A idéia de sistema nas várias concepções jusnaturalistas

Resumo: Os esforços de elaboração de uma teoria sistemática do direito poderiam ter investido na ideia de um sistema orgânico no qual tudo gira em torno de um mesmo centro e cada parte adquire significado em virtude de sua participação no todo. A ideia de sistema não deve descurar-se do estudo do jusnaturalismo para o entendimento de sua evolução atual. [1]

Sumário: 1. Sistema e Direito. 2. Caracteres do jusnaturalismo. 3. Jusnaturalismo cosmológico.4. Jusnaturalismo teológico. 5. Críticas ao jusnaturalismo. 6.Considerações finais. Referências

1. SISTEMA E DIREITO

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Os esforços de elaboração de uma teoria sistemática do direito poderiam ter investido na idéia de um sistema orgânico, no qual tudo gira em torno de um mesmo centro e cada parte adquire significado em virtude de sua participação no todo.

Como afirma Reale, na unidade orgânica, cada elemento tem “sua função própria, mas nenhuma destas se desenvolve como atividade bastante de per si; cada parte só existe e tem significado em razão do todo em que se estrutura e a que serve” (REALE, 1994, p.7).

A teoria jurídica anterior ao século XVIII não partia do pressuposto de que o direito deveria ser capaz de oferecer uma resposta a todos os conflitos sociais. O que ocorria era justamente o contrário: entendia-se que não era qualquer conflito de interesses que poderia ser levado ao judiciário e que os tribunais somente poderiam julgar os litígios que a lei definisse como de sua competência.

A idéia de sistema nas várias concepções jusnaturalistas começa a tomar forma a partir do século VIII, com o jusracionalismo, no entanto, ainda em formas de propostas de organização sistêmica, mas com falhas na classificação, gerando insegurança para a ciência jurídica.

Ainda assim, cumpre destacar a importância do desenvolvimento do jusnaturalismo para o ordenamento jurídico, devido principalmente ao seu papel de evolucionista da ciência jurídica, que incorporou várias concepções jusnaturalistas no direito moderno e contemporâneo, principalmente quanto à este último, no que diz respeito aos direitos humanos.

2. CARACTERES DO JUSNATURALISMO

O jusnaturalismo se afigura como uma corrente jurisfilosófica de fundamentação do direito justo que remonta às representações primitivas da ordem legal de origem divina, passando pelos sofistas, estóicos, padres da igreja, escolásticos, racionalistas dos séculos XVII e XVIII, até a filosofia do direito natural do século XX.

Com base no magistério de Norberto Bobbio (1999, pp. 22-23), podem ser vislumbradas duas teses básicas do movimento jusnaturalista.

A primeira tese é a pressuposição de duas instâncias jurídicas: o direito positivo e o direito natural. O direito positivo corresponderia ao fenômeno jurídico concreto, apreendido através dos órgãos sensoriais, sendo, deste modo, o fenômeno jurídico empiricamente verificável, tal como ele se expressa através das fontes de direito, especialmente, aquelas de origem estatal. Por sua vez, o direito natural corresponderia a uma exigência perene, eterna ou imutável de um direito justo, representada por um valor transcendental ou metafísico de justiça. A segunda tese do jusnaturalismo é a superioridade do direito natural em face do direito positivo.

Neste sentido, o direito positivo deveria, conforme a doutrina jusnaturalista, adequar-se aos parâmetros imutáveis e eternos de justiça. O direito natural enquanto representativo da justiça serviria como referencial valorativo (o direito positivo deve ser justo) e ontológico (o direito positivo injusto deixa de apresentar juridicidade), sob pena da ordem jurídica identificar-se com a força ou o mero arbítrio. Neste sentido, o direito vale caso seja justo e, pois, legítimo, daí resultando a subordinação da validade à legitimidade da ordem jurídica. 

Embora se oriente pela busca de uma justiça eterna e imutável, a doutrina do direito natural ofereceu, paradoxalmente, diversos fundamentos para a compreensão de um direito justo ao longo da história ocidente.

Diante disto, o jusnaturalismo pode ser agrupado nas seguintes categorias: a) O jusnaturalismo cosmológico, vigente na antigüidade clássica; b) o jusnaturalismo teológico, surgido na Idade Média, tendo como fundamentojurídico a idéia da divindade como um ser onipotente, onisciente e onipresente; c) o jusnaturalismo racionalista, surgido no seio das revoluções liberais burgueses do século XVII e XVIII, tendo como fundamento a razão humana universal; d) o jusnaturalismo contemporâneo, gestado no século XX , que enraiza a justiça no plano histórico e social, atentando para as diversas acepções culturais acerca do direito justo.

3. JUSNATURALISMO COSMOLÓGICO

O jusnaturalismo cosmológico foi a doutrina do direito natural que caracterizou a antiguidade greco-latina, fundado na ideia de que os direitos naturais corresponderiam à dinâmica do próprio universo, refletindo as leis eternas e imutáveis que regem o funcionamento do cosmos.

De acordo com Danilo Marcondes (1997, pp. 26-35), antes mesmo do surgimento da filosofia, nos moldes conhecidos pelo ocidente, já se firmavam vagas ideias e diversas concepções sobre o significado do justo. Desde a Grécia anterior ao século VI a.C., durante o denominado período cosmológico, já se admitia uma justiça natural, emanada da ordem cósmica, marcando a indissociabilidade entre natureza, justiça e direito.

Neste momento, inúmeros pensadores se propuseram a formular os princípios mais remotos de justiça, com base em diversos fundamentos, tais como: a necessidade humana (Homero); o valor supremo da comunidade e protetora do trabalho humano (Hesíodo); a igualdade (Sólon); a segurança (Píndaro); a ideia de retribuição (Ésquilo); o valor perene da lei natural (Sófocles); a eficácia da norma (Heródoto); e a identificação com a legalidade (Eurípedes).

Com o advento da filosofia, os primeiros filósofos, conhecidos como pré-socráticos, priorizavam a busca da origem do universo e o exame das causas das transformações da natureza, revelando uma inequívoca preocupação cosmológica, que norteou os estudos das suas diferentes vertentes de pensamento, como se depreende das obras de Tales de Mileto, Pitágoras de Samos, Parmênides de Eléia e Demócrito.

Em seguida, com o desenvolvimento assistemático da ciência e da política, as conclusões obtidas revelaram uma grande diversidade e um patente antagonismo, suscitando sérias dúvidas em relação à existência da verdade. É nesse contexto que se desenvolve, na Grécia antiga, o pensamento sofístico, que reúne expoente Protágoras, Górgias, Hípias, Trasímaco, Pródico, Evêmero, Licofron, Polo, Crítias, Tucídides, Alcidamas, Cármides, Antifronte e Cálicles.

Conforme o magistério de Machado Neto (1957: pp. 14-18), os sofistas dedicavam-se ao conhecimento da retórica, o qual passou a ser mercantilizado, especialmente para as famílias nobres e abastadas. Como professores itinerantes, cobravam os sofistas pelo ensino ministrado, o que lhes rendeu críticas contundentes, desferidas por Sócrates e Platão. Os temas abordados pelos sofistas estavam intimamente ligados à política e à democracia grega, envolvendo o debate sobre o direito, a justiça, a eqüidade e a moral. Para os sofistas, não importava a verdade intrínseca da tese propugnada, mas, ao revés, o próprio processo de convencimento, ainda que a proposição fosse errônea. A verdade figurava como um dado relativo, dependendo, portanto, da capacidade de persuasão do orador.

Neste sentido, os sofistas se apresentavam como a maior expressão do relativismo filosófico, porque não acreditavam na capacidade humana de conhecer as coisas, ao duvidar da potencialidade cognitiva do ser humano e sustentar que ele não estava apto a alcançar a verdade. Essa crise da razão humana descambou para a crise social, pois, se o ser humano não poderia alcançar a verdade, as instituições político-jurídicas da pólis grega não poderiam alcançar a verdade e, portanto, a justiça plena, lançando-se as sementes do jusnaturalismo. Sendo assim, ao valorizar o poder do discurso, a retórica sofística desemboca na relativização da justiça, situando-a no plano do provável, do possível ou do convencional.

Posteriormente, como leciona Machado Neto (1987, pp. 339-342), o desenvolvimento do pensamento jusnaturalista se processa ao lume das decisivas contribuições do humanismo socrático, do idealismo platônico e do realismo aristotélico, os quais correspondem ao período ático da filosófica grega, considerado como a idade de ouro da cultura humana.

O estudo do pensamento socrático é realizado, sobretudo, em face de sua oposição ao movimento dos sofistas. Enquanto Sócrates sustentava a obediência às leis e praticava seus ensinamentos de forma gratuita, os sofistas, por outro lado, ensinavam o desprezo às leis e cobravam pelas suas exposições. Sendo assim, Sócrates entendia que o ceticismo sofista era temerário, visto que não permitia a correta orientação acerca do sentido da ética e do bem.

A expressão "conhece-te a ti mesmo”, gravada no fronte do templo do Oráculo de Delfos, desponta como a palavra-chave para a compreensão do humanismo socrático. Para tanto, servia-se da maiêutica, como método de questionamento Ao mesmo tempo que convida o interlocutor a tomar consciência de seu próprio pensamento, Sócrates fá-lo compreender que, na verdade, ignora o que acreditava saber. Tal é a ironia que significa a arte de interrogar. Sócrates faz perguntas e sempre dá a impressão de buscar uma lição no interlocutor.

As indagações formuladas por Sócrates levam o interlocutor a descobrir as contradições de seus pensamentos e a profundidade de sua ignorância. Neste sentido, Sócrates não acreditava ser possível ao indivíduo conhecer a realidade objetiva se desconhecesse a si mesmo, pelo que a formação ética demandaria a busca pelo conhecimento e pela felicidade. Enquanto os sofistas sustentaram a efemeridade e a contingência das leis variáveis no tempo e no espaço, Sócrates empenhou-se em restabelecer para a cidade o império do ideal cívico, liame indissociável entre indivíduo e sociedade. Sendo assim, onde estivesse a virtude, estaria a justiça e, pois, a felicidade, independente dos julgamentos humanos.

Na evolução do pensamento filosófico, adquire relevo o idealismo platônico. Platão foi o mais fervoroso discípulo de Sócrates e responsável pela criação de doutrina ou teoria das Idéias. Segundo o idealismo platônico, o mundo sensível não passaria de um conjunto de meras sombras das verdades perfeitas e imutáveis, presentes no mundo metafísico e transcendental das Idéias.

Para ele, a justiça ideal expressa a hierarquia harmônica das três partes da alma – a sensibilidade, a vontade e o espírito. Ela também se encontra em cada uma das virtudes particulares: a temperança nada mais é que uma sensibilidade regulamentada segundo a justiça; a coragem é a justiça da vontade; e a sabedoria é a justiça do espírito.

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De outro lado, a justiça política revela uma harmonia semelhante à justiça do indivíduo. A política de Platão divisa a seguinte estratificação social: os artesãos, dos quais a justiça exige a temperança; os militares, dos quais a Justiça reclama a coragem; os chefes, dos quais a Justiça demanda sabedoria. Sendo assim, desponta a justiça como a imperativa adequação da conduta humana à ordem ideal do cosmos, constituindo ela a lei suprema da sociedade organizada como Estado.

A grande tríade filosófica grega se completa com o pensamento aristotélico. A subordinação da idéia de justiça a uma prévia visão do universo e da vida pode ser também encontrada nos ensinamentos de Aristóteles, a quem coube estabelecer parâmetros ainda hoje utilizados para a compreensão do problema da justiça. Embora fosse discípulo de Platão, o mundo platônico do conhecimento sensível e das idéias puras foi rejeitado por Aristóteles, visto que, segundo ele, as idéias seriam imanentes às coisas, como essências conformadoras da matéria, pelo que somente por abstração a matéria existiria desprovida de forma. Para ele, a justiça é inseparável da pólis e, portanto, da vida em comunidade.

 Sendo o homem um animal político, defluiria sua necessidade natural de convivência e de promoção do bem comum. A pólis grega figura, pois, como uma necessidade humana, cuidando da existência humana, assim como o organismo precisa cuidar de suas partes vitais. Na visão aristotélica, estas premissas fundamentam a necessidade de regulação da vida social através da lei, respeitando os critérios da justiça. Apresenta-se a justiça como uma virtude, adquirida pelo hábito, com a reiteração de ações num determinado sentido. Trata-se da busca pelo justo meio, contraposto ao vício da injustiça, por excesso ou por defeito.  

A classificação aristotélica segue o princípio lógico de estabelecer as características ou propriedades do geral, para depois analisar os casos particulares. Distingue, inicialmente, dois tipos de justo político: o justo natural e o justo legal. O justo natural expressa uma justiça objetiva imutável e que não sofre a interferência humana. Já o justo legal é a lei positiva que tem sua origem na vontade do legislador e que sofre a variação espaço-temporal. Existem, ainda, a justiça geral e a justiça particular. De um lado, a justiça geral figura como a virtude da observância da lei, o respeito à legislação ou às normas convencionais instituídas pela pólis.

Tem como objetivo o bem comum, a felicidade individual e coletiva. A justiça geral corresponde pelo que se entende por justiça legal. Por outro lado, a justiça particular tem por objetivo realizar a igualdade entre o sujeito que age e o sujeito que sofre a ação. Refere-se ao outro singularmente, no tratamento entre as partes. A seu turno, a justiça particular divide-se em justiça distributiva e justiça corretiva. A justiça distributiva consiste na distribuição ou repartição de bens, honrarias, cargos, deveres, responsabilidades e honrarias, segundo os méritos de cada um, configurando uma igualdade geométrica ou proporcional.

Por sua vez, a justiça corretiva visa ao restabelecimento do equilíbrio rompido entre os indivíduos, que podem ocorrer de modo voluntário, a exemplo dos acordos e contratos, ou de modo involuntário, como nos delitos em geral. Busca-se uma igualdade aritmética. Nesta forma de justiça, surge a necessidade de intervenção de uma terceira pessoa, que deve decidir sobre as relações mútuas e o eventual descumprimento de acordos humanos.

No período pós-socrático, a filosofia grega passa a ser dominada pela preocupação humanística centralizada no problema ético-moral. As magnas-questões metafísicas são agora ultrapassadas pela preocupação com a felicidade do homem. Despontam, assim, as correntes do epicurismo e do estoicismo.

Para o epicurismo, o critério único da verdade do conhecimento radicaria na sensação ou na percepção imediata evidente. Neste sentido, o critério supremo da ética seria a evidência do prazer e o da moralidade, o sentimento. Assim, a moral tem por objeto a felicidade humana, a qual não se confunde com o gozo grosseiro dos sentidos. O prazer epicurista é a ausência de dor. No contexto da moral epicurista, a virtude não é um fim, mas o meio de o atingir, pois o fim é o prazer tranqüilo. A justiça, enquanto virtude, participa desse mesmo caráter.

Assim, ela é instrumento e não a medida do que deve caber a cada um, porém o meio de evitar a dor, jamais prejudicando a quem quer que seja. A justiça consiste em conservar-se longe da possibilidade de causar dano a outrem ou sofrê-lo. O meio técnico de tornar efetiva essa moral do prazer tranqüilo consiste no direito justo, cujo escopo é prescrever as ações que propiciem a felicidade ao maior número de pessoas, e vedar, em contrapartida, as ações prejudiciais.

Por sua vez, segundo o estoicismo, o único bem do homem é a virtude, concebida como fim e não como meio, sendo o vício o único mal. Ambos são absolutos, isto é, não admitem graduações intermediárias. A posse de uma virtude implica a de todos e constitui a sabedoria; e a prática de um vício torna o seu autor réu de todos. O homem deve dominar as paixões, sobrepondo a elas a razão e, assim, alcançar a impassibilidade absoluta, a apatia. A concepção jusnaturalista que se construiu na doutrina estóica retoma a noção do logos. A razão universal que rege todos as coisas está presente em cada homem, sem distinções; enquanto parte da natureza cósmica, o homem é racional, donde se infere a existência de um direito natural universalmente válido e baseado na razão, o qual não se confunde com o direito posto pelo Estado. Deste modo, o fundamento da ética e de todo o conceito de justiça reside na ordenação cósmico-natural. A ética estóica caminha no sentido de postular a independência do homem com relação a tudo que cerca (ataraxia), mas ao mesmo tempo, no sentido de afirmar seu profundo atrelamento com causas e regularidades universais.

Como bem observa Miguel Reale (1994, pp. 627-630), do ponto de vista da Filosofia do Direito, o pensamento pós-socrático acaba por fundamentar uma concepção mais cosmopolita do homem, adaptada à nova realidade do Estado-Império, cristalizando a idéia do direito natural que irá impregnar a Roma antiga. A jurisprudência romana se desenvolve, então, sob a égide da doutrina do direito natural, na esteira das concepções herdadas do pensamento clássico. Em Roma, as idéias mais ou menos difusas na moral estóica, de que os postulados da razão teriam força e alcance universais, encontraram ambiência favorável à sua aplicação prática. O direito natural passa a ser então, concebido como a própria natureza baseada na razão, traduzida em princípios de valor universal.

Decerto, os grandes jurisconsultos romanos, especialmente Cícero, eram orientados pelo estoicismo, pelo que o humanismo estóico passou a conceber o dever e a determinar a escolha da atitude racionalmente mais aceitável para a edificação de uma ordem justa. Para Cícero, existiria uma verdadeira lei: a reta razão conforme a natureza, difusa em todos e sempre eterna. Nesta definição o jurisconsulto identifica a razão com a lei natural, centralizando as tendências estóicas à fundamentação racional de uma visão cosmopolita do direito e da justiça, inaugurando um direito natural racionalista, oposto à fundamentação metafísica da antiga tradição pré-socrática.

Essa lei, consubstanciada na razão, fundamentava não só o jus naturale, como também o jus civile e o jus gentium, não havendo, portanto, oposição entre as três expressões do direito, pois cada uma delas corresponderia a determinações graduais do mesmo princípio universal. O que os romanos, notadamente com Cícero, nos dão de novo é a idéia de ratio naturalis, isto é, a conexão íntima entre a natureza e a razão, o que não é de se estranhar em se tratando de um povo que foi, sem dúvida, o fundador do direito como ciência autônoma.

3. JUSNATURALISMO TEOLÓGICO

Segundo Paulo Nader (2000, p.117-127), o jusnaturalismo teológico se consolida enquanto doutrina jusfilosófica na Idade Média, sob a decisiva influência do cristianismo. A doutrina cristã veio introduzir novas dimensões ao problema da justiça. Tratando-se de uma concepção religiosa de justiça, deve se dizer que a justiça humana é identificada como uma justiça transitória e sujeita ao poder temporal. Para o cristianismo, não é nela que reside necessariamente a verdade, mas na lei de Deus, que age de modo absoluto, eterno e imutável.

Ocorreu, assim, uma verdadeira revolução da subjetividade, prevalecendo a atitude ou disposição de ser justo sobre a aspiração de ter uma idéia precisa de justiça. Continua esta, porém, a ser vista em um quadro superior de idéias, já agora subordinado a uma visão teológica, a partir do princípio de um Deus criador, do qual emana a harmonia do universo.

Na idade média, o jusnaturalismo apresentava um conteúdo teológico, pois os fundamentos do direito natural eram a inteligência e a vontade divina, pela vigência do credo religioso e o predomínio da fé.

Os princípios imutáveis e universais do direito natural podiam ser sintetizados na fórmula segundo a qual o bem deve ser feito, daí advindo os deveres dos homens para consigo mesmos, para com os outros homens e para com Deus.

Maria Helena Diniz (Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, p.37, 1998), preceitua ainda que os primeiros princípios da moralidade correspondem ao que há de permanente e universal na natureza humana, por isso perceptíveis, de imediato pela razão comum da generalidade dos homens, independentemente de sua cultura ou civilização. Abrangem tais princípios os deveres dos homens para consigo mesmos, devendo este autoconservar-se e não destuir-se, para com a família, unindo-se ao seu cônjuge, procriando e educando os filhos, respeitando sempre sua racionalidade e inteligência, para com os outros homens, praticando sempre a justiça, dando a cada um o que é seu, e para com Deus.

As demais normas, construídas pelos legisladores, seriam aplicações destes princípios às contingências da vida, v.g, do princípio jusnatural de que o homem não deve lesar o próximo, decorreria a norma positivada que veda os atos ilícitos. Segundo o jusnaturalismo teológico, o fundamento dos direitos naturais seria a vontade de Deus: o direito positivo deveria estar em consonância com as exigências perenes e imutáveis da divindade.

Podem ser identificados dois grandes movimentos partidários do jusnaturalismo teológico: a patrística e a escolástica.

A patrística é o nome que se utiliza para designar o pensamento filosófico desenvolvido pelos Padres da Igreja Católica ou Santos Padres entre os séculos II e VI. Através de suas especulações filosóficas, procuraram explicar os dogmas da religião católica. Percebe-se, na patrística, que a filosofia apresenta-se como alicerce da teologia. Entre os Santos Padres, destacam-se Tertuliano, Latâncio, Santo Ambrósio, São João Crisóstomo e, principalmente, Santo Agostinho.

Santo Agostinho, indubitavelmente, é o maior expoente da patrística e um dos mais célebres pensadores de todas as épocas. As contribuições e formulações filosóficas agostinianas são vastas e relevantes. Inicialmente, trata de dois conceitos de Estado: o conceito helênico pagão que corresponde à civitas terrena, e o conceito cristão que corresponde à civitas caelestis. A primeira povoada por homens vivendo no mundo (Estado Pagão), a segunda composta por almas libertas do pecado e próximas de Deus. O homem deve procurar o estabelecimento da cidade celeste (submissão do Estado à Igreja).

A respeito da doutrina geral da lei, difere a lex aeterna da lex naturalis. Deus é o autor da lei eterna, enquanto a lei natural é a manifestação daquela no coração do homem. Portanto, a lei natural é a lei eterna transcrita na alma do homem, em razão do seu coração, também chamada lei íntima. A lei humana deve derivar da lei natural, do contrário não será autêntica. Preceito humano injusto não é a lei.

O legislador deve procurar não só restringir tudo que perturbe a ordem das coisas, como também ordenar o que favoreça esta ordem. A lei humana tem por fim o governo dos homens, manter a paz entre eles. Enquanto a lei eterna e a natural se referem ao campo da moralidade. No que se refere à justiça, Santo Agostinho compartilha da definição de Cícero, segundo a qual a justiça é a tendência da alma de dar a cada um o que é seu.

Por sua vez, a escolástica tem seu início marcado pela anexação de Grécia e Roma por Carlos Magno ao Império Franco. Nessa época, a característica denunciante da genialidade dos homens transparecia pelo equilíbrio entre a razão e a fé, o qual fora alcançado por Santo Tomás de Aquino ao demonstrar que fé e razão são diferentes caminhos que levam ao verdadeiro conhecimento. Por seus grandes trabalhos intelectuais, o Doutor Angélico foi considerado o maior pensador da doutrina escolástica.

Na Suma Teológica, ao tratar da justiça, Tomás de Aquino afirma que a mesma pode ser vista como uma virtude geral, uma vez que, tendo por objeto o bem comum, ordena a este os atos das outras virtudes. Como cabe à lei ordenar para o bem comum, tal justiça é chamada de justiça legal. Por meio dela, o homem se harmoniza com a lei que ordena os atos de todas as virtudes para o bem comum. Ademais, Santo Tomás de Aquino admite uma diversidade de leis: a lei divina revelada ao homem, a lei humana, a lei eterna e a lei natural, contudo, não as considera como compartimentos estanques. A lei eterna é a razão oriunda do divino que coordena todo o universo, incluindo o homem. A natural, o reflexo da lei divina existente no homem. Afirma ele a necessidade da complementação desta pelas leis divina e humana, a fim de se conseguir a certeza jurídica e a paz social, bem como facilitar a interpretação dos julgadores.

6. CRÍTICAS AO JUSNATURALISMO

Do ponto de vista jurisfilosófico, a doutrina jusnaturalista desempenhou a função relevante de sinalizar a necessidade de um tratamento axiológico para o direito. Isto porque o jusnaturalismo permite uma tematização dos valores jurídicos, abrindo espaço para a discussão sobre a justiça e sobre os critérios de edificação de um direito justo.

Entretanto, como salienta Auto de Castro (1954, p.28), em face da necessidade de delimitar o que seja o direito justo, a doutrina jusnaturalista não logra oferecer uma proposta satisfatória de compreensão dos liames mantidos entre direito, legitimidade e justiça. Ao encerrar o jusnaturalismo todos os postulados metafísicos, resta demonstrado que a epistemologia jurídica, em consonância com os resultados da teoria do conhecimento, não reconhece os títulos de legitimidade da doutrina do direito natural.

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O conceito de justiça é, pois, sempre relativo, condicionado ao tempo e ao espaço; o jusnaturalismo acaba por identificar os atributos normativos da validade e legitimidade, ao afirmar que a norma jurídica vale se for justa, o que compromete as exigências de ordem e segurança jurídica, que se traduzem no respeito à legalidade dos Estados Democráticos de Direito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em face de todo o exposto, pode-se sintetizar que: a) o jusnaturalismo oferece, tradicionalmente, o direito natural como a fórmula perene, absoluta e imutável de justiça, que orienta a busca pela legitimidade do direito justo; b) a corrente jusnaturalista, ao longo de sua evolução doutrinária, identifica o direito justo com diversos elementos: o cosmos (jusnaturalismo cosmológico), a vontade divina (jusnaturalismo teológico), a razão humana universal (jusnaturalismo racionalista) ou mesmo a expressão de uma dada cultura humana (jusnaturalismo contemporâneo); c) a doutrina do direito natural não fornece, entretanto, uma proposta satisfatória de compreensão dos liames mantidos entre direito, legitimidade e justiça, visto que o jusnaturalismo confunde os planos do ser e do dever-ser, não admite o relativismo histórico-cultural do direito justo, bem como identifica os atributos normativos da validade e legitimidade, comprometendo as exigências basilares dos Estados Democráticos de Direito, tais como a ordem, a segurança jurídica e o respeito à legalidade.

 

Referências
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1999.
CASTRO, Auto de. A ideologia jusnaturalista: dos estóicos à O.N.U. Salvador: S. A. Artes Gráficas, 1954.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: 1998. Saraiva.
GUSMÃO, Paulo Dourado de. Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1985.
MACHADO NETO, Antônio Luís. Sociologia do direito natural. Salvador: Progresso, 1957.
______. Sociología jurídica. São Paulo: Saraiva, 1987.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
NADER. Paulo. Filosofia do direito. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000.
REALE. Miguel. Teoria tridimensional do direito. São Paulo: Saraiva, 1994.
______. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 1994.
 
Nota
[1] Trabalho realizado para Ordenamento Jurídico e Sistema- Doutorado- PUC/SP – para apreciação da Profª. Doutora Maria Helena Diniz, trata-se da primeira parte do trabalho em grupo.


Informações Sobre o Autor

Maristela Aparecida Dutra

Doutoranda em Direito Civil Comparado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC-SP Mestre em Direito das Relações Econômico-Empresarias pela Universidade de Franca-UNIFRAN Pós- Graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade de Franca- UNIFRAN Professora de Direito Civil Processo Civil e Direito do Consumidor no Centro Universitário do Planalto de Araxá- UNIARAXA advogada militante na Comarca de Araxá-MG.


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