Resumo: Artigo que aborda o tema do direito penal do inimigo e seus reflexos na ordem constitucional, bem como no próprio direito penal e processo penal.
Palavras-chave: Constituição – Direito penal – Direito penal do inimigo – Inimigo
Sumário: Considerações iniciais. 1 – O direito penal do inimigo. 2 – Reflexos na ordem constitucional. 3 – Reflexos no próprio direito penal e no processo penal. Considerações Finais.
Considerações iniciais
Inicialmente deve-se ter em conta que o Direito Penal pode ser analisado sob dois aspectos, onde por um lado se parte da sanção (pena), enquanto por outro lado o que se enfoca em primeiro lugar é a questão do ilícito, isto é, “ou se parte das conseqüências da norma penal, da pena, ou se parte do objeto da norma, o ilícito”.[1] Isto faz com que ao se pensar o Direito Penal a partir do ilícito se possa trabalhar com a natureza ontológica, cuja base repousa na ofensa a bens jurídicos que detenham dignidade penal, bem como na própria questão da ofensividade.[2]
Contudo, ao se analisar o Direito Penal, tomando como ponto de partida a pena, se chegará, inevitavelmente, as concepções funcionalistas acerca do Direito Penal, dentre elas, em contrariedade ao funcionalismo moderado de ROXIN, o funcionalismo radical (ou sistêmico) de JAKOBS, que dará margem e sustentará o chamado direito penal do inimigo.
É nesse viés funcionalista (radical / sistêmico) que JAKOBS crê no fato de que o Direito Penal se justifica para garantir a vigência da norma (numa idéia de respeito ao contrato social) e de reprimir veementemente condutas perigosas, cometidas, por certo, pela temida figura do inimigo, contrastando-se, portanto, o direito penal do cidadão e o direito penal do inimigo, e não sendo possível falar-se em bem jurídico (penal), bem como mitigando, até mesmo por completo, a questão da ofensividade em direito penal.[3]
1 – O direito penal do inimigo
O Direito penal do inimigo é assunto que foi tratado (e ainda é) por JAKOBS há longos anos, mas sempre seu debate é atual. Tido como discípulo de WELZEL, JAKOBS abordou o tema, “de forma crítica”, já em 1985, sendo que, posteriormente, em 1999, retomou o assunto, mas agora para sustentar “um direito penal parcial: aquele que se comporta como inimigo deve ser tratado como inimigo, como ´não-pessoa´ (Unperson)”.[4] E, o direito penal do inimigo ganhou força a partir dos ataques terroristas de 11/09/2001 na cidade de Nova Iorque, tendo, conseqüentemente, reflexos na política criminal, senão de todos, da maioria dos países, ainda que não seja um tema recente.[5]
Este direito penal (do inimigo) é pautado a partir do conceito de ´não-pessoa´, daquele que se afasta do direito, que não cumpre o contrato social no sentido de respeitar o ordenamento jurídico vigente e, portanto, é tido como uma constante fonte (ameaça) de perigo. A este inimigo não são reservados, muito menos observados, direitos e garantias fundamentais, mesmo que pressupostos básicos de uma ordem constitucional em um Estado que se diga Democrático e Constitucional de Direito. É como bem afirma SILVA SÁNCHEZ ao frisar que o direito penal do inimigo seria um direito penal de terceira velocidade (previsão de pena de prisão com a flexibilização de direitos e garantias fundamentais) e seria, portanto, na verdade um “Direito do inimigo (…) o Direito das medidas de segurança aplicáveis a imputáveis perigosos”.[6]
O inimigo é visto como um objeto, posto que é ´não-pessoa´, mas mais: é objeto fonte de ameaça e de perigo que põe em risco a sociedade, a segurança, a ordem jurídica, enfim, põe em risco a própria vigência da norma. Apresentando o inimigo este risco ele deixa de ser merecedor do ´status´ de cidadão, e tem seus direitos e garantias tolhidos em nome desta (ilusão de) maior segurança pautada na ´luta contra o terror´. Assim, o inimigo “nega-se a si próprio como pessoa, aniquila a sua existência como cidadão, exclui-se de forma voluntária e a título permanente da sua comunidade e do sistema jurídico que a regula”.[7]
Isto tudo vem em total contraste com o direito penal do cidadão, em que são asseguradas as garantias e os direitos fundamentais, inerentes a um devido processo legal, onde como menciona CANOTILHO “estrutura-se segundo um código de princípios de direito penal e de direito processual que agora encontram dignidade constitucional formal na maioria das leis fundamentais (princípio da legalidade, princípio da não retroactividade das leis penais, princípio de non bis in idem, princípio da inocência do argüido, princípio das garantias de defesa do réu, princípio do acusatório, princípio da reserva do juiz, etc.).[8]
Portanto, é possível estabelecer um parâmetro de similaridade do direito penal do inimigo para com a lógica da “desconstrução” (DERRIDA), onde, inclusive, se pode verificar que o fundamento do desse (não) direito (?) calcado na figura do inimigo (´não-pessoa´) se afasta por completo do “núcleo essencial da questão humana fundamental – sua sobrevivência enquanto ser propriamente humano (o sentido propriamente dito do humano), portanto relacional, portanto intimamente imbricado às dimensões sociais de toda a ordem que tornam a vida humana possível”, conforme se extrai do pensamento de SOUZA.[9]
Mas, quem são os cidadãos e quem são os inimigos? Como identificar o (s) inimigo (s)?
O próprio JAKOBS estabelece que “quem não presta uma segurança cognitiva o suficiente de um comportamento pessoal, não só não pode esperar ser tratado ainda como pessoa, mas o Estado não deve tratá-lo, como pessoa, já que do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas”.[10] Por seu turno, “só é pessoa quem oferece uma garantia cognitiva suficiente de um comportamento social, e isso como conseqüência da idéia de que toda normatividade necessita de uma cimentação cognitiva para poder ser real”.[11]
FERRAJOLI, ainda que ao abordar a soberania no mundo moderno e não especificamente o tema em voga, traz um bom comparativo ao mencionar que “a figura do ´selvagem´ vem identificar-se com a do ´estranho´, na maioria das vezes inimigo, em alguns casos não-humano ou semi-humano, mas sempre ´inferior´”[12], onde então o inimigo é sempre o Outro, é sempre aquele que não está inserido em determinado círculo social, pois é, via de regra, um (não) ser (´não-pessoa´) excluído.
Ademais, pertinente as análises, sobre a figura do inimigo, calcadas no tratamento deste como ´homo sacer´ (AGAMBEN), onde se pauta que “o inimigo, na medida em que se vê despojado dos seus direitos de cidadania, torna-se ´vida nua´ submissa ao poder do soberano. Ele deixa de pertencer à esfera da ´pólis´ (Direito Penal do cidadão) e passa à condição de ´homo sacer´, à medida que o Direito Penal do Inimigo, enquanto guerra pura e simples, não pressupõe qualquer vínculo normativo. É capturado apenas na sua ´matabilidade´”.[13]
É dessa forma, em nome da luta contra o terror, tratando certos elementos como inimigos, como ´não-pessoas´ é que se cometerão as maiores atrocidades em busca de uma (falsa) ilusão de segurança e de combate ao terror. O que se pretende com o direito penal do inimigo é a eliminação de um perigo, de uma ameaça, o que, então, justifica (leia-se justificaria) intervenções até mesmo em atividades preparatórias, nas quais não mais se ressalta a culpabilidade, mas sim a mera periculosidade do inimigo.
Não é a toa que para JAKOBS o Direito Penal “conhece dois pólos ou tendências em suas regulações. Por um lado, o tratamento com o cidadão, esperando-se até que se exteriorize sua conduta para reagir, com o fim de confirmar a estrutura normativa da sociedade, e por outro, o tratamento com o inimigo, que é interceptado já no estado prévio, a quem se combate por sua periculosidade”.[14]
Assim, há uma dicotomia enorme entre o direito penal do inimigo e o direito penal do cidadão. Para uns a indiferença, o preconceito, o rótulo de inimigo e de constante ameaça, perigo a tudo e a todos que leva a flexibilização absoluta de direitos e garantias fundamentais. Para outros, cidadãos de bem, respeitadores da ordem jurídica, portanto, pessoas, seres devidamente considerados humanos, o respeito aos direitos e garantias fundamentais dentro de um Estado Democrático e Constitucional de Direito.
Não há dúvidas de que o direito penal do inimigo é, dessa forma, eminentemente, um direito penal de autor. Se busca a punição, a inocuização daquele que é e pensa de tal modo, não daquele que fez algo. É, nesse sentido, o ensinamento de D´AVILA ao escrever sobre o direito penal do inimigo, pois se “busca (re)estabelecer um já conhecido modelo de direito penal do agente, direcionado à punição de atos meramente preparatórios, no qual o objetivo da pena é tão somente inocuizar uma inaceitável fonte de perigo, e no qual o processo se assume como instrumento de facilitação na obtenção de fins político-criminais acentuadamente demagógicos”.[15]
2 – Reflexos na ordem constitucional
Como bem observa SAAVEDRA é possível perceber que de acordo com a concepção de direito penal do inimigo, especialmente, após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, nos EUA, houve a consolidação da transição de uma “sociedade democrática” para uma “sociedade da segurança”, culminando com “o abandono da cultura da liberdade (…) e pela sedimentação gradativa de uma cultura do medo”.[16]
Notório que o direito penal do inimigo contraria a noção de dignidade da pessoa humana, princípio este basilar de um Estado Democrático e Constitucional de Direito, cuja previsão está até mesmo a fundamentar a democracia brasileira conforme se verifica do art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988. O direito penal do inimigo, portanto, rompe com a idéia de uma sociedade aberta, livre, plural, democrática, multicultural e respeitadora das diferenças.
Assim, as concepções do direito penal do inimigo não encontram, ou ao menos não deveriam encontrar guarida em um Estado Democrático, pois tratar e reprimir as pessoas de forma diferente, apenas pelo que se é e não pelo que se faz, contraria violentamente preceitos básicos de um direito penal justo e igualitário, além de humano. Retirar de certas pessoas sua própria condição de pessoa, de ser humano, é violentar o princípio da dignidade da pessoa humana na sua mais pura forma.
Ainda que sob a alegação de estar-se em uma ´luta contra o terror´ não se pode admitir que o Estado passe “a considerar os inimigos como não-humanos”[17], justificando, assim, a violação de preceitos básicos que sustentam um Estado Democrático de Direito, cujos postulados foram conquistados de forma árdua ao longo da história. Como bem coloca SAAVEDRA, não há como se coadunar com a ideia de que o “Estado passa a ter o direito de definir quem são seres humanos dignos de proteção estatal e quais são os seres não-humanos que poderão ser tratados como coisas, que poderão ser reificados e, portanto, instrumen-ta-lizados para fins políticos de proteção da segurança e da ordem”.[18]
Em um Estado Democrático, que preze pela pluralidade, diversidade e respeito às diferenças, tendo, inclusive, como ponto de partida a dignidade da pessoa humana, não há espaço para um direito penal que parta da noção de ´não-pessoa´, de inimigo, a fim de que sejam justificados eventuais abusos e excessos, bem como seja permitida a limitação e até mesmo a inobservância de certos direitos e garantias fundamentais.
Daí que possível se trabalhar com a alteridade do Outro (LEVINAS), pois como bem salienta PINTO NETO “admitir, portanto, a existência de um Direito Penal do Inimigo – e, por conseqüência, todas as mais ´suaves´ versões de Direito Penal do Autor – significa, em outros termos, ´assassinar´ o Outro por uma representação que se tem dele, acreditando que o intelecto possa dar conta sua finitude”.[19]
3 – Reflexos no próprio direito penal e no processo penal
Como observado anteriormente o direito penal do inimigo visa a eliminação de um perigo[20] a qualquer custo, haja vista o tratamento dado aos inimigos (não-pessoas). A partir do momento em que se define que os inimigos serão tratados como inimigos, ou seja, perderão o ´status´ de cidadão, serão ´não-pessoas´, o direito penal e o próprio processo penal são afetados irremediavelmente.
Tendo o inimigo como não sendo um ser humano, mas sendo uma coisa, um objeto, que é na verdade uma fonte de perigo e uma ameaça, é possível, lamentavelmente, cogitar-se de punições antecipadas, verdadeiras inocuizações arbitrárias, inclusive de atividades preparatórias, punindo-se simplesmente pelo que se é e o que é pensado e não por aquilo que foi efetivamente feito de concreto. É daí que no direito penal do inimigo impera a máxima de que os fins justificam os meios.
E isso macula o processo penal, além do próprio direito penal. O direito penal passa a ser de autor, punindo-se condutas que jamais chegarão perto de afetar um bem jurídico-penal, e muitas vezes ausentes de qualquer ofensividade, enquanto na seara processual perdem-se as garantias fundamentais de um devido processo legal. Assim, o processo judicial se torna o que JAKOBS chama de um verdadeiro “procedimento de guerra”.[21]
Portanto, neste ´procedimento de guerra´ o princípio da culpabilidade é repelido, a fim de dar margem tão-somente a periculosidade do inimigo, pois ele representa uma constante fonte de ameaça aos cidadãos, o que, então, passa a justificar a intenção e a efetiva prática de inocuizações daqueles seres não-humanos (inimigos).
O processo penal é direcionado a um verdadeiro sistema inquisitório, no qual utilizar-se de procedimentos ilegais acaba se tornando a praxe. Isto é admitir que juízes sejam verdadeiros perseguidores em busca de uma “verdade” (absoluta, real, e como se isto fosse possível) a qualquer custo, pois, afinal, aqui os fins justificam os meios, permitindo-se, portanto, coações em certas intervenções (testes de DNA forçados, coleta de provas sem autorização judicial, tortura psicológica e física, etc.), investigações secretas e altamente sigilosas, detenções temporárias sem justificativas, quebras de sigilos bancário e telefônico por tempo indeterminado e sem autorização judicial, utilização de agentes secretos e infiltrados, proibição de acesso a defensor, dentre inúmeras outras possibilidades, sempre no sentido de que “o Estado elimina direitos de modo juridicamente ordenado”.[22]
O devido processo legal, e tudo o que daqui decorre, não existe para os inimigos, afinal, a luta é contra o terror e tais seres não-humanos são “coisificados”, logo, não são sujeitos de direitos. Nesse viés é que se dá a instrumentalização do ser humano, a pessoa se torna coisa, objeto, a pessoa se torna inimigo, e inimigo é ´não-pessoa´, o que, então, permite chegar-se ao absurdo dos absurdos: justificar até mesmo a prática de tortura.[23] Basta verificar os casos das detenções arbitrárias em Guantánamo e Abu Ghraib, como simples exemplos, nos quais se relatam casos de tortura como instrumento válido e legítimo para obtenção de provas, bem como a vedação, ou no mínimo a restrição, no campo de garantias, especialmente da ampla defesa e do contraditório.
No Brasil pode-se mencionar como exemplos de direito penal do inimigo a questão do tratamento diferenciado previsto pela Lei dos Crimes Hediondos, Lei nº 8.072/90, em especial à proibição de anistia, graça, indulto e concessão de fiança. Da mesma forma a proibição de apelar em liberdade prevista na Lei nº 9.034/95, bem como a criação do regime disciplinar diferenciado (RDD), instituído pela Lei nº 10.792/03, que alterou o art. 52 da lei de execução penal. Exemplos típicos de aos inimigos, nada mais nada menos que a restrição e inobservância de certos direitos e garantias fundamentais, ante a mera presunção de perigo destas ´não-pessoas´.
Note-se que, na concepção de um direito penal do inimigo, o importante é se prevenir do perigo e da ameaça de perigo, encontrando inimigos e os taxando de ´não-pessoas´, retirando, portanto, seu status de cidadão, para assim, na incansável luta contra o terror, lamentavelmente, permitir e justificar as mais diversas transgressões a direitos e garantias fundamentais, para que a qualquer custo se preserve a vigência da norma (JAKOBS).
É diante desse quadro que GOMES e BIANCHINI afirmam que “o tratamento diferenciado, antigarantista, discriminador e injustificado de determinados autores de crimes, pois, segundo nossa perspectiva, é a característica mais marcante do Direito penal do inimigo”.[24]
Considerações finais
Um Estado Democrático e Constitucional de Direito não pode conceber preceitos baseados em um direito penal do inimigo. Não é possível que se aceite, sob seja que pretexto for, a concepção de determinadas pessoas como na verdade sendo ´não-pessoas´, inimigos como afirma JAKOBS, quando a própria dignidade da pessoa humana é a base fundamental de uma sociedade livre, aberta, multicultural, democrática e plural.
Não é crível que se abra mão de preceitos constitucionais, direitos e garantias fundamentais, conquistados às duras penas ao longo da história, bem como se permita relativizar conceitos básicos de um direito penal democrático, justo e igualitário, para a finalidade de ´combater´ o terror a qualquer custo e de qualquer forma. O direito penal e o processo penal não podem sofrer tamanho retrocesso para permitir que a determinadas pessoas, ou melhor, ´não-pessoas´, tidas como inimigos, direitos e garantias fundamentais sejam inobservados.
Os fins não justificam os meios, mas ao contrário. Os meios é que irão (deveriam) justificar os fins. Daí que se faz fundamental o respeito ao direito penal de base democrática, pautado pelo princípio da responsabilidade penal subjetiva e centrado no fato cometido, especialmente vinculado ao princípio da culpabilidade. Não se pune pelo que se é ou pelo que se pensa, jamais! Ao processo penal, o respeito às formas, pois forma no processo é garantia[25], bem como, resumindo-se, o respeito ao devido processo legal justo e igualitário e tudo aquilo que daí decorre.
Enfim, resta a indagação de LUISI e a esperança de que as respostas sejam no caminho da preservação dos direitos e das garantias fundamentais: “Será possível para enfrentar os desafios da modernidade e da pós-modernidade, a preservação de uma ordem jurídica respeitosa das garantias dos Estados democráticos de direito? Ou se faz para tanto necessário um direito em que mister se fará o sacrifício das liberdades individuais?”.[26]
Informações Sobre o Autor
Guilherme Rodrigues Abrão
Advogado criminalista, Mestrando em Ciências Criminais (PUC/RS), especialista em Direito Penal Empresarial (PUC/RS) e em Ciências Criminais (Rede LFG), Professor de Direito Penal da Ulbra.