A incoerência sistêmica do artigo 1240-A do Código Civil brasileiro

Resumo: O presente trabalho traz uma análise crítica da nova modalidade de usucapião estabelecida pela Lei 12.424, de 16 de junho de 2011, a qual inseriu o artigo 1240-A no Código Civil Brasileiro, considerando, sobretudo, as normas já existentes no que tange ao Instituto da Usucapião e bem ainda as implicações da nova previsão legal nas normas atinentes às relações de família.[1]


Palavras-chave: Usucapião. Posse. Propriedade. Abandono do lar. Incoerência.


Abstract: This paper presents a critical analysis of new type of prescription established by Law 12,424 of 16 June 2011, which added Article 1240-A of the Code Brazilian Civil, considering in particular the standards already existing in relation to the Institute of adverse possession and well yet the implications of the new legal provision in the rules pertaining to family relationships.


Keywords: adverse possession. Posse. Property. Leaving home. Incoherence.


INTRODUÇÃO


Ao legislador cumpre a produção de normas que atendam às demandas sociais sem, todavia, provocar incoerências no sistema legal já existente, uma vez que o ordenamento jurídico é compreendido como um todo, um sistema harmonioso de regras e princípios que disciplinam a convivência de determinado povo submetido a uma determinada jurisdição. Nesse diapasão, qualquer norma criada sem a devida observância da harmonia sistêmica é tida como desconexa, devendo, portanto, ser extirpada do referido sistema.


A recente alteração havida no Código Civil Brasileiro, introduzida pela Lei 12.424, de 16 de junho de 2011, a qual inseriu o artigo 1240-A ao referido Código, parece se ressentir de falta de coerência com o sistema normativo no qual foi inserida. A análise da sua conveniência ou inconveniência deve ser feita de modo detido, pondo-a em confronto com as regras e princípios informadores da área específica onde a sua força normativa irá atuar. Assim, considerando que as alterações advindas da referida Lei, criam uma nova espécie de Usucapião e bem ainda, espraiam sua força normativa sobre as relações de família, é sob esse binômio que ela deve ser posta em análise.


Dessa forma, buscar-se-á perquirir se a nova modalidade de Usucapião se encontra em consonância com as modalidades de Usucapião já existentes, e bem assim se as implicações que esta trará às relações de família estão seguindo as mesmas diretrizes que tem trilhado o novo direito de família.


1 – A USUCAPIÃO COMO FORMA DE AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE


A usucapião, também chamada de prescrição aquisitiva, nas palavras de Carlos Alberto Gonçalves (2010, p. 256) “é modo originário de aquisição da propriedade e de outros direitos reais suscetíveis de exercício continuado (entre eles, as servidões e o usufruto) pela posse prolongada no tempo, acompanhada de certos requisitos exigidos pela lei” e, continua o mencionado jurista, “é uma instituição multissecular, que nos foi transmitida pelos romanos” (Gonçalves, 2010. p. 257). Conforme se observa, a usucapião foi concebida com o fito de possibilitar a aquisição da propriedade àquele que, tendo a posse, e sendo esta somada a determinados requisitos legalmente previstos, faltasse-lhe o título de domínio.


A nova modalidade de usucapião, prevista no art. 1240-A, do Código Civil Brasileiro, a exemplo das demais modalidades já existentes, encontra-se inserida no livro III, título III, especificamente no capítulo II do Código, intitulado: Da aquisição da propriedade imóvel, todavia, parece não ter observado o legislador que, em regra, o bem a ser usucapido já pertence ao usucapiente, que o possui em condomínio com o ex-cônjuge ou ex-companheiro, conforme se observa da leitura do referido artigo:


“Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”. (grifo nosso)


Ora, sendo o usucapiente dono de fração ideal do bem a ser usucapido, não se pode dizer que este teria exercido meramente a posse sobre uma determinada parte do imóvel, posto que, sendo condômino, possui o todo em conjunto com o seu ex-cônjuge ou ex-companheiro. Assim, não se encontrando o bem já devidamente partilhado, em todos os cômodos do imóvel onde o possuidor exerceu a sua posse, exerceu também a propriedade, não podendo, por isso, usucapi-lo, uma vez que, em última análise, estaria usucapindo bem de sua propriedade.


1.1 – FUNDAMENTOS PARA A CRIAÇÃO DO INSTITUTO DA USUCAPIÃO


Conforme nos ensina Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 258), com sua habitual precisão e maestria, “O fundamento da usucapião está assentado, assim, no princípio da utilidade social, na conveniência de se dar segurança e estabilidade à propriedade, bem como de se consolidar as aquisições e facilitar a prova do domínio”.


Consoante se pode observar, constitui fundamento comum a todas as modalidades de usucapião, o objetivo de impor ao proprietário o uso racional da propriedade, e bem ainda a necessidade de conferir à posse, que é mera situação de fato, a qual a lei não negue efeitos possessórios[2], uma transmutação em situação de direito, outorgando ao possuidor o título de propriedade.


Uadi Lammêgo Bulos (2009, p. 1262), referindo-se à usucapião pró-moradia, prevista na Constituição Federal de 1988, enfatiza que:


“A criação do novo instituto justifica-se diante do quadro caótico por que passa a problemática da moradia em nosso país. Seu objetivo é cumprir a função social da propriedade urbana, atendendo ao apelo proveniente de vários movimentos e pressões de favelados quando da feitura do Texto de 1988.”


Nesse caso, justiça-se a preocupação do legislador, uma vez que a falta de um instrumento legal capaz de atender aos clamores advindos da sociedade, referentes à regularização da propriedade, é causa de outros vários problemas de ordem urbanística, sendo, inclusive, obstáculo ao cumprimento da função social da cidade[3].


Diferentemente é o que ocorre com o novo instituto de usucapião, criado pelo art. 1204-A do Código Civil, pois se pretendeu o legislador fazer com que aquela propriedade, passível de ser usucapida, seja utilizada de acordo com a sua função social, andou mal, uma vez que o imóvel jamais esteve em abandono, sendo utilizado pelo ex-cônjuge ou ex-companheiro, no mais das vezes, em conjunto com os próprios filhos do casal.


O mesmo se diga se o argumento justificador da criação do novo instituto foi o de criar uma forma de regularização da propriedade, posto que o cônjuge que permanece no imóvel já dispõe de instrumento legal para regularizar a situação do bem cuja propriedade divide com seu ex-cônjuge ou ex-companheiro, que é promoção da partilha dos bens do casal.


1.2 – DISTINÇÃO ENTRE POSSE E DETENÇÃO


Consoante se depreende da leitura do art. 1208 do Código Civil Brasileiro de 2002, há situações que, a despeito de existir de fato o exercício de algum dos poderes inerentes à propriedade, não resta caracterizada a posse, mas mera detenção, conforme se observa: “art. 1208. Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade”. Como se observa, para que fique caracterizada a posse, necessário se faz que sobre a situação de fato onde se exerce algum dos poderes inerentes à propriedade, não recaia norma legal proibindo expressamente a sua caracterização.


Dessa forma, ainda que se pudesse desconsiderar que, em regra, o usucapiente já se faz proprietário do bem a ser usucapido, esbarraríamos em outro inconveniente, que seria a inexistência de posse, mas mera detenção sobre a fração ideal do imóvel do ex-cônjuge ou ex-companheiro que, ao ver frustrado o seu enlace matrimonial, sai do imóvel para que nele possa continuar residindo seu ex-cônjuge ou ex-companheiro, restando patente a caracterização de mera permissão ou tolerância, o que fulmina qualquer pretensão de ver reconhecida a existência de posse.


Oportuno lembrar, ainda, que o nosso direito civil atual, pautado na solidariedade e eticidade[4], jamais poderia premiar o cônjuge remanescente que já sabe, desde o início quem, juntamente consigo, detém a propriedade do imóvel, dispondo, inclusive, de instrumentos legais para a regularização da sua fração ideal na propriedade, o que pode fazer através da partilha dos bens do casal. Diferentemente, tem-se a situação em que alguém ocupa um bem ocioso, de propriedade desconhecida, onde se observa a utilidade do instituto da usucapião, uma vez que o único instrumento legal para regularização da propriedade seria lançar mão do referido instituto.


Legitimar a conduta de alguém que, sabendo ser proprietário de apenas uma fração ideal do imóvel, e bem ainda que já dispõe de meios legais para efetivar a partilha do bem, não o faz, preferindo aguardar o decurso dos dois anos[5] para intentar ação de usucapião, seria abandonar a boa-fé e premiar comportamentos espúrios, conspurcando todo um sistema normativo protetor da dignidade da pessoa humana, da eticidade das condutas e da solidariedade entre os povos.


Dessa forma, se o novo instituto se faz inadequado para a regularização da propriedade, mostrando-se também inócuo à imposição de cumprimento da sua função social, resta analisar se o mesmo se faz útil às relações de família, onde inevitavelmente, provoca reflexos.


2 – OS NOVOS RUMOS DO NOVO DIREITO DE FAMÍLIA


A nova modalidade de usucapião traz reflexos diretos nas relações de família, trazendo uma penalidade injustificada ao cônjuge que, ao ver fracassado o seu projeto de família, busca minimizar os reflexos negativos da situação deixando o ex-cônjuge ou ex-companheiro, por vezes na companhia dos filhos do casal, na residência pertencente a ambos. Dessa forma, onde hodiernamente não se discutia mais culpa pelo insucesso do casamento, com a instituição da nova modalidade de usucapião, vê-se novamente punir aquele que deixa o lar após o termino do casamento, o que não se coaduna com o atual estágio do direito de família.


Conforme observa Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 24/25), com aparo na doutrina de Caio Mário da Silva Pereira, assevera:


“Os novos rumos conduzem à família socioafetiva, onde prevalecem os laços de afetividade sobre os elementos meramente formais. Nessa linha, a dissolução da sociedade conjugal pela separação judicial e pelo divórcio tende a ser uma consequência da extinção da affectio, e não da culpa de qualquer dos cônjuges.”


O novo direito de família, com uma visão constitucional e ampla proteção à dignidade da pessoa humana, não busca perquirir culpa nas relações conjugais, estando o novo dispositivo em contramão com as normas já existentes.


A nova modalidade de usucapião contraria, ainda, o princípio da livre aquisição e administração do patrimônio familiar, previsto no inciso II, do art. 1642, do Código Civil Brasileiro[6], não se justificando a ingerência do Estado na forma como devem os ex-cônjuges ou ex-conviventes lidar com o patrimônio que adquiriram durante a existência da relação familiar.


3 – CONSIDERAÇÕES FINAIS 


A nova previsão legal institui a desconfiança, obrigando o cônjuge que deixa o lar a promover de imediato a partilha dos bens do casal, deixando inclusive de considerar a instabilidade típica das relações conjugais em crise, onde por vezes os cônjuges após um tempo afastados dos problemas trazidos pela rotina da vida em comum, conseguem alcançar um entendimento e voltam à convivência, restaurando a família.


Afronta, ainda, princípios informadores do moderno direito civil constitucional, a exemplo do princípio da solidariedade e do princípio da eticidade, além de ser desprezível como instrumento de regularização da propriedade, uma vez que o ordenamento jurídico já oferece meios legais aptos a promover a regularização da propriedade nos casos abrangidos pela nova modalidade de usucapião.


Do ponto de vista técnico, o novo instituto provoca incoerências no sistema normativo, criando uma modalidade de usucapião que foge aos fundamentos das demais modalidades existentes, como também se mostra anacrônico quando visto sob a ótica do moderno direito de família, ao criar uma verdadeira sanção por abandono de lar, trazendo um retrocesso em pontos negativos hoje já superados.


 


Referências

BRASIL. Constituição (1988). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituiçao.htm>. Acesso em: 20 de agosto 2011.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em: 20 de agosto 2011.

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional, 3ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

GLAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, volume I: Parte Geral. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 5: direito das coisas. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 6: direito de família. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

NUNES, Elpídio Donizetti. Curso didático de direito processual civil, 14ª Ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2010.

 

Notas:

[1] Artigo produzido sob a orientação do Professor Bruno Barbosa Heim – Professor Auxiliar – Curso de Direito da Universidade do Estado da Bahia , Brasil; Advogado; Especialização em Direito Público pelo JusPodivm, Brasil(2010)
[2] Faz-se oportuno ressaltar que, em determinados casos, a despeito de haver uma situação de fato, onde se exerça algum dos poderes inerentes à propriedade, a lei expressamente veda o reconhecimento da existência de posse, havendo apenas detenção. É o que se vê, por exemplo, no art. 1208, do Código Civil. “não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância”.

[3] Entende Uadi Lammêgo Bulos (2009, p. 1259) que o cumprimento da função social da cidade é atribuição da política urbana, que é o conjunto de providências que objetivam ordenar os espaços habitáveis, organizando todas as áreas em que o ser humano exerce funções sociais indispensáveis à sua sobrevivência, isto é, habitação, trabalho, recreação (lazer) e circulação.

[4] Para Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2008, p. 51), o princípio da eticidade previsto no Novo Código Civil Brasileiro, consiste na busca de compatibilização dos valores técnicos conquistados na vigência do Código anterior (Código Civil de 1916), com a participação de valores éticos no ordenamento jurídico.

[5] Prazo para aquisição do imóvel pela nova modalidade de usucapião prevista no art. 1240-A, do Código Civil Brasileiro.

[6]Art. 1.642. Qualquer que seja o regime de bens, tanto o marido quanto a mulher podem livremente:(…)

II – administrar os bens próprios; 


Informações Sobre o Autor

Silvano Vieira Rodrigues

Acadêmico de Direito na Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus VIII, Paulo Afonso/BA. Conciliador do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, lotado no Juizado Especial Criminal de Paulo Afonso/BA


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