo, sua origem.

É preciso insistir também no fato de que, conforme Hermany (2003), referida concepção de direito social, ao relativizar sua pureza, acaba por permitir que se estabeleçam elementos de conexão entre o processo de coordenação e integração dos atores sociais no processo de organização da sociedade, sem descartar as garantias mínimas do texto constitucional. Dessa forma, para que ocorra a consolidação do direito social condensado é necessário que a atuação dos agentes sociais seja baseada na democracia dando destaque ao princípio da dignidade humana. Destaca o autor que é na perspectiva da gestão compartilhada e de apreensão do espaço público estatal pela sociedade que deve ser inserida a idéia de um direito social que venha compatibilizar a ampliação do espaço de atuação da sociedade civil nas decisões públicas, mantendo-se como referencial mínimo o conjunto de princípios constitucionais. (HERMANY, 2003)

Posta assim a questão, é possível dizer que se entende o sistema cooperativo dentro de uma perspectiva de direito social condensado, uma vez que representa um poder que não está ligado a uma coação incondicionada, funcionando na maioria das vezes sem coação, composto por pessoas coletivas complexas que formam uma associação igualitária e não de hierarquia de dominação.

Está com um problema jurídico e precisa de uma solução rápida? Clique aqui e fale agora mesmo conosco pelo WhatsApp!

Prova disso está no fato de que o cooperativismo, por surgir de forma independente do Estado, representando uma normatividade alheia à essa dominante, até o momento encontra dificuldades quanto ao tratamento dispensado pela ordem estatal[1].

Como manifestação do direito social, o cooperativismo, que tem na cooperativa uma pessoa coletiva complexa, surge para ir de encontro ao pensamento individualista existente na sociedade dos séculos XVIII e XIX, aproximando e unindo o grupo social em que está inserido.

A partir do momento em que o cooperativismo se estrutura, busca, assim como o direito social, superar os limites próprios do Estado, conforme refere Holyoake (2003)[2] ao descrever como um dos objetivos dos pioneiros do cooperativismo a fundação de colônias cooperativas que se auto-regulariam de forma independente do Estado.

Nesse lanço, importa ressaltar que o cooperativismo se apresenta como direito social condensado na medida em que, mesmo se caracterizando por pessoas coletivas complexas que se auto-regulam e autogestionam internamente, está sujeito à ordem estatal e aos princípios constitucionais, recebendo, inclusive, proteção constitucional, como no caso brasileiro.

Oportuno se torna dizer que no cooperativismo a idéia de comunhão supera a idéia de separação entre os integrantes, pois, dentro da cooperativa, todos são ao mesmo tempo cooperantes e cooperados. Desse modo, ao mesmo tempo em que criam as regras a serem cumpridas, também se sujeitam às regras que eles próprios criaram, aproximando-se, assim, de uma democracia direta interna.

Registre-se, ainda, que, dentro da perspectiva do direito social, o cooperativismo se coloca em uma lógica intermediária, ou seja, na medida em que se afasta do Estado, se auto-regulando e se autogestionando, também se mantém subordinado aos princípios constitucionais dentro de uma perspectiva de subsidiariedade.

Nesse aspecto, importante ressaltar os ensinamentos de Baracho (1996) quando define o princípio da subsidiariedade sob três dimensões. A primeira perspectiva diz respeito à esfera internacional, regulando a relação entre Estados-nação, em face das comunidades supranacionais e da possibilidade um governo mundial. A segunda perspectiva ou dimensão guarda relação com a organização federativa, em âmbito interno, e com as relações entre os entes federados, preservando a autonomia da sociedade e dos entes locais, mas sem deixar de agir quando necessário. Por sua vez, a terceira perspectiva guarda relação com o relacionamento entre Estado e sociedade civil, promovendo uma cidadania ativa, de modo que o Estado venha a atuar somente nos campos em que a própria sociedade não puder de forma autônoma agir.

Segundo Baracho (1996) a subsidiariedade é uma idéia que surge a partir das crises do Estado-nação e da consagração do pluralismo como um valor fundamental da sociedade contemporânea. Para o autor o princípio da subsidiariedade se apresenta como critério definidor da repartição de competências, tendo o espaço local como elemento predominante, uma vez que mais próximo do cidadão, em que os demais entes apresentam-se como subsidiários do ente federativo local e, por sua vez, o Município se apresenta como subsidiário da sociedade, caracterizada como ator social.

Dentro dessa terceira perspectiva ou dimensão, na medida em que a sociedade se afasta, de modo independente do Estado, buscando solucionar autonomamente os problemas que afligem o grupo social, também depende do Estado como incentivador e fomentador das práticas cooperativas por meio de políticas públicas.

Tenha-se presente que, no caso brasileiro, durante o período anterior a Constituição Federal de 1988, em que o cooperativismo, inicialmente, não era regulado e, posteriormente, enquanto esteve regulado apenas por leis esparsas infraconstitucionais, o sistema se caracterizava, primeiro, como um direito social puro e independente, e depois próximo a um direito social anexado, uma vez que dependente do regime imposto pela ordem estatal, não sendo possível sequer a existência de cooperativas sem a prévia autorização de constituição pelo Estado. Contudo, a partir da Constituição de 1988, que modificou a relação existente entre Estado e cooperativas, ficando àquele o papel de incentivador e não mais de controlador, o cooperativismo passou a se caracterizar, dentro da perspectiva de direito social condensado, como uma verdadeira organização igualitária de colaboração.

Assinale-se, ainda, que ao mesmo tempo em que o princípio democrático das “portas abertas” abre a possibilidade de que qualquer indivíduo faça parte de uma cooperativa, o seu estatuto, elaborado em assembléia, em que cada cooperante representa um voto, permite ao grupo a faculdade de exclusão daqueles integrantes que não se comportem de acordo com os princípios do cooperativismo, caracterizando, assim, a autonormatividade interna própria do grupo, reconhecida socialmente e independente do Estado. Caracterizada, assim, a lógica reflexiva Habermasiana, uma vez que os integrantes da cooperativa são, simultaneamente, autores e destinatários do direito, alcançando, por meio do consenso, a legitimidade necessária a partir da própria sociedade.

Ao ensejo da conclusão deste item, cumpre assinalar que o cooperativismo obtém sua eficácia através da democracia, uma vez que sua efetividade não está condicionada a uma ordem coativa, mas sim a um processo de auto-regulamentação e inserção social, fruto da articulação comunicativa dos integrantes da sociedade.

Por essa razão, com a tutela legal ao cooperativismo por parte do Estado, seja de forma constitucional ou infraconstitucional, ocorre a incorporação pela ordem estatal das regras produzidas de forma independente pelo grupo social, estabelecendo elementos que conectam os atores sociais no processo de organização da sociedade, mantendo o respeito ao texto constitucional, baseadas na democracia e no respeito à dignidade da pessoa humana, numa perspectiva de gestão compartilhada, por meio de uma cidadania participativa e de apreensão do espaço público estatal pela sociedade.

Para melhor compreensão do tema em análise, faz-se necessário o acompanhamento da evolução do Estado e do Cooperativismo, razão pela qual se passará a efetivar o referido estudo.

2.Estado e Cooperativismo

Inicialmente, cumpre referiri, com base em Schneider (1999), que o cooperativismo surge num contexto de afirmação extremada do predomínio do interesse privado sobre o coletivo e o comunitário, com todas as conseqüências em termos de concentração de poder e de renda, como é próprio do capitalismo industrial nascente. Para o autor, ao tentar superar a absolutização do interesse privado e suas conseqüências, a cooperação institucional e sistemática então emergentes se empenharão por resgatar e reforçar o interesse coletivo e comunitário.

O cooperativismo, como sabido, enquanto sistema organizado tem seu marco histórico em 1844[3], quando 28 tecelões que, como seus conterrâneos sofriam as conseqüências e os rigores do fenômeno histórico excludente representado pela revolução industrial, se organizaram em uma sociedade de consumo que tinha como finalidade reformar o conjunto do ambiente social, mediante o auxílio mútuo, lançando mão dos meios que estavam ao seu alcance para melhorar a sua situação social e econômica.

Desse modo, importa referir que o cooperativismo surge como uma manifestação do direito social puro e independente, nos moldes do pensamento de Gurvitch (1932), uma vez que o sistema tem como proposta a organização de uma estrutura independente do Estado, uma vez que o sonho dos fundadores da Sociedade dos Probos Pioneiros de Rochdale representava mais que a simples melhoria de sua situação econômica; representava, como refere Holyoake (2001, p. 24), “a transformação do mundo” por meio da cooperação.

Referida afirmação é de possível constatação a partir dos projetos enunciados pela sociedade como: abrir um armazém para venda de alimentos e roupas a preços mais baixos que os do mercado para os associados; comprar ou construir casas para os membros, melhorando, assim, seu estado doméstico e social; fabricar artigos para a venda, não com o intuito de lucro, mas para proporcionar trabalho para aos cooperadores desempregados; adquirir ou arrendar campos para que os desocupados e aqueles mal-remunerados pudessem cultivar; e por fim, “a organização das forças da produção, da distribuição, da educação e do seu próprio governo; ou, em outros termos, estabelecerá uma colônia indígena[4], na qual os interesses serão unidos e comuns”.(HOLYOAKE, 2001, p. 25) (grifos nossos)

Foram os primeiros a definir as regras de funcionamento de um sistema cooperativo, as quais foram confirmadas pela experiência, graças ao bom senso e à sabedoria de seus princípios, que acabaram sendo disseminados por todo o mundo. Nesse sentido, Schneider (1999), no que tange ao ideal dos pioneiros de Rochdale, característicos de um direito social puro e independente, refere que:

O ideal dos pioneiros de Rochdale, discutido e amadurecido ao longo de muitas reuniões e debates desde 1843, quando os companheiros que se reuniam eram conhecidos como um círculo owenista – círculo owenista Nº 24 – ou também como um grupo “socialista” e como membros de uma “friendly society”, não era apenas para constituir cooperativas de consumo como forma de superação da grave situação do proletariado, mas, sim, chegar a constituir colônias cooperativas autônomas, democráticas e auto-suficientes, onde reinasse a ajuda mútua, a igualdade social e a fraternidade.

Por seu turno, referida exposição sobre a origem do cooperativismo tem o intuito de demonstrar que o cooperativismo representava mais do que uma atividade econômica, representava um projeto de modificação da sociedade, um verdadeiro projeto de transformação social[5], independente do Estado, caracterizando um direito social puro e independente.

Nesse ponto, importa ressaltar a evolução do sistema cooperativista, de modo que a partir da primeira cooperativa de Rochdale, composta por vinte e oito indivíduos, se alcancem hoje números consideráveis, conforme informa o presidente da Aliança Cooperativa Internacional, Ivano Barberini:

Temos 180 anos de história, o movimento cooperativo conta com 800 milhões de sócios, 100 milhões de adeptos, há 400 milhões de agricultores associados em cooperativas, aliás, 50 por cento da produção agrícola mundial passa pela actividade das cooperativas. O movimento cooperativo está presente em mais de 100 países e em todos os sectores econômicos. (INSCOOP, 2005, p. 17)

Por fim, realizada essa análise inicial sobre a evolução do Estado e o surgimento do cooperativismo como instrumento de defesa e de mudança social, cabe analisar o papel do Cooperativismo na sociedade contemporânea frente ao múltiplo processo de crise por que passa o Estado Contemporâneo.

Quanto ao contexto de crises e transformações do Estado, cumpre destacar que uma virtude apresentada pelo cooperativismo está no fato de, apesar das transformações da economia, do Estado e de suas constituições, ter mantido sua essência, desde seu surgimento oficial, em 1844, a partir do espaço local, ampliou seu campo de atuação na medida em que foram ganhando destaque os Direitos Sociais, pois, como define Vienney apud Couvaneiro (2001, p. 35):

O objecto fundamental do cooperativismo, que surgiu como resposta às condições degradantes da situação humana, em conseqüência da revolução industrial, repousa na determinação de um grupo subjugado de fazer face ao poder de um outro, que o dominava; de situar-se nessas transformações e identificar os agentes sócio-económicos em presença. Os actores que estão na origem desta organização vão experimentar adoptar e explicar o princípio da formação dos objectivos e regras comuns, que irão pôr em acção (…) e desenvolver um projecto de mudança com a participação responsável de todos os membros.

Assim, diante de todo o exposto, constata-se que o contexto histórico atual exige uma mudança de postura do ator social frente ao Estado[6] (que nada mais é do que parcela da sociedade representada). Desse modo, suas necessidades se ampliam a cada momento, em nível global, sendo que para Moreira (2001, p. 23) “trata-se, no fundo, de promover e apreciar criticamente experiências que sejam seguidoras dos princípios cooperativos, numa ambição de globalização solidária que sirva de contraponto à globalização liberal, ideologicamente individualista”.

Dentro dessa idéia de transformação da sociedade, verifica-se também a transformação do cooperativismo, pois Rodrigues (2001, p. 47) refere que há cerca de uns trinta anos, iniciou-se um movimento renovador não só na Europa, mas no resto do mundo, que culminou, em 1995, com o Congresso, realizado em Manchester, da Aliança Cooperativa Internacional, em que foram definidos os seus princípios, que vieram a influenciar a revisão da Constituição da República Portuguesa.

Hoje, nota-se uma profunda mudança na orientação do ideal cooperativo em relação à face tradicional do movimento. Então, o objetivo predominantemente econômico, substitui-se o operário ao patrão e ao domínio capitalista na produção. Recentemente, o objetivo principal não é a economia, mas usá-la na valorização do social e da solidariedade.

Está com um problema jurídico e precisa de uma solução rápida? Clique aqui e fale agora mesmo conosco pelo WhatsApp!

Destarte, o autor entende que, atualmente, a finalidade das cooperativas é privilegiar a solidariedade humana e reforçar ou alargar a intercooperação, reagindo contra a exclusão social e auxiliando no sucesso de uma sociedade verdadeiramente democrática, em que as cooperativas podem, “dentro da sua actividade, integrar os excluídos da produção em domínios socialmente úteis”. (RODRIGUES, 2001, p. 47)

A cooperativa possibilita, assim, que o cidadão, dentro de seu ambiente local, consiga cooperar com influência global,[7] sentindo-se valorizado e agente de mudança, através da eqüidade na repartição dos ganhos, e da inclusão no mercado de trabalho, com independência suficiente para sair da posição de cliente do Estado, passando para uma posição de co-partícipe.

Por fim, realizadas essas considerações referentes ao sistema cooperativista como uma manifestação do direito social condensado, analisada a evolução da relação entre sociedade e Estado, assim como o surgimento do cooperativismo, seus valores, princípios e seu projeto de mudança social, e o papel do movimento na sociedade contemporânea, pode-se passar para a análise do tratamento jurídico dispensado a esse sistema no Brasil e para o papel do cooperativismo solidário como instrumento de desenvolvimento de uma cidadania ativa e participante.

3. Tratamento jurídico dispensado ao Cooperativismo Solidário no Brasil

Dentro das perspectivas expostas, quanto ao cooperativismo e ao direito social de Georges Gurvitch, importa ressaltar que no Brasil, inicialmente[8], o cooperativismo se manifestou como um direito social puro e independente, uma vez que se organizou alheio ao Estado e sem possuir qualquer vínculo com o mesmo, seja de dependência, seja de subordinação.

Com efeito, ainda quanto à origem e à organização do sistema cooperativista, conforme refere Cracogna (2004), as legislações cooperativas são posteriores às organizações cooperativas. Desse modo, o fenômeno social do cooperativismo passou a ser positivado bastante tempo depois de seu surgimento.

No Brasil, encontra-se as primeiras legislações no início do século passado. Contudo, desde que o cooperativismo aportou em terra brasileira, conviveu, na sua maior parte, com governos autoritários, pelos quais por conseqüência, não eram bem-vindas práticas democráticas, como as possibilitadas pelo cooperativismo. Dessa forma, o Estado impôs freios ao sistema – evitando que as referidas práticas se tornassem comuns e propagadas – por meio de um mecanismo de controle do Estado sobre a criação e o funcionamento de cooperativas.

Por conseguinte, os meios utilizados para impedir a divulgação de idéias democráticas baseadas nas práticas cooperativas foram legislações que engessaram o sistema, criando limitações que se distanciavam dos ideais de 1844, principalmente no que se refere à atuação e ao envolvimento políticos do indivíduo. Num governo autoritário capitalista não haveria como se conceber a possibilidade do surgimento de grupos formados de indivíduos que divulgassem a transformação da realidade por meio da cooperação, com idéias muito próximas das socialistas.

Como refere Perius (2001, p. 28), o cooperativismo avançou no Brasil com a Constituição Federal de 1988, em razão da proteção que, ao sistema, foi consagrada pelos constituintes. Para o autor “trata-se de um grande avanço e, comparado com as Constituições de outros países que também o protegem, pode-se afirmar, sem sombra de dúvida, que se trata de um dos melhores textos constitucionais sobre cooperativismo”. Entre os exemplos de proteção, podem-se citar o fim da tutela estatal, o papel de incentivador do Estado e o reconhecimento do ato cooperativo.

A lei cooperativa nacional (Lei nº 5.764/71) define, em seu artigo 79, o ato cooperativo como sendo aqueles atos praticados entre as cooperativas e seus associados, entre esses e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associadas, para a consecução dos objetivos sociais, não implicando o mesmo operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria. Nesse lanço, cabe destacar que as legislações cooperativas de vários países consagram o ato cooperativo, como é o caso da Espanha, Bélgica, França, Argentina, Paraguai, Uruguai, Colômbia, Costa Rica, Cuba, República Dominicana, Peru e Alemanha. Merecendo destaque, ainda, países como Portugal, Itália, Grécia e Tchecoslováquia que, como o Brasil, oferecem proteção constitucional ao cooperativismo. (PERIUS, 2001)

Por conseguinte, em um segundo momento, compreendido entre a edição da primeira norma[9] que tratava das cooperativas e a promulgação da Constituição Federal de 1988, o cooperativismo veio a se caracterizar como um direito social anexado, uma vez que sujeito a tutela do Estado, sem qualquer tipo de autonomia, sujeitando-se à autorização estatal para seu funcionamento e sua regulação.

Em razão de ser o cooperativismo um aliado do Estado, uma vez que assume responsabilidades de interesse público, numa postura de co-participante, é que veio a receber tutela constitucional, pois quanto maiores as responsabilidades assumidas pela sociedade, mais leve o fardo do Estado. Dessa forma, como refere Perius (2001, p. 28), o cooperativismo avançou no Brasil com a Constituição Federal de 1988, em razão da proteção que ao sistema foi consagrada pelos constituintes. Para o autor, “trata-se de um grande avanço e, comparado com as Constituições de outros países que também o protegem, pode-se afirmar, sem sombra de dúvida, que se trata de um dos melhores textos constitucionais sobre cooperativismo”. Entre os exemplos de proteção, podem ser citados o fim da tutela estatal, o papel de incentivador do Estado e o reconhecimento do ato cooperativo.[10]

A Constituição Federal determinou a autonomia das cooperativas, no inciso XVIII do artigo 5º[11], o que representou um grande avanço para o cooperativismo, acabando com a tutela do Estado, alinhando-se com o cooperativismo dos países desenvolvidos.

Encerrada a interferência estatal, coube ao Estado a missão de incentivar e estimular o cooperativismo, como se verifica a partir da leitura do parágrafo segundo, do artigo 174, do texto constitucional: “A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo”.

Determinou, ainda, a Carta Magna que o ato cooperativo recebesse adequado tratamento, consagrando seu conceito no texto constitucional, além da determinação do estabelecimento de normas tributárias adequadas através de lei complementar, como se verifica no art. 146, III, c[12], da Constituição Federal.

Desse modo, a cooperativa no sistema brasileiro é considerada pessoa jurídica de direito privado, sociedade civil sem fins lucrativos, cuja natureza está prevista nos artigos 5º , inciso XVIII, e 174, parágrafo 2º da Constituição Federal, artigos 1.093 a 1.096 do Código Civil de 2002, e na Lei 5.764, de 16/12/1971, cujo objetivo é a prestação de serviços aos seus associados, promovendo a soma de esforços para ajuda mútua, atendendo às necessidades comuns.

Dessa forma, a partir da Constituição Federal de 1988, o cooperativismo passa a se caracterizar como direito social condensado, uma vez que livre para atuar independente do Estado, mas respeitando os princípios constitucionais esculpidos na Carta Magna.

Destaca-se que, a partir da Constituição de 1988, foram editadas diversas leis que beneficiaram a sociedade por meio do cooperativismo, merecendo destaque a Lei nº 9.867, de 11 de novembro de 1999, que dispõe sobre a criação e o funcionamento de cooperativas sociais,[13] visando à integração social dos cidadãos em desvantagem.

Dentro desta perspectiva de atuação da sociedade visando solucionar os problemas por meio da articulação dos atores sociais, dispõe sobre a criação e o funcionamento de cooperativas sociais, visando à integração social dos cidadãos. Referido dispositivo legal é de suma importância, haja vista que marca o início oficial do cooperativismo solidário no Brasil.

Nesse sentido, Pinho (2001, p. 08) destaca que a “eficiência das redes sociais de solidariedade e de confiança, que estão crescendo no interior de comunidades e de populações locais, tem sido favorecida pela proximidade geográfica e temporal, pela confiança interpessoal e pela fiscalização e sanção do próprio grupo”.

Conforme refere o INSCOOP (2005, p.10)

Com século e meio de existência, o movimento cooperativo assistiu ao desenvolvimento de cooperativas em sectores que vão para além das tradicionais cooperativas de consumo, de produção, agrícolas e de crédito. Surgiram também, em todo o mundo, associações e fundações que, com as cooperativas, têm partilhado os domínios da defesa do meio ambiente, da saúde, do desenvolvimento regional ou comunitário, da cultura, do combate à pobreza, da inclusão social, da deficiência, da protecção aos imigrantes e dos cuidados prestados às pessoas em situações de maior vulnerabilidade.

Desse modo, o cooperativismo aposta em valores que privilegiam as pessoas acreditando no desenvolvimento da pessoa humana, destacando, dentro da ótica de Gurvitch, que o mesmo “é independente face ao Estado. Combina o local com o global e promove o próprio espírito de cidadania e a participação comunitária, em moldes democrática e civicamente responsáveis”. (INSCOOP, 2005, p. 10)

Segundo o dispositivo legal pátrio, as cooperativas sociais são aquelas cooperativas constituídas com a finalidade de inserir as pessoas em desvantagem no mercado econômico, por meio do trabalho, fundamentando-se no interesse geral da comunidade em promover a pessoa humana e a integração social dos cidadãos[14].

Do texto em análise depreendem-se objetivos sociais importantes, como a inclusão social de pessoas em desvantagem, a defesa do interesse geral da comunidade, a promoção da pessoa humana e a integração social dos cidadãos. Conforme Martins (2005), “a leitura do último item do artigo 1° deixa evidente que este tipo de cooperativa está sendo criada para inserção de certo tipo de pessoas em todas (absolutamente todas) as formas de atuação produtiva em nossa sociedade”.

Cai a lanço notar que ficou registrado, na conferência européia sobre economia social, pelo comitê de coordenação das Associações Cooperativas Européias, o compromisso do movimento cooperativo em “lutar contra a exclusão, por empregos que envolvam simultaneamente a solidariedade e a responsabilidade, para ajudar os excluídos a saírem da exclusão de modo a poderem eles próprios virem a ajudar os outros”(INSCOOP, 2005, p. 31). Corrobora, assim, o espírito da lei brasileira que é o de propiciar que as pessoas em dificuldade possam, na medida em que se entreajudam, no futuro ajudar outras pessoas em condições de exclusão social[15], além dos princípios fundamentais do Estado brasileiro constantes do artigo primeiro da Constituição Federal.

Num segundo lanço, importa referir as atividades a serem desenvolvidas pelas cooperativas sociais, incluindo-se, entre suas atividades, a organização e a gestão de serviços sociossanitários e educativos e o desenvolvimento de atividades agrícolas, industriais, comerciais e de serviços[16]. Desse modo, cumpre relevar que as Cooperativas Sociais organizarão seu trabalho, especialmente no que diz respeito a instalações, horários e jornadas, de maneira a levar em conta e minimizar as dificuldades gerais e individuais das pessoas em desvantagem que nelas trabalharem, e desenvolverão e executarão programas especiais de treinamento, com o objetivo de aumentar-lhes a produtividade e a independência econômica e social.

Nesse aspecto, importa relevar, também, determinação de fundamental importância para atingir-se os fins propostos pelas cooperativas sociais, que é a determinação que estabelece que o estatuto da cooperativa social poderá prever uma ou mais categorias de sócios voluntários; que lhe prestem serviços gratuitamente e não estejam incluídos na definição de pessoas em desvantagem.

Referida passagem, juntamente com a proposta de defesa do interesse geral da comunidade, da promoção da pessoa humana e da integração social dos cidadãos, é o que diferencia esse tipo de sociedade cooperativa dos demais tipos de cooperativas existentes, aproximando-as das organizações não-governamentais e das organizações da sociedade civil de interesse público, pois para essa categoria de associados não há qualquer tipo de retorno econômico, nem, frise-se, repartição de sobras[17].

Nesse aspecto, Martins (2005) também é claro ao referir que “a cooperativa social pode ser mais do que uma cooperativa de trabalho, pode se encaixar perfeitamente no conceito que temos de Organizações da Sociedade Civil, que promovem, em última análise, a garantia de direitos sociais básicos que hoje ganham normalmente o nome de direitos de cidadania”.

Assemelha-se a importância das cooperativas solidárias com a das ONGs, uma vez que essas organizações também estão alicerçadas na solidariedade humana, amparadas na noção de sociedade civil baseada numa terceira dimensão, na qual prevalecem esses valores, a fim de que se construa uma esfera social pública. Trata-se de uma importante representação da constituição do espaço público não-estatal, pois em que pese sua não-inserção à estrutura das entidades estatais, possuem um viés público significativo em função dos objetivos que perseguem.[18]

Dentro dessa ótica de auxílio entre Estado e sociedade, partindo da análise de um direito social condensado, com base em Gurvitch, verifica-se que o mesmo se opera em uma nova lógica no relacionamento entre Estado e sociedade, a partir de uma estratégia de integração, substitutiva da lógica predominante desde o liberalismo: um ordenamento estruturado com base na dominação.

A elaboração do Estado Democrático de Direito, consoante o preâmbulo da nossa Magna Carta de 1988, pressupõe a construção de uma cidadania solidária, comprometida com a construção de uma sociedade justa. Para tanto, são fundamentais novas possibilidades de relação entre sociedade e Estado, tanto no que se refere a novas modalidades de participação nas decisões, como a novas formas de relação entre democracia representativa e democracia participativa, e a alterações necessárias no interior do próprio Estado.

Desse modo, assume relevo a questão do cooperativismo, no sentido de uma participação ativa dos grupos da sociedade na busca da solução das demandas que os afligem. Verifica-se, assim, no paradigma da sociedade civil o surgimento de uma terceira instância, segundo a qual se constata uma integração construtiva e sinérgica entre Estado, mercado e sociedade civil, em que deve esta controlar os primeiros.

Essa transformação entre Estado e sociedade civil moderna deve ter como eixo a cidadania, em que espaços públicos independentes das instituições do governo, do sistema partidário e das estruturas do Estado são condições necessárias de uma democracia contemporânea, ao mesmo tempo em que são pontos de conexão entre as instituições políticas e as demandas coletivas, entre as funções de governo e a representação de conflitos.

Dessa forma, entende-se que, nessa perspectiva, possibilita o associativismo, numa nova dimensão quantitativa e qualitativa das associações da sociedade civil, a superação das formas tradicionais de clientelismo, populismo e corporativismo (VIEIRA, 2001).

Por outro ângulo, Roberts (1997) entende que a família, a comunidade, e as associações voluntárias são instrumentos promissores de desenvolvimento de um modelo de cidadania social menos centrado no Estado, em que as estratégias voltadas para o acesso a serviços sociais se tornaram uma base para a construção de importantes movimentos sociais, como sindicatos e cooperativas de produtores, apesar das limitações impostas pelo mercado.

O autor destaca que uma base sólida de construção de cidadania social se encontra nas atividades associativas e da sociedade civil, por meio de uma multiplicidade de redes informais e de associações voluntárias dedicadas a “suprir necessidades específicas e proporcionando serviços sociais, ou constituindo foros para a manifestação de idéias, ou centros de ajuda mútua”. (ROBERTS, 1997, p.18)

Segundo Vieira (2001), esse setor público não-estatal ou terceiro setor, setor social, organizações da sociedade civil ou organizações não-lucrativas, destacam-se em função de sua atuação descentralizada, de sua estrutura leve, desburocratizada e pelo seu contato permanente com a população, apresentando, assim, uma eficácia na realização de seus objetivos sociais e uma eficiência no emprego de meios superior ao setor público, em que a participação e a cidadania são conceitos fundamentais.

Nesse sentido, para Pinho (2004, p. 07):

a emergência do ‘cooperativismo solidário’ significa o reconhecimento de outra lógica gestionária na busca de uma nova economia que consiga abranger os micros (microcrédito, microemprendedores, microautogestores, clubes de troca e outros) e os excluídos (sem-teto, sem-terra, sem-conta bancária, sem-garantia patrimonial). Para isso, tenta formas de rearranjo econômico e social com base na cooperação espontânea e na solidariedade. Tentativa que fez surgir uma nova vertente cooperativa solidária, paralela ao cooperativismo tradicional, e embasada na ética, no caráter dos associados e em sua mútua confiança e espírito de solidariedade.

Como se observou por meio da análise de referida legislação, Cooperativas Sociais são aquelas cooperativas constituídas com a finalidade de inserir as pessoas em desvantagem, como deficientes físicos, sensoriais, psíquicos e mentais, no mercado econômico, por meio do trabalho, e fundamentam-se no interesse geral da comunidade em promover a pessoa humana e a integração social dos cidadãos, incluindo entre suas atividades a organização e gestão de serviços sociossanitários e educativos e o desenvolvimento de atividades agrícolas, industriais, comerciais e de serviços.

Dessa forma, constata-se a existência de sócios que não recebem qualquer tipo de retorno econômico, pois o retorno de seu esforço e trabalho vai para as pessoas em desvantagem e para a sociedade. Nesse lanço, poder-se-ia, inclusive, afirmar que para as pessoas em desvantagem o que importa não é o retorno econômico que possa advir com o seu trabalho, mas sim a inclusão social proporcionada pelas Cooperativas Sociais.

Em suma, nesse tipo de sociedade cooperativa, o que importa é a inclusão social proporcionada e não o retorno econômico. Tanto que existem sócios que são voluntários e não recebem qualquer retorno financeiro, assim como para os sócios que por ventura recebam algum retorno (os próprios deficientes, por exemplo), o que importa é a inclusão social proporcionada. Desse modo, constata-se que as cooperativas sociais que, por conseguinte, têm como objeto social a solidariedade e a inclusão social não podem, de forma alguma, ser consideradas segundo setor ou mesmo economia social, uma vez que ultrapassam os valores econômicos, atingindo os valores de solidariedade, em que o maior beneficiário é a sociedade e o Estado.

Como visto, a constituição protege e incentiva o cooperativismo de forma direta em duas passagens de seu texto. A primeira delas quando refere, no parágrafo segundo, do artigo 174, do texto constitucional, que a lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo. A segunda delas quando determinou que o ato cooperativo recebesse adequado tratamento, consagrando seu conceito no texto constitucional, além da determinação do estabelecimento de normas tributárias adequadas através de lei complementar, como se verifica no art. 146, III, c, da Constituição Federal.

Com efeito, quanto à segunda passagem, cumpre esclarecer que a expressão normas tributárias adequadas não significa isenção de impostos. Significa, sim, um tratamento diferenciado ao cooperativismo em razão de seu diferencial econômico e social, próprio de todos os ramos cooperativos em geral. No entanto, para que o referido tratamento seja adequado se faz necessária a compreensão da extensão do ato cooperativo, principalmente no que tange ao seu alcance social, possibilitando, desse modo, um tratamento diferenciado, inclusive entre os ramos cooperativos.

Desse modo, possibilitando um tratamento diferenciado para as cooperativas sociais, será possível fomentar a criação de novas cooperativas sociais, do ramo especial, por meio da extrafiscalidade. Nesse ponto, é importante destacar que, segundo informações da OCB[19], das 7.355 cooperativas existentes em dezembro de 2003, em território brasileiro, apenas 07 delas eram do ramo especial, que abrange as cooperativas sociais, justificando, assim, a adoção de medidas que fomentem a criação de novas cooperativas sociais, uma vez que as mesmas encontram-se dentro de uma nova perspectiva intermediária entre Estado e sociedade civil, por meio da assunção de responsabilidades por parte do cidadão.

Considerações Finais

O presente estudo teve como marco referencial teórico a proposta de um Direito Social Condensado de Georges Gurvitch, uma vez que a referida proposta possibilita a assunção de responsabilidades por parte da sociedade civil, sem se distanciar dos mínimos referenciais constitucionais necessários.

Não se podendo olvidar que, para tanto, é essencial que se faça a utilização do princípio da subsidiariedade em sua terceira dimensão, que trata da relação entre Estado e sociedade civil.

Posta assim a questão, é de se dizer que o sistema cooperativo pode ser entendido dentro de uma proposta de direito social condensado, uma vez que representa um poder que não está ligado à uma coação incondicionada, funcionando na maioria das vezes sem coação, composto por pessoas coletivas complexas que formam uma associação igualitária e não de hierarquia de dominação.

Por essa razão, com a tutela legal ao cooperativismo por parte do Estado, seja de forma constitucional ou infraconstitucional, ocorre a incorporação pela ordem estatal das regras produzidas de forma independente pelo grupo social, estabelecendo elementos que conectam os atores sociais no processo de organização da sociedade, mantendo o respeito ao texto constitucional, baseadas na democracia e no respeito à dignidade da pessoa humana, numa perspectiva de gestão compartilhada, por meio de uma cidadania participativa e de apreensão do espaço público estatal pela sociedade.

Em analisando o tratamento jurídico dispensado ao cooperativismo no Brasil e o surgimento do cooperativismo solidário – as cooperativas sociais –, constatou-se o seu papel como instrumento no desenvolvimento de uma cidadania participativa e na aquisição de um espaço público não-estatal por parte da sociedade.

Diante de tudo o que foi exposto, cabe por fim destacar que a mudança a ser alcançada necessita de apoio do Estado, por meio de uma modificação cultural que só pode ser alcançada pela educação, e por meio de incentivo à formação de novas cooperativas sociais. Por isso, importa que sejam definidas políticas públicas de incentivo à prática cooperativa, em especial políticas tributárias, diferenciando o tratamento dispensado ao ato cooperativo, em particular, ao ato cooperativo solidário.

 

Referências
AZAMBUJA, Darci. Teoria Geral do Estado. 34ª ed. São Paulo: Editora Globo, 1995.
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio de subsidiariedade. Conceito e evolução. Rio de Janeiro: Forense, 1996.
BEILHARZ. Peter. Globalização, bem-estar e cidadania. [tradução de Luís Cláudio Amarantes]. in Francisco de Oliveira e Maria Célia Paoli (orgs.) Os sentidos da democracia. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. 177-205
BIALOSKORSKI NETO, Sigismundo. Cooperativismo é economia social, um ensaio para o caso brasileiro. In III Seminário Tendências do Cooperativismo Contemporâneo. Cuiabá: OCB, 2004.
BORBA, Everton José Helfer de; HERMANY, Ricardo; TABARELLI, Liane. Cooperativismo solidário: uma nova concepção de cidadania como instrumento para políticas públicas de inclusão social. In Direitos Sociais e políticas Públicas: Desafios Contemporâneos, Santa Cruz do Sul, tomo 4, p. 1141-1167, 2004.
CICONELLO, Alexandre; LARROUDÉ, Elisa Rodrigues Alves. Por que e como constituir uma ONG. In Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais C:Documents and SettingsWinXPMeus documentosEnsinoPós GraduaçãoMestrado em DireitoDissertaçãoVersão DefinitivaMaterialABONG – Associação Brasileira de Organizações não Governamentais.htm – 28/08/2005
CORRÊA, Darcísio. A Cidadania e a Construção dos Espaços Públicos in Desenvolvimento em questão: Revista do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento, Gestão e Cidadania. Ano 1, n. 1 (jan./jun.2003). Ijuí: UNIJUÌ, 2003.
COUVANEIRO, Maria da Conceição Henriques Serrenho. As práticas cooperativas: mudanças pessoais e sociais. Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo-
CRACOGNA, Dante. El acto cooperativo: concepto y problemas. In: REGIME TRIBUTÁRIO DAS SOCIEDADES COOPERATIVAS. Porto Alegre: FESDT, 2004.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 20ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2000
ESTERUELAS, Cruz Martinez. La agonía del Estado. Un nuevo orden mundial? Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2000.
FRÓES, Oswaldo. Cooperativas de Educação. Rio de Janeiro. Editora Mackenzie, 2001.
GARCIA-PELAYO, Manuel. Las transformaciones Del Estado contemporáneo. Madrid: Alianza Editorial, 1977.
GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo entre nós. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.
GÓMEZ, José Maria. Política e democracia em tempos de globalização. Petrópilis: Vozes, 2000.
GONÇALVES, José Augusto. Educação cívica segundo António Sérgio: sua actualidade. Lisboa: INSCOOP, 2003.
GURVITCH, Georges. L’Idée du Droit Social. Notion et système du Droit Social. Histoire doctrinale depuis le xviie siècle jusqu’à la fin du xixe siècle. Paris: Libraire Du Recueil Rirey, 1932.
______. Tratado de sociología. v2. Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1968.
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional : a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre : Fabris, 1997.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade I. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
HERMANY, Ricardo. Direito Social e Poder Local: possibilidades e perspectivas para a construção de um novo paradigma de integração entre sociedade e espaço público estatal. Tese (Doutorado em Direito) Universidade do Vale do Rio dos Sinos-UNISINOS, São Leopoldo, 2003.
HOLYOAKE, George Jacob. Os 28 tecelões de Rochdale. 7ª ed. Porto Alegre: WS Editor, 2001.
INSCOOP. Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo. Cooperativa & Desenvolvimento. Lisboa: Cooperativa de artes gráficas, 2005.
INSCOOP. Desenvolvido pelo Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo. 2004. Apresenta informações gerais sobre a instituição. Disponível em <http://inscoop.pt>. Acesso em 18 mai. 2004.
INSCOOP. Pensamento Cooperativo. O Terceiro Sector em Portugal. In Revista de Estudos Cooperativos, nº 2, Lisboa, 2001.
_________. Cooperativas, cooperativistas e democracia. Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo-INSCOOP. Pensamento Cooperativo. As relações entre cooperativas e cooperadores. Portugal. In Revista de Estudos Cooperativos, nº 3, Lisboa, 2002.
MARTINS, Paulo Haus. As cooperativas sociais e o terceiro setor. http://www.rits.org.br/legislacao_teste/lg_testes/lg_tmes_jan2000.cfm – 28/08/2005
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002
MORAIS, José Luis Bolzan de. Revisitando o Estado! Da crise conceitual à crise institucional (constitucional) in Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado 2000. São Leopoldo: UNISINOS, 2000.
MOREIRA, Manuel Belo. O movimento cooperativo no contexto da globalização. Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo-INSCOOP. Pensamento Cooperativo. O Terceiro Sector em Portugal. In Revista de Estudos Cooperativos, nº 2, Lisboa, 2001.
OCB. Desenvolvido pela Organização das Cooperativas Brasileira. 2005 <http://ocb.org.br>. Acesso em 30 abr. 2005.
PERIUS, Vergílio Frederico. Cooperativismo e lei. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2001.
PINHO, Diva Benevides. A doutrina cooperativa nos regimes capitalista e socialista. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1965.
______. O cooperativismo no Brasil: da vertente pioneira à vertente solidária. São Paulo: Saraiva, 2004.
REILLY, Charles A. Redistribuição de direitos e responsabilidades – cidadania e capital social. In PEREIRA, L. C. B.; GRAU, N. C. O público não-estatal na reforma do Estado. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1999.
ROBERTS, Bryan R. A dimensão social da cidadania. In Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 33, ano 12. São Paulo: ANPOCS, 1997.
RODRIGUES, Adriano Vasco. Economia Social: aprender a cooperar. Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo-INSCOOP. Pensamento Cooperativo. O Terceiro Sector em Portugal. In Revista de Estudos Cooperativos, nº 2, Lisboa, 2001.
ROSANVALLON, Pierre. A crise do Estado: providência. Tradução de Joel Pimentel Ulhôa. Goiânia/Brasília: Editora da UFG/UnB, 1997.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 1997.
______. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2002.
SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão. 4ª ed. São Paulo: Nobel, 1998.
SCHMIDT, João Pedro. Capital social e políticas públicas In Direitos Sociais e Políticas Públicas: desafios contemporâneos. Tomo II. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2003.
SCHNEIDER, José Odelso. Democracia, participação e autonomia cooperativa. 2ª Ed. São Leopoldo: UNISINOS, 1999.
SÉRGIO, António. Sobre o espírito do cooperativismo. Lisboa: Ateneu Cooperativo, 1958.
SINGER, Paul. A economia solidária.  In Jornal cooperativo de língua portuguesa. Número 34. Lisboa: Editando, 2004.
STRECK, Lênio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania: a sociedade civil na globalização. São Paulo: Editora Record, 2001.
Notas:
[1] Como será demonstrado nos capítulos que seguem, o cooperativismo surge de forma independente da ordem estatal e quando vem a ser incorporado pela mesma, o legislador, por se tratar de uma organização sui generis, fica em dúvida sobre onde enquadrar a sociedade cooperativa. Inicialmente, vai enquadrá-la juntamente com as sociedades comerciais e, posteriormente, acaba enquadrando-a como sociedade civil. Atualmente, o Código Civil de 2002 traz um capítulo específico sobre as sociedades cooperativas. No entanto, define a cooperativa como uma sociedade simples, mas que se regula por estatuto e não por contrato social, que deve ser registrada na Junta Comercial.
[2] Cabe destacar a importância da obra de referido autor, uma vez George Holyoake foi um dos fundadores da cooperativa de 1844, tendo sua obra sido escrita contemporaneamente, e reeditada em 2003, com o desenrolar dos fatos ou logo após, sendo o autor testemunha ocular do surgimento do movimento cooperativista, participando, inclusive, das deliberações nas primeiras assembléias, como refere Schneider (1999, p. 41) “Participaram destas experiências alguns dos futuros pioneiros ou membros da cooperativa de Rochdale, entre os quais Alexander Campell e Georges Holyoake”. Em outra passagem o autor refere a importância de Holyoake na criação da Aliança Cooperativa Internacional, ao referir que “a ACI foi fundada em 1895, especialmente por iniciativa de líderes cooperativistas ingleses, franceses e alemães, destacando-se entre estes o antigo socialista cristão e secretário executivo da União Cooperativa Inglesa, Vansitart Neale, Georges Holyoake, da Inglaterra, e Edouard de Boyve, da França”.
[3] Antes dessa data encontram-se manifestações cooperativas na Mesopotâmia, no segundo milênio antes de Cristo, nos colégios da civilização romana, entre os incas pré-colombianos com as ayllus e com as reduções jesuíticas entre os índios guaranis do Brasil, do Paraguai e da Argentina. Contudo, foram organizações de pequena abrangência geográfica e que tiveram curta duração. (CRACOGNA, 2004)
[4] Entende-se que a referência a “uma colônia indígena” está ligada à construção de uma sociedade alternativa baseada em valores de igualdade e solidariedade, com um sistema econômico de posição intermediária entre o socialismo e o capitalismo.
[5] Assim como, na atualidade, a globalização representa um fenômeno excludente, também acontecia, naquela época, com a revolução industrial.
[6] Rodrigues (2001, p. 52) refere que “em democracia, o principal responsável é o cidadão. Ele é o depositário da única soberania legítima. Sem os cooperantes, a cooperativa também não funciona. Sem democratas não há democracia”. Dentro dessa ótica, o autor entende que as cooperativas são associações livres e solidárias, exercendo quatro funções democráticas e sociais de relevância: (I) são escolas do trabalho e espaços de coesão social, onde impera a solidariedade; (II) “a actividade associativa responde a diferentes problemáticas e sucenidades que não são assumidas pelo sector público nem pelo privado”; (III) são pontos de encontro e de formação de opinião, além de escolas de formação permanente; e (IV) realizam obras benéficas para os cooperantes através da solidariedade social, servindo a produção, prestando assistência a crianças, enfermos e idosos, constituindo, alojando, transportando, instruindo e educando, animando a cultura, a arte e o artesanato.
[7] Cabe ressaltar que as transformações globais se aceleram de tal forma que nos deparamos, inclusive, no momento, com a idéia de cooperativas comunitárias, como a Sociedade Cooperativa Européia (Regulamento CE nº 2157/2001, do Conselho, de 08 de outubro de 2001 – JO L 294, 10 de Novembro de 2001).
[8] Desde o ano de 1841, quando foi fundada pelo francês Benoit Jules de Mure uma colônia de produção e consumo na cidade de Palmital, no Estado de Santa Catarina, e, em 1847, no Pará, a Colônia Teresa Cristina, por Jean Maurice Faivre, inspirada nas idéias de Charles Fourier, assim como em 1891, quando surgem as primeiras cooperativas de consumo, na cidade de Limeira, no Estado de São Paulo, ou, então, já no século XX, no ano de 1902, quando são criadas cooperativas de crédito no Rio Grande do Sul, na cidade de Nova Petrópolis, até o surgimento da primeira lei que regula a matéria cooperativista, o movimento existiu de forma independente do Estado.
[9] A primeira lei relativa a cooperativas foi o Decreto nº 1.637, de 05 de janeiro de 1907, tendo seu conteúdo inspiração na Lei Belga de 1873 que, apesar de não reconhecer uma forma própria, determinava a filiação ao Direito Societário, uma vez que se tratava de entidade cujos membros se uniam para a satisfação de suas necessidades via empresa econômica. Com o Decreto nº 22.239, de 1932, o cooperativismo passou a despertar grande interesse no Brasil, e nesse contexto foi criado um Departamento de Assistência ao Cooperativismo, ligado à Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Governo do Estado de São Paulo, sendo o primeiro instituto oficial da América do Sul cujo objetivo era exclusivamente o cooperativismo, divulgando-o na sociedade brasileira. Segundo o Decreto 22.239, considerava-se as cooperativas como sociedades sui generis, e a atual Lei 5.764/1971 deu-lhes forma própria e, apesar das características peculiares dos seus traços no plano jurídico, estão integradas ao Direito Societário que definiu o seu modelo jurídico.
[10] A lei cooperativa nacional (lei nº 5.764/71) define, em seu artigo 79, o ato cooperativo como sendo aqueles atos praticados entre as cooperativas e seus associados, entre esses e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associadas, para a consecução dos objetivos sociais, não implicando o mesmo operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria. Cabe destacar, ainda, que as legislações cooperativas de vários países consagram o ato cooperativo, como é o caso da Espanha, Bélgica, França, Argentina, Paraguai, Uruguai, Colômbia, Costa Rica, Cuba, República Dominicana, Peru e Alemanha. Merecem destaque, ainda, países como Portugal, Itália, Grécia e Tchecoslováquia que, como o Brasil, oferecem proteção constitucional ao cooperativismo (PERIUS, 2001).
[11] O inciso XVIII do artigo 5º da Constituição Federal refere que “a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento”.
[12] Art. 146. Cabe à lei complementar: III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.
[13] A Organização das Cooperativas Brasileiras classifica as sociedades cooperativas em ramos (agropecuário, consumo, crédito, educacional, especial, habitacional, infra-estrutura, mineral, produção, saúde, trabalho, turismo e lazer e outro). Contudo, Perius (2001) entende que a proposta de ramificação, apesar de didática, não é adequada ao ordenamento jurídico que prevê que as cooperativas poderão adotar por objeto qualquer gênero de serviço, operação ou atividade. Considera, ainda, o autor que a ramificação contraria o princípio da integração cooperativista e que o correto é a distribuição em graus cooperativos.
No sistema português, o Sector Cooperativo organiza-se em doze ramos, sendo interessante o fato de que para cada ramo existe uma legislação específica, destacando-se no contexto o ramo solidariedade social que em muito se assemelha ao ramo especial brasileiro, onde ambos visam, através da cooperação, a proteção a grupos que necessitam de atenção especial, promovendo a satisfação de necessidades, a promoção e a integração. (Fonte: Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo – INSCOOP – Portugal).
[14] Inicialmente, quanto ao objetivo da inclusão social de pessoas em desvantagem, se faz necessário definir quais são essas pessoas. A lei considera, assim, como pessoas em desvantagem os deficientes físicos e sensoriais; os deficientes psíquicos e mentais, as pessoas dependentes de acompanhamento psiquiátrico permanente e os egressos de hospitais psiquiátricos; os dependentes químicos; os egressos de prisões; os condenados a penas alternativas à detenção; os adolescentes em idade adequada ao trabalho e em situação familiar difícil do ponto de vista econômico, social ou afetivo.
[15] Assinale-se, ainda, que o projeto de lei previa, também, entre as pessoas em desvantagem os idosos com sessenta anos ou mais. Contudo, referida previsão foi objeto de veto presidencial em razão de considerar-se que o avanço da medicina vem dilatando a expectativa de vida do ser humano e, em conseqüência, o conceito de idoso. Assim, a definição desse conceito, como constava no projeto, não se coadunava com a realidade, contrariando, por conseguinte, o interesse público. Registre-se, ainda, que o projeto de lei também previa que pelo menos cinqüenta por cento dos trabalhadores de cada Cooperativa Social deveriam ser pessoas em desvantagem, as quais, sempre que isso fosse compatível com seu estado, deveriam também ser sócias da Cooperativa. Da mesma forma ocorreu o veto presidencial em razão de que o referido dispositivo, ao prever a existência de trabalhadores não associados nas Cooperativas Sociais, estaria possibilitando a existência de empregados nas cooperativas, o que as afastariam de sua função social-solidária, uma vez que, conforme as razões de veto, se não são associados, tais trabalhadores são, na verdade, empregados das cooperativas. Em função disso, se possibilitaria o desvirtuamento do espírito do projeto, pois possibilitaria a constituição de Cooperativas Sociais em cujo quadro de associados não contasse sequer uma pessoa tida em desvantagem à luz da proposta em comento. Isso representaria fato mais grave ainda, uma vez que desvirtuaria totalmente o conceito da cooperativa consagrado pelo Direito Positivo Brasileiro, inclusive possibilitando que se abrissem as portas para a proliferação de cooperativas fraudulentas, sem nenhum cunho social de proteção às pessoas que o projeto buscava atingir. Além disso, vale lembrar que a condição de pessoa em desvantagem deve, nos moldes de referida lei, ser atestada por documentação proveniente de órgãos da administração pública, ressalvando-se o direito à privacidade.
[16] Por outro lado, quanto aos aspectos legais estruturais, a lei impõe que na denominação e razão social das entidades é obrigatório o uso da expressão “Cooperativa Social”, aplicando-se-lhes todas as normas relativas ao setor em que operarem, desde que compatíveis com os objetivos da lei em tela.
[17] Por fim, cabe que se registre que o projeto de lei previa que para as cooperativas sociais aplicar-se-iam, naquilo que coubesse, os dispositivos constitucionais referentes às cooperativas, bem como os da Lei no 5.764, de 16 de dezembro de 1971, e os da Lei Orgânica da Assistência Social (Lei no 8.742, de 7 de dezembro de 1993), tendo, no entanto, o referido texto sido vetado em razão do entendimento presidencial de que a aplicação, no que coubesse, das Leis nos 5.764, de 16 de dezembro de 1971, e 8.742, de 7 de dezembro de 1993, seria por demais abrangente ao dispor de assunto de grande repercussão na previdência social. Desse modo, tendo entendido o Presidente da República que permitir que as cooperativa sociais usufruíssem das vantagens concedidas às entidades ali mencionadas desvirtuaria a Lei Orgânica de Assistência Social.
[18] Para Morais (2002, p. 29), essas entidades “podem ser enquadradas em um espaço intermediário entre o público, representado pelos organismos internacionais, e o privado, representado pelas empresas transnacionais”. Conforme Seitenfus (1997, p. 249), trata-se de “organizações privadas, movidas pela solidariedade transnacional, sem fins lucrativos”.
[19] Elaboração GETEC. Fonte: núcleo de banco de dados da OCB – dezembro/2003 – in www.ocb.org.br – link: estatísticas dez/2003

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Everton José Helfer de Borba

 

Mestre em Direito. Especialista em Direito Processual. Especialista em Docência do Ensino Superior. Professor de Direito Constitucional na UNISC – Universidade de Santa Cruz do Sul.

 


 

Está com um problema jurídico e precisa de uma solução rápida? Clique aqui e fale agora mesmo conosco pelo WhatsApp!
logo Âmbito Jurídico