Direito Orçamentário e Direito Financeiro

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No âmbito do Direito Financeiro, a expressão direito orçamentário se apresenta de forma um tanto quanto esquiva e bissexta, sendo encontrada apenas de modo difuso e eventual em passagens doutrinárias[1] e jurídicas ou em ementas de disciplinas universitárias. Limita-se, ainda, a expressão lingüística, não podendo ser associada, de modo consistente, a ramo autônomo do Direito.


Como ponto de partida, convém observar que direito financeiro é o ramo do direito público que tem por objeto a atividade financeira do Estado, a qual, na clássica lição de Aliomar Baleeiro (2002, p. 4), “consiste, portanto, em obter, criar, gerir e despender o dinheiro indispensável às necessidades, cuja satisfação o Estado assumiu ou acometeu àqueloutras pessoas de direito público”.


Nesse contexto, em terminologia técnica, são elementos essenciais da atividade financeira do Estado: o orçamento público (gestão dos recursos), a receita pública (obtenção de recursos), o crédito público (criação de recursos) e a despesa pública (aplicação de recursos para o alcance dos fins do Estado).


Por esse retrato, o orçamento público é componente da atividade financeira do Estado, ao lado da receita, da despesa e do crédito público, numa composição que motiva questionamentos taxonômicos quando se observa que o direito tributário se apresenta como segmento destacado do direito financeiro, ocupando-se somente de uma parcela deste, ao ter por objeto as receitas públicas derivadas tributárias.


Consoante esse diapasão, José Cretella Júnior (1993, p. 7) assim leciona:


“Cumpre relembrar mais uma vez que, no campo da Ciência Jurídica, nasceu, por desdobramento do Direito Público, o Direito Administrativo, deste, o Direito Financeiro e, deste, por fim, o Direito Tributário.”


Celso Ribeiro Bastos (2002, p. 38-40), em sua clássica obra de direito financeiro, observa que “Muito tormentosas são as ligações do Direito Financeiro com o Direito Tributário”. Prossegue, ainda, em seu magistério, registrando que:


O que parece certo, também, é que o reconhecer-se a autonomia relativa de uma disciplina não significa deixar de admitir-se, igualmente, que ela mantém laços com uma mais abrangente. É o que acontece com o Direito Tributário, que não deixa de se constituir em uma das grandes vertentes do Direito Financeiro (…)


Em síntese, portanto, para nós existe a autonomia do Direito Tributário como ramo do Direito Financeiro, sem que com isso queiramos significar uma divisão estanque entre ambos, que, de resto, não existe em nenhuma área do Direito.”


Se já é controversa e complexa a conexão entre direito financeiro e tributário, que já contam com considerável bagagem teórica associada, muito mais tormentosa é a ligação entre direito financeiro e orçamentário, uma vez que qualquer tentativa de estabelecimento de relação entre um e outro opera, grosso modo, num grande vácuo de referencial teórico.


Pelo critério formal, dado pela própria Constituição de 1988 nos incisos I e II do seu art. 24, apenas o direito tributário tem autonomia expressa, ao lado do direito financeiro, não sendo o orçamento sequer qualificado como ramo do Direito.


Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:


I – direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;


II – orçamento; (…)”


Nessa ótica, portanto, não haveria porque se falar em direito orçamentário, posto que a própria Constituição já dispensaria tal especulação.


Em que pese sua importância, o argumento gramatical muitas vezes peca pelo simplismo ao limitar a exploração de um tema à letra da norma. Para a hermenêutica jurídica, o elemento gramatical (literal ou filológico) de interpretação, que se baseia no texto da norma e em regras lingüísticas, é apenas ponto de partida do processo de interpretação, devendo colocar-se, ainda, ao lado dos elementos histórico, lógico, sistemático e teleológico. Não se pode, por conseguinte, prescindir da interpretação, restando superado o velho brocardo in claris cessat interpretatio, segundo o qual a lei clara não carece de interpretação.


Nesse sentido, Maximiliano (2008, p. 29) pontifica que “Obscuras ou claras, deficientes ou perfeitas, ambíguas ou isentas de controvérsia, todas as frases jurídicas aparecem aos modernos como suscetíveis de interpretação”. No mesmo diapasão, Maria Helena Diniz (2008, p. 63) leciona que “tanto as leis claras como as ambíguas comportam interpretação”.


No plano constitucional, Alexandre de Moraes (2007, p. 10), em referência e Juarez Freitas, reforça esse entendimento, ao sustentar que:


“A Constituição Federal há de sempre ser interpretada, pois somente por meio da conjugação da letra do texto com as características históricas, políticas, ideológicas do momento, se encontrará o melhor sentido da norma jurídica, em confronto com a realidade sociopolítico-econômica e almejando sua plena eficácia.”


Apreciado o valor da hermenêutica, amplifica-se a relevância da nota consignada por Ives Gandra Martins (1991, p. 217) em comentário à Constituição de 1998, a qual informa que Sainz de Bujanda admite a existência de um direito orçamentário como segmento do direito financeiro.


“De ahí que cuando nos referimos al encuadramiento del Derecho presupuestario dentro del Derecho financiero estemos ya sustentando una tesis que puede descomponerse, para su mejor comprensión, en estos asertos fundamentales: 1º El Derecho presupuestario constituye un sector del ordenamiento jurídico, lo que excluye que su objeto próprio se situe en un área científica que no sea jurídica (…)”


À luz dessas orientações, um reexame do art. 24 da Lei Fundamental motiva a seguinte réplica: embora o seu inciso II faça referência a “orçamento” e não a “direito orçamentário”, qual a justificativa para o seu destaque? Por que o constituinte originário não considerou o direito financeiro elencado no inciso I do art. 24 como veículo bastante para hospedar a competência da União, dos Estados e do Distrito Federal para legislarem concorrentemente sobre orçamento?


São dignas de investigação mais detida, então, as razões que justificam a atribuição de autonomia a determinado ramo do Direito, sobretudo do ponto de vista científico, já que também se discute autonomia sob perspectiva didática.


Nessa trilha, Aliomar Baleeiro (2002, p. 38) relembra que:


“Os juristas do Direito Financeiro definem o sentido estrito da autonomia desse ramo jurídico. Além da autonomia didática por óbvias conveniências de apartar-se, para estudo, um dos aspectos fundamentais do fenômeno financeiro, há a considerar-se a autonomia dogmática, – pela formação de princípios e conceitos próprios, independentes das demais divisões do Direito, – e a autonomia estrutural, pela criação de institutos típicos e inconfundíveis com os do Direito Privado, como resultado da anterior.”


A autonomia didática, como observa Aliomar Baleeiro, tem conveniências óbvias, não sendo necessário muito esforço para a sua justificativa. Embora o Direito seja um só, a sua divisão em ramos para fins didáticos é axiomática pela sua utilidade classificatória. Remonta, basicamente, à clássica divisão entre direito público e direito privado, numa dinâmica segundo a qual o direito administrativo é ramo do direito público e o direito civil ramo do direito privado, como exemplos.


A autonomia científica, por seu turno, se fundamenta na existência de institutos e princípios próprios de determinada área do Direito. O direito tributário, por ilustração, contém institutos e princípios próprios que justificam sua autonomia científica em face do direito financeiro.


Celso Ribeiro Bastos (2002, p. 159-160), nesse sentido, doutrina que:


“A atividade tributária, considerada de uma perspectiva ampla, insere-se dentre da atividade financeira. Daí a existência de inúmeros autores que querem estudar a ambas de maneira unificada. Já expusemos na primeira parte da obra que não consideramos necessariamente errônea essa postura, mas que ela acaba por não dar a devida ênfase aos princípios específicos que constituem esse ramo de Direito Financeiro. Daí entendermos ser preferível a atitude dos que conferem ao Direito Tributário uma autonomia tanto didática quanto científica. Sua autonomia não é absoluta e sim relativa. Não deve descurar dos princípios mais amplos que informam toda a atividade financeira, como também não deve deixar de considerar que as divisões do Direito em disciplinas se dão para melhor compreensão do próprio sistema jurídico, que não perde sua unidade por essa divisão em ramos.”


Sob tal prisma científico, não é absurda a especulação sobre possível autonomia científica do direito orçamentário, uma vez que, assim como o direito tributário, também contém institutos e princípios próprios com relevância suficiente para a plausibilidade de sua ramificação.


No que se refere a princípios, Ricardo Lobo Torres (2008a, p. 147), em tratado que se utiliza da expressão direito orçamentário, afirma que “Os princípios gerais do orçamento são os enunciados genéricos que informam a criação, a interpretação e a aplicação das normas jurídicas orçamentárias”.


Que há princípios especificamente orçamentários, tais como o da unidade, universalidade, periodicidade (ou anualidade) e da exclusividade, entre tantos outros, não há dúvida. Também não existe incerteza de que tais princípios condicionam e orientam o orçamento público – que é o instituto mais típico da matéria orçamentária. Dúvida há, no entanto, se essa constatação permite que se possa falar em direito orçamentário como ramo autônomo do Direito tendo em vista a pouca ênfase dispensada pela doutrina a este assunto.


Nesse contexto, o primeiro problema se coloca diante do próprio direito financeiro. Considerando que os princípios orçamentários integram, atualmente, o direito financeiro, quais passariam a ser os princípios deste na eventualidade de autonomia do direito orçamentário, o qual levaria consigo princípios constituintes do direito financeiro?


Celso Ribeiro Bastos (2002, p. 44), por exemplo, ao discorrer sobre os princípios do direito financeiro, assim escreve: “Passemos agora a analisar os princípios que regem o Direito Financeiro, e em virtude dos quais ele é considerado como ramo autônomo do Direito Público.” Em continuidade, o que o renomado autor faz, em síntese, é uma exposição de princípios orçamentários: da especialização, da publicidade, da estrita legalidade, da anualidade, da universalidade, da proibição do estorno, da exclusividade em matéria orçamentária e da unidade.


Nessa ótica, caberia questionar, então, se seria o direito orçamentário simplesmente sinônimo de direito financeiro, já que compartilhariam os mesmos princípios. Outras veredas, porém, informam interpretação distinta. Doutrinadores como Ricardo Lobo Torres (2008b, p. 88), como exemplo, oferecem um conjunto mais complexo de princípios do direito financeiro, que não se limitam aos princípios orçamentários, abrangendo também os tributários.


Diante dessa bifurcação, a trilha que sugere tratá-los como sinônimos não equaciona a delimitação do alcance do direito financeiro, que é o ramo do direito público que tem por objeto a atividade financeira do Estado – mais ampla que a matéria orçamentária por envolver as finanças públicas como um todo. Não sendo sinônimos, abre-se um horizonte promissor, capaz de lançar algumas luzes para uma possível distinção entre um e outro ramo do direito.


No ordenamento jurídico atual, seria possível afirmar, por exemplo, que a Lei 4.320/64 ou a futura lei complementar a que se refere o art. 165. § 9º, I seriam, nitidamente, leis integrantes de um eventual direito orçamentário (atualmente contemplado pelo direito financeiro).


Art. 165 (…)


§ 9º – Cabe à lei complementar:


I – dispor sobre o exercício financeiro, a vigência, os prazos, a elaboração e a organização do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e da lei orçamentária anual;”


Por outro lado, a Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF não seria especificamente uma lei de direito orçamentário, mas, antes, uma lei de finanças públicas e, portanto, uma lei de direito financeiro. Não custa lembrar, nesse sentido, que a LRF – formalmente lei complementar – encontra fundamento, em maior medida, no art. 163 da Constituição, não se destinando à regulamentação do art. 165, § 9º, inciso I.


Art. 163. Lei complementar disporá sobre:


I – finanças públicas;”


Muito embora a LRF, no seu art. 1º, explicite que estatui normas de finanças públicas com amparo no Capítulo II do Título VI da Constituição, não por isso se pode dizer que a LRF preenche todos os dispositivos do capítulo que a sustenta, tal como o inciso I do § 9º do art. 165. Este último dispositivo, embora esteja contido no Capítulo II do Título VI da Lei Fundamental – que serve de amparo literal à LRF, não é objeto desta lei que, cabe repisar, disciplina, em essência[2], o art. 163 da Constituição.


Tal enfoque parece legitimar a continuidade da exploração de trilha interpretativa aparentemente capaz de estabelecer uma diferenciação entre direito financeiro e direito orçamentário. Todavia, em se admitindo a autonomia do direito orçamentário em relação ao direito financeiro, subsistiria o problema de se identificar quais seriam os princípios do direito financeiro o distinguiriam do direito orçamentário.


Não há dúvida, sob esse ângulo, que a análise aqui apresentada induz a uma complexa necessidade de revisão de todo o arcabouço do direito financeiro, requerendo, no plano principiológico, inovação da bagagem doutrinária que o alicerça. Poderia o direito financeiro conviver harmonicamente com o direito orçamentário e conter princípios próprios que iriam condicionar e orientar mais diretamente a edição de leis como a LRF e não leis orçamentárias, como exemplos?


Aparentemente sim, seria plausível uma divisão de papéis num cenário de coexistência do direito financeiro com o direito orçamentário como ramos autônomos do Direito, de forma que o segundo decorresse do primeiro, de modo similar ao que ocorre com o direito tributário. Para que isso fosse possível, no entanto, seria necessário um empreendimento doutrinário que certamente não se esgotaria nesta breve análise, requerendo cautelosa reflexão por parte de um conjunto expressivo de doutrinadores com vistas a descortinar novas janelas do direito financeiro.


 


Referências

BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças. 16. ed. rev. e atualizada por Dejalma de Campos. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 9. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002.

CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Direito Tributário Constitucional. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, volume 1: teoria geral do direito civil. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

MARTINS, Ives G. e BASTOS, Celso R. Comentários à Constituição do Brasil (promulgada em 5 de outubro de 1988), 6º volume – tomo II, arts. 157 a 169. São Paulo: Saraiva, 1991.

MAXIMILIZANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2007.

TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário, Volume V: O Orçamento na Constituição. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

_________. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 15. ed.. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

 

Notas:

[1] Há poucas referências doutrinárias sobre Direito Orçamentário, a exemplo do livro “Direito Financeiro e Orçamentário”, de Dejalma de Campos.

[2] A LRF é voltada apenas essencialmente ao art. 163 porque também alcança outros – mas não todos – dispositivos do Capítulo II do Título VI da Constituição, a exemplo do art. 169, que trata de despesas com pessoal.


Informações Sobre o Autor

Paulo Roberto Simão Bijos

Consultor de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados. Bacharel em Ciências Contábeis pela PUC-SP graduado com diploma de mérito e pós-graduado em MBA Mercado de Capitais pela USP/FIPECAFI


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