O presente trabalho tem como propósito, no contexto dos novos temas de direito ambiental e da necessidade de fortalecimento da sustentabilidade ecológica, traçar um panorama das principais perspectivas normativas e teóricas de proteção da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais associados.
O direito ambiental, como diversos outros direitos fundamentais de terceira dimensão, já se encontra, de certa forma, positivado na ordem jurídica. Entretanto, este reconhecimento não garante a efetiva realização no plano social. A sociedade se encontra apenas no início do processo de reconhecimento e conscientização deste direito, o qual tem como intuito possibilitar a garantia da preservação da natureza em todos os seus elementos essenciais à manutenção do equilíbrio ecológico, para que, em última análise, o bem jurídico maior vida seja salvaguardado.
Durante muito tempo imperou uma concepção antropocêntrica radical no que diz respeito à relação do homem com a natureza. Em nome do progresso e de uma maior produtividade econômica, o homem submeteu a natureza a uma exploração e destruição sem precedentes.
Atualmente, em virtude da situação limite dos recursos naturais globais e o conseqüente temor iminente pelo eventual comprometimento do direito fundamental de viver, verifica-se que começa a ser delineada uma nova relação do homem com a natureza: uma relação em que se busca uma interação sustentável entre a ação humana e o meio ambiente. Uma mudança da concepção antropocêntrica para uma concepção ecocêntrica na relação homem/natureza, que tendo em vista a atual situação de significativo perigo da perpetuação da existência do ser humano na terra, passa a exigir uma postura de solidariedade de interesses entre o homem e a comunidade biótica de que ele faz parte[1], o que demanda a construção de novos mecanismos legais, adequados para a proteção dessas novas relações jurídicas de dimensão coletiva.
Nessa perspectiva, o presente trabalho concentrará esforços na análise de uma questão ambiental de grande atualidade e complexidade e que é representativa desse contexto de construção de novos regimes jurídicos de proteção ao meio ambiente: a questão da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais associados a ela.
No dizer de Paulo Freire Vieira, a biodiversidade refere-se à “[…] variedade e variabilidade existentes entre organismos vivos e ecossistemas nos quais eles se mantêm. Ela engloba todos os níveis de diversidade que se estendem dos genes à biosfera, passando pelo nível das espécies, dos ecossistemas e das paisagens [2].”
Vê-se, portanto, que a Biodiversidade como sendo uma das propriedades fundamentais da natureza, responsável pelo equilíbrio e estabilidade dos ecossistemas, é fonte de imenso potencial de uso social e econômico. A biodiversidade é a base das atividades agrícolas, pecuárias, pesqueiras e florestais; também é a base para a estratégia da indústria de biotecnologia – fundamentalmente para as indústrias de alimentos e medicamentos.
Dentre os países que abrigam florestas tropicais, o Brasil ocupa, com larga dianteira, o primeiro lugar quanto à proporção biodiversidade – possuímos o que alguns doutrinadores chamam de megadiversidade. Para se ter uma idéia, enquanto na floresta amazônica se conhecem mais de 2500 espécies de árvores, nas florestas temperadas de toda a França apenas cerca de cinqüenta espécies podem ser encontradas. Tal riqueza nacional de biodiversidade é internacionalmente reconhecida, o que não impede que esteja imensamente ameaçada.
A chamada biotecnologia (que significa qualquer aplicação tecnológica que utilize sistemas biológicos, organismos vivos, ou seus derivados, para fabricar ou modificar produtos ou processos para utilização específica[3]) começa, através da manipulação da diversidade biológica, a apresentar novas contingências para a sociedade: o desvio ilegal das riquezas da biodiversidade, a exploração dos conhecimentos das comunidades tradicionais por empresas multinacionais para obtenção das propriedades medicinais dos elementos da biodiversidade são apenas alguns exemplos do que ainda está por vir e o direito deve apresentar respostas a este novo contexto mundial.
Em decorrência desta ingerência cada vez maior da exploração econômica e tecnológica na biodiversidade em âmbito global, iniciaram-se os primeiros movimentos das comunidades internacionais no sentido de serem firmadas políticas de proteção à diversidade biológica.
O crescimento da biotecnologia fez nascer conflitos de diferentes espécies, de natureza econômica, social e cultural, envolvendo disputas entre países, empresas multinacionais, organizações internacionais de defesa dos interesses indígenas e inúmeras entidades e grupos sociais.
No início da década de 90, a crescente exploração indevida das riquezas naturais da biodiversidade pelas atividades biotecnológicas de empresas multinacionais, a chamada biopirataria, foi definida, de forma significativa, pela autora indiana Vandana Shiva[4] como a segunda chegada de Colombo, sendo os Estados Unidos e a Inglaterra identificados como países que mais realizam a prática exploratória da biodiversidade.
Em junho de 1992, em resposta às diversas incertezas acerca da erosão biodiversidade, transferência de tecnologias, biotecnologia, bioprospecção, patrimônio genético e outras tantas questões relacionadas ao ecossistema mundial, na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento – ECO-92, foi ratificada por mais de 140 países (entre eles o Brasil) a Convenção da Diversidade Biológica. Nesta convenção procurou-se traçar as diretrizes para a conservação e utilização sustentável da biodiversidade em âmbito mundial.
A Convenção reconhece a estreita dependência da preservação de recursos biológicos das comunidades locais e populações indígenas, com a manutenção de estilos de vida tradicionais. Ou seja, a Convenção sobre a Biodiversidade estabelece, através de seu artigo 8º, que os países signatários devem respeitar, preservar e manter o conhecimento, as inovações e as práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilos de vida tradicionais relevantes à conservação e utilização sustentável da diversidade biológica. Segundo a definição de Boaventura de Sousa Santos, delineada na obra Semear outras Soluções: Os Caminhos da Biodiversidade e dos Conhecimentos Rivais, “o termo biodiversidade, de facto, designa a diversidade de organismos, genótipos, espécies e ecossistemas, mas também os conhecimentos sobre essa diversidade[5]”.
Há que se ressaltar que a proteção da biodiversidade representa um diferencial estratégico do Brasil nas relações internacionais[6] e uma importante via alternativa de desenvolvimento sustentável[7]. Como já foi enfatizado no item anterior, o Brasil possuí o que alguns doutrinadores chamam de megadiversidade.
Para se ter uma idéia, estima-se que o país abrigue de 15% a 20% de todas as espécies animais e vegetais existentes, muitas delas com exclusividade. Segundo informações do Ministério do Meio Ambiente, no Brasil deve haver mais de 3 (três) milhões de espécies que compõem a biodiversidade ainda desconhecidas e entre as espécies nativas já documentadas, menos de 1% foram pesquisadas geneticamente[8]. Vê-se que a biodiversidade brasileira consiste num gigantesco potencial para pesquisas de matérias-primas fundamentais para o desenvolvimento de novos produtos, preponderantemente pelas indústrias farmacêuticas, alimentícias e de produtos químicos. Em referência ao potencial de riquezas das florestas brasileiras pesquisadores afirmam que o ouro hoje não é mais amarelo, mas sim verde. Esse ouro verde tem rendido milhões para empresas estrangeiras, mas o Brasil e as comunidades tradicionais que sempre fizeram uso das propriedades desses recursos naturais, têm ficado à margem desse processo de exploração da natureza.
A Convenção da Diversidade Biológica, da qual o Brasil é signatário, ressalva, no seu artigo 3º, a soberania de cada Estado sobre os seus recursos biológicos, bem como reconhece, de forma geral, o papel indispensável das comunidades tradicionais na conservação dos recursos naturais. Apesar disso, ainda não existe no ordenamento jurídico brasileiro um regime jurídico bem definido para a proteção legal das riquezas naturais que integram a diversidade biológica, bem como para os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, que se encontram difusos por toda a cultura brasileira.
Cabe ressaltar que os usos dos recursos naturais da biodiversidade por comunidades tradicionais para alimentação, benzimentos, curas, rituais, combate a pragas nativas, dentre outros, representam um interessante e rentável atalho para o desenvolvimento de novos produtos pelas empresas que fazem uso da biotecnologia. Pesquisas revelam que o conhecimento tradicional aumenta em 400% a eficiência em reconhecer propriedades medicinais da biodiversidade e que, dos 120 princípios ativos isolados pela indústria farmacêutica nos últimos tempos, 75%, foram identificados pelo conhecimento tradicional associado. E nesse ponto, o Brasil também é detentor de uma riqueza incalculável. São cerca de 220 povos indígenas e uma imensa diversidade de populações tradicionais possuidoras de conhecimentos difusos e aplicados à biodiversidade – seringueiros, ribeirinhos, quilombolas, extrativistas, dentre outros[9].
E toda essa riqueza socioambiental, representativa dessa indissociável união entre cultura tradicional e natureza/biodiversidade, encontra-se ameaçada pelo sistema jurídico vigente, mais precisamente ameaçada pelo sistema patentário vigente, sistema de normas de proteção dos direitos intelectuais, que chancela os conhecimentos novos, individualmente produzidos, transformando a biodiversidade em propriedade privada, legalmente emoldurada na forma de patentes, em detrimento dos conhecimentos tradicionais que são gerados de forma coletiva e informal e que são transmitidos através dos tempos de geração para geração.
Em outros termos, o Brasil é signatário do Acordo TRIPS (Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual), firmado junto à Organização Mundial de Comércio (OMC), e incorporado ao direito interno pelo Decreto nº1.355, de 30 de dezembro de 1994, e que foi regulamentado com mais especificidade pela Lei Federal nº9.279, de 14 de maio de 1996, a chamada Lei de Patentes ou de Propriedade Industrial. Referida Lei retrata os interesses da Organização Mundial do Comércio e prevê a possibilidade de patenteamento dos processos biotecnológicos oriundos de plantas e animais, sem qualquer tipo de contraprestação aos detentores dos conhecimentos tradicionais associados aos recursos naturais explorados e transformados em propriedade privada cercada.
O argumento da novidade para criação de direitos privatísticos sobre a biodiversidade e os conhecimentos tradicionais associados, encontra forte referência na lei brasileira de patentes, no seu art. 8º (Lei Federal nº9.279/96), que estabelece ser “patenteável a invenção que atenda aos requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial”. Uma vez concedida a patente, sob a égide dos parâmetros mercantilistas, ocorre o fechamento do conhecimento tradicional associado à biodiversidade, gerado e transmitido de maneira coletiva, na forma de propriedade privada, haja vista que o titular da patente pode “impedir terceiros de produzir, usar, colocar à venda, vender ou importar, sem o seu consentimento, o produto ou processo patenteado” (art. 42 da Lei nº9.279/96). Cabendo dizer que referida situação e os conseqüentes benefícios do patenteamento da biodiversidade e dos conhecimentos associados irão gerar efeitos por um período de 20 (vinte) anos, haja vista que o art. 40, da Lei nº9.279/96, prevê que “a patente de invenção vigorará pelo prazo de 20 (vinte) anos e a de modelo de utilidade pelo prazo 15 (quinze) anos contados da data de depósito”.
Tal regime tem propiciado as mais diversas formas de espoliação e apropriação indevida da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais associados. Entre os casos mais conhecidos tem-se o patenteamento do cupuaçu por empresas japonesas (Asahi Foods e Cupuaçu Internacional), que impedia que qualquer outro empreendedor utilizasse o nome cupuaçu (fruto típico da Amazônia), em seus produtos nem mesmo como ingrediente. A situação só foi normalizada através da ação organizada da sociedade civil, que por meio da Organização não Governamental Grupo de Trabalho da Amazônia (GTA) solicitou a repatriação do cupuaçu e, por conta disso, as empresas japonesas assinaram um termo de compromisso renunciando em favor do Estado do Pará todos e quaisquer direitos de oposição por uso do cupuaçu.
Outro exemplo de apropriação da biodiversidade por empresas estrangeiras é caso do Capoten – medicamento para regular a pressão arterial comercializado pelo empresa americana Bristol-Myers Squibb. Com faturamento anual estimado em US$ 5 (cinco) bilhões de dólares, o Capoten é feito à base de captotril, substância encontrada no veneno da jararaca. A jararaca é um animal puramente brasileiro. Mas todo o lucro com a venda do medicamento fica com a empresa, americana, que detém a patente sobre o produto.
Houve ainda, no plano internacional, após a identificação de propriedades anticancerígenas (produto vital para o tratamento da leucemia infantil), o patenteamento da catharanthus roseus, popularmente conhecida como beijo de mulata. O princípio ativo foi patenteado e passou a ser vendido por uma companhia transnacional farmacêutica, que, com a comercialização do medicamento, obteve lucro de cerca de 100 milhões de dólares. O composto farmacêutico é produzido a partir de plantas encontradas na Filipinas e na Jamaica, sendo certo que os habitantes desses dois países não têm acesso a esses medicamentos e muito menos percebem benefícios de qualquer espécie por esse processo de exploração da natureza local[10].
A perpetuação dessa realidade tende a estimular a biopirataria[11] das riquezas naturais brasileiras e a consolidar um sistema de patentes que não traz nenhum tipo de benefício para o país, culminando numa situação crítica de degradação da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais, aumento da dependência econômica e tecnológica aos países desenvolvidos e, por conseqüência, afetação de direitos individuais e coletivos, na forma de agravamento da pobreza, diminuição de uma sadia qualidade de vida e crescimento do desequilíbrio ecológico.
O Brasil deu vazão à implementação da Convenção da Diversidade Biológica em sua Ordem Jurídica através da atual Medida Provisória 2.186 –16, de 23 de agosto de 2001[12].No entanto, apesar deste instrumento normativo ter trazido certos mecanismos específicos no sentido de garantir uma utilização sustentável da Biodiversidade no Brasil, permanecem no ar uma série de incertezas decorrentes do conflito entre as possibilidades de exploração econômica da biodiversidade e seu regime de proteção jurídica. Permanecem no ar as divergências entre os interesses dos países industrializados que são detentores dos recursos financeiros e tecnológicos e os países em desenvolvimento, ricos em biodiversidade e conhecimento tradicional associado, como é o caso do Brasil, mas ainda dependentes da tecnologia e do capital dos países industrializados. Ou seja, após a ratificação da Convenção da Diversidade Biológica no ano de 1992 pouco se avançou no sentido de se estabelecer um novo regime jurídico para traçar limites para as relações de acesso à biodiversidade a aos conhecimentos tradicionais.
A Medida Provisória 2.186 –16, de 23 de agosto de 2001, atualmente em vigor, além de não ser o mecanismo legal adequado para disciplinar a complexidade que envolve a questão da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais associados, por suas inerentes condições de urgência e precariedade que deveriam ser atendidas para sua edição, mas que vêm sendo constantemente distorcidas pelos nossos governantes nos seus recorrentes usos, trata o tema de forma genérica, negligenciando os aspectos coletivos da questão, sendo certo que num primeiro momento referida Medida serviu claramente para regularizar a biopirataria.
Na sua primeira edição (foi editada na primeira vez como Medida Provisória 2.052 de 30.06.2000), para se ter uma idéia da acentuada perspectiva mercantilista e individualista de prospecção da biodiversidade presente nesse instrumento legal, a Medida Provisória previa uma anistia geral a todos os que haviam explorado economicamente, até a data de 30 de junho de 2000, qualquer forma de conhecimento tradicional associado à biodiversidade brasileira.
Nas suas sucessivas reedições foram melhorando as garantias das comunidades tradicionais sobre seus conhecimentos associados à biodiversidade e patrimônio genético, bem como as regras de proteção às riquezas naturais da diversidade biológica. Tanto que na sua edição atualmente em vigor, a Medida Provisória 2.186 –16, de 23 de agosto de 2001, no seu artigo 8°, reconhece de forma expressa o direito das comunidades indígenas e locais de decidir sobre o uso de seus conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, melhorando as formas de proteção desses valores difusos em face das ameaças de exploração ilícita.
Não obstante esses avanços normativos no sentido da proteção da biodiversidade e do conhecimento tradicional associado, o parágrafo 4° do artigo 8° da Medida Provisória 2.186 –16, de 23 de agosto de 2001, prevê que “a proteção ora instituída não afetará, prejudicará ou limitará direitos relativos à propriedade intelectual”. Em outros termos, além dos problemas por se ter tal questão tão relevante disciplinada por uma Medida Provisória, o instrumento legal que regulamenta a proteção da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais associados, possibilita que os produtos novos inventados em decorrência da aplicação comercial ou industrial de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, possam ser patenteados, ou seja, possam ser cercados na forma de propriedade privada.
Apesar da existência de previsões que refletem a influência dos interesses mercantilista e individualista sobre a questão da biodiversidade e do conhecimento tradicional, como é o caso do parágrafo 4° do art. 8° da Medida Provisória 2.186 –16, de 23 de agosto de 2001, referido instrumento legal, através de seu artigo 10°, criou órgão deliberativo e representativo da Administração Pública e da Sociedade Civil, o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, órgão ligado ao Ministério do Meio Ambiente, com a finalidade de gerir e regulamentar os temas ligados à proteção da biodiversidade.
No âmbito do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, foi criada a Câmara Temática de Legislação, com o intuito de construir um novo regime de proteção que atenda às peculiaridades e especificidades da biodiversidade e do conhecimento tradicional. Os trabalhos da Câmara foram iniciados em abril de 2003, sendo que em setembro de 2003 foi enviado para a Ministra do Meio Ambiente o Anteprojeto de Lei de Acesso ao Material Genético e seus Produtos, de Proteção aos Conhecimentos Tradicionais Associados e de Repartição de Benefícios derivados de seu uso.
Pelo que se vê, a proposta de construção de um novo regime de proteção da biodiversidade e do conhecimento tradicional associado, através de uma legislação mais próxima das complexidades que o tema suscita, se encontra ainda num estágio embrionário[13]. No entanto, o Anteprojeto de Lei de Proteção da Biodiversidade e do Conhecimento Tradicional Associado, que foi elaborado de forma democrática e com a participação dos mais variados segmentos da sociedade civil[14] e dos órgãos governamentais, traz importantes avanços no sentido da proteção de direitos coletivos, como são os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e as próprias riquezas naturais que integram a diversidade biológica.
Dentre os principais avanços do Anteprojeto, tem-se o reconhecimento como direitos coletivos das comunidades nativas (das mais variadas espécies – indígenas, locais, quilombolas, etc.) os conhecimentos tradicionais que seus integrantes detém sobre as mais diversas propriedades da biodiversidade. Neste sentido, o art. 35 do Anteprojeto, dispõe sobre direitos coletivos no sentido de que “são reconhecidos aos povos indígenas, comunidades locais e quilombolas os direitos originários sobre os seus conhecimentos tradicionais associados.”
A perspectiva coletiva desses novos direitos fica ainda mais evidenciada pela previsão do art. 36 do Anteprojeto, que determina como direito coletivo os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, ainda que tal conhecimento seja de um único indivíduo da comunidade: “Para efeito desta lei, quaisquer conhecimentos tradicionais associados serão considerados de origem coletiva, ainda que apenas um indivíduo, membro do povo indígena, da comunidade local ou quilombola, os detenha.”
Em outros termos, os dispositivos legais do Anteprojeto evidenciam que a mera proteção individual não é suficiente para assegurar a preservação dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, que são produzidos e gerados de forma coletiva e transmitidos informalmente de uma geração para a outra. Proteger individualmente os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade significa possibilitar que com a morte do indivíduo detentor da maior parte dos conhecimentos tradicionais de uma comunidade nativa (figura desempenhada pelo pajé numa comunidade indígena), se percam as garantias sobre um patrimônio que é coletivo e que pertence a toda a comunidade nativa. Resta saber se tais previsões serão aprovadas pelo Congresso.
Além das iniciativas legais mencionadas, devem também ser consideradas algumas propostas teóricas que procuram dar um novo direcionamento para esses novos direitos de dimensão coletiva. Sob essa perspectiva, debate-se em âmbito nacional e internacional, a necessidade de criação de um regime legal sui generis de proteção dos direitos coletivos das comunidades sobre seus conhecimentos tradicionais. A proposta, defendida, dentre outros, por Vandana Shiva e por Gurdial Nijar, propõe a eliminação de qualquer tipo de monopólio ou apropriação exclusiva sobre conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Essa proposta teórica, prega, em síntese, que os conhecimentos tradicionais devem circular de forma livre e que a sua utilização comercial ou industrial deve ser remunerada e previamente consentida por seus detentores.
No sentido de exemplificar tal propostas, serão mencionadas algumas sugestões para um regime legal sui generis de proteção dos direitos intelectuais coletivos das comunidades nativas sobre seus conhecimentos tradicionais[15]: “1. previsão expressa de que são nulas de pleno direito, e não produzem efeitos jurídicos, as patentes ou quaisquer outros direitos de propriedade intelectual concedidos sobre processos ou produtos direta ou indiretamente resultantes da utilização de conhecimentos de comunidades indígenas ou tradicionais, como forma de impedir a apropriação exclusiva sobre aqueles; 2. previsão de inversão do ônus da prova em favor das comunidades tradicionais em ações judiciais que visem anular patentes concedidas sobre processos ou produtos resultantes de seus conhecimentos, de forma que competiria à pessoa ou empresa demandada provar o contrário; 3. a previsão de não-patentealidade dos conhecimentos tradicionais permitiria o livre intercâmbio de informações entre as várias comunidades, o que seria essencial para a manutenção da própria geração de tais conhecimentos; 4. obrigatoriedade legal do consentimento prévio das comunidades tradicionais para o acesso a quaisquer recursos genéticos situados em suas terras, com expresso poder de negar, bem como para a utilização ou divulgação de seus conhecimentos tradicionais para quaisquer finalidades e, em caso de finalidades comerciais, previsão de formas de participação nos lucros gerados por processos ou produtos resultantes deles, por meio de contratos assinados diretamente com as comunidades tradicionais, que poderão contar com a assessoria de órgão representativo da comunidade, de organizações não-governamentais e do Ministério Público Federal, devendo ser proibida a concessão de direitos exclusivos para determinada pessoa ou empresa; 5. criação de um sistema nacional de registro de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, como forma de garantia de direitos coletivos relativos a eles; 6. tal sistema nacional de registro deve ter a sua administração supervisionada por um conselho com representação paritária de órgãos governamentais, não-governamentais e associações nativas representativas, além de um quadro de consultores ad hoc que possam emitir pareceres técnicos, quando for o caso; 7. estabelecimento de uma definição alternativa de sistemas de conhecimento, capaz de reconhecer o sistema de inovação informal, coletivo e cumulativo dos povos indígenas e comunidades locais.”
Verifica-se, através da análise de algumas premissas sugeridas para a construção de um regime legal sui generis de proteção dos direitos coletivos das comunidades tradicionais sobre seus conhecimentos aplicados à biodiversidade, interessantes propostas e mecanismos técnico-jurídicos de resistência contra o regime hegemônico de proteção da propriedade intelectual.
De outra parte, tem-se como condição fundamental para a implementação de um novo regime jurídico de proteção dos direitos intelectuais coletivos, o reconhecimento da titularidade coletiva das comunidades nativas sobre os saberes tradicionais aplicados à biodiversidade.
Além disso, um sistema de proteção aos direitos das comunidades tradicionais deve assegurar também o direito coletivo destas comunidades de exercer um controle sobre todas as investigações que se efetuem em seus territórios ou que utilizem seus costumes ou conhecimentos tradicionais. Nessa seara de idéias, é imprescindível, como condição de efetividade desses novos direitos, reconhecer e valorizar o direito coletivo interno dessas comunidades tradicionais e fomentar sua participação na discussão e formulação dessas leis de proteção aos seus saberes associados à biodiversidade. Ou seja, a instituição de um regime legal sui generis de proteção dos direitos intelectuais coletivos das comunidades tradicionais, depende do reconhecimento das populações tradicionais como novos sujeitos coletivos de direitos.
Em suma, não há ainda portos seguros de chegada para a questão da proteção dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Os documentos legais e os aportes teóricos apresentados representam sinais ainda incertos de proteção. A única certeza é que um novo regime jurídico de proteção da diversidade biológica e dos conhecimentos associados precisa, com urgência, ser efetivado de acordo com as contingências do nosso tempo e sob o imperativo da sustentabilidade ecológica.
Informações Sobre o Autor
Rafael Costa Freiria
possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR 2000; mestrado em Direitos Difusos e Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP 2005; doutorado em Saneamento e Ambiente pela UNICAMP 2010; pós-doutorado no Programa de Direito Ambiental e Sustentabilidade da Universidade de Alicante – Espanha 2013. Atualmente é Professor da Faculdade de Tecnologia da Unicamp. Atua principalmente nos seguintes temas: direito e legislação ambiental avaliação de impactos ambientais políticas públicas ambientais planejamento e gestão ambiental e direito agrário