Bem de família: as diferenças entre o Código Civil e a Lei 8.009/90

A origem do instituto do bem de família é norte-americana. Nos Estados Unidos, em conseqüência da grave crise econômica que o atingiu no começo do século XIX, o Estado do Texas promulgou uma lei, em 1839, permitindo que ficasse isenta de penhora a pequena propriedade, sob a condição de sua destinação à residência do devedor. Outros Estados adotaram aquela norma, e assim criou-se o instituto denominado de homestead. Para o ordenamento brasileiro, nas lições de César Fiúza o “bem de família é todo bem imóvel que, por força de Lei ou da própria vontade do dono, se torna impenhorável e/ou inalienável, ficando reservado para a residência da família”.


É uma forma de afetação do imóvel residencial a um destino especial, tornando-o o asilo da família e, assim, imune a persecuções originadas de dívidas posteriores à sua constituição, salvo determinadas situações que analisaremos em um momento posterior.


Há, atualmente, duas espécies de bem de família, ambas incidindo sobre bens imóveis e móveis àqueles vinculados. Primeiramente, temos o denominado bem de família voluntário (Estatuto Civil), que decorre da vontade dos cônjuges, companheiros ou terceiros, dependendo, a sua eficácia, neste último caso, de aceitação expressa dos beneficiários, conforme estabelecido no parágrafo único do artigo 1711 do Código Civil Brasileiro. A outra espécie é a involuntária resultante de estipulação legal (Lei 8009/90), de ordem pública, que tornou impenhorável o imóvel residencial do próprio casal ou da entidade familiar, visando uma proteção automática e eficaz do Estado à propriedade da família, já que nem todos possuem condições ou informações suficientes para proteger juridicamente a sua moradia. Salienta-se que, mesmo a lei 8009/90 fazendo referência somente à impenhorabilidade de “imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar”, existem julgados no sentido de que até mesmo o bem pertencente à pessoa solteira estaria incluído na proteção legal, tendo em vista que o objetivo do legislador foi o de garantir a cada indivíduo um local para morar. Tais espécies possuem significativas diferenças que passaremos a expor.


O bem de família voluntário, estabelecido no artigo 1711 e seguintes do Código Civil, deverá ser instituído pelos cônjuges ou pela entidade familiar (decorre da vontade), mediante escritura pública ou testamento, não podendo seu valor ultrapassar um terço do patrimônio líquido do instituidor. Com este limite pretende-se evitar que parte considerável do acervo ou a totalidade dele permaneçam imobilizadas e sem perspectiva de alienação, o que poderia fomentar atitudes fraudulentas prejudiciais principalmente aos credores. Constitui-se pelo registro de seu título no Cartório de Registro de Imóveis, segundo as diretrizes dos artigos 260 a 265 da Lei de Registros Públicos (Lei 6015/73). Diferentemente, o bem de família involuntário, não exige nenhuma formalidade para a sua instituição já que é de ordem pública, decorrente de lei, visando à proteção da base familiar que é a moradia.


Ao mesmo tempo, o Código Civil (art. 1.711), ao declarar “…mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial” -, determina como regra imposta pelo bem de família voluntário a inalienabilidade do bem, enquanto àquela imposta pelo bem de família legal é a impenhorabilidade do bem.


Ademais, o estatuto civil (art. 1712), admite que o bem de família se constitua em prédio urbano ou rural “com suas pertenças e acessórios, destinando-se, em ambos os casos, a domicílio familiar, e poderá abranger valores mobiliários, cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família”. O aludido dispositivo vincula o bem de família móvel ao imóvel, sendo que o primeiro não poderá existir isoladamente, nem exceder o valor do prédio convertido em bem de família, à época de sua instituição (art. 1713). Por outro lado, a Lei 8009/90, artigo 1º, dispõe que a impenhorabilidade recairá sobre o imóvel residencial da entidade familiar (residência). Abrange o solo e todos os imóveis por acessão física ou intelectual, sendo excluído dos últimos, as obras de arte e os adornos suntuosos. Não estabelece, como no Código, um limite para a instituição que, no estatuto civil, é de até 1/3 do valor do patrimônio líquido da entidade familiar. Na hipótese legal, a única regra estabelecida é que, caso a pessoa possua vários imóveis, será considerado impenhorável aquele de menor valor.


Outra diferença refere-se às exceções estabelecidas em cada um dos institutos, ou seja, quando não serão aplicadas as regras de impenhorabilidade e inalienabilidade. O artigo 1715 do Código Civil dispõe que o bem de família voluntário é isento de execução por dívidas posteriores à sua instituição, salvo as que provierem de tributos relativos ao prédio, ou de despesas de condomínio.  A lei 8009/90 (art. 3º), prevê que o bem será penhorável pelos seguintes créditos: trabalhistas (trabalhadores da própria residência) e previdenciários decorrentes destes; financiamento para aquisição ou construção do imóvel; pensão alimentícia; imposto territorial e predial ou contribuições devidas em função do bem familiar; execução de hipoteca que tem o bem dado como garantia; ou por ter sido o bem adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.


Importante ressaltar que, a Lei do Inquilinato (Lei 8245/91), acrescentou mais uma exceção à impenhorabilidade do bem de família involuntário ou legal. Trata-se da fiança concedida em contrato de locação. Se o inquilino ficar inadimplente, não pagando aluguel ou outros encargos, o fiador será responsabilizado, e seu imóvel residencial poderá ser penhorado. Nas lições de César Fiúza “a regra é absurda, ilegítima e inconstitucional. O imóvel do próprio inquilino, caso tenha um, é impenhorável, enquanto o do fiador responderá pela dívida, que, diga-se de passagem, não é própria. Vê-se, aqui, um atentado contra o princípio da justiça material, corolário de nossa Constituição e, via de conseqüência, de nosso ordenamento jurídico”. Ressalta-se que, hoje existem decisões revelando ser inconstitucional tal exclusão, por contrariar o direito social de moradia, estabelecido no artigo 6º da Constituição Federal, caminho este, a meu ver o mais sensato.


Outrossim, importante demonstrar as formas de extinção das espécies de bem de família. Quanto ao involuntário, nada podemos mencionar, pois como afirmado, decorre de lei, sendo de ordem pública. Entretanto, o voluntário se extinguirá: “com a morte de ambos os cônjuges e a maioridade dos filhos, desde que não sujeitos à curatela” (art. 1722), ou por ordem do juiz, a requerimento dos interessados, desde que comprovada a impossibilidade da manutenção do bem de família nas condições em que foi instituído (art. 1719). Poderá ainda, o juiz, e desde que cumpridas as formalidades estabelecidas no Código, autorizar a sub-rogação dos bens que constituem o bem de família em outros.


Pelo exposto acima e embora ambos os institutos visem à proteção do imóvel destinado à residência familiar, a presença de obstáculos e formalidades para se instituir o bem de família estabelecido no estatuto civil, torna-o raramente utilizado.


Só haverá necessidade de se instituir um bem como de família de forma voluntária, na hipótese do parágrafo único do artigo 5º da Lei 8009/90, ou seja, quando a entidade familiar ou o casal possuir vários imóveis, utilizados como residência, e não desejar que a impenhorabilidade recaia sobre o de menor valor.


Assim, podemos concluir que, a lei 8009/90 veio ampliar o conceito de bem de família, não dependendo mais que a sua instituição seja apenas decorrente de vontade, mediante a observância das formalidades previstas no Código Civil. Surge como uma proteção direta e efetiva do Estado ao núcleo familiar, permitindo que tal defesa se dê ex lege, independente de ato constitutivo ou de registro.


 


Bibliografia

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol I. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1971.

FIUZA, César. Direito Civil Curso Completo. 6ª Edição. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito de Família (Coleção sinopses jurídicas). 11ª Edição. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

MATIELLO, Fabrício Zamprogna. Código Civil Comentado. 2ª Edição. Ed. São Paulo: LTr, 2005.


Informações Sobre o Autor

Joana Câmara Fernandes de Oliveira

Bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Tutora do Curso de Pós-Graduação lato sensu em Direito Registral Imobiliário ofertado pela PUC Minas Virtual, em convênio com o Instituto de Registro Imobiliário do Brasil – IRB; Escrevente cartorária


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