Crimes ambientais: normas penais em branco, elementos normativos do tipo e competência estadual em matéria ambiental

Resumo: O legislador ordinário brasileiro adotou, na tipificação dos crimes ambientais, normas penais em branco e elementos normativos do tipo, conferindo a determinados preceitos incriminadores menor densidade normativa ou descritiva, a ser completada por disposições jurídicas apartadas ou julgamentos axiológico-culturais casuísticos. O objetivo deste artigo é, à luz da doutrina e da jurisprudência e tendo em vista casos práticos vivenciados, analisar essa técnica legislativa, apontar sua conformidade com o princípio constitucional da legalidade penal e indicar a idoneidade de preceitos normativos estaduais ao adensamento das disposições penalizadoras segundo ela forjadas.


Palavras-chave: Crimes e competências ambientais. Normas penais em branco. Elementos normativos do tipo.


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Sumário: 1. Introdução. 2. Normas penais em branco. 3. Elementos normativos do tipo. 4. Técnica legislativa nos crimes ambientais. 5. Competência dos Estados em matéria ambiental. 6. Atos normativos estaduais complementando normas penais em branco ambientais e fundamentando juízos de valor referentes a elementos normativos de tipos ambientais.


1. Introdução


O Constituinte brasileiro, acolhendo dogma arraigado não só na cultura jurídico-penal pátria, mas antes na consciência jurídica dos povos civilizados em geral, insculpiu, no inciso XXXIX do artigo 5o da Carta Magna, o princípio da legalidade das normas penais incriminadoras. Mercê do dispositivo, “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.


No entanto, apesar do prestígio superlativo e do status de garantia fundamental de que goza tal preceito, razões de política criminal, representadas pela necessidade de também serem reprimidas e prevenidas pela coerção penal condutas cuja descrição normativa completa seria de cogitação impossível ao legislador – pelo menos nos rígidos limites do processo de elaboração de leis ordinárias e complementares –, determinaram o surgimento de técnicas legislativas diferenciadas, destinadas a superar as dificuldades e deficiências do legislador durante o processo legiferante e a atender aos justos anseios de segurança da sociedade. Entre essas técnicas, destacam-se as normas penais em branco e os elementos normativos do tipo.


2. Normas penais em branco


Diz-se norma penal em branco aquela cujo preceito incriminador, apesar de descrever a conduta penalmente proibida, por fazê-lo de forma incompleta e vaga, deve, necessariamente, ser complementado, como condição à sua aplicabilidade, por preceito contido em outro dispositivo legal, lançado no mesmo ou em diverso diploma legiferante, de qualquer natureza (leis, decretos, regulamentos, portarias etc.).[1]


A doutrina as classifica em normas penais em branco em sentido amplo (ou homogêneas) e em sentido estrito (ou heterogêneas). As primeiras são as normas penais em branco cujo “complemento é oriundo da mesma fonte legislativa que editou a norma que necessita desse complemento” (GRECO, 2003, p. 25). Assim, segundo o citado autor, o tipo do art. 237 do Código Penal é norma penal em branco homogênea, eis que os impedimentos que levam à decretação da nulidade absoluta do casamento são conceituados pelo Código Civil, diploma legislativo oriundo da mesma fonte de produção daquele códex, qual seja, o Congresso Nacional. Já as segundas (normas penais em branco heterogêneas) “se utilizam de fontes formais heterogêneas, porque o órgão legiferante é diverso. Ex.: o crime contra a economia popular, referente à transgressão da tabela de preços, que é fixada por órgão do Poder Executivo, através de regulamento federal, leis ou regulamentos estaduais ou municipais, tem como complemento da lei penal em branco um complemento de diferente fonte normativa” (NUCCI, 2003, p. 58, grifos não originais).


3. Elementos normativos do tipo


Também como técnica legislativa que propicia maior e necessário elastério às previsões legais de variegados fatos delituosos, frequentemente permeiam os tipos incriminadores os chamados elementos normativos. Segundo Cezar Roberto Bitencourt (2003, p. 205), elementos normativos


“são aqueles para cuja compreensão é insuficiente desenvolver uma atividade meramente cognitiva, devendo-se realizar uma atividade valorativa. São circunstâncias que não se limitam a descrever o natural, mas implicam um juízo de valor. São exemplos característicos de elementos normativos expressões tais como ‘indevidamente’ (arts. 151, §1º, II; 162; 192, I; 316; 317, 319 etc.), ‘sem justa causa’ (arts. 153; 154; 244; 46; 248) ‘sem permissão legal’ (art. 292); ‘sem licença da autoridade competente’ (arts. 166 e 253); ‘fraudulentamente’ (art. 177, caput); ‘sem autorização’ (arts. 189; 193; 281 e 282); ‘documento’ (arts. 297; 298 e 299); ‘funcionário público’ (arts. 312; 331 e 333); ‘decoro’ (art. 140); ‘coisa alheia’ (arts. 155; 157) etc.”


Ou, conforme leciona Zaffaroni (2003, p. 447), tais são aqueles “elementos para cuja compreensão se faz necessário socorrer a uma valoração ética ou jurídica.”


Percebe-se, assim, que o uso de elementos normativos do tipo configura técnica legislativa que transfere para o aplicador da norma o exercício do juízo de valor sobre determinada circunstância que orbita o fato em tese delituoso. Por isso mesmo, não se confunde com as normas penais em branco, cuja complementação não deriva da valoração do fato concreto pelo julgador, mas de fonte separada de cognição normativa, prévia àquele, geral e abstrata, emanada de autoridade diversa.


4. Técnica legislativa nos crimes ambientais


Dado o jaez eminentemente dinâmico do meio ambiente e a ampla diversidade de condutas que podem degradá-lo, os dispositivos penais tipificadores de crimes ambientais valem-se, com recorrência, das normas penais em branco e dos elementos normativos. É o que aponta a doutrina:


“Na defesa do meio ambiente, há necessidade de complementação da lei penal em branco mediante ato administrativo. […] A lei é estática; e o meio ambiente é dinâmico. Se se pretende proteger o meio ambiente, é necessário adotar medidas eficazes e rápidas para se evitar o dano irreversível. Não seria possível esperar a tramitação de uma lei até sua promulgação para se proteger uma espécie silvestre ameaçada de extinção, por exemplo. Há espécies em estado avançado de extinção a curto prazo e consideradas ameaçadas de extinção a médio prazo (espécies nacionais, regionais e locais). E por ato administrativo emanado de órgãos ambientais integrantes do SISNAMA é que melhor se protegerá a espécie silvestre ameaçada” (SIRVINSKAS, 2002, pp. 41-42. Grifos não originais).


“A lei 9.605/98, em vários de seus dispositivos penais (arts. 29, 30, 44, 45, 46, parágrafo único, 51, 52, 55, 56, 60, 63 e 64), traz o elemento normativo do tipo…


“Como se verifica, esse elemento está nas expressões ‘sem licença’, ‘sem autorização’, ‘sem permissão’, ‘em desacordo com a determinação legal obtida’ e outras assemelhadas” (FREITAS; FREITAS, 2001, p. 38).


Analisando especificamente os delitos do art. 46 (caput e par. único) da Lei 9.605/98, uns dos crimes ambientais mais recorrentes nos Juizados Especiais Criminais de todo o país, Luiz Regis Prado pontifica:


“As expressões ‘sem exigir a exibição de licença do vendedor’ e ‘sem munir-se da via que deverá acompanhar o produto’ constituem elementos normativos do tipo referentes à ausência de uma causa de justificação que, uma vez presente, torna lícita a conduta. […] a expressão ‘sem licença válida para todo o tempo da viagem, ou do armazenamento’ constitui elemento normativo relativo à falta de uma causa de justificação. Autoridade competente para a concessão da licença de que trata essa infração é o IBAMA – Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, ou órgão estadual que desempenhe funções delegadas.” (2001, p. 132).


5. Competência dos Estados em matéria ambiental


Consagrando o “meio ambiente ecologicamente equilibrado como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”, a Constituição da República, visando conferir a tutela o mais abrangente possível a esse tão valioso bem jurídico, repartiu as competências a ele pertinentes entre os três níveis de entidades federativas.


Com efeito, no art. 23, incisos VI e VII, estabeleceu a competência administrativa comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios para “proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas” e “preservar as florestas, a fauna e a flora”. Já no art. 24, inciso VI, instituiu a competência concorrente da União, Estados e Distrito Federal para legislar sobre “florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição”.


Sendo assim, não resta dúvida de que, vigente a atual ordem constitucional, os Estados[2] têm competência para editar leis e regulamentos disciplinando a proteção do meio ambiente ou a exploração e utilização das florestas e dos recursos naturais e para, exercendo o poder de polícia ambiental, adotar medidas tendentes a combater a poluição e preservar as florestas, a fauna e a flora.


6. Atos normativos estaduais complementando normas penais em branco ambientais e fundamentando juízos de valor referentes a elementos normativos de tipos ambientais


Ocorrendo amiúde a adoção pelo legislador penal ambiental de normas penais em branco e de elementos normativos do tipo, e havendo a Carta Fundamental outorgado aos Estados federados amplo leque de competências em matéria ambiental, exsurge, como corolário irrefutável, que muitas vezes a norma penal ambiental será complementada, ou terá seus elementos normativos juridicamente aferidos, a partir de atos normativos emanados de órgãos estaduais.


Um óbice que eventualmente poderia suscitar-se contra essa assertiva seria a disposição contida no art. 22, inciso I, da mesma Carta Fundamental. Conforme o dispositivo, compete privativamente à União legislar sobre direito penal. Dessa forma, atos emanados de autoridade estadual não deveriam integrar os preceitos incriminadores de normas penais em branco, ou amparar juízos valorativos referentes a elementos normativos, sob pena de inconstitucionalidade formal. No entanto, o raciocínio é falacioso e não procede. Os referidos atos estaduais não inovam o direito penal, vale dizer, não criam novas condutas puníveis; na verdade, o próprio tipo contido no diploma federal já define e individualiza a conduta punível, sendo o ato estadual ou municipal disposição meramente complementar.


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Tanto é verdade que a doutrina sempre reconheceu a possibilidade de a norma penal em branco ser complementada até mesmo por atos do Poder Público municipal. É o que afirma Guilherme de Souza Nucci (trecho acima transcrito e destacado). No mesmo sentido, também a lição de Damásio E. de Jesus (1998, grifos não originais):


“Normas penais em branco em sentido estrito são aquelas cujo complemento está contido em norma procedente de outra instância legislativa. As fontes formais são heterogêneas, havendo diversificação quanto ao órgão de elaboração legislativa…


“O art. 268 de nosso estatuto repressivo define a figura do crime de infração de medida sanitária preventiva da seguinte forma: ‘Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa’. Seu complemento se contém nas ‘determinações do poder público’, mediante editais ou portarias, oficialmente publicados. Tais medidas podem advir do poder público estadual ou municipal…


“Daí resulta que, podendo o complemento ser elaborado por autoridades municipais e estaduais, e anotando que só á União pode legislar sobre Direito Penal, excepcionalmente o conteúdo da lei penal incriminadora pode ser completado por órgão outro que não aquela.”


E Luiz Regis Prado, conforme acima transcrito e destacado, reconhece a competência de órgãos estaduais para conceder licenças ambientais. Não sem razão, portanto, que a jurisprudência pátria registra o lúcido e relevante precedente a seguir, acolhedor da tese ora advogada:


“APELAÇÃO CRIMINAL – CRIME CONTRA O MEIO AMBIENTE – PESCA PREDATÓRIA […] NORMA PENAL EM BRANCO – EXISTÊNCIA DE LEGISLAÇÃO ESTADUAL SOBRE A MATÉRIA – IMPROVIMENTO […] Em casos de norma penal em branco, não há que se falar em transgressão ao artigo 5º, II, da CF, quando existe legislação estadual dispondo sobre a matéria.” (TJMS – ACr 2002.006720-2/0000-00 – 1ª T.Crim. – Rel. Des. Rui Garcia Dias – J. 08.10.2002)


Considerando tais fundamentos, conclui-se ser constitucional, doutrinária e jurisprudencialmente fundada a juridicidade das normas estaduais que complementem normas penais em branco e fundamentem o juízo valorativo referente a elementos normativos do tipo. Mais que isso, reputa-se indubitável que toca ao Estado-Membro não apenas o poder, senão o poder-dever de editar essas normas, visto competir-lhe, por mandamento constitucional, disciplinar a proteção do meio ambiente ou a exploração e utilização das florestas e dos recursos naturais, e, exercendo o poder de polícia ambiental, adotar medidas tendentes a combater a poluição e preservar as florestas, a fauna e a flora.


 


Referências bibliográficas

BITENCOURT, Cezar R. Tratado de Direito Penal – Parte Geral, 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

FREITAS, Vladimir P.; FREITAS, Gilberto P. Crimes contra a natureza, 7. ed. São Paulo: RT, 2001.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral, 2. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2003.

JESUS, Damásio E. Direito Penal – Parte Geral, 21. ed. São Paulo, Saraiva, 1998.

NUCCI, Guilherme S. Código Penal Comentado, 3. ed. São Paulo: RT, 2003.

PRADO, Luiz R. Crimes contra o Ambiente, 2. ed. São Paulo: RT, 2001.

SIRVINSKAS, Luís Paulo. Tutela Penal do Meio Ambiente, 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

ZAFFARONI, Eugenio R. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral, 5ª ed. São Paulo: RT, 2003.

 

Notas:

[1] Nesse sentido, MIRABETE (Manual de Direito Penal, vol. 1, 15. ed. São Paulo: Atlas, 1999, pág. 49): “As normas penais em branco são, portanto, as de conteúdo incompleto, vago, exigindo complementação por outra norma jurídica (lei, decreto, regulamento, portaria etc.) para que possam ser aplicadas ao fato concreto.”

[2] E o Distrito Federal igualmente.


Informações Sobre o Autor

Danniel Librelon Pimenta

Promotor de Justiça em Minas Gerais. Pós-graduado em Direito Público


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