Era uma vez, numa longínqua terra repleta de riquezas naturais, um povo oprimido por reis tirânicos, que impunham a vontade ditatorial através do poder militar do reino. Havia censura e pouca liberdade aos cidadãos do condado. Os revolucionários eram exilados; as leis eram draconianas; suspeitos do cometimento de crimes eram presos para averiguação, e muitos deles à casa não retornavam.
Passado certo tempo a opressão parecia não mais resistir, porque o sentimento de liberdade daquele povo era fervoroso; clamava-se por uma democracia, exigiam-se garantias aos cidadãos. Pedia-se igualdade entre homens e mulheres, sem qualquer outra forma de distinção entre os seres humanos, bem como bradava-se pelo fim à censura e pela presunção da inocência dos acusados.
E assim foi que a nação conquistou dois grandes feitos históricos: eleições diretas para o reinado e a promulgação de uma Constituição liberalista, que instituíra um verdadeiro Estado Democrático de Direito.
O povo vencera a grande batalha contra o despotismo, e feliz estava com isso. Afinal de contas, as garantias individuais fundamentais seriam estendidas a todos os cidadãos. A imprensa passou a ser livre; homens e mulheres passaram a gozar dos mesmos direitos; acusados de crimes passaram a ser presumidos inocentes, salvo provas contundentes em contrário, e outorgado lhes foi o direito de responder o processo em liberdade.
Os exilados puderam retornar às suas casas e a imprensa foi livrada da mordaça. Os filhos puderam ver seus pais inocentes sair da prisão por ausência de provas. O cidadão, enfim, homem ou mulher, deixou de temer o arbítrio e a tirania, passando a usufruir da indeclinável garantia do devido processo legal, regido pelos princípios da igualdade, dignidade e presunção da inocência.
O homem de bem finalmente estava protegido contra generais opressores, delegados tirânicos e juízes reacionários, porque a Constituição havia instituído princípios democráticos liberalistas.
Barbalius era um homem muito mau. Roubava o povo, desviava verbas públicas; contudo, assistia à evolução democrática com sarcástica alegria. “Ora!”, pensava ele, “ainda que o povo um dia perceba minha personalidade delituosa e pretenda processar-me através do Ministério Público, foram eles próprios – os cidadãos – que insistiram em criar princípios como o da presunção da inocência e da liberdade. Como todos são iguais perante a lei, também usufruirei de tais garantias, respondendo eventuais processos em liberdade”.
E continuava Barbalius a praticar seus crimes. Desviava verbas públicas para si, fraudava instituições financeiras; enriquecia, enfim, às custas do sofrido dinheiro que a população entregava ao governo.
O povo continuava a apoiar-lhe, mesmo que com graves denúncias em contrário. Um papiro de circulação nacional alertava a todos o misterioso enriquecimento de Barbalius. “VEJA as inconsistentes e incompatíveis declarações de imposto de renda de Barbalius”, diziam as reportagens. Porém o povo continuava a apoiar-lhe, elegendo-o, através de seus representantes, presidente do parlamento da época.
Chegada a hora, contudo, de um extemporâneo momento de lucidez; insustentável tornara-se a situação de Barbalius, e a sociedade, através do Ministério Público, passou a pedir a sua prisão, ainda que, alienado às reiteradas denúncias, tivesse durante anos sido conivente com a situação. E um juiz da época, que não conhecia o novo sistema constitucional – ou não o respeitava -, mandou prendê-lo. Como num passe de mágica, o grande líder do legislativo nacional passava a ser algemado num verdadeiro espetáculo circense.
Barbalius, como antevira, conseguiu no mesmo dia sua soltura mediante ordem dum tribunal em sintonia com os novos valores constitucionais. E o fez com base em todos os princípios que o próprio povo que pedia sua prisão havia batalhado duramente para conquistar.
Instaurada, portanto, a polêmica. Uns, raivosos, gritavam inconformados: “Como pode esse ladrão estar solto??? Não há justiça neste país???”. Esvaeceram-se, em suas mentes, as gloriosas lutas pelas garantias individuais: passaram a duramente criticar o próprio tribunal que um dia pediram que fosse democrático e liberal.
O tempo parecia apagar o sofrimento daquele povo com a repressão, causando nos reacionários asco aos princípios democráticos liberais. A saudade da caça às bruxas e da inquisição aflorava no peito dos intolerantes: no fundo queriam mesmo atirar Barbalius numa prisão e os princípios liberais no esquecimento.
E Barbalius, tranqüilo, já programava uma nova campanha para cargo eletivo que no futuro lhe garantiria foro privilegiado para responder aos processos criminais. E os reacionários concluíam que realmente Barbalius vivia no país das maravilhas: roubou e mesmo assim permanecia em liberdade.
À mesma conclusão dos reacionários, contudo, chegaram todos os demais homens de bem: o país das maravilhas de Barbalius era o país das maravilhas dos cidadãos de boa índole, todos protegidos pelos princípios constitucionais democráticos. A atmosfera era de liberdade, diferente dos regimes fundamentalistas; sem frias execuções como em alguns regimes orientais; longe da ortodoxia de certas civilizações que desconhecem a democracia.
Os homens de bem, então livres da tirania e apaixonados pela liberdade, passaram a aceitar e tolerar que Barbalius respondesse o processo em liberdade. Reconheceram que o tribunal acertou em soltá-lo, e passaram a prestigiar juízes democráticos. Respiraram fundo, enfim, os ares da liberdade, que, não obstante ainda temporariamente beneficiassem o perverso Barbalius, estariam sempre soprando em proteção aos homens de bom caráter.
Informações Sobre o Autor
Gustavo Henrique Dietrich
Advogado e Professor Universitário em Cascavel-PR