Francenildo Costa, o caseiro que teve sua conta bancária devassada sem autorização judicial, está movendo duas ações de indenização por danos morais. Uma, contra a Caixa Econômica Federal e a outra contra a revista “Época”. Da “Caixa”, ele cobra R$17,5 milhões e da “Época”, R$4,2 milhões. Alega que a ilegalidade lhe causou imenso sofrimento psíquico, a merecer a milionária indenização sugerida na petição inicial.
Para início de consideração, é espantoso que com tantos juristas de plantão assessorando o governo federal, nenhum deles tenha sido consultado sobre o risco de se cometer erro tão elementar. Certamente, nenhum advogado, mesmo de medíocre cultura jurídica, foi indagado. Só com base nesta consideração penso que o Ministro da Justiça — um jurista competente — não sabia da tolice da quebra ilegal do sigilo bancário. Se consultado fosse, vetaria a asneira. E asneira ainda por cima desnecessária, porque nada impediria que a curiosidade fosse plenamente satisfeita mediante uma petição normal dirigida a um juiz. Se o pedido da quebra do sigilo bancário fosse razoavelmente fundamentado — o que seria fácil, pois, em tese, poderia ter havido a compra de um depoimento falso contra o ministro mais importante do governo — o juiz deferiria o pedido, como acabou deferindo depois.
Assim, pode, a opinião pública nacional tranqüilamente isentar de culpa o atual Ministro da Justiça. É grotesco, inimaginável, que um jurista, com sua alta qualificação, fosse aconselhar — ou não impedir, se soubesse —, algo tolo e inútil. Mesmo que ele fosse um “mau caráter” — o que evidentemente não é — não aconselharia a bisbilhotice. Seria o mesmo que alguém acusar um papa moderno de ser o chefe mundial do crime organizado, traficante de escravas brancas, armas e cocaína, além de “serial killer”. Há limites para insultar a inteligência alheia.
A precipitação de alguém do governo acabou derrubando um Ministro da Fazenda respeitado pela sua competência e firmeza em conservar a inflação sob controle. Se fez algo errado quando prefeito, não sei. A queda, ocasionada pela curiosidade impaciente, pode ter conseqüências ainda não totalmente perceptíveis em termos de futuro imediato do país, embora ninguém seja insubstituível.
Menciono, aqui, essa precipitação tola como um exemplo de que praticamente não existe, no país, um necessário mecanismo de aconselhamento jurídico — preventivo! preventivo! — da população. Se um Ministro da Fazenda, ou um presidente de banco estatal — que dispõem de competente assessoria legal — eventualmente determinaram a devassa ilegal —, não entro no mérito —, imagine-se o quanto de bobagens jurídicas pratica diariamente a população, que não dispõe de aconselhamento algum.
Advogados são procurados apenas para mover demandas ou nelas defender o cliente. Quando o erro já ocorreu e gerou conseqüências irreparáveis. Cabe-lhes apenas entupir os tribunais com demandas ou defesas tentando desfazer o que foi feito de maneira indevida. Missões, por sinal, freqüentemente impossíveis, porque nem Deus — garantem os filósofos —, pode modificar o passado. E é por isso que sugeri, em outro artigo, que se desenvolvesse no país um sistema de proteção jurídica algo assemelhado ao que desfruta a população em termos de saúde. Com um módica contribuição mensal, qualquer cidadão desfrutaria da vantagem de um aconselhamento jurídico, e com a vantagem da sua boa qualidade previamente assegurada pela OAB. E se tivesse que mover ação nada pagaria, a não ser as custas do processo. Detalhes dessa sugestão aparecem em outro artigo. Se solicitado, remeterei, com prazer, cópia por e-mail.
Voltando ao tema dos danos punitivos e morais — e peço desculpas pelo rodeio —, é preciso distinguir conceitos que geralmente ainda aparecem um tanto misturados.
Francenildo Costa alega ter sofrido “dor moral”, ou expressão equivalente. Mas esse “sofrimento”, no caso dele, praticamente não existiu. Houve apenas um susto inicial. Passados uns poucos dias, essa “dor” transformou-se em imensa vantagem para sua reputação. Ele foi é promovido, premiado. Não houve, no caso, dor ou humilhação suficientemente longa a exigir reparação.Tornou-se figura nacional. Se quiser entrar na política, será eleito facilmente deputado. Federal ou estadual, o que lhe agradar. E eleito sem necessidade de propaganda pré-eleitoral, o que representa, indiretamente, um enorme ganho financeiro. A condição de vítima lhe permitiu um salto qualitativo.
Perguntará o leitor: mas não foi ilegal a quebra de sigilo sem ordem judicial? E atos ilegais não merecem punição?
Merecem, claro, punição. Mas no caso de Francenildo, a indenização não será por “dor moral”, proporcional ao “sofrimento” (no caso, praticamente nenhum) . Os danos cabíveis, no caso, serão essencialmente os “punitivos”, à maneira das condenações comuns, por vezes excessivas — hoje já há forte reação contra isso —na justiça americana.
Nos EUA os “punitive damages” (danos punitivos) são usados para que o réu, geralmente firmas, corrijam-se, não façam mais o que fizeram de errado. Os tribunais querem é mesmo assustar com o valor da condenação, presumindo que somente assim a ré tomará aquelas providências que impliquem em despesas. A justiça americana presume que é o cálculo de custo/benefício que leva as pessoas a agir de tal ou qual modo. O tribunal não quer ver novamente “a cara da ré”, pelo menos em caso igual. Para isso, a condenação deve ser muito superior aos gastos necessários para que o produto saia sem falhas da fábrica. Do contrário, a ré preferiria continuar produzindo produtos defeituosos, pagando u’a módica indenização após cada acidente gerador de demanda.
No caso de Francelino Costa, portanto, não há muito o que indenizar em termos de “sofrimento moral”, especificamente, porque essa dor durou pouco e, no conjunto, ele mais se beneficiou, moralmente, do que sofreu prejuízo. Quanto ao dano “punitivo” — para que o responsável não reincida na má-prática —, a Justiça melhor avaliará o montante da punição. Certamente sem o exagero pedido na inicial, porque a Justiça não pode se transformar em variante de Mega Sena.
Uma indenização apenas “punitiva”, mesmo não tendo havido “sofrimento moral” significativo, parece ser algo inevitável. Um castigo judicial qualquer, porque não se pode garantir que simples repercussão negativa do caso seja remédio suficiente para prevenir procedimentos semelhantes.
A fixação do montante passará por três “peneiras” judiciais: a do juiz singular; a do tribunal local e a do STJ. E neste último, sabiamente — embora violando um tanto a norma processual que veda o exame da matéria de fato — e arbítrio em valores é fato — já se consolidou a orientação de que o STJ pode corrigir alguns excessos de tribunais locais na fixação do dano moral, subjetivo por natureza. Com isso, evita decisões extremamente variáveis, talvez aberrantes, dependentes do humor dos magistrados que julgaram o caso antes do recurso especial.
Em sua, o caseiro foi “premiado” com a violação, cabendo à justiça apenas fixar o tamanho do sinal vermelho que entenda razoável para prevenir infrações semelhantes.
Informações Sobre o Autor
Francisco César Pinheiro Rodrigues
Advogado, Desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo