Breves anotações sobre a teoria da empresa e seus aportes no sistema jurídico brasileiro

Resumo: A inclusão da disciplina da Empresa no Código Civil de 2002 é reflexo das diversas oscilações sociais ocorridas, em especial, a partir da segunda metade do século passado. Para a análise do tema, deve ser realizado o recorte histórico desde o surgimento do direito comercial (em oposição ao direito civil comum) até os dias atuais. O surgimento da Teoria da Empresa e sua aplicação no direito brasileiro implicam em uma série de conseqüências, tais como a superação do direito comercial e sua dicotomia em relação ao ramo civil, com a conseqüente unificação do direito privado.


Palavras-chave: Direito Privado. Unificação. Teoria da Empresa.


Sumário: Introdução. 1 Do surgimento à falência de um sistema dicotômico. 2 A teoria da empresa. 3 Superação da dicotomia no direito privado. 3.1 O Pioneirismo Brasileiro. 3.2 A Unificação Italiana e sua Influência no Brasil. 3.3 A Empresa Como Elemento Unificador no Direito Privado. Conclusão. Referências.


Introdução. 

A inclusão da disciplina da Empresa no Código Civil de 2002 é reflexo das diversas oscilações sociais ocorridas, em especial, a partir da segunda metade do século passado. A superação do modelo de direito comercial e da sua dicotomia em relação ao ramo civil denotam essas mudanças.


Considerando essa total renovação do contexto jurídico e social, a idéia deste trabalho é a identificação da influência dos novos paradigmas[1] no direito brasileiro.


Desde já, é importante esclarecer que parte de nossa doutrina ainda não se encontra inteiramente confortável perante os novos modelos apresentados, apesar da grande contribuição que vêm operando em nosso sistema. Observa-se daí a necessidade de sua constante análise e debate.


Para a ilustração desse impasse, destaca-se desde já a idéia de Rubens Requião[2], para quem “a controvérsia doutrinária sobre a unificação do direito privado deixou de ser simples tema de debate acadêmico, para se tornar o mais atual e sério problema do direito brasileiro”. 


Para a melhor compreensão do tema, é necessário inicialmente seja realizado um recorte histórico desde o surgimento do direito comercial. Em seguida, deverá ser analisada a Teoria da Emprese e sua profunda influência em nosso ordenamento para que, ao final, se chegue à visão da estrutura em que hoje está assentado nosso direito privado.


1 DO SURGIMENTO À FALÊNCIA DE UM SISTEMA DICOTÔMICO


Inicialmente, vale referir que se tem a segunda metade do século XII como período de surgimento do direito comercial.[3] Antes disso, apesar de já existir esparsa legislação acerca do tema, não se encontrava um sistema organizado e independente que incidisse especificamente sobre as relações comerciais.[4]


Em que pese haja registros da existência do exercício do comércio organizado desde tempos imemoriais, aplicava-se até então o direito comum a essas relações. Não havia um sistema que tutelasse exclusivamente as questões relativas à atividade comercial.


Nesse sentido, vale lembrar que, até o século XI, os comerciantes praticavam suas atividades de modo a se dirigirem de uma localidade à outra, aproveitando-se da diferença entre os preços praticados. A partir do século XII, passaram a organizar-se de forma mais elaborada e complexa, fixando-se nas localidades onde exerciam o comércio. A organização por eles atingida nesse período da Idade Média tornava indispensável o estabelecimento em lugar fixo.[5]


Configurou-se, a partir de então, maior influência dos comerciantes nas sociedades medievais onde se fixavam. Afastou-se, por conseguinte, aquela conotação marginal da classe de mercadores que anteriormente formavam caravanas e perambulavam entre os feudos.[6]


Diante de uma organização tão complexa, a classe de mercadores fortaleceu-se cada vez mais e passou a contar com o suporte de grandes organizações, as chamadas corporações.


Nesse contexto, propiciou-se a elaboração de um sistema legal e jurisdicional independente do direito comum e estatal. A pretensão era que esse ordenamento, apartado do sistema comum, incidisse sobre as suas questões de maneira diferente das demais relações jurídicas.[7]


Com efeito, percebe-se que havia à época justificativa para a construção de um sistema afastado do direito comum. Acreditavam os comerciantes que somente após a criação de um direito especial, construído por eles mesmos, estariam protegidos para o exercício mercantil. [8]


Nesse mesmo sentido, em análise ao surgimento do direito comercial, Tullio Ascarelli salienta sua origem como verdadeira contraposição ao direito comum. O jurista destaca, inclusive, que seria impossível investigar sua unificação caso não se tratasse historicamente de um ramo autônomo. [9]  


Reprisa-se, portanto, que quando surgido o direito comercial como ramo organizado e autônomo, a formulação de uma dicotomia mostrava-se social e politicamente justificável.[10]


É assim, portanto, que se caracteriza a primeira fase histórica do direito comercial. Para Fábio Ulhoa Coelho[11], nesse período “as corporações de comerciantes constituem jurisdições próprias cujas decisões eram fundamentadas principalmente nos usos e costumes praticados por seus membros”.


Dentre os principais aspectos desse período, observou-se a criação e aplicação do direito comercial sob critério “subjetivo” ou, também se pode dizer, “classista”, pois visava ao atendimento dos interesses específicos da classe dos mercadores. Tomazette[12] refere que, nessa fase, o direito comercial mostrou ser o próprio “direito dos comerciantes”, adotando, assim, o critério ”corporativo”.


Diante disso, Marcia Lippert[13] destaca a característica subjetivista desse direito, especialmente porque “sua aplicação e conceituação se dão a partir daqueles que são associados a uma corporação de ofício e para eles, ou seja, é comerciante aquele que é associado a uma corporação de ofício”.


Como referido, tais critérios acabaram por permitir a formulação não somente de um sistema legislativo autônomo, mas também de uma jurisdição especial que dirimisse exclusivamente as questões relativas ao direito comercial (na realidade, aos próprios comerciantes), sistema esse do que, até então, não se tinha notícia sobre precedentes.


Observa-se, portanto, que a dicotomia no direito privado é intrínseca ao próprio surgimento do direito comercial. Transparece aqui que a elaboração de um novo sistema legislativo e jurisdicional não ocorreu por critérios científicos, mas, na verdade, por necessidades sociais e políticas surgidas quando uma classe específica da sociedade clamava justamente por uma separação em relação aos demais ramos do direito.


Conforme também destacado por Carvalho de Mendonça[14], a sistemática adotada foi a de que, nas corporações de mercadores, estes mesmos praticavam a jurisdição, de maneira célere e sucinta, por meio de seus chefes, os chamados cônsules.


Num segundo momento, com o desenvolvimento das atividades comerciais e da jurisdição praticada, começou a ser observada uma transição no direito comercial. A referida prestação jurisdicional, com o passar do tempo, não mais atingia somente os casos envolvendo comerciantes matriculados nas corporações, mas também outros em que aparentemente determinados atos relativos ao comércio eram praticados.


A partir daí, gradativamente transmutava-se o objeto do direito comercial. A ampliação da competência jurisdicional dos cônsules e o relaxamento da exigência da matrícula como condição para a prestação jurisdicional denotaram essa transformação.


Surgiu, então, a necessidade da adoção de outro critério para a aplicação desse direito especial, dado que a subjetividade não era mais suficiente para a caracterização dos casos que se submeteriam à jurisdição das corporações de mercadores. Como conseqüência, o enfoque deslocou-se do “sujeito” para o “objeto”. Iniciava-se, assim, nova fase histórica no direito comercial.


Nesse novo período (século XIX até primeira metade do século XX), foi adotado o critério denominado “objetivo”, deslocando o centro do direito comercial para os chamados “atos de comércio”. A jurisdição não era mais prestada apenas sobre as questões que envolviam exclusivamente sujeitos comerciantes.[15]


O grande marco dessa evolução foi a Codificação Napoleônica, em 1808. O Code de Commerce (código comercial francês) teve como base as duas Ordennance de Luís XIV, de 1673 e 1681. Foi esta a primeira vez da qual se tem notícia em que houve efetiva sobreposição do Estado Nacional em relação aos organismos corporativos.[16]


O código francês trouxe, em seu artigo 632, o rol daqueles atos que seriam considerados mercantis, sobre os quais incidiria a legislação específica. Tal sistema foi direto influenciador do Código Comercial Brasileiro de 1850 e de sua complementação pelo Regulamento 737 do mesmo ano, ambos a serem mais amplamente abordados a seguir.


Da mesma forma que em nosso Código Comercial de 1850, a teoria francesa dos atos de comércio ressoou em diversas codificações, tais como na Bélgica (1811), Espanha (1829), Portugal (1833), Itália (1882), dentre tantas outras[17].


A partir desse sistema, que apresentava o rol dos atos de comércio, foram observados grandes esforços por parte da doutrina em classificá-los e possibilitar a correta aplicação das normas sem que se caísse em imprecisões acerca da natureza mercantil de algumas atividades. Surgiram então dois critérios doutrinários de especial relevância para que se realizasse tal distinção: o “descritivo” e o “enumerativo”.[18]


O critério descritivo procura na Lei a indicação das características de um ato de comércio a fim de que as situações fáticas possam enquadrar-se nas hipóteses descritas e, assim, passem a ser regidas pelo direito comercial. Tal sistema foi especialmente adotado pelos códigos espanhóis (1829 e 1885) e portugueses (1833 e 1888).[19] 


Por sua vez, o sistema enumerativo consiste no arrolamento dos atos considerados mercantis. Esse método acarretou profunda controvérsia, sobretudo na França, pois foi necessário indagar se a enumeração da Lei era efetivamente taxativa (numerus clausus), ou simplesmente exemplificativa.


Diante desse critério enumerativo, a questão que se travou foi no sentido de identificar qual seria a margem para a ampliação daqueles atos elencados no rol do texto legal. O debate relevou-se não apenas na França, mas também aqui no Brasil, pois nosso código comercial de 1850 e seu regulamento 737, do mesmo ano, adotaram esse sistema, o qual permaneceu sendo aplicado até o advento do Código Civil de 2002.[20]


De qualquer forma, vale lembrar que o movimento de codificação iniciado na França do século XIX foi extremamente calcado pela idéia da criação de um sistema fechado a quaisquer previsões que não aquelas expressamente positivadas no texto legal. O principal objetivo era impedir arbitrariedades, cuja prática até então era possibilitada à monarquia absolutista e, no caso do direito comercial, às corporações de mercadores.[21]


Sendo essa a origem do sistema francês, sabe-se que foi apenas num segundo momento que a Cour de Cassation e a doutrina adotaram posicionamento diferente, entendendo pela flexibilidade do catálogo dos atos mercantis e pela não taxatividade do Code de Commerce.[22]


Nessa esteira, o direito comercial brasileiro, então profundamente influenciado pelo ordenamento francês, incorporou a teoria dos atos de comércio, porém deixou de elencar no seu corpo quais seriam os atos a serem reputados comerciais. [23]


A fim de suprir tal lacuna, foi promulgado o já mencionado Regulamento n. 737, em 25 de novembro de 1850, que tratava do processo comercial, discriminando-se os atos considerados como de mercancia, arrolando-os em seu artigo 19.[24]


Acerca do tema, Requião entende que, no direito comercial brasileiro, a respeito da taxatividade da lista dos atos de comércio, esta foi meramente exemplificativa, permitindo ao intérprete, e sobretudo aos tribunais, estendê-los por analogia a outros atos não expressamente catalogados em seu texto.[25]


Outrossim, ressalta-se que o texto brasileiro, da mesma forma que o francês, incorreu na ausência de descrição ou definição das características gerais inerentes aos atos de comércio. Entretanto, houve grandes e valorosos esforços por parte da doutrina para que se conseguisse suprir tal lacuna.


Diante disso, observou-se na produção jurídica pátria especial destaque às idéias formuladas por Carvalho de Mendonça[26]. Em brevíssima síntese, sua proposta identificou os atos de mercantis como aqueles “negócios jurídicos referentes diretamente ao exercício normal da indústria mercantil” e, ainda, que “consistem propriamente na operação típica, fundamental (a compra e venda), ou naqueles outros atos que imprimem uma feição característica ao comércio (…)”.


Tem-se, pois, que a mencionada “feição característica ao comércio” representou para o mencionado autor a interposição entre os produtores e consumidores para efetuar ou facilitar a troca de bens, isto é, a circulação das riquezas com o objetivo – ou ao menos a expectativa – de lucro.[27]


Diante dessa construção, Carvalho de Mendonça adotou posicionamento a respeito do rol estabelecido pelo artigo 19 do Regulamento 737/50 no sentido de que aquela previsão descrevia os atos mais importantes e, assim, fornecia a chave para a identificação do espírito do sistema e o conceito da atividade comercial. Essa idéia foi afirmada nos seguintes termos:


“Como quer que seja, o vocábulo mercancia, empregado no art. 19 do Regulamento 737, dá-nos a chave do sistema estabelecido pelo Código. Neste artigo compendiam-se os atos mais importantes que constituem propriamente a arte do mercador, a profissão do comerciante, o trato de mercadejar, o exercício do comércio.”[28]


Por fim, o jurista estabeleceu a divisão dos atos de comércio da seguinte forma:


a) “por natureza”, aqueles que constituem o exercício de indústria mercantil, praticados por comerciantes com habitualidade;


b) “denominados comerciais por conexão”, aqueles que, embora quando apreciados isoladamente constituiriam atos civis, devem perceber a atribuição de caráter comercial por derivação porque visam facilitar, promover ou realizar o exercício da indústria mercantil, e por serem praticados por comerciantes no exercício de sua profissão;


c) “por força ou autoridade da Lei”, aqueles que indiferentemente de haverem sido praticados por comerciante ou não, recebem caráter mercantil em razão de determinação legal. Contudo, ainda que por muitas vezes repetidos, não terão o condão de atribuir ao agente a qualidade de comerciante.


Em crítica à teoria de Carvalho de Mendonça, Marcia Lippert manifestou-se no sentido de que, embora tenha representado grande contribuição, sua proposta caíra no casuísmo pelo fato de o autor não ter alcançado a conversão da intermediação tanto do conceito geral quanto das espécies de atos, nos atos em si que foram por ele utilizados como ilustrações.[29]


Na doutrina estrangeira, outro grande esforço para a delimitação dos atos mercantis foi observado na Itália, com a grande repercussão das idéias de Alfredo Rocco[30]. Segundo ele, a partir do agrupamento dos atos de comércio em grandes categorias, poderia ser identificado um conceito unitário, o qual possibilitaria nova generalização e, assim, sua aplicação analógica.


A proposta do autor italiano consistia na elaboração de um conceito científico para que se pudessem classificar quaisquer atos, invariavelmente e sem a dependência daquele rol previsto no texto legal. Identificou-se, portanto, com o critério descritivo, anteriormente referido.


A crítica estabelecida por Rocco à doutrina dominante à época[31] foi no sentido de que se movia dentro de um “ciclo vicioso”, especialmente diante da inexistência de um conceito único de ato de comércio. No entanto, avançou afirmando que: “esta conclusão pessimista está longe de poder considerar-se definitiva. É o resultado de análises muito superficiais e insuficientemente feitas até agora das várias categorias de atos de comércio enumeradas na lei”.[32]


Ademais, Rocco foi incisivo ao defender que seria muito natural a forçada declaração de inexistência de um princípio unitário regulador da classificação dos atos de mercancia, uma vez que a doutrina renunciava-se a priori a fixar esse critério para determinar a comercialidade dos atos enumerados pela Lei.[33]


Em outros termos, pode-se dizer que o destaque do jurista foi para o fato de que, diante daquele posicionamento doutrinário hermético, não existia, nem sequer poderia existir, um conceito unitário de comércio. Diante disso, seu trabalho foi no sentido de conceber um juízo em contrário.


Ao final, em uma definição sintética para a proposta elaborada por Rocco, pode-se dizer que os atos de comércio foram divididos em:


a) “intrinsecamente mercantis” (ou “atos de comércio constitutivos”), aqueles que representam, de um modo “inequívoco e característico” uma interposição de pessoas na troca. Ou seja, seu elemento comum seria a interposição na efetivação da troca (afastando-se, inclusive, a necessidade de lucro, o que estenderia o conceito a entidades estatais ou outros organismos de interesse da coletividade); e


b) “atos de comércio por conexão” (ou “atos acessórios”), aqueles que, mesmo sem a natureza mercantil, estavam relacionados e facilitavam a interposição na efetivação da troca. Eram todos aqueles atos que “não tenham uma função característica, só na medida em que se acham conexos com uma operação de interposição”. Ou seja, relacionavam-se às atividades intrinsecamente mercantis e, assim sendo, acabavam por também adotar esse caráter.


Dessa classificação bipartite, o objetivo era construir um conceito unitário para os atos de comércio, que não dependesse da enumeração legal. Assim, pode-se concluir, de maneira sucinta, que, para Rocco, eram atos de comércio todos aqueles que realizam ou facilitam uma interposição na troca.


A contribuição do jurista italiano foi muito valiosa, mas, assim como os esforços anteriores, também não se mostrou suficiente para a identificação de um critério verdadeiramente científico que finalmente possibilitasse a desvinculação do texto legal.


Sobre o tema, Requião[34] destaca que “muito embora tenhamos considerado altamente elucidativa a teoria de Rocco, tem ela a estreiteza, de resto confessada pelo autor, de ter sido elaborada sobre o direito positivo, isto é, sobre a enumeração que oferecia o código italiano de 1882”.


Com efeito, vale lembrar que o referido código de 1882 foi posteriormente revogado pelo Código Civil de 1942, evidenciando a necessidade de apuração de outro critério que identificasse quais os atos comerciais, bem como os diferenciasse daqueles de natureza civil.


Analisando-se os critérios elaborados pela doutrina até aquele período (início do século XX) e as posteriores críticas estabelecidas, resta destacada a imprecisão e demasiada instabilidade do sistema, o que não obteve sustentação em nosso ordenamento jurídico.[35]


Vislumbra-se, portanto, que, apesar dos grandiosos esforços legislativos e doutrinários para a apuração e definição dos atos considerados mercantis, não se conseguiu atingir um critério que conduzisse a uma certeza calcada em cientificidade. [36]


Ainda, como derradeira tentativa de identificação de um critério para a definição dos atos mercantis, surgiu a chamada “teoria da intermediação”. Requião aufere crédito ao professor francês Gaston Lagarde como autor dessa idéia, destacando o seguinte:


“(…) o Prof. Gaston Lagarde indaga do critério de comercialidade, considerando que o intuito lucrativo é necessário, mas insuficiente para caracterizá-lo. O comerciante, por outro lado, é um intermediário entre produtor e consumidor, da mesma forma que o ato de comércio é um ato de interposição ou de circulação. (…) Mas é necessário compreender que esta interposição não reveste caráter comercial se não for lucrativa; (…) ‘Dois elementos’, finaliza o Prof. Lagarde, ‘ – especulação e circulação – intervêm, portanto, um e outro, na definição do ato de comércio.’” [37]


Entretanto, tem-se, ao final, que todos esses critérios – modelo subjetivo, teoria dos atos de comércio (modelo objetivo) e da intermediação – sofreram críticas por demonstrarem, cada um em suas particularidades, diversas imprecisões científicas, tornando evidente a necessidade de elaboração de um novo sistema, menos dependente das permanentes construções doutrinárias jurisprudenciais e que, ao mesmo tempo, pudesse acompanhar as evoluções sociais.


2 A TEORIA DA EMPRESA


Reconhecida a necessidade de elaboração ou identificação de outro parâmetro que não o da teoria dos atos de comércio, dada a insuficiência de critérios científicos[38] na sua elaboração e aplicação, iniciou-se, na metade do século XX, um processo de deslocamento do eixo do direito comercial.


A partir desse período, observou-se o crescente desenvolvimento da empresa, a qual passava a ocupar uma posição de crescente destaque não apenas no que se refere à atividade econômica, mas também no âmbito jurídico.


No Brasil, com a unificação dos códigos de direito privado, grande parte da matéria que anteriormente era objeto de regulação pelo Código Comercial de 1850 hoje se acomoda em um único livro do novo Código Civil, sob a epígrafe de “Direito da Empresa”.


É esse um dos fatores pelo qual, também na legislação comercial, assim como na economia, denota-se o referido deslocamento de eixo. Significa dizer que a empresa se identifica, nos dias atuais, como o elemento nuclear do direito comercial, modernamente concebido em função do grande destaque atribuído ao fenômeno empresarial, em suas várias manifestações.[39] 


Para Marcia Lippert[40], tal fenômeno é decorrência da transformação do contexto social na contemporaneidade, máxime pela noção de utilitarismo, eficiência técnica, inovação e economicidade dos meios.


É inegável, portanto, o advento de nova fase histórica no direito comercial, denominada “fase subjetiva moderna”[41] do nosso direito comercial, formalmente inaugurada pelo Código Civil Italiano de 1942, cujas idéias repercutiram sensivelmente em nossa posterior codificação.


Vale, portanto, destacar o contexto social vivenciado à época da codificação italiana. Sobre o tema, Requião[42] ensina que “quando da reforma do direito privado italiano, que culminou no Código unificado de 1942, em virtude do imperativo político do regime fascista dominante, de ordem corporativa, elevou-se a empresa como centro do sistema”.


Fábio Ulhoa Coelho também destaca essa transformação, nas seguintes palavras:


“O direito comercial brasileiro filia-se, desde o último quarto do século XX, à teoria da empresa. Nos anos 1970, a doutrina comercialista estuda com atenção o sistema italiano de disciplina privada da atividade econômica. Já nos anos 1980, diversos julgados mostram–se guiados pela teoria da empresa para alcançar soluções mais justas aos conflitos de interesse entre os empresários. A partir dos anos 1990, pelo menos três leis (Código de Defesa do Consumidor, Lei de Locações e Lei do Registro do Comércio) são editadas sem nenhuma inspiração na teoria dos atos de comércio. O Código Civil de 2002 concluiu a transição, ao disciplinar, no livro II da Parte Especial, o direito de empresa.”[43]


Entretanto, impende ainda lembrar que o fenômeno empresarial apresenta certa complexidade que, por vezes, dificulta sua correta compreensão. Destaca-se, nesse sentido, a própria acepção do termo “empresa”, nem sempre é facilmente apreendida.[44]


Tal dificuldade foi observada inclusive quando da inserção da empresa no texto positivado. Com efeito, o Código Civil italiano de 1942 – pioneiro nesse sentido – não prevê expressamente o conceito de empresa, embora defina empresário (art. 2.082)[45] e estabelecimento (art. 2.555).[46]


Seguindo essa mesma orientação, o Código Civil brasileiro de 2002 também deixou de definir empresa, limitando-se à conceituação de empresário (art. 966), sociedade empresária (art. 982) e estabelecimento (art. 1.142)[47]. De fato, é preciso partir dessas acepções para que se possa deduzir a definição de empresa.


Para estabelecer o difícil conceito, uma vez que a codificação foi lacunosa, também foram diversos os esforços doutrinários. Destacou-se, neste ponto, o italiano Alberto Asquini[48], que elaborou os chamados “perfis da empresa”.


Inicialmente, o mencionado autor chama a atenção para o fato de que “o conceito de empresa é o conceito de um fenômeno jurídico poliédrico, o qual tem sob o aspecto jurídico não um, mas diversos perfis em relação aos diversos elementos que ali concorrem”. [49]


Tais idéias contribuíram para traduzir, nas palavras de Waldírio Bulgarelli, o “fenômeno da empresarialidade”[50] e redefinir os paradigmas do direito privado italiano, os quais acabaram por estender-se ao nosso sistema, positivados no Código Civil de 2002.


Em síntese, os perfis definidos por Asquini foram os seguintes:


a) “perfil subjetivo”, pelo qual a empresa se identifica com o empresário, o qual está definido no artigo 2.082 do Código Civil Italiano como aquele que “exercita profissionalmente atividade econômica organizada com o fim da produção e da troca de bens ou serviços” (correspondente ao art. 966 do Código Civil brasileiro);


b) “perfil funcional”, pelo qual a empresa é identificada com a “atividade empresarial”. Na leitura de Tomazette[51], esse perfil corresponde à “particular força em movimento que é a atividade empresarial dirigida a um determinado escopo produtivo”;


c) “perfil patrimonial” (ou “objetivo”), pelo qual a empresa é identificada como o conjunto de bens destinados ao exercício de sua atividade, definido no art. 2.555 do Código Civil italiano (estabelecimento – correspondente à previsão do art. 1.142 do Código Civil brasileiro);


d) “perfil corporativo”, pelo qual a empresa é identificada como a instituição que reúne o empresário e seus colaboradores. Para Tomazette[52], “este perfil, na verdade, não encontra fundamento em dados, mas apenas em ideologias populistas, demonstrando a influência da concepção fascista na elaboração do código italiano”.


Contudo, impende destacar que, a despeito da grande contribuição, a acepção dos perfis trazida por Asquini, no entendimento de nossos doutrinadores[53], deixou de ser integralmente adotada por demonstrar imprecisão na definição do conceito de empresa.


Contudo, algumas contribuições permaneceram, especialmente no que diz respeito aos elementos para a concepção de uma teoria da empresa – mais especificamente em relação ao trinômio empresário, estabelecimento e atividade (perfis subjetivo, patrimonial e funcional).


Nesse sentido, Marcia Lippert[54] afirma que a proposta do Código Civil Italiano de 1942, largamente adotada em nosso sistema, conduz à leitura de que “empresa é o efeito da atividade do empresário pelo estabelecimento”. Pode-se dizer, portanto, que corresponde ao perfil funcional elaborado por Asquini.


3 Superação da dicotomia no direito privado. 

3.1 O Pioneirismo Brasileiro.
  


A superação da dicotomia no direito privado, apesar de positivada apenas em 1942 na Itália e em 2002 no Brasil, tem como origem proposta elaborada em período muito anterior por um jurista pátrio.


Em 1854, Teixeira de Freitas sugeriu a elaboração de um sistema de direito obrigacional único[55], que incidisse sobre todas as matérias de direito privado, tornando-se, de que se tem notícia, o pioneiro a abordar o tema.


Conquanto tenha apresentado grandes inovações, a proposta de Teixeira de Freitas foi, à época, de encontro às aspirações do governo imperial, o que levou à sua dispensa e interrupção dos trabalhos em 20 de setembro de 1867.[56]


O episódio da recusa à mencionada proposta de unificação é, até os dias atuais, amplamente lamentado por muitos de nossos doutrinadores. Nesse sentido, vale transcrever o seguinte relato:


“Sabe-se que esse é um dos episódios mais importantes da história do Direito Privado Brasileiro e isso fez nascer aquilo que Clóvis Beviláqua chamaria de “a página mais dolorosa da jurisprudência brasileira” que foi a carta com que Teixeira de Freitas, ante à recusa do Governo Imperial de acolher as suas idéias, renunciou à função de codificador do Direito Civil.”[57]


Entretanto, embora o esforço empreendido tenha sido dispensado naquele momento histórico, é certo que ele não se deu em vão. As idéias elaboradas serviram de influência para muitos doutrinadores e legisladores em outros países.


A exemplo, o italiano Cesare Vivante, em sua Prolusione – aula inaugural na Universidade de Bolonha, em 1888 – defendeu a unificação do direito privado, apesar de ter-se retratado em 1919, quando convidado a presidir a comissão de reforma ao código comercial, adotando a concepção autonomista[58].


Outrossim, o texto elaborado serviu de inspiração a muitos outros, no transcorrer do século XX. Na sua esteira, seguiram o Código Civil argentino e de outros países latino-americanos[59]. Com efeito, num momento posterior também inspirou a codificação italiana de 1942 e, por certo, a brasileira de 2002 – possivelmente porque, nas palavras de Villela[60], “o sonho da reunificação do Direito Privado nunca abandonou a cena jurídica brasileira”.


3.2 A Unificação Italiana e sua Influência no Brasil


Conforme já referido, a codificação italiana de 1942 é tida para nossa maciça doutrina como o momento em que formalmente inaugurada a denominada “fase subjetiva moderna” de nosso direito comercial[61], denotada, em especial, pela inclusão do direito de empresa no texto codificado. Vale dizer que unificaram-se, naquela oportunidade, as matérias civis e comerciais em um só corpo, a reger o direito privado como um todo.


Diante disso, a fim de que se possa compreender o fenômeno da unificação do direito privado brasileiro, objeto deste trabalho, é impossível deixar de considerar-se, inicialmente, a contribuição do movimento italiano.


Nossa doutrina também reconhece essa profunda influência exercida sobre o nosso sistema. Nesse sentido, são as palavras de Duarte:


“(…) o Direito da Itália revela-se sumamente importante para a construção de uma teoria da empresa no Direito brasileiro, uma vez que este se inspirou fortemente no modelo italiano, chegando, inclusive, a reproduzir inúmeros dos seus dispositivos. Por tal razão, não se devem desprezar as quase seis décadas de experiência dos italianos, que hão de ser de grande valia para o estudo e interpretação do ainda recente Código Civil Brasileiro”.[62]


Também a exemplo dessa contribuição, vale reprisar que o texto do Código Civil brasileiro de 2002 praticamente reproduziu os conceitos de empresário (art. 966, CC e art. 2.084, CCIt) e estabelecimento (art. 1.142, CC e art. 2.555, CCIt).


Não há, portanto, que se ignorar o fenômeno italiano de unificação das matérias de direito civil e comercial. A inclusão do direito de empresa para o corpo do Código Civil, ocorrida na Itália, influenciou intensamente a elaboração do Código Civil Brasileiro de 2002.


3.3 A Empresa Como Elemento Unificador no Direito Privado.


Conforme já destacado, apesar da efetiva unificação formal das matérias de direito civil e comercial por meio do novo Código Civil, ainda se mantém o debate doutrinário acerca da eventual permanência da dicotomia material entre as duas esferas.


Nesse sentido, cabe mencionar que a posição da comissão elaboradora do Projeto do Código Civil era no sentido de unificação do direito obrigacional sem, contudo, pretender a unificação do direito privado como um todo. Tanto assim é que, para Miguel Reale, seu relator, tal unificação ocorreria apenas em relação aos “institutos básicos”. Suas idéias são as seguintes:


“Não há, pois, que falar em unificação do Direito Privado a não ser em suas matrizes, isto é, com referência aos institutos básicos, pois nada impede que do tronco comum se alonguem e se desdobrem, sem se desprenderem, ramos normativos específicos, que, com aquelas matrizes, continuam a compor o sistema científico do Direito Civil e Comercial. Como foi dito com relação ao Código Civil Italiano de 1942, a Unificação do Direito Civil e do Direito Comercial, no campo das obrigações, é de alcance legislativo, e não doutrinário, sem afetar a autonomia daquelas disciplinas. No caso do Anteprojeto ora apresentado, tal autonomia ainda mais se preserva, pela adoção da “técnica da legislação aditiva”, onde e quando julgada conveniente.”[63]


Diante do posicionamento de Reale, Marcia Lippert estabelece a sensata crítica no sentido de que, conquanto pretendia o relator a manutenção da dicotomia no direito privado, suas idéias acabaram por levar à conclusão de que se os “institutos básicos” já haviam sido unificados, nada mais haveria em assim o ser.


Para melhor elucidação, segue seu excerto:


“Se o “tronco comum” e, a partir dele, nascem as regulamentações específicas, será que o impedimento ao reconhecimento da unificação do direito privado não se deve a um fator metajurídico, talvez no excesso de zelo dos autores do Projeto!?


(…)


Aqui é necessário lembrar que a extinção do direito comercial é o resultado do fracasso da teoria dos atos de comércio, o qual chancelou a impropriedade da dicotomia e ratificou a união de institutos que outrora pertenciam ao direito comercial e que foram adotados pelo direito civil (…). Essa união não significa a prevalência de um ramo em relação ao outro, mas sim a compreensão de um direito regulamentador da matéria privada.”[64]


Com efeito, para o fim da análise do papel da empresa no ordenamento jurídico, a ser realizada neste trabalho, adota-se posicionamento tal qual o acima transcrito.  Parte-se da idéia de que, da maneira como configurado o sistema atual, nada mais falta para a total unificação do direito privado.


Em corroboração a essa corrente de pensamento, Villela[65] aduz que “não há nada que indique, do ponto de vista da estrutura dos valores e dos princípios que regem os Direitos Civil e Comercial, que eles constituam objeto de uma dogmática separada e que não guardem uma certa unidade, uma certa coerência”.


Entretanto, vale ainda reprisar que, conforme alertado na introdução deste estudo, esse posicionamento ainda não encontra integral guarida na doutrina brasileira. A título ilustrativo, colaciona-se o excerto de Ronnie Duarte:


“Substancialmente, segundo a disciplina do novo Código Civil brasileiro, o Direito Comercial passa a ser o Direito das Empresas. A antiga denominação, entretanto, deve ser preservada por razões históricas. A unificação operada no Brasil foi eminentemente formal, uma justaposição de códigos, não se podendo questionar a conservação, pelo Direito Comercial, de sua autonomia científica.”[66]


Contudo, também impende considerar que, conforme Marcia Lippert, no futuro, o direito empresarial poderá ser considerado um ramo especial do direito privado, tal qual o direito societário, o direito sucessório, o direito cambial e assim por diante.[67]


Seguindo entendimento análogo, Renan Lotufo[68] manifesta-se no sentido de que “estamos diante de um Código que não quer ser uma Constituição, não quer ser o centro, e sim ser um corpo de normas com cláusulas abertas para servir e viabilizar a atuação de todo o direito privado”.


Por fim, tem-se que, conforme já destacado por Villela[69], o novo Código “chama-se Civil, mas não é um Código apenas de Direito Civil, é um verdadeiro Código de Direito Privado”. Não se pode, pois, negar a unidade configurada nesse ramo de nosso direito.


Pode-se, portanto, concluir pela existência de um código com cláusulas abertas que representa o verdadeiro tronco do direito privado, ponto de partida do qual emanam os ramos mais específicos – tais como a tutela da empresa – sem que estes se desgarrem daquele estatuto central e unitário.


Conclusão.


A análise da Empresa e seu papel no ordenamento jurídico contemporâneo faz concluir que a sua inclusão ao Código Civil de 2002 representa verdadeira superação da dicotomia no direito privado. Para a melhor compreensão acerca do tema, o estudo inevitavelmente tem de aproximar-se da investigação histórica e social.


É por isso que a compreensão desse fenômeno passa, necessariamente, pela verificação do contexto em que surgido o direito comercial, fazendo-nos entender pela ausência de justificativa para a manutenção dessa separação na contemporaneidade.


Àquela época, quando comerciantes eram sujeitos a um regime monárquico absolutista que não lhes outorgava qualquer segurança, fazia sentido a criação de um sistema apartado do direito comum, que lhes garantisse o adequado exercício de suas atividades.


Com o passar do tempo, observou-se a ausência de critérios científicos que sustentassem a separação entre os ramos civil e comercial. Outrossim, observou-se o desvio do eixo do comércio para a Empresa, fazendo com que novas teorias tivessem de ser formuladas. Não havia mais razão de ser daquele ramo apartado do direito.


Assim, ainda que muitos doutrinadores arraigados às teorias tradicionais do direito comercial refutem essas idéias, não há como se negar que a inclusão da empresa representa verdadeira virada em nosso sistema, fazendo com que o direito privado seja tido hoje como uno, embora respeite as particularidades de seus ramos, tais como o direito de Empresa.


 


Referências.

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VILLELA, João Baptista. Capacidade Civil e Capacidade Empresarial: Poderes de Exercício no Projeto do Novo Código Civil. In: CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Comentários Sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro. Série de Cadernos do CEJ, volume 20. Brasília: Centro de Estudos Judiciários, 2002.

 

Notas:

[1]     “É preciso entender que o paradigma do Estado democrático de direito irradia um sentido próprio que influi sobre todo o ordenamento, impondo a releitura de todas as normas jurídicas que o compõem, mesmo daquelas que já existiam nos paradigmas anteriores, as quais terão que se adequar a uma nova visão de indivíduo, de sociedade, de Estado”. (LOPES, Ana Frazão de Azevedo. Empresa e Propriedade: Função Social e Abuso de Poder Econômico. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 26.)

[2]     REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 1º volume. 25ª edição, atualizada por Rubens Edmundo Requião. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 20.

[3]     A doutrina é vigorosa em estabelecer o século XII (período merovíngeo) como início do direito comercial dotado de valores e princípios próprios, também chamado ius mercatorum (expressão utilizada pelos glosadores). Nesse sentido, ver: DUARTE, Ronnie Preuss. Teoria da Empresa à Luz do Novo Código Civil Brasileiro. São Paulo: Método, 2004, pp. 18-19.

[4]     Ainda que se possa entender pelo surgimento das primeiras normas regulamentadoras do direito comercial já na Antiguidade (Código de Manu na Índia e de Hamurábi na Babilônia), tais previsões não configuravam um sistema orgânico que pudesse caracterizar o direito comercial como ramo autônomo. Nem mesmo na Grécia e Roma antigas, quando já existiam algumas normas sobre o tema, podia-se observar a existência de um ordenamento que incidisse específica e exclusivamente sobre as questões de direito comercial. Para Ronnie Duarte, “a noção romana de pessoa, com a exigência de um tratamento legal e equânime a todos os cidadãos, impedia a criação de um direito de classe, com prerrogativas e disposições aplicáveis a apenas um segmento profissional, como é o caso do Direito Comercial” (DUARTE, op. cit., pp. 18-19). A respeito da inexistência desse sistema autônomo e orgânico até o século XII, ver também: TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. 2ª edição. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, pp. 1-3.

[5]     DUARTE, op. cit., p. 18.

[6]     GALGANO, Francesco. História do Direito Comercial. Tradução para o português de João Espírito Santo. Lisboa: Signo, 1990, pp. 32-33.

[7]     Conforme explicitado por Tomazette, a experiência de integração e organização dentre os comerciantes foi, à época, tão bem sucedida que há autores que referem o poder econômico e militar das corporações de mercadores (organizadas em Gênova, Florença, Veneza) como o próprio ensejador da transição do regime feudal para o regime das monarquias absolutistas, bem como de tantos outros fenômenos sociais que a partir daí foram desencadeados. (TOMAZETTE, op. cit., p. 2.)

[8]     “Num contexto tão adverso à mercancia, os comerciantes foram levados a um forte movimento de união. De forma geral, o direito comercial originou-se dos usos e costumes dos comerciantes, em virtude da inexistência de um sistema jurídico típico para as transações comerciais, o que fez com que os mercadores (denominação da época) criassem organismos com jurisdição própria, as conhecidas corporações”.  (LIPPERT, Marcia Mallmann. A Empresa no Código Civil: Elemento de Unificação no Direito Privado. São Paulo: Editora Revista do Tribunais, 2003, pp. 42-43.)

[9]     “Constitui, entretanto, antes de mais nada, se considerado no quadro geral do direito comparado e no conjunto de sua evolução histórica, um direito especial no sentido histórico e é sob este aspecto, e atendida a função historicamente preenchida pelo direito comercial em contraposição ao direito comum, que melhor se entende sua autonomia e seu papel, os próprios problemas que hoje se apresentam quanto à sua reforma e quanto à unificação do direito das obrigações (unificação que nem sequer se poderia cogitar caso o direito comercial não constituísse uma categoria histórica) e, finalmente, a sua contribuição para o direito comum.”  (ASCARELLI, op. cit., p. 3.)

[10]    “As pessoas que exerciam atividades de troca econômica, os chamados ‘mercadores’, não encontrando dentro do Direito Civil as razões e os instrumentos para dar cobertura aos seus negócios, começaram a criar instrumentos para regular internamente suas atividades.” (VILLELA, João Baptista. Capacidade Civil e Capacidade Empresarial: Poderes de Exercício no Projeto do Novo Código Civil. In: CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Comentários Sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro. Série de Cadernos do CEJ, volume 20. Brasília: Centro de Estudos Judiciários, 2002, p. 38.)

[11]    COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, pp. 12-13.

[12]    TOMAZETTE, op. cit., p. 2.

[13]    LIPPERT, op. cit., p. 45

[14]    ”Cada corporação formava como que um pequeno Estado, dotado de um Poder Legislativo e de um Poder Judiciário. (…) A sua magistratura formava-se por meio de cônsules dos comerciantes (consules mercatorum), eleitos pela assembléia dos comerciantes, tendo funções políticas (defender a honra e a dignidade das corporações a que pertenciam, ajudar os chefes a manter a paz, etc.), funções executivas (observar e fazer observar os estatutos, leis e usos mercantis, administrar o patrimônio, etc.) e funções judiciais, julgando as causas comerciais. Decidiam com a máxima brevidade, sem formalidade (sine strepitu et figura judicii). Das suas sentenças nos casos mais graves dava-se apelação para outros comerciantes matriculados na corporação e sorteados, aos quais se atribuía o título de sobrecônsules.” (CARVALHO DE MENDONÇA, José Xavier. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. Atualizado por Ricardo Negrão. Campinas: Bookseller, 2000, pp. 68-69.)

[15]    COELHO, op. cit., pp. 14-15.

[16]    DUARTE, op. cit., p. 36.

[17]    LIPPERT, op. cit., p. 51. Nesse sentido, também Fábio Ulhoa Coelho destaca que “a teoria dos atos de comércio alcançou o direito vigente em considerável parcela do mundo ocidental, não penetrando somente da Alemanha e nos países da Common Law”. (COELHO, op. cit., p. 15).

[18]    LIPPERT, op. cit., p. 53.

[19]    Ibidem, p. 53.

[20]    COELHO, op. cit., pp. 22-23.

[21]    O espírito da época pode ser traduzido pelas palavras de Montesquieu: ”Os juizes da nação são apenas, como já dissemos, a boca que pronuncia as palavras da lei; são seres inanimados que não podem moderar nem sua força, nem seu rigor. Assim, é parte do corpo legislativo que acabamos de dizer ter sido, em outra oportunidade, um tribunal necessário que se mostra de novo necessário agora; sua autoridade suprema deve moderar a lei em favor da própria lei, sentenciando com menos rigor do que ela”. (MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, Baron de. O Espírito das Leis. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 175. Obra originalmente publicada em 1748.)

[22]    DUARTE, op. cit., p. 37. A doutrina francesa mencionada pelo autor remonta, em especial, a: HAMEL, Joseph; LAGARDE, Gaston. Traité de Droit Commercial. Paris: Dalloz, 1954, p. 172.

[23]    COELHO, op. cit., pp. 15-16.

[24]    Por esse art. 19, eram considerados atos mercantis os seguintes: “a) compra e venda ou troca de bem móvel ou semovente, para sua revenda, por atacado ou a varejo, industrializado ou não, ou para alugar seu uso; b) as operações de câmbio, banco ou corretagem; c) as empresas de fábricas, de comissões, de depósito, de expedição, consignação e transporte de mercadorias, de espetáculos públicos; d) os seguros, fretamentos, riscos; e) quaisquer contratos relativos ao comércio marítimo e à armação e expedição de navios”.

[25]    REQUIÃO, op. cit., p. 40.

[26]    CARVALHO DE MENDONÇA, op. cit., p. 527.

[27]    Ibidem, p. 499.

[28]    Ibidem, p. 528.

[29]    LIPPERT, op. cit.,  p. 70.

[30]    ROCCO, Alfredo. Princípios de Direito Comercial. Tradução de Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN Editora, 2003.

[31]    A obra de Rocco referenciada foi elaborada no ano de 1927.

[32]    ROCCO, op. cit., p. 198.

[33]    Ibidem, p. 200.

[34]    REQUIÃO, op. cit., p. 38. Também em crítica à doutrina de Rocco, Marcia Lippert assevera que “não conseguiu construir um sistema verdadeiramente independente da enumeração legal, auto-sustentável”. (LIPPERT, op. cit, p. 79.)

[35]    “A teoria dos atos de comércio resume-se, rigorosamente falando, a uma relação de atividades econômicas, sem que entre elas se possa encontrar qualquer elemento interno de ligação, o que acarreta indefinições no tocante à natureza mercantil de algumas delas”. (COELHO, op. cit., p. 15.)

[36]    “A teoria dos atos de comércio não é uma regra que comporta exceções, mas, sim, a própria exceção. Em síntese, acreditamos que a proposta de Carvalho de Mendonça caiu no casuísmo pelo fato de o autor não ter alcançado a conversão da intermediação tanto do conceito geral quanto das espécies de atos, nos atos em si que foram por ele utilizados como ilustrações. A tentativa de conceber uma teoria resultou em uma repetição legal desordenada, associada à compilação da jurisprudência da época”. (LIPPERT, op. cit., p. 70.)

[37]    REQUIÃO, op. cit., pp. 38-39.

[38]    A ausência de critérios científicos na justificativa da separação do direito privado em duas esferas distintas é denotada por Fábio Ulhoa Coelho, nas seguintes palavras: “O fracionamento do direito privado em diferentes regimes para as atividades comerciais e civis, característico da teoria dos atos de comércio, decorre de fatores externos à tecnologia jurídica”. (COELHO, op. cit., p. 16.)

[39]    DUARTE, op. cit., p. 31.

[40]    São as palavras da referida autora: “Efetivamente a empresa passou a ocupar um papel social significativo, pois é dela que provêm bens, serviços e receita fiscal do Estado. Também é ela responsável pela transformação da forma pela qual sociedades, associações e profissionais liberais buscam alcançar a consecução dos seus objetivos, uma vez que é da empresa a noção de utilitarismo, de eficiência técnica, de inovação e de economicidade dos meios. Não poderia, portanto, a ciência jurídica permanecer indiferente a este instituto, mesmo com a dificuldade natural de conceituá-lo, somada às diferentes acepções e perfis que se emprestaram à expressão empresa, ora por outros ramos científicos, ora pelo uso coloquial”. (LIPPERT, op. cit., pp. 114-115.)

[41]    Ibidem, pp. 113-120.

[42]    REQUIÃO, op. cit., p. 54.

[43]    COELHO, op. cit., p. 26

[44]    “É verdade que a percepção exata da empresa é difícil, tendo levado alguns juristas à perplexidade. Para eles, os quais criticam a intangibilidade da empresa, a realidade ‘empresa’ não é passível de ser apreendida em uma única forma. É algo que não integra a realidade do ‘ser’” (DUARTE, op. cit., p. 87.). Na mesma obra (p. 29), o autor avança, no seguinte sentido: “Como sabemos, não é viável uma perquirição acerca da essência factual da empresa. Não se pode recorrer a critérios ontológicos, já que a percepção da empresa na realidade do ‘ser’ se dá sob diferentes perspectivas, algumas das quais antagônicas. A análise do fenômeno pré-jurídico (ou metajurídico) da empresa, ao contrário de se revelar eminentemente ilustrativa – não obstante as divergências acima referenciadas -, permite a depreensão de certas características comuns, que poderão ser úteis para a análise posterior da empresa sob a óptica do direito. Não se trata simplesmente de transpor o fenômeno pré-jurídico da empresa para o Direito, como fazem os alemães em seus estudos sobre a matéria empresarial, os quais, à partida, verificam a ‘Natureza das Coisas’ (Natur der Sache), para depois transferi-la para o âmbito jurídico. A empresa não é uma realidade passível de ser direta e imediatamente absorvida pelo Direito.”.

[45]    “Art. 2082 Imprenditore: E’ imprenditore chi esercita professionalmente un’attività economica organizzata (2555, 2565) al fine della produzione o dello scambio di beni o di servizi (2135, 2195).” Tradução livre: “É empresário aquele que exercita profissionalmente uma atividade econômica organizada (2555, 2565) com o fim de produção ou troca de bens ou de serviços (2135, 2195)”.

[46]    “Art. 2555 Nozione: L’azienda è il complesso dei beni organizzati dall’imprenditore (2082) per l’esercizio dell’impresa.” Tradução livre: “O estabelecimento é o complexo de bens organizados do empresário (2082) para o exercício da empresa”.

[47]    LIPPERT, op. cit., p. 121. Prevêem os referidos dispositivos: “Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.”; “Art. 982. Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e, simples, as demais.”; “Art. 1142. Considera-se estabelecimento todo o complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária”.

[48]    ASQUINI, Alberto. Profili dell’ imprensa. Tradução Fábio Konder Comparato. In: Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, nº 104. São Paulo: RT, 1996, p. 109.

[49]    Ibidem, p. 109.

[50]    BULGARELLI, Waldírio. Tratado de direito empresarial. São Paulo: Atlas, 1997, p. 99.

[51]    TOMAZETTE, op. cit., p.5.

[52]    Ibidem, p. 6.

[53]    A exemplo, LIPPERT, op. cit., p. 117.

[54]    LIPPERT, op. cit., p. 139.

[55]    Ibidem, p. 107.

[56]    DUARTE, op. cit., p. 81. Para melhor visualização do contexto histórico, vale o destaque às idéias de Villela: “O Governo parecia estar sobretudo acossado por um imperativo político de ter um Código Civil. A idéia de trabalhar numa outra linha representaria possivelmente um prolongamento, uma dilatação do prazo em que se queria um Código Civil, que, naquele tempo era, de certa maneira, uma carta de alforria dos países. (…) Sabe-se, por exemplo, que a Bolívia, em 1830, dispunha de um Código Civil, que não era nada original, não passava de uma cópia do Código de Napoleão, mas, enfim, podia exibir o seu Código, enquanto que o Brasil, seguramente a mais importante nação da América Latina, ainda tateava em busca desse monumento da sua condição de nação politicamente adulta. (…) O Governo, preocupado em acelerar esses trabalhos, não deu ouvidos à sugestão de Teixeira de Freitas, e sabe-se que Clóvis Beviláqua foi encarregado da elaboração do Projeto, que também teve as suas vicissitudes, mas, finalmente, converteu-se em lei em 1916.” (VILLELA, op. cit., p. 39)

[57]    VILLELA, op. cit., p. 38.

[58]    BULGARELLI, Waldírio. Direito Comercial. 16ª edição. São Paulo: Atlas, 2001, p. 60.

[59]    DUARTE, op. cit., p. 80.

[60]    VILLELA, op. cit., p. 39.

[61]    LIPPERT, op. cit., 113.

[62]    DUARTE, op. cit., p. 62.

[63]    REALE, Miguel. O Projeto do Novo Código Civil. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 56.

[64]    LIPPERT, op. cit., p. 154.

[65]    VILLELA, op. cit., p. 38.

[66]    DUARTE, op. cit., p. 157.

[67]    LIPPERT, op. cit., p. 182. Ainda na mesma obra e página, a jurista avança: “Essa proposta permite que se admita o novo Código Civil como Código de Direito Privado, no qual as diretrizes, os princípios e as instituições estariam previstos com as linhas mestras para que a autonomia e a especificidade das áreas fossem mantidas. Em assim ocorrendo, ter-se-ia um código central regulador do direito privado, representativo de uma unidade valorativa e conceitual que, ao mesmo tempo, interfere nas leis especiais e permite à doutrina integrá-las neste sistema“.

[68]    LOTUFO, Renan. Da oportunidade da Codificação Civil e a Constituição. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org).  O Novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 26.

[69]    VILLELA, op. cit., p. 40.


Informações Sobre o Autor

Gabriela Wallau Rodrigues

Pós-graduanda em Direito Civil e Processual Civil. Bacharel em Direito pela PUCRS. Integrante do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional. Membro da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional Rio Grande do Sul.


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