1.Teoria do Processo Administrativo (Lei nº 9784/99) e Direito Administrativo sancionador
Considerando que o Direito Administrativo é um ramo do Direito Público, as vozes função e dever se reiteram no exercício da denominada função administrativa, em contraposição ao papel desempenhado pela vontade no que tange à manifestação de um particular. Função é a prática de atos em nome alheio, manejando interesse titularizado por outrem. Dever carrega conteúdo cogente, obrigatório, distanciado de subjetivismos e voluntarismos do agente.
A atividade administrativa se prende a motivos e fins cogentes, não eletivos a princípio, indicados ou elencados na regra de competência, significando que a liberdade e a eficiência do agente público se nos afiguram diretamente proporcionais ao cumprimento dos ditames normativos. A felicidade, ou melhor, a tranqüilidade no exercício da função pública se vincula diretamente ao cumprimento dos imperativos normativamente postos, aos abençoados desígnios estabelecidos na ordem jurídica, sobremaneira se tomados os fundamentos consagrados na Carta Cidadã.
Nesse contexto, é impensável afetar legitimamente a esfera jurídica de alguém sem o devido processo legal, ou seja, o Estado deverá observar roteiros legalmente estabelecidos para impor restrições a alguém. A Constituição da República, no artigo 5º, incisos LIV e LV, garante aos interessados, isto é, aos sujeitos que figuram no processo administrativo, o direito de participação (contraditório e defesa), bem como a via processual como caminho legítimo de exercício das funções estatais. Entretanto, a existência de processo perante a Administração Pública independe de presença de litigantes ou acusados, diferentemente do que se poderia depreender de leitura perfunctória da garantia insculpida na norma citada.
O processo é o modo de exercício legítimo das funções estatais, instrumento mediante o qual o Estado realiza o direito em quantidade e qualidade, assegurando ao seu titular o exercício do interesse juridicamente protegido, na exata medida dessa proteção. O processo pode ser concebido, portanto, como relação jurídica (sujeitos fixos) ou situação jurídica (em face da flexibilidade/fungibilidade inerente à pessoa dos interessados, diretamente proporcional ao grau de interesse público envolvido) expressa por seqüência de atos logicamente encadeados visando ao ato final estatal – provimento. O adjetivo devido significa adequado, razoável, desenvolvido mediante motivo e fins cogentes (inafastabilidade da via procedimental determinada para o fim colimado e indisponibilidade do interesse público). O caminho a ser percorrido deve ser o legal, é dizer, tipificado, autorizado ou exigido no ordenamento. Acresçam-se as determinações principiológicas de razoabilidade e de juridicidade, ou seja, de legalidade ampla, pugnando pela aplicação racional, social e humanística do direito. Conceituando o direito fundamental constitucionalmente garantido, devido processo legal seria o direito de todos que corresponde ao dever do Estado de adotar a via procedimental e participativa como caminho dialético de tomada de decisões, ou seja, de exercício das funções públicas; dever do Estado, que corresponde ao direito do interessado, à relação jurídica logicamente estabelecida, tipificada por meio de seqüência participativa de atos encadeados, visando ao provimento estatal nos moldes determinados pelo ordenamento jurídico.
Considerando-se que o exercício das atividades executivas do direito promove ingerência na vida dos destinatários dos atos praticados, o operador jurídico deve transformar-se num crítico das normas positivadas, para que sejam aplicadas em benefício da coletividade e em nome da razoabilidade e da legalidade, pilares do Estado de Direito democrático. Todo aquele que detecta dificuldades, é devedor de contribuição para a solução destas: quem identifica problemas, deve propor soluções. Essa a razão de ser de todo empreendimento cujo objetivo é a pesquisa, e consequentemente o progresso, na seara do direito, o que significa avanço da sociedade que torna concreta a norma abstrata.
Pela moderna vertente da consensualidade no exercício da função pública, a decisão final estatal deve ser conjuntamente construída, razão pela qual sua imperatividade é legal e desejada. Mediante o equilíbrio normativamente previsto das posições jurídicas subjetivas, o arbítrio cede lugar à razoabilidade.
O advento da Lei nº 9.784/99, de 29 de janeiro de 1.999, por se tratar de coroamento de esforços de sistematização de princípios e regras aplicáveis à generalidade dos processos administrativos que tramitam perante a Administração federal, constitui marco significativo na trajetória evolutiva do Direito Administrativo brasileiro. Ainda que sua aplicação limite-se formalmente à União, posto que lei federal, apesar da vocação nacional, tal construção normativa influencia outras esferas, como demonstra a publicação das leis de processo administrativo de Minas Gerais e de Goiás, antecedidas pelas de Sergipe e de São Paulo, pioneiras mesmo em relação à Lei federal.
Citem-se, na esfera federal, diplomas legais atinentes a processos administrativos especiais, assim denominados pelas especificidades características de seus respectivos objetos, conteúdos, ou ainda, finalidades: Decreto 70.235/72, que dispõe sobre o processo administrativo fiscal; Lei 811290, que é o Estatuto dos servidores públicos civis federais; Lei 8443/92, a Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União, que regula processos administrativos de controle, que podem ou não se tornar punitivos; Lei 8.666/93, que regulamenta o artigo 37, XXI, da CR e institui normas gerais (nacionais) para Licitações e Contratos Administrativos; Lei 8884/94, a Lei Antitruste, que transformou o CADE/MJ em autarquia federal e regula o processo administrativo de proteção à concorrência, mediante prevenção e repressão a infrações contra a ordem econômica; Decreto 1602/95, que regulamenta as normas que disciplinam o processo administrativo antidumping, cujo escopo é proteger a indústria doméstica e via reflexa, a economia nacional, de atuações nocivas de empresas multinacionais; Lei 9503/97; que institui o Código de Trânsito Brasileiro e o correspondente processo administrativo.
A lei 9784/99 estabelece normas gerais sobre o procedimento participativo perante a Administração direta e indireta da União, tendo em vista a proteção dos direitos dos administrados e a satisfação das necessidades públicas. O conteúdo da Lei aplica-se também aos Poderes Legislativo e Judiciário federais, quando em exercício da função administrativa. Sua aplicação aos processos federais especiais é subsidiária: em havendo situações descobertas pelas normas especiais, incidirá da Lei Geral.
Entre os princípios expressos no artigo 2º da Lei, destacam-se: Legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, participação e defesa, segurança jurídica, interesse público e eficiência. A expressão “entre outros” quis incluir os princípios de publicidade, controle da Administração, isonomia, impessoalidade, devido processo legal, impulso oficial, verdade material e formalismo moderado. Erigem-se como valores a serem observados no exercício da função administrativa: a) atuação conforme a lei e o direito – legalidade ampla; b) aplicação das regras à luz dos princípios – razoabilidade e interpretação sistemática; c) atuação conforme padrões de probidade, moralidade e boa-fé – transparência e sinceridades de intenções e nas atitudes; d) divulgação oficial – publicidade – em razão das noções de função e de dever, ressalvadas hipóteses de sigilo determinadas pela lei e pelo interesse da sociedade e do Estado; e) adequação entre meios e fins, proibindo-se a imposição de obrigações, restrições e sanções em quantidade superior àquela estritamente necessária ao atendimento do interesse público – necessidade (motivo), adequação qualitativa, e proporcionalidade (coerência quantitativa); f) indicação dos pressupostos de fato e de direito que levaram o administrador público a agir – motivação; g) observância das formalidades indispensáveis a proteger direitos dos interessados e assegurar o interesse público – formalismo moderado, não se decreta nulidade sem gravame; h) adoção das formas simples e suficientes para garantir segurança jurídica, é dizer, previsibilidade da conseqüência das atitudes dos sujeitos no processo; i) garantia de participação nos processos dos quais possam resultar modificações na esfera jurídica de alguém, seja pessoa física ou jurídica; j) impulsão de oficio, sem prejuízo da movimentação dos interessados, como expressão do dever de colaboração e coordenação entre Estado e sociedade e internamente ao próprio Estado; k) aplicação do RJA (regime jurídico administrativo) para garantir a proteção do interesse público, vedada a retroatividade de nova orientação administrativa, em nome da segurança jurídica. l) busca de aproximação da verdade dos fatos, mediante formação do conjunto probatório de maneira a permitir a elucidação da questão objeto de atuação da Administração Pública – verdade material ou real; m) objetividade na consecução do interesse público – impessoalidade e isonomia.
Entre direitos e deveres dos administrados no processo administrativo, sintetiza-se a dignidade da pessoa humana e a boa-fé recíproca, exteriorizando-se pela honestidade e transparência de intenções e de comportamentos de todos os sujeitos envolvidos no processo. Cabe ao interessado a faculdade de presença e de audiência, o direito de expor suas verdades, suas versões da verdade.
Entretanto, a inexistência de previsão específica de sanções para o descumprimento de deveres dos interessados em relação à Administração funciona como incentivo velado ao desrespeito aos mencionados deveres, emergindo dessarte a necessidade de atenção estatal e detença quanto às lacunas legais.
A máxima divisão adotada por BANDEIRA DE MELLO[1] separa os processos administrativos em dois grupos, os processos ampliativos e os restritivos de direitos.
1.Ampliativos de direitos
a) quanto ao sujeito que os suscita
a.1 de iniciativa do próprio interessado
a.2 de iniciativa da Administração
b) quanto ao caráter competitivo
b.1 concorrenciais, e.g. licitações e concursos públicos. Licitações e concursos públicos são, para NERY COSTA[2] e MEDAUAR[3], processos de gestão.
b.2 simples/não concorrenciais
1.Restritivos de direitos
a) meramente restritivos ou ablativos, e.g. revogações em geral. Nessa categoria estariam os processos administrativos de restrição pública à propriedade particular, tais o de desapropriação e o de tombamento[4].
b) sancionadores, e.g. processo administrativo punitivo contra funcionário público (processo disciplinar).
BANDEIRA DE MELLO explica que, para qualquer das espécies citadas, a denominação empregada é ‘procedimento’, “numa opção terminológica que não tem maior valor senão o de ‘codificação’ de linguagem”, para tanto adotando-se “a voz usual (…), já consagrada pela tradição.”[5] Deve-se ressaltar entretanto que, se a Constituição da República, no inc. LV do art. 5º, adota a expressão processo administrativo, inexiste motivo para manter-se a generalização ‘procedimento’ para denominar ambos, processo e procedimento. É preferível dar vida à distinção, que tem razão jurídica de ser (cf. Cap. I, item 2). Processo é processo, e procedimento é procedimento. Trata-se de conceitos e objetos distintos à luz da ciência processual administrativa. Portanto, razão assiste àqueles que, como FERRAZ & DALLARI[6], consideram “equivocado usar o título ‘procedimento administrativo’ para nominar, a um só tempo, o processo e o procedimento (em senso estrito) administrativos”, por imperativos de lógica formal, de natureza sistemática (Constituição da República, art.5º, LV) e de caráter ideológico (processo como procedimento e relação jurídica). Supera-se então, expressamente, a concepção que centraliza no ato administrativo em sentido restrito – manifestação unilateral do Estado dotada de efeitos externos – a atividade da Administração. Emerge, lenta e gradualmente, a via procedimental como fonte e forma precípua de criação das decisões do Estado-Administração. Prestigia-se, destarte, a sucessão de atos logicamente encadeados em detrimento de um querer que se manifesta de modo instantâneo, imediato, autoritário, irresponsável, ineficiente, desarrazoado, desproporcional.
Os princípios determinam condutas obrigatórias, posto que repelem comportamentos com eles incompatíveis, negando-lhes validade, ao mesmo tempo em que se erigem em vetores interpretativos, porquanto apontam a direção e o sentido compulsório da gênese jurídica (produção de atos jurídicos por particulares e pelo Estado), segundo os papéis negativo e positivo dos princípios, respectivamente.
Diante disso e considerados os obstáculos ao desempenho razoável e humanístico da função pública pelos agentes oficiais na marcha processual administrativa, a presente pesquisa faz-se urgente e necessária, na medida em que colheremos todos, seja na condição de sujeitos públicos ou privados, os alvissareiros frutos do aprimoramento subjetivo e técnico da Administração e da administração, bem como dos caminhos de tomada de decisões administrativas punitivas pelo Estado. Sucedem-se situações de singular complexidade no exercício quotidiano da função pública, notadamente no que tange à realização da pretensão punitiva estatal, perante a Administração Pública, de acordo com as fronteiras estabelecidas pelo Direito Administrativo sancionador. A gama variada de agentes públicos que integram a Administração Pública Federal, de formação das mais diversas, traz basicamente duas espécies de resultados do desempenho de suas atribuições: de um lado, a diversidade de conhecimentos e experiências que permeiam os atos praticados, enriquecendo o serviço público nas acepções subjetiva e objetiva e, de outro, ignorância, despreparo, comodismo e inércia tanto no aspecto pessoal, humanístico e psicológico quanto no aspecto técnico, cognitivo e intelectivo – insegurança, portanto, irresponsabilidade e imaturidade para a tomada de decisões em processo administrativo, cujos reflexos danosos são experimentados por todos os afetados pela atividade estatal, tanto no que toca os direitos individuais quanto no que diz respeito a direitos transindividuais.
Cabe ao Poder Público zelar de modo geral pelo andamento do processo administrativo, determinando, quando cabível, a prática de atos pelos interessados. “Se a Administração o retarda ou dele (processo administrativo) se desinteressa, infringe o princípio da oficialidade e seus agentes podem ser responsabilizados pela omissão” [7] ou pela negligência. Como observa BACELLAR FILHO[8], “o princípio da oficialidade compreende tanto a impulsão de ofício quanto a instrução de ofício, que pressupõe a participação do acusado, em se tratando de processo punitivo.” Oficialidade quer dizer “responsabilidade na condução do processo para que este alcance o fim constitucional e legal.” Contudo, impulso oficial não é sinônimo de arbítrio oficial. Significa que o Poder Público pode e deve agir de ofício, respeitando – sempre e em qualquer circunstância – a dignidade humana e o interesse geral.
No processo penal, assim como no processo administrativo, prevalece a verdade real.[9] Existe, no Direito francês, a “regra do exame particular das circunstâncias”, que enfatiza a importância dos elementos do caso concreto para a formação das decisões administrativas. Em virtude de jurisprudência que remonta aos anos 20, é necessário que, em cada situação na qual deva haver uma decisão, a Administração determine o conteúdo desta levando em consideração os dados específicos do caso concreto.[10] A proteção de direitos difusos é interesse público e a busca da verdade nesse campo é função administrativa e finalidade institucional do Estado, independentemente de provocação, seja do particular ou de qualquer entidade que figure no processo. Sobre a verdade formal e a verdade material, CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO[11] proferem aula magna, que merece reprodução literal:
“Mesmo quando, no processo civil, se confiava exclusivamente no interesse das partes para o descobrimento da verdade, tal critério não poderia ser seguido nos casos em que o interesse público limitasse ou excluísse a autonomia privada. Isso porque, enquanto no processo civil em princípio o juiz pode satisfazer-se com a verdade formal (ou seja, aquilo que resulta ser verdadeiro em face das provas carreadas aos autos), no processo penal o juiz deve atender à averiguação e ao descobrimento da verdade real (ou verdade material) (…). A natureza pública do interesse repressivo exclui limites artificiais que se baseiem em atos ou omissões das partes. À vista disso, quando a causa não-penal versa sobre relações jurídicas em que o interesse público prevalece.”
O formalismo racional ou razoável, mais frequentemente denominado de informalismo ou informalidade, ou ainda, formalismo moderado, no processo administrativo significa que os atos independem de forma determinada, salvo quando a lei expressamente a exigir (art. 22 da Lei nº 9.784/99). Nesse diapasão, o reconhecimento de firma somente será exigido quando houver dúvida de autenticidade, salvo norma legal. As especificações legais concernentes à forma devem levar em conta critérios racionais, uma vez que os parâmetros para a exteriorização do ato só se tornam relevantes quando prezam por bens jurídicos maiores que a forma em si mesma. No processo, as nulidades são pronunciadas com supedâneo no prejuízo haurido. Em não havendo dano, não há falar em nulidade. A obediência à forma deve limitar-se aos patamares suficientes a propiciar segurança jurídica e estabilidade das relações, derivados do princípio da legalidade ampla ou juridicidade. A forma é instrumento, não se justificando em si mesma; atribui-se relevância à forma com restrição, nos casos em que for exigida por razões de segurança jurídica e previsibilidade. Nas demais situações, consideram-se limites racionais e razoáveis, fornecidos por interpretação sistêmica do ordenamento jurídico. (STJ. MS 7059/DF. DJ 12/03/2001. p. 86.)[12] Pelo exposto, é lícito concluir que “aos tribunais toca utilizar o processo com total fidelidade aos dois princípios máximos do Direito Processual contemporâneo: instrumentalidade e efetividade.”[13] A Administração, na condução do processo administrativo, “não pode ficar asfixiada por um legalismo burocrático, puramente artificial e formalista. É nesse sentido que o Estado de Direito goza de prioridade axiológica sobre os princípios de segundo grau.” [14]
MEIRELLES[15], CRETELLA JR:[16], BANDEIRA DE MELLO[17], MEDAUAR[18] e NERY COSTA[19] admitem a relevância da distinção entre os processos administrativos punitivos e os demais processos administrativos. O procedimento dialético (processo) por meio do qual a Administração Pública apura a prática de infração e impõe penalidades por descumprimento de norma jurídica chama-se processo punitivo ou processo sancionador. Nele impera a necessidade do contraditório, com a ampla defesa como corolário, segundo o devido processo legal, sob pena de nulidade da sanção imposta. A sua instauração dar-se-á mediante ato administrativo contendo exposição dos atos ou fatos ilegais atribuídos ao acusado, bem como indicação da norma infringida.
O processo administrativo poderá ser realizado por uma só autoridade administrativa ou por órgão colegiado. “O essencial é que se desenvolva com regularidade formal em todas as suas fases, para legitimar a sanção imposta a final.” Apesar de a gradação das sanções aplicadas basear-se em escolhas administrativas, não se trata de arbitrariedade e, por isso, a punição deve ser razoável e proporcional à infração apurada no respectivo processo, além de estar tipificada em norma, pois não é cabe à Administração aplicar penalidade não disciplinada no ordenamento jurídico. A conseqüência punitiva deve resultar de processo administrativo desenvolvido em contraditório, com o devido processo legal, “que se erige em garantia individual de nível constitucional”.[20]Em síntese consistente, BACELLAR FILHO ressalta a importância do diálogo processual: “impondo regras de lealdade entre as partes para que estas não mistifiquem os elementos que alegam, não dispersem os elementos relevantes, não impeçam o adversário de fazer valer suas razões e o juiz de exercer seus poderes, o contraditório desempenha relevante papel social, mormente no cumprimento da competência sancionatória.”[21]Em sede de processo administrativo sancionador, “o sistema legal brasileiro filia-se à civil law, a partir da dotação de amplos poderes à autoridade instrutora, justificados pela assunção da busca da verdade ou, na linguagem da Lei nº 8.112/90, da ‘completa elucidação dos fatos’ ”.[22]
A finalidade do processo sancionador é apurar materialidade e a autoria da imputação, ponderar as circunstâncias que aí concorrem e aplicar, se for o caso, as sanções pertinentes; iniciando-se de ofício ou mediante provocação. Segundo o art. 65 da Lei nº 9.784/99, os processos administrativos dos quais resultem sanções poderão ser revistos, a qualquer tempo, mediante provocação ou de ofício, quando emergirem fatos ou circunstâncias que tornem a decisão proferida desarrazoada. Tal revisão dar-se-á por meio de processo administrativo, posto que “o que em processo administrativo se afirmou só em outro poderá ser desfeito.”[23](Cf. STJ. MS 6.787/DF. DJ 28/08/2000. p. 53). [24]
Não há infração nem penalidade administrativa sem prévia definição legal, por força do inciso XXXIX do art. 5º da Constituição da República. A violação do direito e a respectiva sanção devem estar tipificadas em lei. Além disso, nenhum acusado poderá ter sua situação agravada sem processo administrativo, i.e., procedimento contraditório, ex vi do art. 5º, LV, da CR c/c art. 64, par. ún., da Lei nº 9.784/99. Segundo norma constitucional insculpida no art. 5º, XL, aplica-se retroativamente ao fato lei posterior benéfica. De acordo com o princípio da insignificância, admite-se infirmar a tipicidade de fatos cuja repercussão tem baixo potencial lesivo. Vigora, também, a presunção de inocência do acusado (CR, art.5º, LVII), o qual só será considerado culpado e, portanto, apenado, após decisão condenatória proferida em processo, da qual não caiba mais recurso.
No processo administrativo sancionador regulado na Lei nº 8.884/94 (Lei Antitruste), “não está em jogo (…) qualquer direito subjetivo da pessoa que formula a denúncia, isto é, o representante.”[25] A relação de direito privado que eventualmente possa existir resolve-se na via processual própria, e não no processo administrativo da concorrência, posto que o processo administrativo que investiga a denúncia de comportamento tipificado na Lei Antitruste é concebido como um instrumento de apuração e repressão das práticas que atentam contra os bens jurídicos por ela protegidos – liberdade de iniciativa e consumidor–, “e não como um meio de solucionar conflitos individuais.” A instauração do processo (…) leva em conta (…) interesses difusos”.[26].
O sentido do processo administrativo sancionador é apurar a existência de infração a direito e coibi-la, quando declarada sua existência. O despacho de instauração do referido processo deverá ser fundamentado, por tratar-se da peça informadora de todo o procedimento, considerando-se que nele estão contidos os limites do debate, que constituem a descrição das práticas potencialmente lesivas. Tal exigência tem como finalidade o pleno exercício do direito de defesa, o que induz a conclusão de que, em não havendo prejuízo ao contraditório e ao devido processo legal, não há proclamar-se nulidade (STJ. Quinta Turma. ROMS 10.472/ES. DJ 04.09.2000. P. 171; STJ. Sexta Turma. ROMS 9.532/RO. DJ 04.09.2000. P. 195; STJ. RESP 182.564/PR. DJ 26.06.2000. P. 207).
Segundo MEDAUAR[27], os processos administrativos punitivos dividem-se em internos, cujas sanções são aplicadas no âmbito da Administração e externos, mediante os quais aplicam-se sanções fora do âmbito da Administração. Entre os processos administrativos internos, estão os chamados processos administrativos disciplinares, nos quais apuram-se faltas cometidas no corpo da Administração Pública.
É certo que “as características comuns que adotamos como critério para uso de uma palavra de classe são uma questão de conveniência. Nossas classificações dependem de nossos interesses” e de “nossa necessidade de reconhecer tanto as semelhanças como as diferenças entre as coisas. Muitas classificações distintas podem ser igualmente válidas.”[28] Cumpre ressaltar, ainda, que os pressupostos, as finalidades e as garantias do processo administrativo compõem um núcleo comum a todas as modalidades, diferenciando-se, em classificação bastante ampla, os processos administrativos penais ou sancionadores e os não-penais. Assim, os processos administrativos classificam-se em [29]:
1. Não-punitivos ou não-sancionadores (civis em sentido amplo ou não-penais)
a) quanto ao sujeito que os suscita
a.1 de iniciativa do próprio interessado
a.2 de iniciativa da Administração
b) quanto ao objeto
b.1 de interesse público
b.2 de interesse predominantemente particular/privado
quanto ao alcance
c.1 internos, cujos efeitos operam no âmbito da Administração;
c.2 externos, cujos efeitos ultrapassam a esfera administrativa.
2. Punitivos ou sancionadores[30]
a) quanto ao sujeito que os suscita
a.1 de iniciativa do administrado
a.2 de iniciativa da Administração (v.g. processo administrativo disciplinar)
b) quanto ao objeto
b.1 de interesse público (v.g. processo administrativo da concorrência – Lei nº 8.884/94 e processo administrativo de controle, tais como os de fiscalização e prestação/tomada de contas, quando discutem-se irregularidades)
b.2 de interesse predominantemente particular/privado
c) quanto ao alcance dos efeitos
c.1 internos, cujas sanções operam no âmbito da Administração;
c.2 externos, cujas sanções aplicam-se além da esfera administrativa
O Direito Administrativo sancionador pode incidir em campos distintos, tais como infrações tributárias, econômicas, contra a saúde pública, contra a segurança pública, entre outras, ou seja, em qualquer hipótese em que se configure dever do Estado controlar e reprimir determinados comportamentos emanados de agentes públicos ou de particulares. A aplicação das normas administrativas punitivas exige processo administrativo ou judicial válido. Pugna-se pela busca de igualdade e racionalidade no exercício da pretensão punitiva estatal, restringindo-se direitos e patrimônio, em vez de institucionalizar torturas físicas e psicológicas, como o regime jurídico de outrora, evidenciando-se sentido humanístico.[31] As sanções administrativas e penais se diferem pelo conteúdo, pela substância:
“É verdade que o poder estatal sancionatório, que era unificado e depois se especializou, deve obediência às finalidades ordinárias de quaisquer penas, há de ser público, proporcional. Submete-se, indiscutivelmente, a princípios constitucionais que norteiam o exercício da pretensão punitiva estatal, ainda que, no plano concreto, esses princípios apresentem diferenças entre si”[32]
Conforme lição de OSORIO[33], são elementos da sanção: autoridade (sujeito público, estatal); restrição (conteúdo), privação de direitos e imposição de deveres; repressão (finalidade correcional, pedagógica, recomposição da legalidade, restabelecimento e reafirmação de valores consagrados na ordem jurídica); processo administrativo (formalização, legitimação pelo processo).
1.1.Aspectos do manejo de garantias individuais e direitos difusos no processo administrativo
O exercício regular da função administrativa deve voltar-se para a satisfação do interesse social, reclamando-se de todo agente público que possua qualidades de honestidade, lealdade e imparcialidade. A fim de evitar que se inicie caminho sem retorno viciado pelo descrédito e pela ineficiência, surgem normas preventivas assecuratórias da punição exemplar dos agentes que enveredarem por vias tortuosas dissonantes da ética administrativa.
Em razão do diálogo imprescindível ao exercício processualizado da função pública, o processo clama por atitude honesta, digna. O escopo do processo é elevado, nobre, e em patamar equivalente deve estabelecer-se o padrão comportamental nele tolerado. Obviamente não se fala de formas rebuscadas e complicadas, de ostentação, de aparência de regularidade, de verniz pernicioso de lealdade recheado de atitudes levianas. Cogita-se, ao contrário, do conteúdo ético, probo e de transparente dos atos em processo praticados.
Figure-se agora determinada relação jurídica processual em curso, na qual o julgador, guardião da ordem jurídica e praticante da legalidade ampla, depara-se com ato praticado por motivos escusos e mediante intenções fraudulentas, ainda que aparentemente conformes aos preceitos de direito. Sabe-se que o Estado deve zelar pela lisura do instrumento de realização de suas funções. Nesse tocante, cumpre ressaltar que nenhum princípio é absoluto, devendo aplicar-se de modo coerente com o conteúdo dos demais princípios incidentes no caso concreto. Hierarquia e relatividade dos princípios se compatibilizam por meio de razoabilidade e ponderação na solução de conflitos emergentes. A má-fé deve ser repelida, sem que se destrua a parcela ou o resultado positivo do conjunto.
Se o Estado se materializasse, e por instantes se tornasse palpável, tangível, talvez se postaria diante de cidadãos, administrados, interessados, ou seja, sujeitos ativos e passivos em processos administrativos e lhes formularia a questão epigrafada: o que fizestes das medidas protetivas que vos concedi? Como no lendário “juízo final”, aqueles que se valeram da marcha processual com pureza de intenções e de atitudes se enfileirariam à direita, enquanto os demais seriam situados à esquerda. Seria possível tal separação?
Nesse contexto, merece destaque o dever de lealdade processual, objeto de tratamento e proteção pelos institutos criados com o escopo de erradicar a chamada sham litigation. Sham significa imitação, réplica, falsa amostra; engodo, farsa; fingimento; falsidade, leviandade. O instituto do sham litigation ou abuso do direito de petição desenvolveu-se de forma expressiva nos Estados Unidos, como ressalva à aplicação da doutrina Noerr-Pennington. Em linhas gerais, os tribunais norte americanos concluíram acertadamente pela relatividade do direito de petição, reconhecendo que o abuso das possibilidades de provocar a atuação estatal em processo pode causar prejuízos significativos ao bem estar geral, e.g., do consumidor. Além das definições legais próprias de litigância temerária, há considerável divergência acerca da freqüência de tais impugnações movimentando juízos e outras instâncias decisórias, tais a administrativa, e as implicações para o bem estar social das várias opções políticas desenvolvidas para limitar tal atuação. Alguns juristas acreditam que SL é um fenômeno substancial e crescente nos EUA e que ela representa um desafio para a atual política antitruste. Outros concebem a temática antitruste com mais simplicidade, encarando os problemas e dificuldades conjuntamente com as respectivas soluções: uma restrição dos direitos de acesso à justiça postos na Primeira Emenda. Definições judiciais de SL apresentam-se discrepantes: Juiz Posner aplicou abordagem custo-benefício (razoabilidade e proporcionalidade) para analisar intenção anticompetitiva e sustentou que, mesmo pretensões não manifestamente infundadas, ou seja, possivelmente fundadas, podem constituir SL. Tal posição erigiu-se em evidente dissonância em relação a outras interpretações que colocaram frivolidade e falta de fundamento como requisitos para configuração de SL. As divergências refletem carência/ausência de provas disponíveis para subsidiar decisões robustas, bem como o silencio da Suprema Corte de manifestar-se nesse tocante.[34] A partir de sucessivos julgamentos, a Suprema Corte dos Estados Unidos buscou delimitar requisitos necessários para configurar sham litigation. No julgamento do caso Professional Real Estate Investors, Inc. v. Columbia Pictures Industries, Inc. (508 U.S. 49, 113 S.Ct. 1920) foram estabelecidos dois critérios para sua caracterização: (i) a ação deve ser desprovida de qualquer fundamento, não sendo realista por parte do litigante qualquer expectativa de vitória quanto ao mérito e (ii) tal ação sem fundamento constitua meio fraudulento para esconder “tentativa de interferir diretamente com as relações empresariais do concorrente”.
O manejo de procedimentos e atos normativos, incluindo processos administrativos e judiciais, pode também, em circunstâncias específicas, constituir abuso, já que o conceito de abuso não é limitado à conduta no mercado e o uso indevido de procedimentos e atos normativos pode resultar em sérios efeitos anticompetitivos no mercado. O fato de que nesses casos os efeitos no mercado podem depender de providência das autoridades públicas não é decisivo no sentido de excluir a existência de abuso. [35] A Secretaria de Direito Econômico (SDE), órgão do Ministério da Justiça, tem adotado medidas de repressão ao exercício abusivo de direitos.
“Um exemplo disso pode ser identificado na aplicação da teoria do sham litigation aos casos de empresas que se utilizam de processos e do Poder Judiciário para restringir ou aniquilar a concorrência. Esta teoria, que nasceu nos Estados Unidos da América, constitui a vertente material da denominada entre nós litigância de má-fé, que possui nítido caráter processual, utilizado no combate ao desvio ou uso indevido do processo pelo jurisdicionado – artigo 16 a 18, do Código de Processo Civil. A limitação da multa para o litigante de má-fé (até 20% do valor da causa) e a interpretação restritiva da cláusula legal indenizatória criam estímulo ao abuso do direito. O Supremo Tribunal Federal (STF) já utilizou diferentes critérios no combate à conduta temerária da parte litigante: (a) adotou solução inovadora, ao determinar o cumprimento de uma decisão antes da publicação no Diário Oficial, para evitar a reiteração de recurso que visava a impedir a finalização do processo (Recurso Extraordinário 202.097-4); b) aceitou a rescisão de contrato em que a parte repetiu diversas vezes pedido de purgação de mora (Recurso Extraordinário 85.816-RJ)”. (…) O aparente exercício regular do direito, (…) objetivando obter vantagem indevida, afronta os princípios da probidade, boa-fé objetiva e lealdade processual. (…) Sobre esses abusos, há exemplo bem recente. No setor farmacêutico, algumas empresas vêm, deliberadamente, utilizando o processo como instrumento de ilegítima e abusiva extensão de proteção de patentes ou até mesmo de exclusividade de comercialização, sem qualquer titularidade de carta patente. Isso porque, uma vez vencida a proteção da patente de determinado medicamento, o seu princípio ativo pode ser utilizado livremente para a industrialização do correspondente medicamento genérico, o qual, por lei, é comercializado com preço 35% mais barato, no mínimo. A tentativa de utilizar o processo como meio de estender o prazo da proteção de patente ou para atribuir direitos de comercialização exclusiva de específico fármaco, impede o respectivo acesso de inúmeros consumidores. Note-se que, independentemente do resultado final dos diversos e infundados processos, a estratégia jurídica gera os abusivos efeitos desde o seu início, pois nenhuma empresa assumiria o risco de produzir e comercializar medicamentos genéricos enquanto perdurasse uma situação de indefinição jurídica ou antes da prolação da decisão de primeiro grau. Essa forma de abuso viola tanto os direitos do consumidor dos medicamentos em questão como do Estado, que, ao executar sua política de saúde pública, é obrigado a adquirir os fármacos pelo preço que desejar o titular da proteção da patente ou de direitos de exclusividade. Sem a redução obrigatória dos preços dos medicamentos genéricos, o Estado brasileiro vê-se impedido de propiciar a ampliação do acesso da população aos medicamentos. Aí está um bom exemplo para que a teoria do “sham litigation”, já assimilada pela SDE, possa migrar para o processo civil, ampliando o espectro de apenamento daquele que abusa do direito de provocar a tutela estatal. O abuso do direito, contrário ao ordenamento jurídico, contava, até 2002, com a interpretação a contrário senso do disposto no artigo 160, inciso I do Código Civil de 1916; com a vigência do novo Código Civil, passou a ser equiparado ao ato ilícito (artigo 187). Com essa prática abusiva, constata-se, a um só tempo, a imposição de danos aos fabricantes de medicamentos genéricos, que deixam de fabricá-los e comercializá-los enquanto perdurar as restrições judiciais, decorrentes da abusiva tentativa de extensão da proteção de patente ou comercialização exclusiva, bem como a imposição de dano de natureza difusa a um incontável número de pessoas, cuja eficaz defesa depende de provocação de entidades legalmente legitimadas para tanto. A adoção da teoria do “sham litigation” e a imposição da obrigação de ressarcimento de danos que são causados pelos abusos já mencionados, certamente levarão o agente econômico a melhor refletir sobre sua conduta desrespeitosa e ímproba perante o Poder Judiciário.”[36]
A coletividade, termo que abarca os vários grupos sociais e os indivíduos estabelecidos em território nacional, é a titular dos bens jurídicos difusos protegidos pela Lei nº 8.884/94. A preservação do regular funcionamento do mercado, inserida na proteção à ordem econômica, é interesse público. Como observa DUTRA DE ARAÚJO, “no direito público, os interesses coletivos exigem que se garanta, pelo transcurso de caminhos legalmente (previstos e) previsíveis, o efetivo cumprimento das funções a cargo do Estado.”[37] Deve-se considerar o cerne do direito administrativo sancionador democrático, tomado em observância aos princípios constitucionais que, como tais, são mandamentos nucleares do sistema normativo administrativo. São, portanto, os princípios instituídos pelo constituinte que devem orientar o legislador ordinário e toda a interpretação jurisprudencial; só desta forma, imprimir-se-á a necessária legitimidade ao poder punitivo da Administração, evitando-se abusos e arbítrios.
Se o que une interessados indeterminados é a mesma situação de fato, estamos diante de interesses difusos. Tais interesses “são como um conjunto de interesses individuais, de pessoas indetermináveis, unidas por pontos conexos.”[38] Os direitos difusos são transindividuais, com indeterminação absoluta de seus titulares. Inexiste pessoalidade, uma vez que o elemento subjetivo da relação é fungível. Operam-se mutações na titularidade dos direitos difusos sem que seja alterada a natureza desses direitos, pelo fato de a ligação entre os vários titulares decorrer de circunstância objetiva, fática. Sob o aspecto objetivo, são indivisíveis, pois seu objeto não comporta repartição em quotas atribuíveis a indivíduos ou a grupos definidos. Consequentemente, só podem ser implementados ou lesados de modo que afete a todos os eventuais titulares. Em razão de sua natureza, os direitos difusos não podem ser apropriados individualmente, não podem ser transmitidos (são inalienáveis), e não podem ser objeto de renúncia ou de transação[39].; dizem respeito a um bem único, tomado globalmente, de modo que da satisfação de um de seus titulares resulta a satisfação de todos: devido à indivisibilidade do bem que é objeto do interesse, existe a simultaneidade da sua fruição por um número indeterminado de pessoas.
Os direitos e interesses difusos têm como titulares múltiplos e indeterminados sujeitos e possuem objeto indivisível. Enquadram-se no “gênero dos interesses metaindividuais ou superindividuais, pois suas características ultrapassam a esfera das pretensões subjetivas para se inserirem numa órbita mais ampla, coletiva em seu sentido lato”[40], não pertencendo a pessoa determinada ou a grupo explicitamente delimitado. De acordo com o Código de Defesa do Consumidor, art. 81, I, direitos difusos são os direitos transindividuais, indivisíveis, dos quais sejam titulares pessoas indeterminadas ligadas por circunstâncias de fato. Embora comuns a uma pluralidade de pessoas, não se pode quantificar qual a parcela que cabe a cada titular. São interesses juridicamente reconhecidos de uma coletividade subjetiva a qual pode, potencialmente, incluir todos os participantes da comunidade geral de referência.
Conforme a lição de COLAÇO ANTUNES[41], “os interesses difusos são interesses públicos latentes, eventualmente fragmentados, cuja concretização e reconhecimento jurídico passam pela revalorização e atuação das normas constitucionais programáticas.” Mais do que estar em busca de titulares, tal sorte de direitos reclama o seu reconhecimento jurídico positivo. O interesse difuso pertence a todos e a cada um dos componentes da pluralidade indeterminada unida por circunstância de fato. “É um interesse híbrido, que possui uma alma pública e um corpo privado, que transcende o direito subjetivo privado e se estende pelo público.”
A Sentença nº 24 do Conselho de Estado italiano, proferida em 19.10.79, estabeleceu que interesses difusos são “os interesses caracterizados pela simultaneidade da sua referência subjetiva a todos ou a parte dos componentes de dada coletividade, individualmente considerados a respeito do mesmo bem.”[42] Trata-se de interesses unitários e pluralistas, por serem formados “por uma pluralidade de interesses e por um complexo de elementos (…) que constituem uma totalidade referida e uma exigência de tutela do Estado (…), enquanto ente representativo da coletividade.”[43] A vinculação jurídica do bem objeto de interesses difusos perdura com o tempo e com o uso, não esgotando-se pela ocorrência do último nem pelo transcurso do primeiro. De acordo com síntese de COLAÇO ANTUNES[44], os interesses difusos são comunitários, públicos, lábeis (transitórios, instáveis), vocacionalmente participativos, subjetivamente fungíveis, objetivamente infungíveis, freqüentemente atípicos (não tipificados) e carentes de proteção normativa material e processual. Comunitários porque não pertencem especialmente a um indivíduo; públicos por seu grau de repercussão na sociedade, que ultrapassa a esfera privada; lábeis pela transitoriedade das situações jurídicas que se formam, considerando-se que a alteração dos titulares ativos difusos da relação jurídica ocorre com absoluta informalidade de direito, bastando para tanto mutação nas circunstâncias de fato[45]. A vocação participativa reside na pluralidade subjetiva e na índole pública dessa sorte de direitos. Se o interesse difuso é interesse público concreto referente ao Estado enquanto comunidade, a realização desse interesse diz respeito a toda a sociedade civil e implica num direito do cidadão de atuá-lo. Os direitos difusos demandam informação, participação e procedimento realizado em contraditório (=processo), é dizer, têm como corolário o direito plurissubjetivo público dos respectivos titulares de manifestarem-se, na via processual, antes da decisão final.
Quadro comparativo[46]
Conforme leciona BACELLAR FILHO, “além de exigir prévia aceitação (deve haver um consenso sobre o método, a regra de solução do conflito), a sociedade moderna ainda exige o princípio da participação do cidadão” pelo procedimento (=processo). “Participação é movimento próprio e, assim, o exato inverso de ser posto em movimento”, é o “oposto da mobilização”.[47] Nessa linha, CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO ensinam que “a observância do procedimento constitui fator de legitimação do ato imperativo proferido a final pelo juiz.” Considerando-se que o julgador decide em nome do Estado, exige-se a legalidade do processo, “para que o material preparatório do julgamento final seja recolhido e elaborado segundo regras conhecidas de todos. Essa idéia é uma projeção da garantia constitucional do devido processo legal (…). Por outro lado, só tem sentido essa preocupação pela legalidade na medida em que a observância do procedimento constitua meio para a efetividade do contraditório no processo.”[48] THEODORO JR. atesta a preocupação legislativa com o “aprimoramento das normas de processo, sempre sob a inspiração da economia processual, da multiplicidade de vias de acesso à Justiça, do barateamento do custo judicial e, principalmente, da busca de maior efetividade.”[49]
Até um passado muito próximo, as figuras processuais existentes não alcançavam, via de regra, a especificidade dos direitos difusos, que estão a exigir o que hoje se denomina tutela—material e instrumental—e diferenciada: “verifica-se, normalmente, uma deficiente concreção normativa, tanto no plano substancial como (no) processual; isto é, (…) uma viscosidade (…) na tipicidade reguladora do ordenamento. (…) Esta realidade deixa sem proteção e defesa os chamados interesses difusos.” É por essa carência de regras jurídicas que a doutrina referia-se, e isso ainda ocorre, a direitos e interesses difusos, uma vez que estes interesses, ainda que constitucionalmente reconhecidos, não eram devidamente tutelados. Apesar da previsão expressa nas constituições, notava-se carência de reflexos significativos de tal disciplina no ordenamento jurídico como um todo. [50]
Contudo, “pode-se afirmar que, atualmente, o direito positivo brasileiro dispõe de instrumentos processuais para proteger, de maneira integral, (na via judicial) os interesses relacionados com o meio ambiente, com os consumidores, com o patrimônio cultural e com qualquer outro interesse coletivo ou difuso.”[51] Razão pela qual devem existir, também na via administrativa, institutos processuais diferenciados, de modo a assegurar-se a proteção dos direitos difusos no processo administrativo. A tutela cautelar, pela finalidade e características já apontadas, cumpre relevante papel na tutela processual dos direitos transindividuais. Conforme salienta VERONESE[52], “a questão básica ao se tratar da proteção desses interesses está justamente na adequada colocação institucional dos procedimentos de mediação, cuja finalidade é a de responder eficazmente aos conflitos metaindividuais.” Mediante a procedimentalização da ação administrativa, institucionalizam-se oportunidades de participação direta dos cidadãos na função pública.[53] Os titulares de direitos difusos devem ter prerrogativas processuais administrativas e judiciais para exigir o cumprimento das normas de proteção daqueles direitos.[54]
A disciplina da participação deve abrir o espaço àqueles interesses e titulares que não contam com posição jurídica definida, devido à insuficiência de normatização, como o que acontece quando se trata da tutela de interesses difusos.[55] “As situações de vantagem com dimensão superindividual devem encontrar adequada tutela (…) no quadro da ação administrativa,” justificando-se o recurso ao Judiciário quando tais expectativas de proteção tenham sido frustradas perante a Administração.[56]
O processo administrativo no qual são discutidos direitos difusos comporta um conjunto de iniciativas e de diligências praticadas pelo órgão julgador, para apurar fatos ou desempenhos que atingem a coletividade, atribuídos a pessoas físicas ou a entes associativos. Instaura-se, para tanto, o procedimento previsto na Lei nº 9.784/99, de ofício ou mediante requerimento, culminando com arquivamento ou com decisão fundamentada do órgão julgador.
O processo administrativo que apura a denúncia de comportamento lesivo a direito difuso foi concebido como um instrumento de apuração e repressão das práticas que atentam contra o patrimônio público, e não como um meio de solucionar conflitos individuais. O bem jurídico sob tutela tem como titulares sujeitos indeterminados integrantes de coletividade unida por circunstâncias de fato. A conduta de toda a sociedade em relação ao referido bem deve pautar-se nos interesses gerais. A instauração do processo leva em conta interesses difusos, consubstanciados na manutenção de um cenário equilibrado, no qual os direitos privados sejam exercidos nos termos da lei, operando livremente, porém sem abusos.
O requerimento e a ordem de instauração têm como finalidade a proteção, por meio de processo administrativo, de interesses de ordem geral. Não está em discussão, nesse tipo de processo administrativo, qualquer direito subjetivo da pessoa que formula a denúncia, isto é, o requerente. A relação de direito privado que eventualmente possa existir entre requerente e requerido resolve-se na via própria, e não junto ao órgão julgador do processo administrativo relativo a direitos difusos.Quando se trata de direitos difusos, mais importante do que quem provoca o início do processo é o conteúdo da provocação. Pouco relevo subjetivo tem o requerente. Interessa realmente o que ele traz a conhecimento do Poder Público. Pela natureza da questão debatida, há interesse público na lide, que pode ser instaurada e instruída por impulso oficial. Não poderia o requerente atuar no processo exercendo o papel de parte, “no sentido emprestado a esta expressão pela ciência do direito processual. A legitimação do autor é limitada ao direito de representar, de trazer ao órgão competente a notícia da ocorrência de prática reputada infracional que pode vir a caracterizar conduta prevista na legislação protetiva de direitos difusos. O processo de execução das decisões administrativas que tenham por objeto direitos difusos deverá ter preferência sobre as demais espécies de ação, exceto habeas corpus e mandado de segurança. Os Códigos de Processo Civil (Lei nº 5.869/73) e do Consumidor (Lei nº 8.078/90) e a Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85) devem ser aplicados subsidiariamente aos processos administrativos em que se discutam direitos difusos.
Em estreita conexão com a faculdade processual de manifestar-se no processo, encontra-se o direito ao acesso aos atos nele praticados. Ao direito do administrado a prestações processuais administrativas corresponde o dever estatal de promover o acesso aos autos do processo administrativo, que contêm “situações jurídicas subjetivas através das quais o ordenamento tutela um interesse subjetivo, mediante o reconhecimento ao titular de um poder de vontade a respeito de relações” prevalentemente de direito público.[57] O processo é, concomitantemente, regra e sede de composição dos interesses na esfera administrativa. É, via de conseqüência, instrumento de garantia dos cidadãos perante a Administração Pública e meio de realização do interesse público apurado em concreto, no confronto com os múltiplos interesses ponderados no exercício do dever funcional estatal.[58]
Na lição de COLAÇO ANTUNES[59], não se pode ignorar que o processo administrativo e o processo judicial constituem pontos nevrálgicos do ordenamento jurídico. Portanto, deve-se confiar a tutela dos interesses difusos a um e a outro segundo critérios de combinação e de integração. Por vezes, o papel do Estado pode esgotar-se num primeiro momento, na esfera administrativa. Em outras situações, pode haver necessidade da atuação do Poder Judiciário, originariamente ou após a instauração de processo administrativo. Em síntese, a tutela dos interesses difusos pode realizar-se: a) somente na via administrativa; b) somente na via judicial; c) primeiramente na via administrativa e depois na via judicial.
Poder-se-ia adotar o critério que exige a participação na via administrativa como condição da legitimação judicial dos sujeitos coletivos representantes dos interesses difusos[60], considerando-se que o processo administrativo apresenta vantagens de maior celeridade, formalismo moderado e possibilidade de revisão pelo Judiciário. Além disso, existe a chance de que a controvérsia se esgote no âmbito da Administração, o que significa economia processual, tendo em vista a infindável lista de ações em curso perante nossos juízos singulares e colegiados. A melhora da qualidade e da quantidade da ação administrativa pode ser promovida pela participação dos titulares dos interesses superindividuais no interior dos organismos públicos mediante processo administrativo, que constitui instrumento democrático privilegiado fundado nos princípios constitucionais, ao mesmo tempo em que é filtro para identificar e tutelar os interesses difusos de maior relevo. Tanto o julgador administrativo quanto o judicial devem aferir os interesses superindividuais tuteláveis, bem como os sujeitos ativa e principalmente passivamente legítimos para formar a relação jurídica processual.
O inciso XXVI do art. 5º da Constituição da República “tornou clara e evidente a ampliação da legitimidade para agir em juízo, desatrelando-a da tradicional vinculação individual à titularidade do direito subjetivo disputado no processo. Reconheceu o legislador constituinte a importância” de levar-se em consideração que “os interesses em conflito não raro se revelam transindividuais, reclamando composição de largo espectro, de maneira a atingir, com economia de tempo e energia, solução para todo o grupo” de titulares indeterminados.[61] Impende reconhecer que “os direitos de massa (…) são diversos daqueles individuais e exigem tratamento próprio, decorrente de sua própria natureza coletiva. Daí segue que essa legitimação para as ações coletivas (do Código do Consumidor) obedece a princípios e especialmente a valores diferentes, os quais reclamam hermenêutica ampliada e fiel a seus próprios paradigmas.”[62] O Supremo Tribunal Federal reconheceu, citando Cappelletti, que torna-se cada vez mais evidente a substituição da concepção individualista do processo e da justiça – agora insuficiente— por uma aplicação pluralista dos conceitos e princípios gerais do direito, prestigiando a necessidade de garantir a tutela aos novos interesses difusos e coletivos, muito presentes na sociedade contemporânea. Com certeza, a tutela jurisdicional dos interesses difusos demanda a criação ou a adaptação dos institutos existentes, de modo a atender em larga escala a vontade da lei que protege aqueles interesses metaindividuais. (STF – Pleno, CA nº 35-RJ. Rel. Min. Sydney Sanches. AC 02/12/87. RTJ 130/485)[63]
O processo administrativo que apura a denúncia de comportamento lesivo a direito difuso foi concebido como um instrumento de apuração e repressão das práticas que atentam contra o patrimônio público, e não como um meio de solucionar conflitos individuais. O bem jurídico sob tutela tem como titulares sujeitos indeterminados integrantes de coletividade unida por circunstâncias de fato. A conduta de toda a sociedade em relação ao referido bem deve pautar-se nos interesses gerais. A instauração do processo leva em conta interesses difusos, consubstanciados na manutenção de um cenário equilibrado, no qual os direitos privados sejam exercidos nos termos da lei, operando livremente, porém sem abusos.
Quando se trata de direitos difusos, mais importante do que quem provoca o início do processo é o conteúdo da provocação. Pouco relevo subjetivo tem o requerente. Interessa realmente o que ele traz ao conhecimento do Poder Público. Pela natureza da questão debatida, há interesse público na lide, que pode ser instaurada e instruída por impulso oficial. Não poderia o requerente atuar no processo exercendo o papel de parte, “no sentido emprestado a esta expressão pela ciência do direito processual. A legitimação do autor é limitada ao direito de representar, de trazer ao órgão competente a notícia da ocorrência de prática reputada infracional que pode vir a caracterizar conduta prevista na legislação protetiva de direitos difusos. O processo de execução das decisões administrativas que tenham por objeto direitos difusos deverá ter preferência sobre as demais espécies de ação, exceto habeas corpus e mandado de segurança. Os Códigos de Processo Civil (Lei nº 5.869/73) e do Consumidor (Lei nº 8.078/90) e a Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85) devem ser aplicados subsidiariamente aos processos administrativos em que se discutam direitos difusos.
Nesse diapasão, confira-se posicionamento racional e acertado:
“O direito de defesa da concorrência regula o poder econômico tendo em vista um determinado ideal de funcionamento dos mercados, ideal este preordenado, do ponto de vista do desenvolvimento do capitalismo moderno e da convergência político- jurídica no plano internacional que vem mais ou menos a reboque, às instâncias políticas nacionais. Com efeito, de acordo com esta concepção normativa, os mercados não existem por e para si mesmos, mas devem funcionar como instrumentos de produção de eficiências generalizáveis, ou seja, passíveis de distribuição, repartição, nos moldes do conteúdo do princípio da generalidade dos serviços públicos. É importante notar, neste contexto, que, ao lado deste ideal de mercado implícita ou explicitamente aceito de maneira mais ou menos geral, os sistemas jurídicos e políticos contêm o reconhecimento, também implícito ou explícito, do poder econômico como fenômeno juridicamente permitido, na medida em que se limitam a estabelecer, para os representantes do poder econômico, uma série de condutas ilícitas passíveis de repressão com base no abuso do poder, não na sua constituição em si ou no seu exercício puro e simples. Deste modo, além de ineficaz e irrealista por motivos óbvios, nenhuma solução política, dogmática ou acadêmica para o problema da realização do ideal de mercado pressuposto normativamente como válido que passe pela negação do poder econômico poderá compatibilizar- se com o estado atual da arte. Em outras palavras, a regulação do poder econômico não deve ser interpretada como tentativa de supressão. (…) Se o poder foi (i) juridicamente visualizado como um mal inevitável que é necessário a todo custo conter e restringir; (ii) como um fenômeno em si mesmo indiferente do ponto de vista jurídico, que apenas é preocupante e deve ser contido na hipótese de transgressão de limites previstos; ou, por último, (iii) como um dado da realidade que é, quando exercido apropriadamente, causalmente necessário para a realização do ideal de ordem econômica expressamente assumido ou pressuposto. A estas três possibilidades correspondem, respectivamente, uma regulação ( i ) de limitação e, possivelmente, supressão parcial; ( ii ) de monitoramento de condutas; e ( iii ) de aproveitamento positivo, ou seja, direcionamento do poder econômico no sentido da produção de eficiências. (…) O atributo econômico essencial da concorrência está na constante busca pelos agentes de lucros superiores aos respectivos custos – lucros monopolísticos – mediante a geração contínua de inovações nos produtos e nos processos produtivos. E o que é mais importante: que é justamente aí, isto é, nesse processo de destruição/criação de estruturas econômicas e sociais mediante inovações no sentido do aumento da eficiência, que reside a vantagem desse sistema econômico (em relação aos outros historicamente existentes), além de constituir o motivo principal – senão o único – pelo qual a concorrência poderia ser defendida.”[64]
É licito afirmar, dessarte, que o exercício do poder econômico é natural, previsível e desejado, tornando-se objeto de regulação e intervenção estatal somente nas hipóteses em que ultrapasse certos limites previstos na ordem jurídica, considerada a política econômica estabelecida e vigente nos termos do modelo econômico adotado no tempo e no espaço. Limitação, monitoramento, bem como aproveitamento positivo da movimentação natural dos competidores no mercado são atitudes razoáveis do Estado regulador moderno.
CONCLUSÃO
O princípio da razoabilidade norteará a necessária ponderação na definição dos limites e contornos do exercício da pretensão punitiva estatal, respeitando a dignidade humana e os ditames inafastáveis do Estado de Direito, plexo denominado de “patamar civilizatório mínimo” por Mauricio Godinho Delgado, nos moldes determinados e consagrados na Lei Maior e na principiologia regente do exercício da função administrativa, tanto no aspecto material, quanto no aspecto processual.
Informações Sobre o Autor
Shirlei Silmara de Freitas Mello
Doutora em Direito pela UFMG. Professora Adjunta na Faculdade de Direito “Prof. Jacy de Assis” da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).