Breve relato acerca da função social da propriedade e da empresa rural no direito agrário

Resumo: A questão a ser aludida no trabalho que se desenha, deslumbra, a dicotomia, entre autonomia de vontade e desenvolvimento econômico do agente empresarial, in casu, o empresário agrícola, e a busca pelo bem comum e equilíbrio de forças atuantes traçado pela função social da propriedade, no tocante ao que se explana no Código Civil de 2002.

Palavras-chaves: Direito Agrário; Função Social da Propriedade; Desenvolvimento Econômico.

Abstract: The question to be alluded in this paper, dazzles, the dichotomy between autonomy of will and economic development of the business agent, in casu, the farmer business, and the search for the common good balance of driving forces outlined by the social function property, in relation with the Civil Code of 2002.

Keywords: Agrarian Law; Social Function of Property; Economic Development.

Sumário: 1. Introdução; 2. Propriedade e Função Social na Constituição; 3. A Função Social da Propriedade; 3.1. A Função Social da Propriedade Rural; 4. A Função Social da Empresa; 5. Síntese no Direito Agrário; 6. Conclusões.

1. INTRODUÇÃO

A questão a ser aludida no trabalho que se desenha, deslumbra, a dicotomia, entre autonomia de vontade e desenvolvimento econômico do agente empresarial, in casu, o empresário agrícola, e a busca pelo bem comum e equilíbrio de forças atuantes traçado pela função social da propriedade, no tocante ao que se explana no Código Civil de 2002, que, como salienta ORLANDO GOMES (2008: 11) tem normas de ordem pública.

O que garante cogência de tal ideia são as sanções cabíveis ao descumprimento de tais atos, que DE-MATTIA (1995: 44) retrata como a expropriação no caso de descuido das obrigações do empresário rural, não de maneira ampla, mas quando não ocorre o cultivo corretamente ou a devida diligência da área, ORLANDO GOMES (2008: 123) também cita a desapropriação por utilidade social, a tributação extraordinária, manipulação do crédito agrícola e o remembramento de imóveis desapropriados, tendo em vista que a norma meramente ilustrativa, na maior parte das vezes, não tem eficácia. Mas, no estudo da empresa agrária deve se respeitar também, e ai está uma das finalidades do artigo, a linha tênue entre atividade agrícola e atividade comercial, que é brilhantemente lembrada por ANTONIO CARROZZA (1982: 18), quando diz da importância de delimitar onde terminar a entidade agrária e onde começa a atividade mercantil/econômica, que depreende uma série de particularidades na ação da função social da propriedade 

Função social da propriedade agrícola não é um tema estático doutrinariamente e, nas palavras de ANTONIO AUGUSTO DE SOUZA COELHO (1991, p. 162), “exsurge maximizada” em relação a outros significados da função social, por estar correlacionada no Estatuto da Terra e na Constituição Federal.

A questão ganha vida, e este é o cerne do trabalho, quando se trata da dicotomia (i) função social da propriedade rural e (ii) função social da empresa rural. Ora, cada uma delas apresenta requisitos próprios, mas dentro do Direito Agrário, se confundem devido à presença dos dois elementos na discussão. Sua síntese se dá quando da mudança do foco da empresa rural da propriedade para o ciclo biológico.

2. PROPRIEDADE E FUNÇÃO SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO

O Direito baseia-se sobremaneira numa função de garantia da manutenção daquilo que pertence ao indivíduo, perfazendo, deste modo, a justiça. Para tanto, é necessária a existência de dois planos, quais sejam, o plano subjetivo, ou pessoal, e o plano objetivo, ou real. Quando a relação se estabelece entre dois planos subjetivos, se está diante de uma relação obrigacional, enquanto que quando a relação se dá entre um plano subjetivo e um plano objetivo, estar-se-ia diante de uma relação real, ou de direito real.

A propriedade[1], portanto, surge como uma das razões mais íntimas do próprio Direito. Por esta razão mesmo, teve, ao longo da história, um tratamento por demais solene e conservador, fazendo crer tratar-se de direito absoluto. Essa foi a ideia proposta nos diplomas e cartas até o século XIX, frutos de um individualismo exacerbado. Expoente dessa ideia é a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão promulgada quando da Revolução Francesa, juntamente com uma série de outras medidas.

Nela, o direito à propriedade era visto como a suma concepção do direito do indivíduo, que só existiria completamente fosse a sua propriedade respeitada a qualquer custo, uma vez que a defesa do plano alheio gera a segurança do próprio plano individual. Não é de se estranhar tal pensamento, posto que se buscava uma mudança paradigmática na relação humana e jurídica daquilo que era um Estado Absolutista.

Contudo, como a roda da história permite que o mesmo raciocínio perfeito para uma época se faça prejudicial para outras, no Estado Moderno, ou Estado Democrático de Direito, essa relação de absolutismo da propriedade foi rompido, vindo a ser tratada como direito fundamental, mas não onisciente e onipresente. A estruturação do interesse público, advindo da questão social, trouxe ao Estado uma legitimação maior do que a de si mesmo, pois se firmou a concepção de que o Estado deve garantir ao indivíduo as condições básicas de sua subsistência.

Desse modo, sem desconsiderar o ideal do Direito de dar a cada um o que é seu, uma vez que a justificativa do Estado é proteger e segurar este mesmo indivíduo, o sentido da propriedade foi relativizado. Por isso MANOEL GONVALVES FERREIRA FILHO (2008: 308) define que a propriedade “é um direito fundamental que não está acima nem abaixo dos demais. Deve (…) sujeitar-se às limitações exigidas pelo bem comum. Pode ser pedida em favor do Estado quando o interesse público o reclamar, como a vida tem ser sacrificada quando a salvação da pátria o impõe”.

Evidente, devido à suma importância da propriedade para a vida em sociedade[2], a Constituição Federal veio garantir sua existência enquanto direito fundamental, que parece lógico ao se tratar de país de sistema Capitalista de economia. Portanto, no rol do art. 5º, XXII, será garantida a propriedade. Significa que a propriedade para além de cláusula pétrea é também princípio fundamental.

Enquanto princípio fundamental pode-se entender que para além de simples norma ou regra, a qual teria eficácia restrita a determinado ato ou fato, a propriedade é verdadeiro valor a ser respeitado e embutido em todas as normas e regramentos, partindo do pressuposto da Constituição como norma fundamental do ordenamento jurídico. Ademais, deve ser respeitado mesmo no plano não-jurídico, nos atos fáticos, posto sua abrangência. Também pode ser aplicada ainda como princípio, partindo da densificação de tal princípio para o caso concreto, como menciona MANOEL GONÇALVES (2008: 395)

Todavia, esse mesmo rol de princípios constitucionais limita a eficácia da propriedade de duas formas, quais sejam, (i) sua função social, de acordo com o art. 5, XXIII da CF/88 e (ii) a possibilidade de desapropriação. Apesar de próximos, atuam em esferas distintas, sendo aquele relativa à  pressupostos básicos e esta relativa à atos ordinatórios negativos  advindos do Poder Estatal perante a propriedade individual.

A possibilidade de desapropriação é verdadeira medida ativa estatal perante a necessidade pública, quando do interesse social, para que ocorra a retirada da propriedade da esfera privada para a pública. Como é vedado o confisco das mesmas, salvo no caso de propriedade utilizada para o cultivo de psicotrópicos, essa desapropriação deve ser acompanhada de prévia, ou ulterior, justa indenização, sob pena de enriquecimento ilícito do Estado.

Ocorre também o que GILMAR FERREIRA MENDES (2008: 455) a propriedade como limite do limite. Explico:

A própria vinculação da propriedade como direito fundamental impede que a mesma seja alvo de limitações desarrazoadas tendentes à usurpação daquilo que à outrem pertença.  É o caso de limitação das limitações a serem impostas perante a propriedade.

Voltando à função social da propriedade[3], tem-se que não se trata de apenas limitações e poder de polícia estatal perante o individuo, como pensavam os privatistas, mas sim de uma nova concepção do que é dever do indivíduo perante a sociedade, na visão publicista, como salienta JOSÉ AFONSO DA SILVA (2008: 272).

Como se vê a função social da propriedade não se relacionada com as simples limitações de propriedade, de foro privatista, pois, nas palavras de JOSÉ AFONSO DA SILVA (2008: 282) “estas dizem respeito ao exercício do direito ao proprietário,; aquela, à estrutura do direito mesmo, à propriedade”. O doutrinador também atenta para o fato de que se trata de princípio de aplicabilidade imediata.

Para além da disposição dos princípios fundamentais do art. 5º da Constituição Federal de 1988, a função social da propriedade também foi vinculada como princípio da ordem econômica, visto que está no rol do art. 170 da CF/88. Desse modo, não só a propriedade tem que respeitar sua função social como também aquela destinada à desenvolvimento da ordem econômica, e num país de herança ruralista essa é a  tônica do mercado, também o deve.

Evidente que a função social da propriedade deverá respeitar a razoabilidade inerente ao aparato jurídico, ou seja, deverá ser aplicada em confronto com os princípios de utilização da propriedade liberais, posto que não pode ser, em nenhuma das pontas, considerada absoluta, é o que GILMAR FERREIRA MENDES (2008: 473) elucida ao tratar do entendimento alemão:

“Consoante a firme jurisprudência da Corte Constitucional alemã, a definição do conteúdo e a imposição de limitações ao direito de propriedade hão de observar o princípio da proporcionalidade. Segundo este entendimento, o legislador está obrigado a concretizar um modelo social fundado, de um lado, no reconhecimento da propriedade privada e, de outro, no princípio da função social. É ilustrativa, a propósito, a decisão na qual a Corte Constitucional deixou assente que, no âmbito da regulação da ordem privada, nos termos do art. 14, II, da Lei Fundamental, deve o legislador contemplar, igualmente, os dois elementos que estão numa relação dialética.”

Em suma, a Carta Magna brasileira traz a propriedade como direito fundamental, a ser limitado ora pelas prerrogativas civilistas, ora pela ética da função social da propriedade que limita a própria extensão dessa propriedade.

3. A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE[4]

A função social da propriedade opera perante o direito como um todo, uma vez que o mesmo trata da justiça e do bem-estar social, inerente a qualquer ordenamento minimamente eficaz. Conquanto a sociedade se desenvolve e  a regra do ser humano são os atos individualistas e egoísticos[5], é necessária a função social daquilo que lhe pertence, a fim de garantir o desenvolvimento do grupo social. Nas palavras de CRISTIANO CHAVES DE FARIA (2007: 198), “a função social é um princípio inerente a todo direito subjetivo”.

Assim, a lógica do princípio da legalidade foi abrandada, pois “sabemos que nem tudo que não é proibido é permitido, pois entre o proibido e o permitido posta-se o abusivo. Ele é tão ilícito quanto o ato proibido”, como salienta CRISTIANO CHAVES DE FARIA (2007: 201).

Desse modo, acrescenta-se à premissa revolucionária de Igualdade/Liberdade/Fraternidade, a Solidariedade, que provoca mudanças na estrutura do entendimento da propriedade: (CRISTIANO CHAVES DE FARIAS, 2007: 202)

“Essa mudança de paradigma provoca uma necessária conciliação entre poderes e deveres do proprietário, tendo em vista que a tutela da propriedade e dos poderes econômicos e jurídicos de seu titular passa a ser condicionada ao adimplemento de deveres sociais. O direito de propriedade, até então tido como um direito subjetivo na órbita patrimonial, passa a ser encarado como uma complexa situação jurídica subjetiva, na qual se inserem obrigações positivas do proprietário perante a comunidade.”

É a mudança da propriedade absoluta, remetente do pensamento romano de direito patrimonial, patriarcal, gentílico, para a concepção grega de propriedade-função[6], atrelada ao pensamento aristotélico de que os atos devem convergir para um fim específico, no caso a função social. A busca, in casu, é pela otimização da utilização da propriedade[7], não num sentido utilitarista/econômico, mas numa teoria social.

Por ser uma questão antes de essência do que de mera existência, a função social da propriedade deve ser tratada como uma cláusula geral principiológica, a ser emanada nos atos concernentes à propriedade. Por exemplo, o Código Civil, em seu art. 1228, define que a propriedade e seu direito “deve ser exercido em consonância com as finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”. Saliente-se que, neste caso, só se está tratando de Direito Ambiental e Direito Urbanístico, tendo uma série de outras prerrogativas que podem ser incluídas na função social da propriedade.

3.1. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RURAL

Pensando-se num país de vocação agrária, é cediço que a função social da propriedade, que exerce tais atividades, deve ser regulamentada com extrema dedicação por parte dos legisladores e estudada pela doutrina em geral. Esse é o caso do Brasil. Uma nação que se concentra na produção de commodities, especialmente a soja, a cana-de-açúcar e toda uma série de alimentos, apresenta hectares e hectares de propriedades rurais, muitas delas concentradas nas mãos de poucas famílias que vivem ainda num regime aristocrático.

Por isso que a regulação da função social neste caso se dá em três aspectos, a saber: (i) viés econômico, (ii) viés social e (iii) viés ecológico. É o disposto no art. 186 da CF/88[8].

Inicialmente, deve-se atentar para o viés econômico, no qual devem ser exploradas pelo menos 80% (oitenta por cento) da área explorável da propriedade agrícola. Isso quer dizer que a legislação se preocupou com um critério quantitativo acerca da produção rural no país, defendendo a utilização do solo como uma das funções sociais dessa relação jurídica complexa que é a propriedade.

Porém, além do critério quantitativo, quis o legislador apresentar o critério qualitativo para a produção rural. Nesse caso, deve haver o respeito ao índice de produtividade da região na qual se enquadra o imóvel. Ora, nada mais lógico do que submeter o produtor à obrigação de não só produzir, mas de produzir bem. Assim, garante que haverá uma justa utilização do solo rural, condição sine qua non para o desenvolvimento econômico da região em que se situa o imóvel.

Desse modo objetiva-se punir a especulação fundiária e premiar a produção fundiária, exercendo assim um importante aspecto da função social da propriedade.

Quanto ao viés social, este se distingue em duas questões: (i) o respeito aos direitos do trabalhador rural e (ii) a busca pelo bem-estar do trabalhador e empregador  rural.

Sobre o respeito aos direitos do trabalhador rural[9] sabe-se que deve seguir as normas constitucionais e aquelas incluídas na CLT e legislação esparsa. Esse é ponto delicado quando se transporta o direito para a realidade dos fatos, uma vez que a exploração de classes vulneráveis é senso-comum dentro de grandes propriedades, além do não respeito à garantias constitucionais como o salário-mínimo justo, recolhimento de impostos, entre outros.

Logo, todos os grandes conglomerados que se utilizam do trabalho de bóias-frias, sem os devidos pagamentos e garantias, não estão cumprindo com a função social da propriedade, sendo cabíveis sanções além daquelas providenciadas pelos Procuradores do Trabalho.  

Ademais, a questão do bem-estar é imprescindível para que se perfaça a função social da propriedade rural. Entretanto, tal prerrogativa está dividida em dois momentos, quais sejam, atos do Estado e atos do particular. Os atos do particular depreendem-se de tudo que deve ser realizado dentro da propriedade para garantir o bem-estar das partes. É caso de se ter áreas de repouso, banheiros químicos, ambiente acolhedor e preservação das garantias individuais do indivíduo.

Mas também, o Estado tem responsabilidade perante o bem-estar na propriedade rural. É o caso de garantir a infra-estrutura necessária na área externa à propriedade rural, mas que influem sobremaneira nos atos internos. Exemplos são o cabeamento de energia elétrica, abastecimento de água em áreas que não a tenham, estradas e ruas adequadas para o transporte dos indivíduos, entre outras garantias básicas do Estado Democrático de Direito.

Por fim, o caráter último é o de preservação do meio ambiente[10]. Parece clara a responsabilidade do proprietário em preservar o meio ambiente, ainda mais quando se está em tempos de alarmismo exacerbado quanto ao meio ambiente. Deve haver a preservar das áreas de preservação permanente[11], e de parcelas relativas à área da propriedade. Além, deve haver preservação dos recursos hídricos e minerais, cavernas, grutas, cachoeiras, entre outras.

Como salienta CRISTIANO CHAVES DE FARIAS (2007: 219):

“Assim, o art. 225 privilegia a tutela ecológica a condição de direito fundamental da terceira dimensão, servindo ao meio ambiente equilibrado à manutenção da saúde e da vida das gerações presentes e futuras. A tutela ambiental não consiste em forma de intervenção externa na propriedade, pois participa da própria estrutura do direito subjetivo, por isto é vedado ao proprietário transformar o estado natural do imóvel através de desvios de cursos de rios ou aterros de mangues”.

Foi o Estatuto da Terra um dos percussores da possibilidade de sanção no caso de descumprimento da função social, garantindo força cogente, coercitiva ao princípio. As primeiras medidas de combate foram, como elenca FERNANDO PEREIRA SODERO (sem data: 213): (a) Assegurar o acesso à propriedade fundiária aos que trabalham na terra. (b) definição da propriedade familiar. (c) Conceituação de minifúndio e latifúndio. (d) extinção da exploração da terra que contrarie a função social. (e) Expandir as empresas rurais. (f) Permitir desapropriação por fins sociais.   

4. A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA[12]

A Empresa nasce implicitamente com um sentido diverso da propriedade convencional do indivíduo.  Dela não se esperam atos individuais, partindo de uma impessoalidade nata, valem-se da ordem de mercado, da busca por lucro e adição de consumidores. Por isso, vem arraigada de função social em seu próprio bojo. Como diz DARCY BESSONE (1996: 62):

“O empresário pode não ter tido sensibilidade para o entendimento do fenômeno novo, que é a presença da empresa na economia e no mercado. Certamente, a empresa impessoaliza, ou pelo menos torna menos pessoal, o interesse capitalista. Desloca-o, dele, para a figura do empresário, necessariamente vinculado ao ente social recém-chegado, tal é a empresa”.

Aqui, no âmbito do Direito Agrário, define-se a empresa rural, que se distingue do simples latifúndio ou minifúndio, de acordo com a doutrina atual.

A função social da empresa rural decorre do mandamento constitucional relativo à ordem econômica[13]. Desse modo, para se perfazer completamente, deve respeitar todos os requisitos do mesmo art. 170 da CF/88, dentre eles a manutenção da concorrência, direitos do consumidor e livre iniciativa.

Com a definição de empresa enquanto uma série de feixes de interesses que convergem para um escopo em comum, pode-se entender o primeiro caráter de função social presente na questão. Ora, o escopo comum, a busca por um fim único e convergente, faz com que se esteja atendendo, além do interesse individual do capitalista, o interesse do próprio grupo e, conseqüentemente, do bem-comum. É uma negação ao egoísmo característico do empresário, que por índole tende à concentração deletéria do mercado.

Depois de considerada sua própria natureza, as condições de função social da empresa, em particular da empresa rural, devem respeitar, por analogia, os princípios do art. 186, CF, no tocante à respeito das regras trabalhistas, bem-estar geral e cuidado com o Meio Ambiente. Parece lógico, uma vez que estas regras decorrem da simples interpretação da Constituição Federal.

  Importa salientar, grosso modo, que no caso de descumprimento de preceitos da função social da empresa rural, não cabem os casos de desapropriação da empresa, posto não se tratar de propriedade sumariamente imóvel.

Exemplo interessante para elucidar o caso é o do arrendatário. Este, enquanto empresário rural, contrata com o proprietário da propriedade rural, mediante paga, para utilização de suas terras na produção. Ora, não há propriedade da terra por parte do arrendatário, por isso não lhe cabem os pressupostos de função social, todavia, enquanto empresário rural, deve respeitar os mesmos requisitos, tudo por conta da função social da propriedade na ordem econômica, para além da simples propriedade.

5. SÍNTESE NO DIREITO AGRÁRIO

Ora, o Direito Agrário surge com a condição sine qua non da propriedade rural, que deve respeitar a função social da propriedade. Quando se trata do novo paradigma de empresa rural, a questão se desdobra na possibilidade da aplicação também da função social pela ordem econômica.

Em alguns casos, não há de se falar da função social da propriedade. Evidentemente, nos casos em que o empresário agrícola não apresenta o título de proprietário perante o terreno. Nesses casos, garante-se o bom andamento da situação através da função social da empresa rural, que preserva condições próximas à propriedade.

Quanto à limitação deste instituto, primeiramente, os limites são as próprias cláusulas do art. 186 da CF/88, que definem pressupostos fáticos para a consolidação da função social da propriedade rural. São os casos de proteção ambiental, produtividade, respeito às normas trabalhistas e busca pelo bem-estar.

Todavia, mesmo com tal rol taxativo, a interpretação dos incisos poderia ser amplíssima. Assim, cabe utilizar o conceito de ubiqüidade, proporcionalidade ou razoabilidade. Tais conceitos guiam a interpretação jurídica lógica e justa. Deve haver um equilíbrio entre o interesse individual e o interesse social, uma vez que um depende do outro para existência e eficácia, sendo um contido na essência do outro.

6. CONCLUSÕES

Pode-se depreender do presente trabalho que:

(1)  Em suma, a Carta Magna brasileira traz a propriedade como direito fundamental, a ser limitado ora pelas prerrogativas civilistas, ora pela ética da função social da propriedade que limita a própria extensão dessa propriedade. Tal lógica afeta as propriedades rurais assim como qualquer outra propriedade.

(2)  Por outro lado, a propriedade e sua função social também são preconizadas dentro da Ordem Econômica da Constituição Federal e, por isso, servem de pauta para empresa agrária, num novo paradigma que desconsidera a propriedade como elemento essencial, mas sim a agrariedade.

(3)  A função social da propriedade deve ser tratada como uma cláusula geral principiológica, a ser emanada nos atos concernentes à propriedade.

(4)  A função social da empresa rural se dá em três aspectos, a saber: (i) viés econômico, (ii) viés social e (iii) viés ecológico, disposto no art. 186 da CF/88.

(5)  Não havendo a propriedade como requisito na empresa agrária, ainda subsiste a função social, mas neste caso é da empresa rural, que deve proceder de acordo com os elementos da ordem econômica.

 

Referências
BESSONE, Darcy. Direitos Reais. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1996.
CARROZZA, A. Modello teórico e sviluppo reale Del diritto Dellímpresa agrícola. In: Problemi giuridici dellímpresa agrária in Itáli e nell´URSS. 3ª tavola rotonda ítalo-societica. 1982. Milano: Giuffrè.  
COELHO, Antonio Augusto de Souza. A propriedade rural na nova constituição. in: A Propriedade e os direitos reais na Constituição de 1988. coord. Carlos Alberto Bittar. São Paulo: Saraiva, 1991.
DE-MATTIA, F. M. Empresa agrária e estabelecimento agrário. In: Revista de Direito Civil: Imobiliário, Agrário e Empresarial. São Paulo, ano 19, n. 72, abr./jun. 1995.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2007.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 34. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2008.
GOMES, Orlando. Direitos Reais. 19. ed. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro, volume V: direito das coisas. 3. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2008.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2008.
ROCHA, Olavo Acyr de Lima. A desapropriação no direito agrário. São Paulo: Altas, 1992.
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 31. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2008.
SODERO, Fernando Pereira. Direito agrário e reforma agrária. São Paulo: Livraria Legislação brasileira, sem data.
 
Notas:
[1] O termo propriedade a partir desse ponto irá se referir à propriedade de bens imóveis, que no caso do Direito Agrário são o bem de produção mais importante, pelo menos até o momento, já que podem ocorrer casos em que o fundo rústico, a propriedade como se pensa não se faz necessária, e.g as empresas de zootecnia. Também se pode considerar os bens móveis, que fazem parte da produção agrícola. Desse modo, exime-se de maiores explicações a teoria enquanto imputação de qualquer direito material suscitada por GILMAR MENDES (2008, p. 426).

[2] Em que pese crítica socializante, que a vê como verdadeira escravização do homem que detêm sobre o homem que não detêm, a qual é confrontada por MANOEL GONÇALVES (2008: 308) com o argumento da experiência que a história trouxe e pelo argumento da simples mudança de detentor que ocorreu nos países de economia socialista.

[3] A noção de função social da propriedade, coletivista, surge para contrapor a própria ideia de propriedade, individualista, uma vez que a propriedade é uma arranjo, segundo São Tomás de Aquino que permite ao homem realizar o trabalho e identificar seus atos. Fosse tudo socializado, a tendência seria o desestímulo e a dispensa de maiores esforços. (DARCY BESSONE, 1996: 25)

[4] Há na verdade, (DARCY BESSONE, 1996: 49) uma função social das coisas, desde o momento em que se tem sentido ao bem-comum. Define-se como marco, o Manifesto Comunista, que faz precisar a necessidade de diminuição da disparidade entre ricos e pobres, a Encíclica Rerum Novarum, que traz a ideia de justiça social e a teoria, por fim, de Duguit sobre função social da propriedade.

[5] Por conta até mesmo do caráter biológico que faz da espécie humana apenas uma entre as centenas que concorrem na marcha natural da evolução, que premia os mais aptos a ponto do próprio egoísmo ser forma de perpetuar os genes do indivíduo. Todavia, o interesse social, o Estado em-si, premia outra lógica, análoga à índole humana, que busca a manutenção de toda a espécie e, por isso, depende de atos obrigacionais e coercitivos na tentativa de criar um ambiente que redunde em liberdade e igualdade para todos os cidadãos.

[6] “Numa sociedade organizada os direitos subjetivos são como direitos-função. Devem, por isso mesmo, permanecer no plano da função que a eles cabe ter. Caso contrário, o titular desses direitos incide num desvio ou abuso do direito. O ato abusivo é aquele que contraria ao bem da instituição, ao seu espírito e finalidade”. (OLAVO ACYR DE LIMA ROCHA, 1992: 31)

[7] Para Bentham, a função social se justifica enquanto ato jurídico pois apropria propriedade é ato jurídico, só existindo enquanto o mesmo ato for eficaz. Por isso, pode ser limitado pela mesma lei, através da função social. (DARCY BESSONE, 1996: 47)

[8] Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

[9] Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: I – relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos; II – seguro-desemprego, em caso de desemprego involuntário; III – fundo de garantia do tempo de serviço; IV – salário mínimo , fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim; (…)

[10] Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. § 1º – Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; II – preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético (…)

[11] Em que se pese a elaboração do novo Código Florestal, um crime lesa-ambiente, que diminui as áreas a serem protegidas nas propriedades rurais legais, estas a única certeza de meio ambiente de fato preservado e preservável. De sorte, ainda não aprovado, trará mais lucro aos latifundiários, mas, com certeza, trará prejuízo aos mesmos enquanto pseudo-cidadãos do país, uma vez que o patrimônio genético/ambiental pertence a todos os cidadãos.

[12] No caso, a função social atinge os mais diversos aspectos jurídicos. Por exemplo, as relações econômicas, concorrenciais e fiscais definem muito da função social de uma empresa, que por simples atuação do mercado permite que se perfaça a função social.

[13] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I – soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.  Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.


Informações Sobre o Autor

Mario Thiago Moreira

Mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito de São Paulo da Universidade de São Paulo FDUSP. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo FDRP/USP. Advogado


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