O controle do judiciário nas políticas públicas na área da saúde

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Resumo: Tradicionalmente, as políticas públicas se encontram nas mãos do Poder Executivo. Contudo, este poder muitas vezes não consegue garantir todos os direitos demandados pelos indivíduos, o que faz suas ações serem muito aquém das expectativas sociais. Essa inércia da Administração deu origem ao processo de Judicialização, o qual permitiu que o Judiciário adentrasse no campo das polícias públicas visando suprir a omissão do Executivo e concretizar os direitos elencados na Constituição. Mas a atuação imperativa do Judiciário tomou proporções tão relevantes que resultou num excesso de ingerência nos demais poderes, interferindo no planejamento estatal. Nesse contexto, tendo em vista frequentes críticas quanto ao controle judicial de políticas públicas na saúde, pretende-se analisar o fenômeno da judicialização e da política de fornecimento de medicamentos do Sistema Único de Saúde, com fulcro nas recorrentes decisões do Supremo Tribunal Federal referentes à garantia do direito à saúde e a limitação financeira do Estado.

Palavras-chave: Políticas Públicas. Direito à saúde. Judicialiação. Ativismo Judicial

Sumário: 1 Introdução; 2 A Constituição Federal de 1988 e a garantia do direito a saúde; 3 Administração pública e os princípios da reserva do possível e mínimo existencial; 4 A judicialização das políticas públicas: fornecimento de medicamentos e tratamentos de alto custo; 7 Efeitos orçamentários das decisões judiciais; 6 Conclusão; Referências.

1 INTRODUÇÃO

O direito fundamental à saúde, fundamentado no princípio da dignidade humana, foi inserido na Constituição como um dos direitos sociais a ser assegurado pelo Poder Público de forma ampla e igualitária, tendo em vista o dever da garantia do mínimo existencial.

Os direitos sociais, chamados por Branco de “direitos de prestações materiais” visam atenuar as desigualdades de fato existentes na sociedade, de modo que o maior número de indivíduos possa gozar das liberdades consagradas no texto constitucional (MENDES, COELHO, BRANCO, 2009, p. 293). Veja-se:

“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” 

Ademais, a Carta Constitucional consagrou a saúde como um dos pilares da seguridade social, colocando-a como um direito garantido a todos, independente de contraprestação, a ser efetivado por meio de políticas públicas:

“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

Todavia, não obstante a Constituição tenha assegurado o direito a saúde aos cidadãos, sabe-se que muitas vezes esse direito não é efetivamente concretizado, seja por precariedade do sistema, seja por falta de recursos ou de profissionais habilitados no serviço público. Assim, os indivíduos se viram lesados pelo Poder Público, diante da inércia no fornecimento das ações de saúde que eram pleiteadas no âmbito administrativo.

“Em contraponto ao humanitarismo da Constituição de 1988, não são poucos os que, no mais suave dos reparos, ironizam os autores da nova carta política, dizendo que, no afã de se mostrarem modernos e politicamente corretos, eles acabaram se esquecendo de calcular o custo desses novos direitos, de fazer previsão dos direitos que estavam a constitucionalizar, contrariando, assim, a regra Elemental de que, nesse terreno – o dos direitos a prestações positivas –, não se deve prometer o que não se pode cumprir, que nada se pode fazer além do financeiramente possível” (MENDES, COELHO, BRANCO, 2009, p. 205).

Com efeito, inúmeras ações foram ajuizadas no Poder Judiciário para que se determinasse a obrigatoriedade do Executivo em cumprir a Constituição, determinando imediatamente o fornecimento de medicamentos, de equipamentos e cirurgias, dentre outros.

Sabe-se que, por um lado, o Judiciário, até mesmo pelo principio da inafastabilidade da via jurisdicional[1], tem o dever de promover a guarda da vontade geral e individual consagrada no direito positivo.

Por outro lado, há grandes controvérsias sobre quais os limites de controle que o Judiciário vem exercendo sobre o Executivo, a ponto de determinar uma atuação positiva não prevista no orçamento e no planejamento estatal.

Nesse sentido, pretende-se compreender o fenômeno jurídico do controle jurisdicional das políticas públicas da saúde, para que seja demonstrado como os Tribunais Superiores vêm decidindo essa contenta e as repercussões de suas decisões na esfera administrativa.

2 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E A GARANTIA DO DIREITO A SAÚDE

A Constituição da República Federativa do Brasil tem, como um de seus fundamentos, o princípio da dignidade humana, expresso no artigo 1º [2], destacado pelo seu valor pré-constituinte e de hierarquia supraconstitucional (MENDES, COELHO, BRANCO, 2009, p. 172).

Percebe-se que o texto constitucional atribuiu uma importância tão grande a este principio que, para muito doutrinadores, consiste em um vetor que agrega em torno de si a unanimidade dos direitos e garantias fundamentais do homem (BULOS, 2011, p. 502).

Segundo Canotilho, o princípio da dignidade da pessoa humana se traduz pela teoria de cinco componentes, a qual sugere uma “integração pragmática” condensada da seguinte forma: “afirmação da integridade física e espiritual do homem como dimensão irrenunciável da sua individualidade autonomamente responsável”; “garantia da identidade e integridade da pessoa através do livre desenvolvimento da personalidade”; “libertação da ‘angústia da existência’ da pessoa mediante mecanismos de sociabilidade, dentre os quais se incluem a possibilidade de trabalho e a garantia de condições existenciais mínimas”; “garantia e defesa da autonomia individual”; “igualdade entre os cidadãos” (CANOTILHO, 2003, p. 363).

A dignidade da pessoa humana representa, segundo Barroso (2010, p. 251) o “núcleo essencial” de cada um dos direitos materialmente fundamentais, o que inclui o direito à saúde, considerado um dos direitos sociais que o Poder Público deve proteger e garantir sua efetividade.

Ademais, o Poder Constituinte compreendeu a saúde como uma das ações dos poderes públicos e da sociedade que compõe a seguridade social, o que permite que esse direito seja amparado pelos princípios da universalidade e da cobertura de atendimento.[3]

O conceito de saúde, conforme estabeleceu a Constituição da Organização Mundial de Saúde (OMC) contempla “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas ausência de doenças ou enfermidades” (REISSINGER, 2008, p. 29).

No Brasil, a Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/90), em seu art. 2°, conceituou a saúde como “um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”.

Para que o direito à saúde fosse concretizado, a Constituição criou o Sistema Único de Saúde (SUS), consoante se extrai do art. 198, e, regulado pela Lei 8.080/90, mencionando expressamente a exigência deste sistema a necessidade de se garantir o atendimento integral, bem como a participação da comunidade:

“Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III – participação da comunidade.

§ 1º. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. 

§ 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre: 

I – no caso da União, na forma definida nos termos da lei complementar prevista no § 3º; 

II – no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios;

II – no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º.

§ 3º Lei complementar, que será reavaliada pelo menos a cada cinco anos, estabelecerá:

I – os percentuais de que trata o § 2º”

Para tanto, em 2012, o Poder Legislativo editou a Lei Complementar (LC) 141/2012[4], a qual prevê os valores mínimos e normas de cálculo dos montantes a serem aplicados, anualmente, pelo Poder Público em ações e serviços públicos de saúde.

Tal importe é fruto da necessidade de toda despesa ter prévia dotação orçamentária, para que a Administração Pública possa planejar suas receitas e gastos, bem como garantir o equilíbrio fiscal.

Nesse contexto, nota-se que o direito à saúde é considerado um dos direitos subjetivos constitucionais, vez que, conforme explica Barroso (2010, p. 221), ele corresponde sempre a um dever jurídico por parte de outrem; pode ser violável, já que pode ocorrer que a parte que tem o dever jurídico, que deveria entregar determinada prestação, não o faça; e, violado esse dever jurídico, nasce para o particular uma pretensão, permitindo a utilização dos mecanismos coercitivos e sancionatórios do Estado, como ações judiciais.

Sabe-se que muitos entes federativos não conseguem cumprir o comando constitucional, reservando o mínimo necessário à saúde. Ademais, mesmo que tal percentual fosse reservado, há várias despesas extraorçamentárias, como ocorre, a exemplo, no caso das decisões judiciais que determinam que a Administração forneça medicamentos não previstos no seu planejamento.

Assim, não obstante a Constituição preveja o direito à saúde, percebe-se que o dispositivo constitucional se torna programático, já que nem sempre é possível ingressar na fase da efetividade dos comandos constitucionais positivados (BULOS, 2011, p. 790).

Veja como Bulos disserta sobre essa questão:

“O Estado, ao instituir os serviços públicos, com o intuito de tornar operativas as disposições definidoras de direitos sociais, oferece, apenas, uma garantia de índole institucional. Isso não é o suficiente. Só mediante profunda mudança de mentalidade para a eficácia social de tais dispositivos se realizar. […] Nada adiantam promessas, programas de ação futura, normas de eficácia contida ou limitada, se os Poderes Públicos não as cumprirem plenamente, criando, para tanto, as condições necessárias. Resta, pois, que todos os segmentos da sociedade, sem distinções, cobrem a execução concreta dos preceitos constitucionais, principalmente num país de significativa inflação legislativa e de reformas inoportunas e despropositadas como o Brasil, onde tudo é nivelado por baixo e o respeito ao homem é quase inexistente” (BULOS, 2011, 790).

Tendo em vista a inefetividade na concretização do direito à saúde, seja por inércia da Administração, seja por falta de recursos orçamentários, muitas pessoas optaram pela via judicial para pleitear seu direito imediato à saúde.

A concretização dos direitos sociais previstos na Constituição, ou seja, introduzi-los na realidade nacional, tem sido um dos grandes desafios que predominam no Estado Democrático de Direito (BONAVIDES, 2004, p. 381).

Hodiernamente, o Poder Judiciário passou a ter papel ativo e decisivo na concretização da Constituição (BARROSO, 2010, p. 222).

As inúmeras ações ajuizadas tinham como finalidade resgatar aqueles direitos não realizados por quem deveria fazê-lo, bem como para o desenvolvimento de políticas públicas, suprimindo as inércias dos demais poderes, aumentando, pois, o espaço de poder da justiça constitucional (STRECK, 2004, p. 38-40, 55-57).

Nesse contexto, colocou-se em destaque a preocupação em se efetivar os preceitos constitucionais, os quais possam garantir o exercício de cidadania, exigindo-se, por via de articulação política e de medidas judiciais, a realização dos valores objetivos e dos direitos subjetivos constitucionais (BARROSO, 2010, p. 221).

O Judiciário, frente à inércia do Poder Público, passou a admitir que, embora em bases excepcionais, poderá formular e implementar políticas públicas , se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídico que sobre eles incidem, vierem a comprometer, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático (BRASIL, 2004).

Ademais, conforme dissertou o Ministro Celso de Mello na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 45, o caráter programático das regras inscritas na Constituição  "não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente”, sob pena de o Poder Público violar a própria Carta Constitucional, fraudando aquelas expectativas nele depositadas pela coletividade (BRASIL, 2004).

Veja como o doutrinador Barroso esclarece essa questão:

“Sempre que a Constituição define um direito fundamental ele se torna exigível, inclusive mediante ação judicial.  Pode ocorrer de um direito fundamental precisar ser ponderado com outros direitos fundamentais ou princípios constitucionais, situação em que deverá ser aplicado na maior extensão possível ,levando-se em conta os limites fáticos e jurídicos, preservado o seu núcleo essencial. O Judiciário deverá intervir sempre que um direito fundamental – ou infraconstitucional – estiver sendo descumprido, especialmente se vulnerado o mínimo existencial de qualquer pessoa. Se o legislador tiver feito ponderações e escolhas válidas, à luz das colisões de direitos e de princípios, o Judiciário deverá ser deferente para com elas, em respeito ao princípio democrático” (BARROSO, 2007, p. 11).

Oportuno, nesse ponto, os ensinamentos de MACEDO El Et Al:

“A judicialização não deveria se apresentar como caminho para o acesso a medicamentos. Contudo, é compreensível que essas demandas se deem pela via judicial, quando o fornecimento previsto nas políticas públicas não está garantido; ou quando determinada doença prescinde de cobertura de tratamento pelas políticas farmacêuticas ofertadas pelo SUS” (MACEDO El Et Al, 2011, p. 712).

Todavia, o controle excessivo do Judiciário nas políticas públicas e a consequente intervenção no Poder Administrativo causam inúmeras repercussões negativas no orçamento estatal.

Assim sendo, torna-se relevante uma análise de como as decisões judiciais vêm intervindo na seara administrativa causando prejuízos e descontrole no seu planejamento.

Para tanto, de imediato, faz-se necessário esclarecer como a Administração Pública planeja os recursos orçamentários exclusivamente destinados à saúde, conforme a seguir exposto.

3 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E OS PRINCÍPIOS DA RESERVA DO POSSÍVEL E MÍNIMO EXISTENCIAL

A Constituição Federal consolidou em seu texto normativo o rol de direitos fundamentais a ser cumprido para que se possa garantir aos indivíduos o mínimo existencial. Entende-se por mínimo existencial “as condições elementares de educação, saúde e renda que permitam, em uma determinada sociedade, o acesso aos valores civilizatórios e a participação esclarecida no processo político e no debate público” (BARROSO, 2007, p. 9).

Uma vez positivados os direitos fundamentais, caberá o todos os poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – efetivar, a princípio, o mínimo existencial, dentro de suas respectivas funções, para que os preceitos constitucionais tenham eficácia prática e concreta.

Assim, cabe ao Legislativo definir as metas prioritárias no que se refere às políticas públicas para concretizar os preceitos fundamentais. O Executivo, por sua vez, é responsável por implementá-las e executá-las. Por fim, o Judiciário se incumbe de exercer o controle judicial, pelo próprio princípio da universalidade da jurisdição.

Nesse sentido, explica Branco:

“Respeita-se, contudo, em princípio, a liberdade de conformação do legislador, a quem se reconhece discricionariedade na opção normativa tida como mais oportuna para a proteção dos direitos fundamentais. Cabe aos órgãos políticos, e não ao Judiciário, indicar qual a medida a ser adotada para proteger os bens jurídicos abrigados pelas normas definidoras de direitos fundamentais. A dimensão objetiva cria um direito a prestação associado a direito de defesa, e esse direito a prestação há de se sujeitar à liberdade de conformação dos órgãos políticos e ao condicionamento da reserva do possível” (MENDES, COELHO, BRANCO, 2009, p. 301)

No que diz respeito às políticas públicas de saúde, frequentes são as controvérsias envolvendo, principalmente, os poderes Executivo e Judiciário, uma vez que muitas vezes o primeiro se mostra incapaz de garantir o cumprimento dos respectivos preceitos constitucionais, seja por falta de recursos públicos, seja ineficiência na prestação dos serviços básicos.

Ocorre que, mesmo com o advento da LC 141/2012, a qual reserva os mínimos percentuais destinados à concretização do direito à saúde, a Administração ainda não é capaz de atender com celeridade e eficiência todas as demandas sociais. Sabe-se que, mesmo se o Executivo reservar tais percentuais, eles ainda serão insuficientes tendo em vista, principalmente, o contexto atual em que várias ações individuais são ajuizadas em desfavor do Ministério da Saúde pleiteando medicamentos e procedimentos cirúrgicos caros, cujo valor ultrapassa em muito tais percentuais.

Com efeito, mesmo que a Administração Pública planeje seus orçamentos na tentativa de garantir o mínimo existencial, não há recursos suficientes para financiar tratamentos de ato custo, bem como para cumprir todas as decisões judiciais de caráter mandamental.

É nesse sentido, que a Administração vem invocando a cláusula da reserva do possível a qual se fundamenta na insuficiência de recursos públicos para atender às necessidades sociais, sob o fundamento que o orçamento apresenta-se muito aquém da demanda social pela efetivação de direitos, sejam individuais, sejam sociais (BARROSO, 2007, p. 23).

A falta de recursos orçamentários suficientes para garantir todos os direitos sociais dá origem a diversos problemas e a alocação dos recursos pressupõe “a difícil decisão política de ratear os poucos recursos disponíveis de modo a poder dispensar um mínimo de atendimento aos mais necessitados” (MENDES, COELHO, BRANCO, 2009, p. 1420).

Nesse contexto, destacam-se as palavras do Ministro Celso de Mello ao apreciar a ADPF 45:

“[…] cláusula da "reserva do possível", ao processo de concretização dos direitos de segunda geração – de implantação sempre onerosa -, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas (BRASIL, 2004).”

Em contrapartida, desconsiderando a cláusula da reserva do possível, inúmeras decisões judiciais vêm determinando o fornecimento de medicamentos e procedimentos cirúrgicos de alto custo, o que interfere no planejamento estatal e na relação de custo/beneficio.

Mencionadas decisões muitas vezes não aceitam o argumento da cláusula da reserva do possível. Contudo, reconhecem que, quando a Administração comprovar devidamente a ausência dos recursos orçamentários para cumprir determinada tutela, o Judiciário não poderá adentrar na esfera das políticas públicas, pois, se o fizesse, restaria violado o principio da separação dos poderes.

Nesse ponto, muito bem esclarece o Ministro Celso de Mello:

“Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da "reserva do possível" – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade” (BRASIL, 2004).

Urge esclarecer que, embora se mencione, muitas vezes, a cláusula da reserva do possível, a Administração não comprova a escassez de recursos. Como consequência, o Judiciário, cumprindo, portanto, sua função de garantir a justiça, profere as decisões de caráter mandamental determinando que o Executivo forneça de imediato medicamentos e tratamentos não previstos no planejamento estatal.

Com efeito, a Administração, no curto prazo, se vê obrigada a providenciar esses produtos que, na maioria das vezes, apenas seriam providenciados após o procedimento de licitação e a prévia receita orçamentária.

Tal fato coloca o Estado em uma difícil situação, pois se não cumprir a decisão judicial, ser-lhe-ão imputadas multas altíssimas, e, se cumprir, o investimento determinado pelo Estado em prol de um único indivíduo implicará na ausência de investimentos em setores coletivos.

Nesse trâmite, se instaura o debate em como conciliar o principio do mínimo existencial com a cláusula da reserva do possível. Ademais, questiona-se até que ponto seriam legítimas as decisões judiciais proferidas sem observar os limites orçamentários da Administração.

Ocorre que, conforme relatado pelo Ministro Gilmar Mendes, na abertura da Audiência Pública nº 04, realizada em 2009, conforme será detalhado, se, por um lado, o Poder Judiciário tem o dever de promover os direitos sociais; por outro, a excessiva judicialização foi fonte geradora de fortes tensões perante os elaboradores e executores das políticas públicas, os quais são compelidos a garantir prestações de direitos sociais muitas vezes contrastantes com a política estabelecida pelos governos para a área da saúde e acima das possibilidades orçamentárias (BRASIL, 2009).

Partindo dessas premissas, optou-se por desenvolver uma pesquisa doutrinária e jurisprudencial sobre como a Corte tem lhe dado que essa excessiva politização da justiça, a fim de se estabelecer até que ponto poderia o Judiciário intervir na esfera discricionária das políticas públicas, incumbência esta dos Poderes Legislativo e Executivo.

4 A JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS: FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS E TRATAMENTOS DE ALTO CUSTO

A jurisprudência tem recorrentemente se manifestando sobre a questão das políticas públicas na área da saúde.

Por opção metodológica, escolheu-se a apreciação decisões judiciais, as quais dissertam sobre a questão do fornecimento de medicamentos e tratamentos de alto custo. A análise jurisprudencial é indispensável para que se possa compreender a extensão da polêmica bem como a dificuldade, na prática, em harmonizar o direito à saúde com as reservas orçamentárias.

O primeiro caso jurisprudencial escolhido refere-se à suspensão de segurança n. 3205. Trata-se de pedido de suspensão da execução de liminar proposta pelo Estado do Amazonas, tendo em vista liminar concedida pelo Relator do Mandado de Segurança 2007.001334-5, a qual determinou à Secretaria de Estado da Saúde a imediata aquisição do medicamento Diazóxido e a manutenção de seu fornecimento de forma ininterrupta à Impetrante, enquanto perdurar a necessidade médica de sua ingestão.

A princípio cabe ressaltar que o medicamento requerido é fabricado no Canadá e não faz parte do Programa de Medicamentos Excepcionais. Nesse ponto, o Estado do Amazonas, requerente, destacou que, embora sua administração se planeje no sentido de prover a população os serviços de saúde de forma ampla e eficiente, inclusive o fornecimento de medicamentos em geral, sabe-se que os recursos públicos são limitados, o que impele o gestor público a adotar uma política que atente aos princípios da economicidade das ações e do custo-benefício dos tratamentos (BRASIL, 2007).

Nesse ponto, a Secretaria de Saúde amazonense salientou que “ao ser compelido a adquirir medicamentos fora de suas atribuições como elemento de um sistema único, toda a coletividade será prejudicada”, fato este inevitável, pois, estar-se-ia atendendo uma necessidade individual em desfavor do equilíbrio financeiro do sistema em relação a toda coletividade (BRASIL, 2007).

Ademais, destacou que as inúmeras decisões judiciais de caráter mandamental, as quais determinam que o ente federativo forneça de remédios excepcionais e de alto custo que estão fora da lista do Sistema Único de Saúde, poderiam ocasionar um “efeito multiplicador da decisão”, o que invibializaria todo o planejamento estatal (BRASIL, 2007).

Contudo, nesse caso concreto, a Ministra Presidente Ellen Gracie, em decisão monocrática, decidiu pelo indeferimento do pedido liminar.

Para tanto, a Ministra baseou seu entendimento que, no caso em questão, o fornecimento dos medicamentos se torna prioritário em relação ao orçamento público. Isso porque, além de comprovada a incapacidade econômica da família da criança para arcar com os custos do  medicamento, os próprios laudos médicos demonstraram que interrupção do tratamento poderá ocasionar graves e irreparáveis danos à saúde e ao desenvolvimento da impetrante.

Ademais, embora a Ministra manifeste sua preocupação em relação à possibilidade do efeito multiplicador, tendo em vista a “interpretação ampliativa que vem sendo dada às decisões desta Presidência em relação às demandas por fornecimento de medicamentos pelos Estados” afasta esse argumento do Estado, sustentando que todas as decisões são fundamentadas conforme caso a caso (BRASIL, 2007).

No caso em apreço, o Poder Judiciário atuou na construção do sentido da norma jurídica que assegura o direito à saúde, tendo em vista a inércia do Poder Executivo em assegurar a tutela específica naquele caso concreto. Ademais, colocou-se de maior importância a garantia da dignidade da pessoa humana, vida e saúde, direitos estes estabelecidos constitucionalmente, cumprindo o Judiciário, portanto, a sua função de assegurar a efetiva justiça no caso concreto.

Outro caso jurisprudencial que merece destaque á o da suspensão de segurança n. º 3158, interposto pelo Estado do Rio Grande do Norte, com o objetivo de requer a suspensão da execução do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça nos autos do Mandado de Segurança nº 2006.005996-0, o qual determinou ao Estado o fornecimento dos medicamentos Pentoxifilina 400mg e Ticlopidina 250mg à impetrante, portadora de doença vascular encefálica isquêmica, de forma contínua e ininterrupta, enquanto perdura a sua necessidade (BRASIL, 2007 – A).

Nesse ação, questionou-se, sobretudo, a impossibilidade de o Estado do Rio Grande do Norte arcar sozinho com os custos do fornecimento dos medicamentos postulados pela impetrante. Ademais, salientou-se que a decisão mandamental acarretaria grave lesão à ordem e à economia públicas, já que desconsiderava os aspectos orçamentários do ente federativo.  Por fim, o Estado sustentou a tese que não tem previsão orçamentária para suprir a população com todos os medicamentos que esta demande (BRASIL, 2007 – A).

O pedido do Estado, no entanto, foi indeferido. A ministra Ellen Gracie arguiu que, no caso concreto, a manutenção da decisão hostilizada não importaria em um verdadeiro risco de lesão ao orçamento público (BRASIL, 2007 – A).

Além disso, fundamentou sua decisão no sentido de que há comprovação nos autos da hipossuficiência econômica da impetrante, a qual necessita tratamento contínuo da doença, sob pena de lhe serem causados graves e irreparáveis danos à saúde e à vida da paciente (BRASIL, 2007 – A).

Por fim, foi ressaltado o dever de todos os entes federativos atuarem de forma solidária na concretização das políticas públicas na saúde[5]. Deste modo, a discussão em relação à competência para a execução de programas de saúde e de distribuição de medicamentos não pode se sobrepor ao direito à saúde, tendo em vista que a própria Constituição, em seu art. 196 da Constituição da República, já estabeleceu tal solidariedade.

Tendo em vista a dificuldade em resolver tais debates, nos dias 27, 28 e 29 de abril e 4, 6 e 7 de maio de 2009, foram realizadas Audiências Públicas no Supremo Tribunal Federal, visando harmonizar as controvérsias firmadas entre o Poder Judiciário e o Poder Executivo no que diz respeito ao processo de judicialização e políticas públicas.

A realização das audiências públicas demonstra a repercussão da problemática da “judicialização do direito à saúde”, tanto no campo teórico quanto prático, envolvendo, além dos operadores de direito, os gestores públicos, os profissionais da área de saúde, bem como a coletividade.

A necessidade em se definir qual o papel do Supremo Tribunal Federal como gestor e coordenador das políticas públicas, foi o fator que deu origem a necessidade de debates por meio de audiências públicas. Para tanto, escolheu-se a oitiva de magistrados, promotores de justiça, defensores públicos, usuários, médicos, doutrinadores, bem como de gestores do sistema único de saúde (BRASIL, 2009).

As audiências públicas foram de fundamental importância para se discutir a dificuldade crescente para se resolver essas contentas, bem como demonstrou o reconhecimento por parte dos Poderes Judiciário e Executivo em solucionar o problema.

Conforme destacado pelo Secretário de Atenção da Saúde do Ministério da Saúde,  Dr. Alberto Beltrame, a tarefa da Administração Pública é formular e implementar políticas sociais de maneira a garantir a eficácia do Direito. Todavia, não há duvidas que o cenário atual contrasta um conflito entre o ideário constitucional com a realidade de uma sociedade desigual, num país continental. Nesse trâmite, tornou-se um desafio se aproximar o ideal do real, tendo em vista situações de ordem orçamentária, científica, tecnológica, ética e muitas vezes, econômica (BRASIL, 2009).

Não obstante se reconheça que a atribuição para executar as políticas públicas seja típica do Executivo, a inércia em concretizar tais direitos bem como as crescentes demandas judiciais, se exige do Poder Judiciário a obrigação de dar efetividade às normas constitucionais, já que, uma vez judicializadas, o Supremo não pode deixar de apreciá-las sob o fundamento de pertencerem à esfera política da Administração.

Contudo, a excessiva judicialização trouxe em discussão as seguintes questões: a) legitimidade da via judicial para determinar prestações estatais positivas no campo das políticas públicas; b) o acesso à justiça para a obtenção de medicamentos se restringe à classe média, o que provoca desigualdades econômicas e sócias; c) falta de domínio e de conhecimentos específicos e técnicos do Judiciário sobre a matéria de políticas de saúde; d) limitação orçamentária da Administração Pública.

 Quanto à legitimidade do Judiciário questiona-se a ofensa aos princípios da democracia. O argumento central é o Poder Executivo é que foi eleito pelo povo. Com efeito, o povo que lhe atribuiu a incumbência para efetuar política publica.

Desse modo, a intervenção jurisdicional violaria a democracia, já que os membros do Poder Judiciário não foram escolhidos pelo povo, e sim por concurso público.

Todavia, há de se destacar que o bem maior tutelado é a saúde, consoante fora determinado no próprio texto constitucional. E a Constituição foi elaborada por uma Assembleia Constituinte que foi eleita também pelo povo. (BRASIL, 2009). Portanto, não haveria nenhuma violação ao processo democrático já que o processo de legitimação dos juízes ocorre conforme o poder constituinte originário determinou.

Outro ponto discutido refere-se ao fato de a concessão do direito à saúde na via judicial prestigiar apenas a classe média, a qual tem acesso mais fácil ao Judiciário, seja por conhecerem seus direitos, seja por poderem arcar com as custas processuais (BARROSO, 2009, 25).

Em virtude desse fato, a concessão de medidas judiciais favoráveis a essa classe agravaria as desigualdades econômicas e sociais, uma vez que o Poder Público, muitas vezes, para cumprir tal decisium teria que abrir mão dos recursos destinados à tutela dos indivíduos de classe mais baixa (BARROSO, 2009, p. 25).

Contudo, na Audiência Pública em debate relatou-se que as classes desfavorecidas têm acesso à justiça por meio da Defensoria Pública ou pelo Ministério Público, os quais ajuízam a ação em nome desses indivíduos e pleiteiam pela assistência judiciária gratuita (BRASIL, 2009).

Nesse sentido, restaria afastado esse argumento, mesmo porque tais órgãos, em especial o Ministério Público – o qual vem atuando de maneira ampla na propositura de ações de medicamentos – têm “papel fundamental relevância na consolidação e fiscalização do livre exercício de garantias constitucionais no regime democrático e na observância dos fundamentos da República Federativa do Brasil” (RIBEIRO, 2011, p. 910).

Aduz-se, ainda, a falta de domínio do Judiciário sobre a matéria de políticas públicas, a qual envolve uma visão mais ampla do sistema político e governamental. Segundo Barcellos, o julgador não tem instrumentos técnicos ou informações suficientes sobre a amplitude estatal, de modo que suas decisões se restringem a uma visão micro do sistema, desencadeando amplas distorções no sistema de políticas públicas globalmente (BARCELLOS apud, BARROSO, 2009, p.26),

Tal circunstancia decorre do fato de o juiz não dispor de elementos para avaliar a realidade da ação estatal como um todo, já que o julgador apenas estaria preocupado com a solução dos casos concretos (BARCELLOS, apud, BARROSO, 2009, p.26).

Todavia, o magistrado ao apreciar o caso concreto deve solicitar subsídios principalmente à defesa, ou seja, a Administração, para que verificar se as informações apresentadas pelo médico da parte Autora são ou não verdadeiras, servindo de fundamento à sua decisão (BRASIL, 2009).

Ademais, deve-se ressaltar que o Judiciário não tem como intenção onerar a Administração Pública. Portanto, se a Administração mostrar que um medicamento alternativo é mais barato do que o remédio postulado na ação, o juiz deverá conceder o pedido administrativo.

Esse mesmo critério jurídico deverá ser adotado quando o Autor da ação pleitear um tratamento experimental ou um medicamento produzido no exterior. No primeiro caso, se o tratamento experimental não tem comprovação científica de resultado, consoante demonstrado pela Administração, podendo prejudicar a saúde do próprio jurisdicionado, não deve o juiz impor a prestação da tutela ao Estado. No caso de medicamentos produzidos no exterior, entende-se que o juiz deve priorizar um medicamento alternativo produzido no Brasil, caso este atinja o mesmo objetivo que o do exterior, desde sua eficácia seja devidamente demonstrada pelo ente estatal (BRASIL, 2009).

Por fim, tem-se o argumento da limitação orçamentária da Administração Pública, considerado um dos mais fortes argumentos pelo Poder Público e, principal fonte de contendas entre as funções administrativa e jurisdicional.

Não é de se desconsiderar que os recursos públicos sejam insuficientes para atender todas as necessidades sociais, além do fato de os altos custos dos medicamentos e tratamentos implicarem em um desequilíbrio no planejamento estatal.

Tanto é que essa questão foi amplamente conhecida na Audiência pública, conforme se extrai das palavras do Presidente do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais de Justiça do Ministério Público dos Estados e da União, Dr. Leonardo Bandarra:

“[…] eventual insuficiência de recursos para os atos da administração voltados à execução de programas de saúde de grande abrangência, é o argumento recorrente na defesa dos gestores públicos. Entretanto, também é verdade que a decantada insuficiência de recurso, não raro, esteve associada ao descumprimento massivo de investimentos mínimos pelos entes federativos, notadamente no que diz respeito à Emenda Constitucional nº 29 – Diga-se que aproximadamente dois terços dos Estados ainda não respeitam essas determinações da Emenda Constitucional. Bem como a precarização de planos de saúde e sua execução, não raro, completamente afastado das orientações providas dos conselhos e conferências de saúde. Por outro lado, dificilmente se observa, como seria de rigor, a demonstração do impacto das ordens judiciais concessivas e insumos em face do orçamento do ente federativo reclamante”.

CDabe ao ente federativo o ônus de provar a insuficiência desses recursos. Assim, quando no caso concreto, for comprovada de forma objetiva, a incapacidade econômico-financeira do ente estatal, não se poderá razoavelmente exigir deste ente a imediata prestação jurisdicional pleiteada, considerada a limitação material referida (BRASIL, 2004).

Contudo, nota-se que, na maioria das vezes, a Administração não comprova a ausência de recursos orçamentários, se limitando a mencionar o principio da reserva do possível. A ausência de comprovação, como consequência, dificulta a decisão judicial no caso concreto, uma vez que o juiz não saberá se realmente faltam recursos. Além disso, dificulta-se a aplicação do princípio da proporcionalidade para se demonstrar se num caso concreto o direito à vida vai ser ou não mais importante do que a finança pública (BRASIL, 2007).

Pela análise de todos os argumentos levantados pela Administração Pública e dos contraargumentos expostos pelo Judiciário, demonstra-se que a questão do controle das políticas públicas ainda é alvo de grandes divergências doutrinárias e jurisprudenciais, além de fonte ensejadora de tensões e desafios à Administração.

Urge salientar que a principal contribuição das audiências públicas refere-se a um método técnico objetivo criado para auxiliar os juízes na tomada de suas decisões sobre políticas públicas.

Assim sendo, as decisões judiciais sobre o fornecimento de medicamentos e tratamentos de alto custo devem levar em consideração as circunstancias práticas e adequadas no caso concreto.[6]

A partir da realização dessas audiências públicas, vários julgadores passaram a adotar o critério técnico objetivo desenvolvido, como meio de equilibrar o caráter mandamental dessas decisões com o orçamento estatal previsto nas leis orçamentárias.

Como exemplo, vale ressaltar a jurisprudência proferida na suspensão de tutela antecipada n.º 175, no ano de 2010 – após os debates nas audiências públicas. Trata-se de suspensão de tutela antecipada formulado pela União contra acórdão proferido pelo TRF da 5ª Região o qual determinou que o ente fornecesse medicamento Zavesca (miglustat) a uma jovem de 21 anos de idade, portadora da patologia denominada NIEMANN-PICK TIPO C, doença neurodegenerativa rara, que causa uma série de distúrbios neuropsiquiátricos (BRASIL, 2010).

O principal argumento da União é que a concessão da tutela pretendida acarretaria em um desembolso de considerável quantia para a aquisição do medicamento de alto custo pela União. Como consequência, o haveria uma intervenção e desequilíbrio direto no planejamento do ente, tendo em vista o deslocamento de esforços e recursos estatais, descontinuidade da prestação dos serviços de saúde ao restante da população e possibilidade de efeito multiplicador. Ademais, sustentou a União que o medicamento pleiteado não era registrado na Agência Nacional de Vigilância Sanitária e, por sua vez, seria proibida a sua comercialização no Brasil.

Em seu voto, o Ministro Celso de Mello aduziu que o fato do medicamento ser de alto custo não exime o Poder Publico de não fornecê-lo. Fez-se importante ressaltar que todos os entes tem o dever solidário de garantir o acesso à saúde, bem como a importância de se cumprir o preceito constitucional de efetiva concretização ao direito à saúde, de modo que todos os entes federativos possam assegurar às pessoas carentes os medicamentos essenciais à preservação de sua vida e/ou de sua saúde (BRASIL 2010).

Ressaltou ainda que o argumento do remédio não constar as listas do SUS não precede uma vez que as listas nem sempre são completas já que vão mudando de acordo com as doenças que vem sendo pesquisadas.

Quanto à possibilidade de a concessão da medida poder ocasionar num efeito multiplicador das ações, destacou-se que a apreciação de cada medida é feita caso a caso, observando-se as suas particulares e os princípios constitucionais adequados a resolução da controvérsia.

Nesse contexto, imprescindível destacar as palavras do Ministro Celso de Mello:

“O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa consequência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional.
A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE.
– O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode convertê-la em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado”.

Em face do indeferimento do pedido de suspensão de tutela antecipada, a União apresentou agravo regimental contra a decisão da Presidência do STF. Não obstante a Corte tenha mantido o seu entendimento sustentando a impossibilidade de conceder a suspensão da tutela, vale ressaltar os fundamentos do Presidente Ministro Gilmar Mendes, o qual propôs uma análise da questão levando em conta as experiências e os dados colhidos na Audiência Pública, já mencionada.

O enfoque central da discussão diz respeito às chamadas “Escolhas Trágicas”, o que exige a apreciação da controvérsia judicial em um sentido mais amplo, a fim de analisar como será realizada a escolha da destinação de recursos para uma política e não para outra, fator que demanda uma analise apurada sobre número de cidadãos atingidos pela política eleita, a efetividade e a eficácia do serviço a ser prestado, a maximização dos resultados, dentre outros (BRASIL, 2010).

O ministro coloca em pauta a tensão dialética firmada entre a necessidade estatal de tornar concretas à prestação de saúde e as dificuldades governamentais de viabilizar a alocação de recursos financeiros, dramaticamente escassos (BRASIL, 2010). Veja-se:

“No Brasil, o problema talvez não seja de judicialização ou, em termos mais simples, de interferência do Poder Judiciário na criação e implementação de políticas públicas em matéria de saúde, pois o que ocorre, na quase totalidade dos casos, é apenas a determinação judicial do efetivo cumprimento de políticas públicas já existentes.

Esse dado pode ser importante para a construção de um critério ou parâmetro para a decisão em casos como este, no qual se discute, primordialmente, o problema da interferência do Poder Judiciário na esfera dos outros Poderes.” 

Para tanto, o Ministro propõe que o magistrado ao analisar a demanda proposta se baseie em alguns critérios objetivos, com a finalidade de se efetivar as prestações de saúde levando-se em consideração o contexto constitucional e de suas peculiaridades, como o planejamento estatal também previsto na Constituição.

Urge mencionar que a questão das escolhas trágicas retonam uma premissa levantada nas audiências públicas, consoante expôs o Dr. Leonardo Bandarra, Presidente do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais de Justiça do Ministério Público dos Estados e da União:

“A doutrina, em algumas oportunidades, alude mesma a escolhas trágicas que devem ser feitas pelo administrador, não obstante devemos exercer a humana lida de conciliar valores, não de suprimi-los. Palmilhar a difícil vereda que liga o SUS da plenitude constitucional à vida real dos cidadãos, seus conflitos e suas contradições.  O esgotamento de fontes de custeio parece estar induzindo a soluções seletivas, reduzindo a extensão do próprio conceito de universalidade e integralidade.”(BRASIL, 2010).

A princípio, cabe esclarecer que a intervenção do Judiciário só em possível se no caso concreto o Judiciário não criar uma política pública, e sim restringir a sua decisão a efetivação de políticas públicas já existentes. (BRASIL, 2010).

Além desse fator, faz-se necessário analisar a existência de motivação para o não fornecimento de determinada ação de saúde pelo SUS. Caso, por exemplo, este órgão alegue a existência de outro tratamento disponível em detrimento de opção diversa escolhida pelo paciente, deve-se privilegiar a política pública de saúde já existente. (BRASIL, 2010).

Por outro lado, é de se ressaltar que o Poder Judiciário, ou a própria Administração, poderá optar por um tratamento diferente, a depender, portanto, do caso em apreço.

Assim sendo, o Ministro Gilmar Mendes, expedindo seu magistério irrepreensível, colocou em prática as questões debatidas na audiência pública, para que se analise cada uma das questões suscitadas pela Administração no caso concreto:

“Assim, também com base no que ficou esclarecido na Audiência Pública, o primeiro dado a ser considerado é a existência, ou não, de política estatal que abranja a prestação de saúde pleiteada pela parte. […]

Se a prestação de saúde pleiteada não estiver entre as políticas do SUS, é imprescindível distinguir se a não prestação decorre de (1) uma omissão legislativa ou administrativa, (2) de uma decisão administrativa de não fornecê-la ou (3) de uma vedação legal a sua dispensação.

[…] O segundo dado a ser considerado é a existência de motivação para o não fornecimento de determinada ação de saúde pelo SUS.

[…] Nessa hipótese, podem ocorrer, ainda, duas situações: 1º) o SUS fornece tratamento alternativo, mas não adequado a determinado paciente; 2º) o SUS não tem nenhum tratamento específico para determinada patologia.

[…] Portanto, independentemente da hipótese levada à consideração do Poder Judiciário, as premissas analisadas deixam clara a necessidade de instrução das demandas de saúde para que não ocorra à produção padronizada de iniciais, contestações e sentenças, peças processuais que, muitas vezes, não contemplam as especificidades do caso concreto examinado, impedindo que o julgador concilie a dimensão subjetiva (individual e coletiva) com a dimensão objetiva do direito à saúde. Esse é mais um dado incontestável, colhido na Audiência Pública – Saúde.”

Em contrapartida, sabe-se que, ainda que devidamente legítimas, as decisões judiciais geram uma desorganização no planejamento estatal, sobretudo no que diz respeito à reserva orçamentária destinada à saúde.

Assim sendo, uma vez esclarecida a importância que o tema da judicialização abrange no campo jurisprudencial, bem como sua repercussão na Administração e na sociedade, passa-se a analisar os efeitos orçamentários originados pelo processo de judicialização excessiva, consoante será demonstrado a seguir.

5 EFEITOS ORÇAMENTÁRIOS DAS DECISÕES JUDICIAIS

O sistema financeiro e orçamentário é disciplinado pela Constituição Federal de 1988 com o objetivo de “demarcar o conteúdo da despesa, da receita e do crédito público” do ponto de vista juspositivo (BULOS, 2011, p. 1471).

Tal fato demonstra a importância dada pelo poder constituinte originário à matéria de receitas e despesas, tendo em vista a necessidade de o sistema prever o planejamento e o plano financeiro para as entidades constitucionais (BULOS, 2011, p. 1471).

Percebe-se, portanto, que para o Poder Público executar políticas públicas conforme a Constituição impõe, deve-se, também, atender aos planos orçamentários também previstos no texto constitucional, in verbis:

“Art. 165. Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão:

I – o plano plurianual;

II – as diretrizes orçamentárias;

III – os orçamentos anuais.

§ 1º – A lei que instituir o plano plurianual estabelecerá, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada.

 2º – A lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subsequente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento.[…]

§ 5º – A lei orçamentária anual compreenderá:

I – o orçamento fiscal referente aos Poderes da União, seus fundos, órgãos e entidades da administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público;

I – o orçamento de investimento das empresas em que a União, direta ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto;

II – o orçamento da seguridade social, abrangendo todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direta ou indireta, bem como os fundos e fundações instituídos e mantidos pelo Poder Público.

Art. 167. São vedados:

I – o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual;

I – a realização de despesas ou a assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais;

III – a realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta;[…]

IV – a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde e para manutenção e desenvolvimento do ensino, como determinado, respectivamente, pelos arts. 198, § 2º, e 212, e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º, bem como o disposto no § 4º deste artigo;

[…]  § 1º – Nenhum investimento cuja execução ultrapasse um exercício financeiro poderá ser iniciado sem prévia inclusão no plano plurianual, ou sem lei que autorize a inclusão, sob pena de crime de responsabilidade.

[…] § 3º – A abertura de crédito extraordinário somente será admitida para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública, observado o disposto no art. 62.[…]”

O planejamento tem como fulcro assegurar o princípio do equilíbrio orçamentário, o qual propõe a equivalência entre o montante das despesas autorizadas e o volume da receita planejada, observando possíveis desequilíbrios do orçamento (BULOS, 2011, p. 1484).

Desse modo, ao executar suas políticas públicas na área da saúde, portanto, deve-se respeitar os planos orçamentários, os quais foram devidamente previstos na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), na Lei Orçamentária Anual (LOA) e no Plano Plurianual (PPA).

Todavia, constata-se que as recorrentes decisões judiciais tem provocado um desequilíbrio no orçamento estatal. Sabe-se que mesmo que a Administração reserve um percentual destinado à saúde, consoante previsto em Lei Complementar, e uma quantia destinada ao cumprimento das decisões judiciais, tais créditos ainda assim não são suficientes.

Como consequência, a Administração muitas vezes se vê obrigada a tirar a receita destinada a certa despesa para cumprir a decisão judicial, o que provoca um deslocamento de uma verba destinada a certa política pública. Tal fato, conforme ressaltado pela Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul, Janaína Barbier Gonçalves, poderá até mesmo dar ensejo à propositura de ação de improbidade, uma vez que o gestor é obrigado a respeitar a destinação de recursos definida na Lei Orçamentária (BRASIL, 2009).

Ademais, percebe-se um desequilíbrio na relação custo/benefício, uma vez que a Administração muitas vezes não tem creditos suficientes para cumprir a decisão judicial, e, de outro modo, precisa retirar o recurso que era destinado para cumprir outro crédito orçamentário.

A influência das decisões judiciais na esfera orçamentária tem despertado tantas polêmicas que foi objeto das Audiências Públicas, já mencionadas. Nesse sentido, o Ex-Ministro da Saúde e Diretor-Geral do Hospital do Coração em São Paulo, Sr. Adib Jatene, muito bem expôs a pertinência do assunto:

“A gestão compartilhada, através das comissões bi e tripartite, resultou na elaboração de políticas públicas, todas com orçamento inferior às necessidades, o que levou ao estabelecimento de tetos. Todos os hospitais têm tetos, que, uma vez ultrapassados, o tratamento não é pago. Todas as atividades do setor, portanto, têm recursos programados sem nenhuma folga financeira. As deficiências são aceitas como inexoráveis, pois são causadas pela limitação dos recursos. No caso das ações judiciais que atingem o setor saúde, recorre-se diretamente ao Judiciário, frequentemente sem audiência prévia dos gestores da saúde e sem considerar as políticas públicas que buscam equacionar a maior eficiência diante das limitações dos recursos. Não há, no orçamento, um fundo para atender eventuais demandas judiciais. Nem a área econômica socorre o setor da saúde com aporte financeiro capaz de atender à determinação judicial” (BRASIL, 2009).

A premissa que se coloca é que, tendo em vista que toda despesa deve ter dotação orçamentária, seria possível o aumento de despesa com fornecimento de novos medicamentos não computados no cálculo das despesas com saúde quando da elaboração da LOA?

A Constituição Federal propõe que, além dos créditos orçamentários, o gestor possa utilizar créditos adicionais, os quais podem ser suplementares, especiais ou extraordinários. Normalmente, para suprir a escassez de recursos, utiliza-se creditos suplementares e especiais.

O Judiciário não pode determinar abertura de créditos adicionais, pois, se assim o fizesse, sua decisão desconsidera a dinâmica da atividade financeira do Estado. Cabe, portanto, ao próprio executivo resolver esse problema, o que é feito, normalmente, por meio da abertura de créditos adicionais, nos termos do art. 41 da Lei 4.320/64.

“Cabe aos gestores do SUS a reorganização da assistência farmacêutica para garantir a disponibilidade e o fornecimento dos medicamentos previstos nas políticas. É necessário o enfrentamento do problema em tempo hábil, centrado na intersetoriarialidade, com equipe de profissionais capacitadores para avaliar a indicação clinica do medicamento pleiteado” (MACEDO, 2011).

Nesse mesmo sentido, coaduna Ribeiro:

“Cabe ao Sistema Único de Saúde a tarefa, não só de gerir os recursos da saúde,mas de efetivamente estabelecer políticas públicas eficazes ao atendimento do cidadão em suas necessidades vitais básicas, especialmente no que diz respeito ao fornecimento de medicamentos. Constatada omissão ou abuso do Poder Público na implementação desse direito social fundamental, vital e básico, cabe ao cidadão, ou a quem o represente, acionar o Poder Judiciário para a sua efetivação” (2011, p. 914).

Essa questão, no entanto, ainda não foi resolvida, uma vez que a Administração, mesmo que queira cumprir tais decisões, muitas vezes não tem recursos suficientes. Além disso, para cumprir imediatamente a decisão judicial, utilizam procedimentos que desregulam o plano orçamentário como dispensas de licitação e requerimentos de tratamentos caríssimos fornecidos apenas no exterior.

Se, por um lado, o Judiciário necessita cumprir o seu dever Constitucional de assegurar a justiça àquele que pleiteia um direito social; por outro, o Executivo também precisa cumprir o dever de executar seu plano orçamentário.

Percebe-se, portanto, que é preciso haver uma conciliação de interesses entre os Poderes Executivos e Judiciários, e não uma disputa ou imposição de um poder sobre o outro, sob a pena de violação aos princípios da harmonia e separação dos poderes.

6 CONCLUSÃO

A concretização dos direitos sociais previstos na Constituição Federal de 1988 tem sido uma dificuldade que persiste em todas as três esferas de Poderes, seja o Legislativo, o Executivo ou o Judiciário.

Dentre os direitos sociais fundamentais, destaca-se o direito à saúde, consagrado no texto constitucional como um direito de todos e um dever do Estado, bem como uma das bases do sistema da seguridade social.

Assim sendo, todos os indivíduos tem a prerrogativa de recorrer ao Poder Público para que tal direito lhe seja garantido, preservando-se, assim, o verdadeiro direito assegurado no Estado Democrático pela Carta Maior.

Originariamente, cabe ao ente estatal o dever de administrar e definir as políticas públicas destinadas à concretização dos direitos sociais, o que é feito por meio de uma análise de conveniência e oportunidade do planejamento orçamentário, nos limites dos gastos públicos previstos na lei orçamentária.

Contudo, muitas vezes o Poder Executivo não consegue suprir todas as demandas sociais, pois, em regra, os recursos não são suficientes para garantir com celeridade e eficiência todos os direitos que são pleiteados. Tal inércia consiste em uma violação do texto constitucional, já que o administrador não cumpre a incumbência que a Constituição lhe atribuiu,

Como consequência, essa omissão da Administração ensejou em várias ações judiciais, com o fulcro de obter do poder Judiciário a concessão de tutela que assegure o direito a saúde, conforme previsto pela Constituição. Assim, o Poder Judiciário recebeu o papel de cumprir efetivamente o texto constitucional, assegurando a todos os indivíduos os direitos sociais inerentes a uma vida digna.

Ocorre que a frequente demanda à via jurisdicional ocasionou em um excesso de ingerência do Poder Judiciário no Poder Executivo, ao proferir decisões que interferiam na discricionariedade em matéria de políticas públicas e no planejamento estatal.

Essa excessiva judicialização em matéria de políticas públicas é alvo de grandes decisões doutrinárias e jurisprudenciais, uma vez que, se por um lado, cabe ao Judiciário efetivar os direitos sociais; por outro, cabe à Administração executar as políticas públicas conforme previsto no seu planejamento e no seu orçamento.

Com o objetivo de amenizar as controvérsias existentes entre os poderes, no ano de 2009, foram realizadas audiências públicas no STF reunindo interessados de todas as esferas dos Poderes.

Tais audiências foram de grande importância, contribuindo, principalmente, com a desenvoltura de um método objetivo que possa auxiliar os magistrados ao apreciarem um caso concreto.

A finalidade é justamente coibir a ingerência excessiva do Poder Judiciário nas políticas públicas que possam conturbar o sistema orçamentário estatal.

Contudo, percebe-se que, ainda assim, a polêmica persiste, pois vários juízes, sob o respaldo da Constituição, vêm proferindo decisões que geram uma onerosidade expressa ao Poder Público, como ocorrem no caso da concessão de medicamentos e tratamentos de alto custo.

Para evitar essa excessiva interferência, a princípio, caberia ao Poder Executivo gerenciar e administrar, de forma célere e eficaz, as políticas públicas destinadas à área da saúde. Tal fato poderia evitar o ajuizamento de inúmeras ações pleiteando o direito à saúde via processo judicial.

Desse modo, o Judiciário apenas seria responsável por apreciar aqueles casos em que a Administração agisse com abuso de poder ou violação à legalidade. Ademais, caso, ainda assim, fossem proferidas decisões mandamentais intervindo na esfera administrativa, poderia o Poder Público comprovar, se fosse o caso, a ineficiência de recursos orçamentários ou providenciar a realização de tal demanda conforme a sua discricionariede na realização das políticas públicas.

 

Referências
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BRASIL, Lei n. 8080, de 19 de setembro de 2000. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 20 set. 2000.
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STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
 
Notas:
[1] Constituição Federal de 1988: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […]
“XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

[2] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:[…]
III – a dignidade da pessoa humana

[3] Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos:
I – universalidade da cobertura e do atendimento;
II – uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais;
III – seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços;
IV – irredutibilidade do valor dos benefícios;
V – equidade na forma de participação no custeio;
VI – diversidade da base de financiamento;
VII – caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa, com a participação da comunidade, em especial de trabalhadores, empresários e aposentados.
VII – caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados

[4] Insta salientar que, embora a Constituição em 1988 tenha assegurado o direito à saúde, a regulamentação dos recursos destinados à concretização desse direito apenas ocorreu em 2012. Durante todos estes anos, no entanto, aplicava-se o disposto no art. 77 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, com o intuito de se reservar um percentual do produto da arrecadação de impostos para as ações e serviços de saúde.

[5] Constituição Federal. Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

[6] Para melhor conhecimento da questão sugere-se a leitura do fluxograma para análise das demandas judiciais sobre o fornecimento de medicamentos, desenvolvido por FIGUEIREDO (2010), disponível em http://bvssp.icict.fiocruz.br/pdf/25584.pdf.


Informações Sobre o Autor

Carolline Leal Ribas

Advogada e Assessora Jurídica na Advocacia-Geral do Estado de Minas Gerais. Doutoranda em Humanidades pela UNIGRANRIO. Mestre em Estudos Culturais pela FUMEC e especialista em Direito Público e em Gestão Pública


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