A responsabilidade civil do agente público condutor de veículos oficiais de emergência envolvido em acidentes de trânsito

Resumo: O presente estudo teve por objetivo identificar e delimitar a responsabilidade civil do agente público condutor de veículos de emergência quando da ocorrência de acidentes de trânsito. Foram analisadas as características específicas de tal atividade pública bem como as normas legais que a regem. A pesquisa inclinou-se para os entendimentos jurisprudenciais e doutrinários acerca do tema, especialmente quando da análise dos casos concretos. Ao final, buscou-se delimitar o tratamento dado ao condutor de veículos de emergência estatal pelo direito brasileiro, no que concerne à responsabilidade civil por danos materiais e/ou morais.

Palavras-chave: Civil e Administrativo. Responsabilidade. Trânsito. Veículos de emergência.

Sumário: Introdução. 1. Atendimentos de emergência. 2. O tratamento dado pelo código de trânsito brasileiro. 3. A responsabilidade civil. 3.1 A responsabilidade civil do estado. 3.1.1 Teoria da responsabilidade objetiva. 3.1.2 A responsabilidade civil do agente público. 3.2 Elementos da culpa. 4 O posicionamento jurisprudencial. 5 Considerações finais. Referências.

INTRODUÇÃO

O trânsito de veículos no Brasil tem se tornado cada vez mais violento, sendo rotineiras as notícias de acidentes que geram grandes perdas humanas e materiais.

Ao considerarmos a enorme frota de veículos que atualmente trafegam nas ruas e se apertam buscando espaço para conseguir chegar ao seu destino, conclui-se que no dia a dia, em deslocamentos rotineiros, está o cidadão comum bastante suscetível a envolver-se em um acidente com seu veículo.

Se o risco de acidentes existe para o motorista comum, o que dizer dos riscos aos quais os condutores de veículos de emergência estão sujeitos?

A expectativa da população quando aciona um órgão público como a polícia, os bombeiros ou o serviço de atendimento móvel de urgência (SAMU), está sempre ligada a um atendimento rápido, pois na maioria das situações em que um cidadão reclama o auxílio do Estado, representado pelas citadas instituições, está a clamar por uma intervenção urgente.

Daí é comum se ver os deslocamentos das equipes de atendimento em ritmo mais acelerado do que a velocidade do fluxo normal de veículos, isso sob a justificativa da necessidade de chegar ao local do socorro com a maior brevidade possível.

Desta forma, tem-se que os deslocamentos em veículos de atendimento a emergências tem o risco de acidentes potencializado, não sendo raro o envolvimento de veículos desta natureza em acidentes de trânsito graves.

Ocorrido o acidente de trânsito surge a discussão sobre a quem deve recair a responsabilidade pelos danos materiais e até mesmo morais. Caberia ao agente ou incumbiria ao próprio ente público arcar com tais consequências? Caberia ação de regresso contra o agente publico para buscar reaver a quantia despendida com indenizações a terceiros e recuperação de veículos de propriedade estatal?

Neste contexto é que se apresenta o propósito do presente trabalho, que não é outro senão analisar as questões acima propostas, perante a legislação, doutrina e jurisprudência, buscando identificar e delimitar o grau de responsabilidade civil do agente público, bem como o tratamento atual dado pelo direito brasileiro quando da ocorrência de acidentes com veículos públicos em atendimento de emergência.

Sabe-se que veículos particulares também trafegam em situações de emergência (mormente atendimentos ligados a saúde), no entanto, o presente trabalho se ocupará especificamente da análise da responsabilidade civil decorrente de acidentes com veículos estatais.

1. ATENDIMENTOS DE EMERGÊNCIA

Os atendimentos públicos de caráter urgente ocorrem, via de regra, nas prestações de serviços de socorrimento público e ainda no exercício de poder de polícia para a garantia da ordem pública.

O atual modelo contido na Constituição Federal, no que respeita à atividade estatal de cuidar da saúde da população, atribui titularidade comum à União, Estados e Municípios, na forma de seu artigo 23, inciso II, abaixo transcrito:

“Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

I – […];

II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;”

A referida atenção a saúde integra desde as ações mais básicas até os procedimentos mais complexos, podendo o particular prestar tais serviços mediante autorização estatal, pois o art. 199 da Constituição Federal traz expresso: “a assistência à saúde é livre à iniciativa privada”.

Interessam-nos diretamente os casos de atendimento a urgências e emergências médicas, sendo que, ainda na fase pré-hospitalar, a efetividade dos atendimentos em tais situações, não raras vezes, está ligada à agilidade e ao tempo resposta, conforme se extrai do excerto da Resolução nº 1671/2003 do Conselho Federal de Medicina:

“Consideramos como nível pré-hospitalar na área de urgência-emergência aquele atendimento que procura chegar à vítima nos primeiros minutos após ter ocorrido o agravo à sua saúde, agravo esse que possa levar à deficiência física ou mesmo à morte, implica várias vezes na necessária eficiência […]”.

Mesmo nos deslocamentos inter-hospitalares, em razão da situação clínica do paciente, o tempo de gasto na transferência de um hospital para outro que detenha o suporte necessário, pode implicar em consequências sérias a integridade física do conduzido.

Assim, a prestação de serviços de atenção à saúde em muitas situações reclama agilidade de deslocamento dos veículos adequados tripulados por pessoal treinado, daí a justificativa para que os veículos do tipo ambulância (como os do SAMU) desloquem com sinais luminosos e sonoros ligados e em velocidade acima daquela praticada pelos veículos comuns.

No que se refere à Segurança Pública, a Constituição Federal traça seus fundamentos no artigo 144, no qual elenca também os órgãos por meio dos quais é exercida, valendo transcrevê-lo:

“Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I – polícia federal;

II – polícia rodoviária federal;

III – polícia ferroviária federal;

IV – polícias civis;

V – polícias militares e corpos de bombeiros militares”

Na lição de MAZZA (2012, pag. 602) a atividade de segurança pública exercida pelo estado não constitui prestação de serviço público e sim “na medida em que, sendo atividade limitadora da esfera de interesses do particular, a atuação estatal de manutenção da ordem tecnicamente não é serviço público, mas manifestação do poder de polícia”.

Independentemente de tratar-se de prestação de serviços públicos ou não, fato é que para garantir a almejada ordem pública, os policiais (militares, civis, federais, rodoviários, etc) podem, eventualmente, necessitar de maior agilidade nos deslocamentos para o exercício de seu mister, sendo também comum que veículos policiais transitem em missões urgentes como: atuação em locais onde crimes estão acontecendo, perseguição a meliantes, etc.

Tal atividade, a qual, vale repisar, é obrigação estatal, por sua natureza, leva a efeito circunstâncias diferenciadas de trafego de seus agentes, assim como se dá nos serviços de atendimento a urgências médicas.

Aos Corpos de Bombeiros Militares cabe a execução da defesa civil (de acordo com a dicção do §6º do art. 144 da Constituição Federal) e ainda, o exercício de atividades de busca, salvamento, prevenção e combate a incêndios, atividades estas, via de regra, previstas nas constituições dos estados membros.

Estes serviços têm em si já incutida a ideia de emergência, pois são prestados ao cidadão que se vê em situação adversa em virtude da ocorrência de um sinistro qualquer como um acidente, um incêndio ou mesmo uma catástrofe natural.

Veículos de combate a incêndio e salvamento também são comumente vistos em deslocamentos de urgência, efetuando manobras e imprimindo velocidade diversa daquelas praticadas pelo cidadão comum, sob o argumento de que a chegada ao destino no menor tempo possível pode significar o salvamento ou não de uma vida.

Assim, diante da já demonstrada necessidade e obrigatoriedade dos atendimentos de urgência a serem prestados por órgãos públicos, impõe-se logicamente que se analise as condições legais de tráfego as quais os condutores e veículos estão sujeitos.

2. O TRATAMENTO DADO PELO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO

A Lei 9503/1997, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), em seu art. 29, inciso VII, traz a prioridade na circulação dos veículos de atendimento a emergências e fiscalização de trânsito, assim dispondo:

“Os veículos destinados a socorro de incêndio e salvamento, os de polícia, os de fiscalização e operação de trânsito e as ambulâncias, além de prioridade de trânsito, gozam de livre circulação, estacionamento e parada, quando em serviço de urgência e devidamente identificados por dispositivos regulamentares de alarme sonoro e iluminação vermelha intermitente, observadas as seguintes disposições:

a) quando os dispositivos estiverem acionados, indicando a proximidade dos veículos, todos os condutores deverão deixar livre a passagem pela faixa da esquerda, indo para a direita da via e parando, se necessário;

b) os pedestres, ao ouvir o alarme sonoro, deverão aguardar no passeio, só atravessando a via quando o veículo já tiver passado pelo local;

c) o uso de dispositivos de alarme sonoro e de iluminação vermelha intermitente só poderá ocorrer quando da efetiva prestação de serviço de urgência;

d) a prioridade de passagem na via e no cruzamento deverá se dar com velocidade reduzida e com os devidos cuidados de segurança, obedecidas as demais normas deste Código.”

A lei de trânsito traça então os contornos do que denomina “prioridade de trânsito” e “livre circulação, estacionamento e parada” que detêm os veículos quando em serviço de urgência.

Por sua vez a Resolução nº 268/2008 do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN), no seu artigo 1º, apresenta a definição de prestação de serviço de urgência como sendo: “os deslocamentos realizados pelos veículos de emergência, em circunstâncias que necessitem de brevidade para o atendimento, sem a qual haverá grande prejuízo à incolumidade pública”.

Em decorrência da aplicação de tais institutos tem claro que os veículos listados no inciso VII do art. 29 do CTB, quando efetivamente prestando serviço de urgência, gozam de prioridade de trânsito quanto aos demais veículos e até mesmo quanto aos pedestres, no entanto, estes devem estar identificados por sinais sonoros e luminosos e deve ser a prioridade exercida com os devidos cuidados.

Ocorrido o acidente de trânsito, as decorrências jurídicas na esfera cível para o agente público condutor do veículo de emergência estatal, por óbvio, dependerão de sua conduta ao volante se adequar ou não ao prescrito no CTB.

Ora, vê-se no texto legal que o CTB abre uma prioridade de trânsito ao veículo de emergência, mas limita o exercício desta em termos imprecisos, devendo o condutor ter os “devidos cuidados” para fazer uso da prioridade de passagem.

Caminhando um pouco mais para alcançar o objetivo proposto no presente artigo, cabe-nos passar à análise da responsabilização civil do servidor público.

3. A RESPONSABILIDADE CIVIL

Toda pessoa, qualquer que seja sua situação econômica, grau de escolaridade ou posição na escala social, tem em seu íntimo a noção bastante consolidada de que aquele que provoque dano a outro tem o dever de indenizá-lo. Tal noção foi consubstanciada no inciso V do art. 5º da Constituição Federal que veio dispor que: “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”.

A legislação infraconstitucional, in casu, o Código Civil Brasileiro (CCB), em seu art. 186 dispõe que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.

Daí é possível inferir-se os pressupostos da responsabilidade civil subjetiva, quais sejam: ação ou omissão, culpa ou dolo do agente, relação de causalidade (liame que liga a ação ao resultado) e o dano experimentado pela vítima.

Decorre logicamente da prática do ato ilícito a responsabilidade do agente e o dever de indenizar, dever este previsto na Constituição Federal conforme dispositivo supra, e também no art. 927 do CCB, que assim prescreve:

“Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”

O parágrafo único do art. 927 do CCB (já transcrito), traz ainda a possibilidade da responsabilização sem culpa (objetiva), de acordo com o que a lei dispuser. Exemplos dessa forma de responsabilização do particular estão nas leis que trataram da proteção ao meio ambiente e do consumidor.

Como justificativa para a imputação do dever de indenizar sem a obrigatoriedade de provar-se a culpa, a doutrina comumente busca supedâneo na chamada teoria do risco, a qual é assim explicada por Gonçalves (2012, p.37):

“[…] toda pessoa que exerce alguma atividade cria um risco de dano para terceiros. E deve ser obrigada a repará-lo, ainda que sua conduta seja isenta de culpa. A responsabilidade civil desloca-se da noção de culpa para a ideia de risco, ora encarada como “risco-proveito”, que se funda no princípio segundo o qual é reparável o dano causado a outrem em consequência de uma atividade realizada em benefício do responsável (ubi emolumentum, ibi onus); ora mais genericamente como “risco criado”, a que se subordina todo aquele que, sem indagação de culpa, expuser alguém a suportá-lo.”

Portanto, a lei impõe a certas pessoas, em determinadas situações, a reparação de um dano cometido, ainda que sem culpa. Esta, então, a chamada responsabilidade objetiva.

3.1 A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

O estudo da responsabilidade civil do Estado nos diversos trabalhos acadêmicos normalmente perpassa pelo caráter histórico, abrangendo as diversas teorias da responsabilidade estatal outrora aceitas e aplicadas. Considerando as características de concisão do presente estudo, serão analisadas, apenas em linhas gerais, as teorias preponderantemente adotadas no direito brasileiro atual.

No tema em debate, identificam-se duas relações jurídicas distintas, conforme lição de Carvalho Filho (2011): a primeira envolvendo o Estado e o particular e a segunda envolvendo o Estado e agente público.

As duas relações jurídicas são distintas em sua natureza, posto que a primeira (Estado e particular) constitui a responsabilidade denominada extracontratual, pois esta é a que decorre da grande gama de atividades estatais que são, conforme defende Marçal Justen Filho (2012, p. 1223), “[…] relativas a condutas que configurem infração a um dever jurídico de origem não contratual”.

Já a segunda relação (Estado e agente público) se caracteriza por uma ligação estatutária, uma vez que estão as partes ligadas por lei que prevê as regras a serem observadas na relação.

Em demandas judiciais pairam controvérsias de ordem processual, como a possibilidade ou não do Estado promover a denunciação à lide do agente que julgue culpado para integrar à contenda judicial que busca a indenização; possibilidade ou não do particular acionar judicialmente e diretamente o agente público (ação per saltum), etc. No entanto, à vista da extensão destes assuntos, bem como dos objetivos propostos para o presente trabalho, não será aprofundada tal discussão.

3.1.1 Teoria da responsabilidade objetiva

Consubstanciada no § 6º do art. 37 da Carta da República, tal forma de responsabilização prescinde da necessidade de constatação da culpa, sendo suficiente que o lesado comprove o nexo causal entre a ação e o resultado, assim dispondo o citado preceito constitucional:

“Art. 37, § 6º – As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”

Para fundamentar tal forma de responsabilização estatal, recorre-se a denominada teoria do risco administrativo. O Estado, por ser mais forte política e economicamente, estaria em vantagem em relação ao lesado e assim, conforme lição de Carvalho Filho (2011, pag. 333):

“[…] passou-se a considerar que, por ser mais poderoso, o Estado teria que arcar com um risco natural decorrente de suas numerosas atividades: à maior quantidade de poderes haveria de corresponder um risco maior. Surge, então, a teoria do risco administrativo, como fundamento da responsabilidade objetiva do Estado”.

O mesmo autor continua sua argumentação alertando para a necessidade de não se confundir as noções do risco administrativo e do denominado risco integral, expondo a diferença entre os dois institutos:

“No risco administrativo, não há responsabilidade civil genérica e indiscriminada: se houver participação total ou parcial do lesado para o dano, o Estado não será responsável no primeiro caso e, no segundo, terá atenuação no que concerne a sua obrigação de indenizar. Por conseguinte, a responsabilidade civil decorrente do risco administrativo encontra limites.” (2011, pag. 333).

A existência da responsabilidade objetiva pressupõe a ocorrência de uma conduta (comissiva ou omissiva) da administração, a existência de dano e por fim o nexo de causalidade entre um e outro, prescindindo, conforme já acima aventado, da comprovação da culpa.

De se anotar que a responsabilidade objetiva do estado não o torna, em expressão bastante difundida, no segurador universal, pois inexistindo um dos três pressupostos acima elencados, não há que se cogitar em dever de indenizar estatal.

3.1.2 A responsabilidade civil do agente público

Delineamos até então, por dever de coerência, a forma de responsabilização do próprio Estado.

No entanto, de acordo com o tema proposto para debate, interessa-nos mais diretamente as formas de responsabilização do agente público, por atos praticados no exercício de sua função pública.

Ocorrido um dano, de acordo com as circunstâncias deste, há a possibilidade de proposição de ação de regresso pelo Estado em desfavor do agente público, possibilidade esta que é expressa na Constituição Federal (§6º do art. 37 – já transcrito), na situação deste ter dado causa por dolo ou culpa.

De fato, conforme dita a Carta Constitucional, em se verificando culpa ou dolo do agente público, deve este indenizar.

Porém, o Estado realiza várias atividades que, per si, importam em um risco acima do habitual. No exercício destas atividades de risco, caberia ao agente indenizar o erário por eventuais danos, ou deveriam estes ser suportados pelo ente público?

Aqui, temos o cerne da questão em debate neste trabalho, pelo que julgamos necessário adentrar em maior minúcia ao estudo do elemento subjetivo, especialmente no que se refere a culpa em sentido estrito, posto que em ações marcadas pela inexistência da vontade em alcançar o dano é que se dão a grande maioria dos acidentes de trânsito envolvendo veículos de emergência estatais.

3.2 ELEMENTOS DA CULPA

A dificuldade de fixação de um conceito de culpa é destacada por GAGLIANO, sendo em sua obra proposto o conceito abaixo:

“A culpa (em sentido amplo) deriva da inobservância de um dever de conduta, previamente imposto pela ordem jurídica, em atenção à paz social. Se esta violação é proposital, atuou o agente com dolo; se decorreu de negligência, imprudência ou imperícia, a sua atuação é apenas culposa, em sentido estrito”. (2012, pag. 141).  

Assim, extrai-se que os elementos da culpa (em sentido amplo) seriam o comportamento voluntário, a inobservância de um dever de cuidado e ainda, conforme os autores acima indicados, a previsibilidade do prejuízo causado.

No entanto, deve ser verificada a gravidade da culpa do agente, a fim de se evitar a desproporção entre esta e o dano, de acordo com o parágrafo único do art. 944 do CCB que assim prevê: “se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização”.

Não há expressamente no Código Civil pátrio a indicação de gradações de culpa, cabendo-nos reportar ao posicionamento doutrinário para aprofundar o estudo a esse respeito.

Carlos Roberto Gonçalves (2012, pag. 230, 231), propõe três gradações: culpa grave, leve e levíssima.

Segundo o doutrinador, a culpa grave é aquela em que o autor vem a se “omitir dos cuidados mais elementares ou descuidar da diligência mais evidente”. Exemplificando, indica o motorista que se põe a conduzir um veículo em situação de embriaguez.

Continua o doutrinador indicando que a culpa leve é aquela que deriva da falta de atenção ordinária (própria do bom pai de família) e a culpa levíssima é aquela originada da falta de extrema cautela (ou atenção extraordinária).

Traçadas as principais linhas sobre a responsabilidade civil do agente público, no que tange à previsão legal e doutrinária, cabe-nos examinar a aplicação nos casos concretos, pelo que passaremos a discorrer sobre o posicionamento dos tribunais nas ações em que o Estado vem demandar seu agente na busca de reaver valores a título de indenização em decorrência de acidentes de trânsito com veículos de emergência.

4 O POSICIONAMENTO JURISPRUDENCIAL

Depreende-se da jurisprudência que os tribunais, diante do caso concreto, têm avaliado o grau da culpa do agente, bem como sopesado esta diante do dever legal de agir que a este incumbe.

Constatam-se decisões que, ao ponderar eventual descumprimento de regras de trânsito diante do necessário cumprimento do dever legal do agente, a este último valor atribuem maior peso, conforme ementa e excertos da fundamentação abaixo transcritos, retirados do acórdão da AC 1002404302826-5/001 – TJMG:

“AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ACIDENTE COM VIATURA POLICIAL. ATRIBUIÇÃO DA CULPA DO EVENTO DANOSO AO MILITAR CONDUTOR. PROVA. AUSÊNCIA. REGRESSO IMPROCEDENTE. SENTENÇA REFORMADA. O acidente de viatura policial, durante perseguição de supostos marginais, onde não se comprova a culpa do condutor na ocorrência do evento danoso, inviabiliza a condenação do agente público em ação de regresso. Importante ressaltar que durante uma perseguição policial o agente público tem muitas vezes o dever de ultrapassar a velocidade máxima da via em que encontra, sob pena de, assim não o fazendo, deixar que o criminoso se refugie do local do crime, descumprindo o dever de zelar pela ordem pública conforme disposto no artigo 144, § 5º, da Constituição Federal que estabelece: "Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiro militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil". Desse modo, nem mesmo a alegação de que o condutor do veículo se encontrava em excesso de velocidade para a via permite a caracterização de sua culpa pelo evento danoso, visto que o cumprimento do dever constitucional acima citado deve, nas especificidades do caso em concreto, se sobrepor à alegada regra de trânsito não observada.”

 O Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) também trilha este mesmo caminho e inicialmente firmou entendimento no sentido de que somente cabe impor ao servidor público a obrigação de ressarcir ao Estado no caso de ser constatado que aquele tenha agido no evento causador do dano com culpa grave, fazendo interessante analogia com a previsão do art. 462 da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), conforme abaixo demonstrado:

“AÇÃO DE RESSARCIMENTO DE DANOS CAUSADOS EM ACIDENTE DE TRÂNSITO – ação proposta pelo estado de Santa Catarina contra policial militar – precedentes desta corte no sentido de que o servidor somente é responsabilizado pelos prejuízos nas hipóteses de culpa grave ou dolo – inocorrência na hipótese em apreço – interpretação sistemática do art. 37, § 6º, da CRFB, art. 43 do Código Civil e art. 462 da CLT – inexistência de ato ilícito e elemento subjetivo capaz de configurar a obrigação de indenizar – policial acionado para auxiliar outros fardados em busca de fugitivo – situação de emergência caracterizada – elementos probatórios que confirmam a utilização dos dispositivos sonoros e luminosos da viatura – inocorrência de violação ao art. 29, vii, da Lei n. 9.503/97 (Código Brasileiro de Trânsito) – veículo militar que seguia por via preferencial e cujo calçamento contribui para o acidente – excesso de velocidade superado pela condição extrema e ausência de ofensa às disposições do CTB – recurso desprovido – sentença mantida.

É firme o entendimento nesta Corte de Justiça que o servidor público somente se obriga a reparar os danos que causou a terceiro, no exercício da função pública, se comprovado que agiu com culpa grave ou dolo, por interpretação sistemática do art. 37, § 6º, da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), art. 43 do Código Civil (CC) e art. 462, § 1º, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). TJSC, Apelação Cível n. 2008.065372-6.”

“RESPONSABILIDADE CIVIL – ACIDENTE DE TRÂNSITO COM VIATURA OFICIAL CONDUZIDA POR POLICIAL MILITAR – AÇÃO DE RESSARCIMENTO DE DANOS MATERIAIS MOVIDA PELO ESTADO CONTRA O AGENTE PÚBLICO – AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE CULPA GRAVE OU CONDUTA DOLOSA DO RÉU NO SINISTRO – DEVER DE INDENIZAR AFASTADO – HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS – MANUTENÇÃO DA VERBA ARBITRADA PELO JUÍZO A QUO – RECURSO DESPROVIDO 1. ''O servidor público não responde pela reparação de dano causado a terceiro em decorrência de ato relacionado com o exercício de sua função, salvo se comprovado que procedeu com culpa grave ou dolo. A regra do § 6º, in fine, do art. 37 da Constituição Federal deve ser interpretada em consonância com a do § 1º do art. 462 da Consolidação das Leis do Trabalho”. TJSC, Apelação Cível n. 2011.055338-5, Relator: Juiz Rodrigo Collaço.”

Diante da fundamentação acima, torna-se importante para nossa análise a transcrição do artigo 462 da CLT, o qual é assim grafado:

“Art. 462 – Ao empregador é vedado efetuar qualquer desconto nos salários do empregado, salvo quando este resultar de adiantamentos, de dispositivos de lei ou de contrato coletivo.

§ 1º – Em caso de dano causado pelo empregado, o desconto será lícito, desde que esta possibilidade tenha sido acordada ou na ocorrência de dolo do empregado.”

Porém, como é cediço, a aplicação da CLT se dá em relações de emprego da iniciativa privada, e a disposição em comento se refere aos casos em que o empregador poderá ou não efetuar descontos nos salários do empregado, indicando a possibilidade deste ocorrer no caso de dano causado por dolo do empregado.

Assim, o que transparece das decisões acima é que, ao não identificar norma que venha de forma expressa regular as situações de acidentes com veículos em atendimento de emergências ocorridos com servidores públicos, o TJSC se socorreu da CLT, ainda que tal diploma tenha o fulcro de regular relação jurídica distinta.

Mais recentemente, a 3ª Câmara de Direito Público do TJSC deu entendimento diverso do acima explicitado, indicando como inaplicável o art. 462 da CLT em demandas desta natureza, como se vê na ementa abaixo:

“AÇÃO REGRESSIVA. ACIDENTE DE TRÂNSITO COM VIATURA OFICIAL CONDUZIDA POR POLICIAL MILITAR. AUSÊNCIA DE CONDUTA DOLOSA DO RÉU NO SINISTRO. CULPA, TODAVIA, COMPROVADA. INAPLICABILIDADE ANALÓGICA DO ARTIGO 462, § 1º, DA CLT. DEVER DE RESSARCIR O ERÁRIO EVIDENCIADO. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. "A norma do § 1º do art. 462 da CLT não exclui a responsabilidade por danos causados culposamente pelo empregado ao empregador, apenas veda o desconto nos salários daquele de importância relativa à indenização por danos, salvo se acordado ou se houver dolo do empregado" TJSC, Apelação Cível 2012.061924-6. Relator: Des. Subst. Paulo Ricardo Bruschi.”

Na fundamentação procedida no acórdão acima citado é afirmado que, no caso de danos que o agente público cause agindo no estrito cumprimento de seu dever legal, não há que se analisar a graduação da culpa, mas sim avaliar se seria exigido deste, nas circunstâncias, conduta diversa da que adotou.

Já o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) e também o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) vão além, ao reconhecer que o atendimento de emergência tem em si um risco inerente à própria atividade e que ao Estado cabe arcar com os riscos normais da atividade que presta, não podendo atribuí-lo ao seu agente. Nesse sentido as decisões abaixo colacionadas:

“ACIDENTE DE TRÂNSITO. VIATURA. ATENDIMENTO A OCORRÊNCIA POLICIAL. AQUAPLANAGEM. ABALROAMENTO. 1. Veículo do Estado que atendia à ocorrência de tentativa de roubo, e, em face da forte chuva havida na data, o automóvel terminou por aquaplanar, vindo o réu a perder o controle do veículo, colidindo no poste de luz. Circunstância que não permite imputar ao condutor da viatura a culpa pela ocorrência do sinistro. Não haveria como exigir cautela ordinariamente exigida dos demais condutores da via. Agente público que, ao cabo, agia no estrito cumprimento do dever legal. Caso típico de responsabilidade civil objetiva do Estado decorrente do risco da atividade. Apelação Cível 0065706-66.2013.8.21.7000 – TJRS. Relator Des. José Aquino Flores de Camargo”.

“AÇÃO DE REGRESSO Acidente automobilístico envolvendo ambulância do SAMU Veículo oficial direcionando-se ao atendimento de vítima de atropelamento Colisão em cruzamento Danos que não podem ser imputados ao servidor, no cumprimento do seu mister Cautelas tomadas, com sinais sonoros e luminosos em funcionamento Diminuição da velocidade da viatura no entroncamento das ruas Ausência de culpa basilar para a responsabilização de regresso Estrito cumprimento do dever legal Necessidade de ponderação dos danos advindos da atuação dos agentes públicos com os custos sociais e institucionais Precedentes jurisprudenciais Apelação não provida. TJSP, Apelação Cível 0005452-75.2013.8.26.0053. Relator Des. Fermino Magnani Filho”.

Neste último julgado trazido à colação o eminente relator, em seu voto, deixa clara a natureza distinta da atividade de condução de veículos de emergência, valendo transcrever parte da fundamentação por ele exposta:

“Algumas atividades desempenhadas pelo Estado, por meio de seus agentes, pressupõem, por si só, alguma “flexibilização” de regras aplicáveis aos particulares. Do contrário, o fim buscado nunca seria atingido. É o caso da velocidade que alguns veículos devem imprimir para lograr êxito em seu mister, como se dá tipicamente com equipes do Corpo de Bombeiros, busca, resgate e salvamento. De nada adiantaria a condução vagarosa, absolutamente ineficiente para proteger vidas e arrostar o perigo. É da natureza do exercício destas atividades a presteza, o que pode ensejar como de fato ocorre direção acima das velocidades permitidas nas vias públicas. Ressalte-se: não se está a estimular, aqui, que as ações dos agentes

públicos sejam realizadas de qualquer jeito, de modo irresponsável. Não. O que aqui se apregoa é que a análise se dê sob um crivo razoável, para não ensejar condutas temerosas e ineficientes dos agentes públicos, que a todo instante poderiam vir a ser chamados para indenizar prejuízos causados no estrito cumprimento do dever legal. […] Apelação Cível nº 0005452-75.2013.8.26.0053 – Voto nº 16693, p. 3 e 4.”

Assim, evidente fica que para a jurisprudência não basta que se apure certo grau de negligência ou imprudência do agente. De acordo com cada caso e diante de suas circunstâncias específicas, eventuais danos são considerados como risco da própria atividade, com os quais cabe ao ente público arcar.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

De fato, pelo que se viu do que foi acima exposto, na ocorrência de um acidente de trânsito com veículos estatais, as demandas buscando ressarcimento de danos, a depender de quais sejam os litigantes, são analisadas pelo prisma da responsabilidade objetiva (quando o demandado é o Estado) e da responsabilidade subjetiva (quando o demandado é o servidor público).

Não se pode olvidar do risco natural que envolve a condução de viaturas policiais, ambulâncias e veículos de combate a incêndio em deslocamentos em situação de emergência.

Por seu turno o CTB autoriza que os condutores de tais veículos descumpram as regras de trânsito, impondo que o façam com segurança.

Assim, diante do seu maior objetivo, que é prestar um atendimento ágil, se vê o agente público no seguinte dilema: utilizar a prerrogativa prevista no CTB para chegar rapidamente a seu destino propiciando o salvamento de vidas ou obedecer exatamente às regras de circulação de trânsito, mas com isso postergar atendimentos urgentes.

Se a mesma norma que dita as regras que os condutores de veículos devem obedecer no trânsito faz expressa exceção aos veículos em situação de emergência, ao utilizar de tal prerrogativa não estariam os agentes públicos que atuam como motoristas praticando ato ilegal, nem, portanto, ilícito.

Neste caso, o que tornaria o ato ilícito é o abuso do direito, ou seja, abusar da prerrogativa de “livre trânsito e livre estacionamento”.

Daí pode decorrer a necessária valoração do grau de culpa verificada na conduta do agente público diante do caso concreto e, consequentemente, analisar se deste seria exigida conduta diversa da que adotou.

Admitir que qualquer dano, por menor que seja, ocorrido em deslocamentos de emergência sejam de responsabilidade do motorista, seria garantir ao Estado não mais arcar com o risco da atividade que presta.

Por outro lado, a aplicação analógica do já citado § 1º do art. 462 da CLT adotada pelo TJSC, aparentemente se mostra inadequada, já que tal dispositivo legal apenas regula os casos de possibilidade de descontos nos salários dos empregados, em se verificando dolo no agir danoso, porém, não exclui a responsabilidade por atos culposos.

Desta forma, ainda que as circunstâncias indiquem culpa do condutor do veículo de emergência, na espécie, deve ser avaliado o grau desta, isto porque o Estado, ao cumprir a obrigação de prestar atendimentos que demandem deslocamentos rápidos deve assumir o risco da atividade, não podendo atribuir responsabilidade por ressarcimento de danos a seu agente quando este praticava o ato no exercício de sua função pública e dentro dos limites do que lhe era exigido para o momento.
 

Referências
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Informações Sobre o Autor

Olímpio Serafim de Sousa Filho

Bacharel em Direito. Especialista em Direito Administrativo


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