Resumo: O presente estudo visa delinear um perfil da forma com a qual o Tribunal de Justiça de São Paulo vem aplicando o princípio da boa-fé objetiva na solução das lides envolvendo contratos interempresariais, vale dizer, entre pessoas jurídicas de direito privado. Visa, sobretudo, verificar se o Tribunal aplica efetivamente o referido princípio como fundamento de suas decisões, ou o faz meramente como argumentação retórica. O estudo tem por objetivo, também, traçar, com base na melhor doutrina e jurisprudência, uma definição de princípio da boa-fé objetiva, e como ele se aplica como efetivo fundamento jurídico na solução de controvérsias em contratos interempresariais. O método utilizado foi o da análise de casos. Após seleção prévia de cento e oitenta e oito acórdãos que foram decididos com fundamento na boa-fé objetiva, no ano de 2009, destes foram selecionados quarenta e oito, os quais foram minuciosamente examinados. Os resultados, embora não plenamente satisfatórios, foram surpreendentes com relação à ótima qualidade das decisões naqueles acórdãos cujo fundamento da decisão foi verdadeiramente a boa-fé objetiva. Concluiu-se, com isso, que se pode contar com certa segurança jurídica no que diz respeito à aplicação do princípio da boa-fé objetiva pelo Tribunal de Justiça de São Paulo[1].
Palavras-chave: Boa-fé objetiva. Fundamento jurídico. Tribunal de Justiça.
Resumen: Este estudio visa delinear un perfil de la forma con la cual el Tribunal de Justicia del Estado de São Paulo ha venido aplicando el principio de la buena fe objetiva en la solución de los litigios en los cuales hay contratos entre empresarios. Visa, sobretodo examinar si lo Tribunal hace correcta aplicación del principio como fundamento de sus decisiones, u lo hace como mero argumento retórico. El estudio tiene por objetivo, también trazar con fundamento en la mejor doctrina y jurisprudencia, una definición del principio de la buena fe objetiva, y como él debe ser aplicado para ser el verdadero fundamento en la solución de litigios en contratos entre empresarios. El método utilizado fue el da analice de casos. Después de selección de ciento e ochenta y ocho decisiones en las cuales fue usado en sus fundamentos jurídicos, en el 2009, entre estos fueran seleccionados cuarenta y ocho, los cuales fueran examinados en detalles. Los resultados, aunque no absolutamente satisfactorios, fueran sorprendentes con relación al alto nivel de cualidad de los juzgados cuyo fundamento de la decisión fue en verdad la buena fe objetiva. La conclusión a la cual se llegó es que se puede contar con cierta seguridad jurídica con respecto a la aplicación del principio de la buena fe por el Tribunal de Justicia de São Paulo.
Palabras clave: Buena fe objetiva. Fundamentación jurídica. Tribunal de Justicia.
Sumário: Introdução. 1. Princípios gerais de direito – conceito e aplicação. 2. Princípio da boa-fé objetiva. 2.1. Conceito. 2.2. Aplicação do princípio da boa-fé objetiva em contratos interempresariais. 3. Aplicação do princípio da boa-fé objetiva nos contratos interempresariais pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. 3.1. Dos critérios de seleção dos acórdãos e classificação dos grupos. 3.1.1. Aplicação efetiva do princípio da boa-fé objetiva como fundamento da decisão. 3.1.2. Aplicação superficial do princípio da boa-fé objetiva como fundamento da decisão. 3.1.3 Aplicação do princípio da boa-fé objetiva como mera argumentação retórica. 3.2 Da análise dos acórdãos e dos resultados. 3.2.1 Aplicação efetiva do princípio da boa-fé objetiva como fundamento da decisão. 3.2.2 Aplicação superficial do princípio da boa-fé objetiva como fundamento da decisão. 3.2.3 Aplicação do princípio da boa-fé objetiva como mera argumentação retórica. Considerações finais. Anexo. Bibliografia
INTRODUÇÃO
O princípio da boa-fé objetiva previsto no artigo 422 do Código Civil é uma norma legal aberta. Vale dizer, uma norma cuja aplicação exige mais do que a simples subsunção do fato à norma, necessitando, para tanto, da utilização de uma técnica judicial apropriada para se valorar aquilo que deve ser entendido como lealdade de conduta, ou boa-fé, de acordo com as circunstâncias específicas de cada caso.
Observando-se essa definição simplificada do que é boa-fé objetiva, verifica-se tratar-se de uma norma que demanda certo esforço e perícia por parte do julgador quando de sua aplicação para solucionar uma demanda.
Com efeito, considerando-se o grande volume de ações que vêm abarrotando o Poder Judiciário, em especial o Tribunal de Justiça de São Paulo, e, considerando-se, ainda, as exigências da população, e atualmente do Conselho Nacional de Justiça, por julgamentos rápidos, surge a preocupação com a qualidades dessas decisões judiciais.
Assim, se faz necessário uma avaliação da qualidade dos julgados do TJ-SP referentes a esse delicado dispositivo legal, o qual requer especial atenção dos julgadores. Uma vez que de nada valem julgamentos rápidos, se forem destituídos de consistente fundamentação, isto é, decisões de má qualidade.
Para se mensurar a importância do tema proposto, basta olhar para o passado. O princípio da boa-fé existe na legislação brasileira desde o ano de 1850, no artigo 131 do derrogado Código Comercial. Porém, essa norma não foi efetivamente aplicada por falta de conhecimento das técnicas jurídicas apropriadas para a aplicação de normas legais abertas, tal como essa.
Existe uma premissa pela qual se diz que os que não conhecem a história estão destinados a repeti-la.
Deve ser levado em conta, ainda, que o direito não acompanha as rápidas mudanças que ocorrem na sociedade, de forma que normas abertas, tal qual o princípio da boa-fé objetiva, têm se tornado cada vez mais importantes para a solução de litígios, principalmente no meio empresarial.
É pertinente, portanto, que se saiba como o Tribunal de Justiça de São Paulo tem aplicado o esse importante princípio em suas decisões para que, se necessário, se façam as devidas correções de “rota”, e não passemos outro século sem a sua devida utilização.
A presente obra foi realizada pela forma a seguir explicada.
Inicialmente foi traçada uma definição de princípio da boa-fé objetiva, com base na melhor doutrina e jurisprudência, assim também sobre como se dá sua aplicação como efetivo fundamento de decisão em lides que têm por objeto controvérsias em contratos empresariais.
Após isso, foram colhidos acórdãos do Tribunal de Justiça de São Paulo sobre o tema em questão, proferidos no período de janeiro a dezembro de 2009.
O período foi definido assim por dois motivos, quais sejam: por entendermos que um ano é um tempo razoável e suficiente para se atingir o objetivo proposto por este estudo, uma vez que as formas de realização dos acórdãos, em geral, se repetem; e, para que se possa fazer uma análise aprofundada desses acórdãos, tendo em vista que ao considerarmos a grande quantidade de ações sobre o tema em questão, seria inviável realizar o estudo sobre um período mais longo, o que seria, ressalte-se, desnecessário.
Após esse trabalho preliminar, foram selecionados aproximadamente cinqüenta acórdão em que o princípio da boa-fé objetiva foi aplicado para solucionar lides envolvendo contratos empresariais. Esses acórdãos foram divididos em três categorias, quais sejam, aqueles nos quais foi aplicado o princípio da boa-fé objetiva como verdadeiro fundamento das decisões, aqueles nos quais o princípio foi aplicado superficialmente como fundamento das decisões, e aqueles em que o princípio foi mencionado como mero argumento retórico, vale dizer, as decisões se deram por outros fundamentos, mencionando-se o princípio aleatoriamente sem aplicá-lo de fato.
Por fim, esses acórdãos foram analisados para se verificar como o Tribunal tem apreciado o tema em questão, identificando quantitativamente o número de julgados relacionados em cada uma das categorias referidas.
1 PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO – CONCEITO E APLICAÇÃO
Em primeiro lugar, faz-se necessário entender o que é princípio jurídico. Um sistema legislativo é constituído basicamente por um conjunto de normas, dotadas de coercibilidade, pelas quais é disciplinada a vida em sociedade. Tais normas podem ser de duas espécies, princípios ou regras.
As regras são normas de aplicação direta (incidem diretamente sobre o caso concreto), possuem uma abstração reduzida (são mais concretas, específicas), como por exemplo, uma regra de trânsito que determina como limite de velocidade 60 quilômetros por hora e prevê aplicação de multa em caso de descumprimento. Esse é, portanto, exemplo de norma jurídica da espécie regra.
Os princípios, diferentemente, são normas com um grau de abstração relativamente elevado, mais abertas, carentes de uma definição direta de aplicabilidade, motivo pelo qual se exige uma mediação do aplicador da norma no sentido de estabelecer o adequado sentido do princípio para o caso concreto.
Há, por exemplo, o princípio da isonomia, ou igualdade, pelo qual os iguais devem ser tratados de forma igualitária, e os desiguais de forma desigual, na medida de sua desigualdade. Com efeito, na aplicação desse princípio em relação a pessoas em situação ou condição desigual, caberá ao aplicador da norma determinar qual é a medida da desigualdade a ser aplicada, de forma a trazê-las ao equilíbrio pretendido pelo legislador.
Sobre princípios, Miguel Reale (1999, p. 306) ensina:
“A nosso ver, princípios gerais do direito são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para a sua aplicação e integração, que para a elaboração de novas normas.”
Quanto à aplicabilidade dos princípios de direito, Walter Claudius Rothenburg (ROTHENBURG, 2003, p. 18) afirma:
“(…) não quer isso dizer, todavia, que os princípios são inteiramente sempre genéricos e imprecisos; ao contrário, possuem um significado determinado, passível de um satisfatório grau de concretização por intermédio das operações de aplicação desses preceitos jurídicos nucleares às situações de fato, assim que os princípios sejam determináveis em concreto”.
Vale mencionar, ainda, brilhante ensino de Paulo Bonavides (2002, p. 251-2), escorado em Robert Alexy, referente a conflito entre princípios, segundo o qual, quando princípios de direito são aplicados a casos concretos, caso ocorra colisão entre dois princípios, a solução consiste em diminuir-se a eficácia de um princípio e elevar-se a eficácia do outro, segundo critérios de proporcionalidade e razoabilidade, pendendo-se em favor do princípio de maior peso ou valor para aquele caso, vale dizer, considerando-se suas circunstâncias peculiares.
Consoante Orlando Gomes (2007, p. 23) há seis princípios que regem as relações contratuais, quais sejam: (i) princípio da autonomia da vontade; (ii) princípio do consensualismo; (iii) princípio da força obrigatória dos contratos; (iv) princípio da boa-fé objetiva; (v) princípio do equilíbrio econômico do contrato. (vi) princípio da função social do contrato.
O princípio da boa-fé objetiva, tema desta obra, será nos próximos capítulos objeto central deste estudo.
2 PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA
2.1 Conceito
Um princípio geral de direito que tem gerado dúvidas tanto aos novos como aos antigos operadores do direito é o princípio da boa-fé objetiva.
Esse princípio, embora já viesse sendo aplicado antes da vigência do Código Civil de 2002, que trouxe previsão expressa do mesmo, passou a receber maior atenção dos operadores do direito após tal advento.
Vale lembrar que o princípio da boa-fé estava previsto no revogado Código Comercial de 1850 (art. 131), mas, praticamente não teve aplicação efetiva pelos julgadores até pouco antes da entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor, no qual há também previsão expressa do princípio.
O presente estudo terá por escopo aplicação do princípio da boa-fé objetiva conforme está previsto no novo Código Civil nos artigos 113, 422 e 187, com predomínio desses dois primeiros, pois são aqueles que mais se aplicam aos contratos interempresariais – contratos entre pessoas jurídicas de direito privado (sociedades empresárias).
Em primeiro lugar, é necessário que se diferencie boa-fé objetiva de boa-fé subjetiva.
Miguel Reale, em A Boa-fé no Código Civil (2003, p. 3-4), registrou que “a boa-fé apresenta dupla faceta, a boa-fé objetiva e a subjetiva”. A subjetiva, relativa ao sujeito, indivíduo, “corresponde, fundamentalmente, a uma atitude psicológica, isto é, uma decisão da vontade, denotando convencimento individual da parte de obrar em conformidade com o direito”; é aplicável especialmente no direito das coisas – fala-se, por exemplo, em “possuidor de boa-fé” (Gomes, 2007, p. 43).
Esse eminente jurista, no mesmo estudo (Reale, 2003, p. 4), definiu boa-fé objetiva in verbis:
“A boa-fé objetiva apresenta-se como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria uma pessoa honesta, proba e leal. Tal conduta impõe diretrizes ao agir no tráfico negocial, devendo-se ter em conta, como lembra Judith Martins Costa, ‘a consideração para com os interesses do alter, visto como membro do conjunto social que é juridicamente tutelado’. Desse ponto de vista, podemos afirmar que a boa-fé objetiva, é assim entendida como noção sinônima de ‘honestidade pública’.”
Nelson Rosenvald (2009, p. 458) conceitua:
“Há que salientar que existem duas acepções de boa-fé, uma subjetiva e outra objetiva. O princípio da boa-fé objetiva – circunscrito ao campo do direito das obrigações – é o objeto de nosso enfoque. Compreende ele um modelo de conduta social, verdadeiro standard jurídico ou regra de conduta, caracterizado por uma atuação de acordo com determinados padrões sociais de lisura, honestidade e correção de modo a não frustrar a legítima confiança da outra parte. […]
Esse dado distintivo é crucial: a boa-fé objetiva é examinada externamente, vale dizer que a aferição se dirige à correção da conduta do indivíduo, pouco importando a sua convicção. De fato, o princípio da boa-fé encontra a sua justificação no interesse coletivo de que as pessoas pautem seu agir pela cooperação e lealdade, incentivando-se o sentimento de justiça social, com repressão a todas as condutas que importem em desvio aos sedimentados parâmetros de honestidade e retidão.
Por isso, a boa-fé objetiva é fonte de obrigações, impondo comportamentos aos contratantes, segundo as regras de correção, na conformidade do agir do homem comum daquele meio social.”
Nancy Andrighi (Ministra do Superior Tribunal de Justiça), fazendo uso da definição dada por Miguel Reale, refere-se ao princípio da boa-fé objetiva da seguinte forma:
“Quanto à boa-fé objetiva, esta se apresenta como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever de que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, agindo como agiria uma pessoa honesta, escorreita e leal.” (STJ, 3ª T., REsp 783.404-GO, rel. Min. Nancy Andrighi, v.u., j. 28.06.2007, DJU 13.08.2007)[2].
Observa-se, inicialmente, que é pacífico entre esses juristas a subdivisão de boa-fé em objetiva e subjetiva – sendo que esta diz respeito a aspectos pessoais, psicológicos, intrínsecos à pessoa, vale dizer que é o contrário de má-fé, a ausência de intenção dolosa.
Alguns doutrinadores, dentre os quais está Ruy Rosado de Aguiar Júnior sustentam, também, que boa-fé subjetiva está relacionada com a teoria da aparência, que atua “para proteção do terceiro que confia na aparência de uma posição jurídica criada, direta ou indiretamente, pela contraparte.” (AGUIAR, 2004, p. 244)
Quanto ao princípio da boa-fé objetiva – aplicável preponderantemente sobre os contratos –, de forma singela, este pode ser definido como um dever de corresponder com lealdade à necessária confiança da outra parte contratante, de ver de observar um padrão de conduta íntegro, honesto, que se espera de todo aquele que está inserido ao meio social no qual o negócio jurídico se realiza. Esse dever de conduta, boa-fé, é inerente aos contratos, vale dizer, independe de previsão contratual.
O Professor Paulo Dóron Rehder de Araújo[3] ensina em suas aulas, que, analogicamente “pode-se dizer que a boa-fé objetiva está para os contratos assim como o fair play está para o esporte.
Fair play, com efeito, significa “jogo limpo”, jogo leal, que vai além de respeitar as regras, abrangendo a noção de coleguismo e respeito para com os outros jogadores.
Semelhantemente, para que haja segurança nas relações contratuais, há determinado padrão de conduta que se espera dos contratantes em geral, padrão esse – a ser verificado e mensurado pelo julgador – que, se violado fere o princípio da boa-fé objetiva, sujeitando a relação à intervenção judicial.
2.2 Aplicação do princípio da boa-fé objetiva em contratos interempresariais
A aplicação do princípio da boa-fé objetiva, por tratar-se de uma norma jurídica aberta, vale dizer, com um grau de abstração relativamente elevado, que não exige incisivamente um comportamento específico, depende de um esforço maior do julgador para encontrar, por meios de juízo de razoabilidade e proporcionalidade, a medida adequada da aplicação da norma ao caso concreto.
O julgador deverá analisar as circunstâncias peculiares da relação contratual, referentes às partes e ao negócio jurídico, e deverá também analisar o conjunto de normas aplicáveis ao caso, para, então, estabelecer um modelo objetivo de conduta que deveria ser observado pelos contratantes, e, confrontando esse modelo objetivo de conduta com a conduta praticada pelas partes, verificar se houve ou não violação ao princípio da boa-fé objetiva.
Isso, em princípio, pode gerar certa preocupação nos operadores do direito, uma vez que parece dar elevado grau de discricionariedade aos magistrados em suas decisões. No entanto, vale lembrar que a decisão do juízo de primeiro grau está sujeita a reapreciação pelo juízo de segundo grau, a deste pelas instâncias superiores. Além disso, o fato de haver maior discricionariedade não dispensa o juízo de fundamentar consistentemente sua decisão, conforme a previsão constitucional (CF, art. 93, inc. IX), pelo contrário, exigirá mais consistência para justificar os critérios utilizados para se estabelecer um modelo objetivo de conduta.
Efetivamente quanto à aplicação da boa-fé objetiva, os juristas têm se debruçado sobre essa questão para prestar um auxílio, tão necessário, para o estabelecimento de critérios de aplicação do princípio.
Consoante Orlando Gomes (2007, p. 44), in verbis:
“Por se tratar de princípio amplo, carente de concretização para ser aplicado no caso concreto, procurou-se sistematizar os diferentes papéis da boa-fé no campo contratual. A mais difundida é uma classificação tripartite das funções do princípio da boa-fé” (função interpretativa, função supletiva e função corretiva).
Compartilha do mesmo entendimento Sílvio de Salvo Venosa (2005, p. 410), para o qual:
“Desse modo, pelo prisma do vigente Código, há três funções nítidas no conceito de boa-fé objetiva: função interpretativa (art. 113); função de controle dos limites do exercício de um direito (art. 187); e função de integração do negócio jurídico” (art. 422).
Nesse mesmo sentido manifestou o Conselho da Justiça Federal na I Jornada de Direito Civil[4], enunciado 26, in verbis:
“26 – Art. 422: a cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como a exigência de comportamento leal dos contratantes.”
Alguns dos principais doutrinadores, dentre os quais, Venosa (2005, p. 410), Orlado Gomes (2007, p. 45), Nelson Nery (2005, p. 381-2), são pacíficos no sentido de entender que o princípio da boa-fé objetiva aplica-se nas fases pré e pós-contratual, ou seja, é aplicável na fase de negociação, assim como após o término da relação contratual (boa-fé post pactum finitum). O referido Conselho da Justiça Federal manifestou o mesmo entendimento pelo enunciado 25 da I Jornada de Direito Civil[5].
Referindo-se a aplicação do princípio da boa-fé objetiva, Miguel Reale em A Boa-fé no Código Civil (2003, p. 4-5), proporcionou um ensinamento que merece destaque:
“Concebida desse modo, a boa-fé exige que a conduta individual ou coletiva – quer em Juízo, quer fora dele – seja examinada no conjunto concreto das circunstâncias de cada caso.
Exige, outrossim, que a exegese das leis e dos contratos não seja feita in abstrato, mas sim in concreto. Isto é, em função de sua função social.
Com isto quero dizer que a adoção da boa-fé como condição matriz do comportamento humano, põe a exigência de uma “hermenêutica jurídica estrutural”, a qual se distingue pelo exame da totalidade das normas pertinentes a determinada matéria.
Nada mais incompatível com a idéia de boa-fé do que a interpretação atômica das regras jurídicas, ou seja, destacadas de seu contexto. Com o advento, em suma, do pressuposto geral da boa-fé na estrutura do ordenamento jurídico, adquire maior força e alcance do antigo ensinamento de Portalis de que as disposições legais devem ser interpretadas umas pelas outras.
O que se impõe, em verdade, no Direito, é captar a realidade factual por inteiro, o que deve corresponder ao complexo normativo em vigor, tanto o estabelecido pelo legislador como o emergente do encontro das vontades dos contratantes.
É que está em jogo o princípio de confiança nos elaboradores das leis e das avenças, e de confiança no firme propósito de seus destinatários no sentido de adimplir, sem tergiversações e delongas, aquilo que foi promulgado ou pactuado.”
Ou seja, afirmando de maneira simplista o que Miguel Reale ensina brilhantemente, considerando-se boa-fé objetiva como princípio de direito, um artigo de lei “pinçado” de seu contexto legal nunca pode ser aplicado isoladamente ao caso concreto, assim como as cláusulas contratuais também não podem ser consideradas de forma isolada, isto é, sem ser lavado em conta o contexto contratual e fático.
É importante frisar que o dever o princípio da boa-fé, em sua função integrativa, ou supletiva (art. 422 do CC), é fonte de deveres anexos, os quais não são as obrigações centrais (a “alma do negócio”), mas são exigíveis (apesar de não escritos) e essenciais para o fiel cumprimento das avenças e para ser evitado que um contratante leve vantagem em detrimento do outro.
Sobre tais deveres, Orlando Gomes (2007, p. 44-5) esclarece:
“Em função supletiva, a boa-fé atua criando deveres anexos (também chamados laterais, secundários ou instrumentais). Além dos deveres principais, que constituem o núcleo da relação contratual, há deveres não expressos cuja finalidade é assegurar o perfeito cumprimento da prestação e a plena satisfação dos interesses envolvidos no contrato. Dentre estes, destacam-se os deveres de informação, sigilo, custódia, colaboração e proteção à pessoa e ao patrimônio da contraparte.”
Nesse sentido também já se posicionou o Conselho da Justiça Federal pelo enunciado 24 da I Jornada de Direito Civil[6]:
“24 – Art. 422: Em virtude do princípio da boa-fé, positivado no CC 422, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa.”
Através da doutrina e da jurisprudência (inclusive a estrangeira) no que diz respeito à forma de aplicação do princípio da boa-fé objetiva, algumas teorias foram criadas, pelas quais a boa-fé objetiva pode ser efetivamente aplicada como fundamento de uma decisão judicial, dentre as quais se destacam: (i) proibição do venire contra factum proprium, a qual visa impedir que a pessoa tenha comportamentos contraditórios, aceitando certa posição jurídica quando lhe convém, e negando tal posição para levar alguma vantagem; (ii) surrectio e supressio, que consistem, respectivamente, na aquisição ou na perda de um direito, pelo transcurso do tempo, direito o qual, pelo seu não uso, gerou na outra parte a confiança de que não seria exercido; (iii) tu quote, pela qual se proíbe o aproveitamento de posição jurídica indevidamente obtida; (iv) duty to mitigate the loss, pela qual o credor deve evitar o agravamento do próprio prejuízo (no sentido de permitir danos maiores, podendo evitá-los, no intuito de obter futuro ressarcimento; (v) deveres anexos, ou deveres secundários de conduta (acessórios à obrigação principal do contrato), tais quais deveres de proteção, esclarecimentos, lealdade etc.
O objetivo principal do presente estudo é examinar de maneira consideravelmente minuciosa a forma pela qual o Tribunal de Justiça de São Paulo vem aplicando a boa-fé objetiva em suas decisões. Esse é, pois, o motivo pelo qual se evitou o aprofundamento nas questões doutrinárias. Com efeito, buscou-se estabelecer os conceitos necessários a servirem de base para o acompanhamento do restante do estudo.
Em suma, pode-se dizer que, por ser o princípio da boa-fé objetiva uma cláusula geral (ou, cláusula aberta), o legislador concedeu ao magistrado maior discricionariedade quando da aplicação de tal dispositivo. Sendo definido basicamente como um dever de lealdade entre os contratantes, assim como modelo objetivo de conduta a ser observado, devendo agir como agiria uma pessoa honesta, escorreita e leal, cabe ao julgador definir em cada caso qual deverá ser o padrão de conduta a ser admitido como boa-fé.
No entanto, discricionariedade não significa falta de padrões, ou “carta branca” para julgar conforme queira. Entendemos que, conforme a previsão constitucional que determina ao magistrado fundamentar suas decisões (CF. art. 93, IX), que a aplicação do princípio em questão deve ser fundamentada, com a exposição dos critérios pelos quais baseia para definir boa-fé objetiva no caso concreto.
3 APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA NOS CONTRATOS INTEREMPRESARIAIS PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO
3.1 Dos critérios de seleção dos acórdãos e classificação dos grupos
O principal objetivo do presente estudo é analisar a forma com a qual o Tribunal de Justiça de São Paulo vem aplicando o princípio da boa-fé objetiva em suas decisões.
Para tanto foi utilizado os seguintes critérios para a seleção dos acórdãos:
Site: www.tj.sp.gov.br
Link: “Jurisprudência”
Em “Pesquisa por campos específicos”, no campo: “Ementa”
Palavras-chaves: “ ‘boa-fe objetiva’ contrato”
Data do julgamento: “01/01/2009 até 31/12/2009”
Total: 188 acórdãos
Desse total de 188 (cento e oitenta e oito) acórdãos em cujas ementas constavam os termos “boa-fé objetiva” e “contrato”, 50 (cinqüenta) eram relacionados a contratos interempresariais, vale dizer, o contrato que ocasionou a lide foi celebrado entre empresas (sociedades empresárias). Os demais contratos (relacionados aos outros 138 acórdãos) eram entre pessoas físicas, ou entre pessoa física e pessoa jurídica – nestes últimos aplica-se direito do consumidor ou administrativo –, tipos de contrato que não foram objetos do presente estudo.
Foram selecionados, portanto, 50 (cinqüenta) acórdãos, pelos critérios mencionados. Desses 50 acórdãos, 2 (dois) foram excluídos – quais sejam, Ap. 7.148.004-1, 21ª Cam. D. Priv., TJSP, rel. Des. Virgílio de Oliveira Júnior, j. 30-09-2009, v.u.; e, Emb. Decl. 1.146.963-1/01, 20ª Cam. D. Priv., TJSP, rel. Des. José Maria Câmara Júnior, j. 02-09-2009, v.u. – por serem incompatíveis com os critérios de classificação e análise jurisprudencial (adiante esclarecidos) adotados neste trabalho.
Portanto, foram analisados 48 (quarenta e oito) acórdãos nos quais a questão de mérito era relacionada a contrato interempresarial – entre sociedades empresárias – e decidida com fundamento no princípio da boa-fé objetiva.
Com efeito, dessa análise, a pergunta a ser respondida é: o Tribunal de Justiça, quando aplica o princípio da boa-fé objetiva, o faz como efetivo fundamento da decisão, ou como mera argumentação retórica destituída de conteúdo?
Os acórdãos foram classificados em três grupos, a seguir esclarecidos.
3.1.1 Aplicação efetiva do princípio da boa-fé objetiva como fundamento da decisão.
Desse grupo fazem parte os acórdãos nos quais os julgadores aplicaram a boa-fé objetiva da forma pela qual foi referido no terceiro capítulo desta obra (onde foi mencionada a forma pela qual se dá tal aplicação), ou seja, quando da aplicação do princípio, deve o magistrado, em suma, verificar o conjunto de normas aplicáveis ao caso, verificar o conjunto de direitos e deveres contidos no contrato – eliminando excessos e ilegalidades –, considerar as circunstâncias peculiares relacionadas ao senso comum no qual o contrato está inserido, e assim, estabelecer um modelo objetivo de conduta a ser observado pelas partes contratantes como sendo probo, leal e de boa-fé; após a construção desse modelo de conduta o magistrado confronta o comportamento das partes com tal modelo e verifica, assim, se elas agiram em conformidade com a boa-fé objetiva.
3.1.2 Aplicação superficial do princípio da boa-fé objetiva como fundamento da decisão.
Por essa classificação foram selecionados os acórdãos nos quais os magistrados fundamentaram sua decisão com base na boa-fé objetiva, porém o fizeram de forma superficial, vale dizer, aplicando somente em parte a técnica para a aplicação do princípio, seja por não terem construído um modelo objetivo de conduta para o caso, seja por não confrontar o comportamento das partes com modelo de conduta construído precariamente – sem efetivo fundamento – para o caso, seja por não terem verificado peculiaridades relacionadas ao senso comum no qual está inserido o contrato, ou seja, a aplicação se deu de forma grosseira, rápida, não aprofundada. Outrossim, em alguns desses acórdãos os magistrados aplicaram a boa-fé subjetiva, e fundamentaram a decisão erroneamente, data venia, como tendo aplicado a boa-fé objetiva. Vale ressaltar que neste grupo há questões de baixa complexidade, de forma que em alguns casos é compreensível tal superficialidade, embora não se justifique.
3.1.3 Aplicação do princípio da boa-fé objetiva como mera argumentação retórica.
Por essa classificação foram selecionados acórdãos nos quais os julgadores mencionaram o princípio da boa-fé objetiva como fundamento da decisão, porém, ao se buscar a forma pela qual o princípio foi aplicado verificou-se que a menção ao princípio veio destituída de qualquer conteúdo, ou seja, não foi analisado nada do que diz respeito às circunstancias do meio no qual o contrato está inserido, não foi construído um modelo objetivo de conduta aplicável ao caso, e, sequer foram consideradas peculiaridades relacionadas aos fatos. Por essa classificação, a boa-fé objetiva foi mencionada como tendo sido violada, ou não violada, porém, sem quaisquer fundamentos que justificassem tais conclusões.
3.2 Da análise dos acórdãos e dos resultados
Da análise dos acórdãos conforme os critérios de classificação mencionados, ressaltando-se que foram analisados 48 (quarenta e oito julgados), chegou-se aos seguintes resultados:
1) Aplicação efetiva do princípio da boa-fé objetiva como fundamento da decisão: 30 (trinta) acórdãos;
2) Aplicação superficial do princípio da boa-fé objetiva como fundamento da decisão: 16 (dezesseis) acórdãos;
3) Aplicação do princípio da boa-fé objetiva como mera argumentação retórica: 2 (dois) acórdãos.
Com base nesses dados foi construído o seguinte gráfico:
A
O gráfico, assim como o exame detalhado dos acórdãos, demonstra que há um esforço por parte dos magistrados do Tribunal de Justiça de São Paulo em aplicar esse importante princípio que vem se tornando essencial para a solução de um crescente número de demandas.
A seguir serão analisadas com mais detalhes alguns dos acórdãos de cada grupo.
3.2.1 Aplicação efetiva do princípio da boa-fé objetiva como fundamento da decisão[7].
Caso nº 1 – Apelação nº 942.734-0/2, 25ª Cam. de Direito Privado, TJSP, rel. Des. Ricardo Pessoa de Mello Belli, j. 29-09-2009, v.u. (Disponível em: <www.tj.sp.gov.br>. Acesso em: julho de 2010.)
A apelação foi interposta por Produtobrasil Atendimento Ltda. e José Otávio Lima Gonçalves, e teve como apelada a Microsoft Informática Ltda. Abaixo, alguns trechos, in verbis:
“Ementa: Apelação – Prestação de serviços – Ação de indenização por danos materiais e morais – Empresa contratada para dar suporte técnico aos consumidores de produtos da empresa de software contratante – Contrato verbal – Parceria que perdurou por mais de cinco anos – Ruptura da relação pela contratante dos serviços, sem razoável pré-aviso – Justa causa não demonstrada – Indenização devida, por infração ao princípio da boa-fé objetiva, para compensar a perda dos investimentos feitos pela contratada e pelos gastos que realizou com a desativação da estrutura de serviços – Clássico entendimento hoje traduzido em norma legal expressa, a do art. 473, parágrafo único, do CC – Compensação econômica que deve ser estabelecida a partir de arbitramento judicial, pois inviável a efetiva mensuração das perdas, de ordem material e imaterial – Hipótese dos autos em que se toma como norte da fixação da indenização o critério estabelecido no art. 27 da Lei n° 4.886/65, que tarifa a indenização pelo rompimento imotivado do contrato de representação comercial – Sentença de improcedência da demanda parcialmente reformada, com o acolhimento parcial do pleito indenizatório – Proclamação de sucumbência recíproca.
1 – Trata-se de ação de indenização por danos materiais e morais proposta por PRODUTOBRASIL ATENDIMENTO LTDA. e JOSÉ OTÁVIO LIMA GONÇALVES em face de MICROSOFT INFORMÁTICA LTDA.
Decorre o pleito de contrato verbal de prestação de serviços celebrado entre as partes em 1991, mediante o qual a empresa autora dava suporte a clientes da ré, esclarecendo-lhes dúvidas no manuseio dos respectivos programas. Posteriormente, o objeto dos serviços foi ampliado e a autora passou a também realizar, em nome da ré, a troca de produtos defeituosos. Em razão da grande demanda dos serviços dos serviços, a empresa autora se viu compelida a aumentar e sofisticar sua infra-estrutura. A partir de 1995, sentindo necessidade de formalizar o contrato, até então verbal, cobraram os autores da ré a feitura de contrato escrito. Após idas e vindas, relutante quanto à proposta de formalização do negócio, a ré acabou por denunciar o contrato em dezembro de 1996, contratando novas empresas para substituir a autora e aproveitando quase todos os funcionários dela, demandante, os quais levaram todo o “know how” da área de suporte. Com isso, os autores tiveram incontáveis prejuízos, até porque atendiam à demanda da ré com exclusividade. Donde a propositura da ação, objetivando a condenação da ré ao pagamento de indenização […]”. (p. 2 do acórdão, grifo nosso)
A ação foi julgada improcedente pelo juízo de 1º grau, por entender não terem sido comprovados os fatos alegados na inicial, e não enxergar ilicitude no rompimento do contrato (p. 3), em fls. 904/907 dos autos da ação.
A Turma Julgadora destacou que a Microsoft, com significativa superioridade econômica em relação a Produtobrasil, resistiu obstinadamente à formalização do contrato por escrito (o contrato, que já durava 5 anos, era verbal). Considerou tal conduta da Microsoft como destinada a deixar a outra parte à mercê de seus interesses, e dificultar-lhe o reconhecimento da relação em eventual demanda futura (p. 4).
Consideraram, os magistrados, que a alegada justa causa para o rompimento do contrato – alegada somente em juízo, e não mencionada na notificação de denúncia do contrato – não condizia com os fatos, em especial porque a Microsoft, que alegava deficiência na prestação dos serviços, contratou considerável número dos funcionários da apelante após o rompimento do contrato (p. 5-6).
Levaram em conta, também, que os serviços outrora prestados pela apelante (Produtobrasil) passaram a ser prestados por empresa cujo sócio gerente tinha estreito parentesco com o gerente geral da Microsoft do Brasil (p. 7).
Diante desse contexto os julgadores consideraram não ter havido justa causa para o rompimento unilateral do contrato, por parte da Microsoft, contrato esse, ressalte-se, de cinco anos prestação de serviços com exclusiva dedicação a ela (p. 8).
Seguem-se alguns trechos extraídos do acórdão, que, juntamente com os acima mencionados, demonstram a aplicação da boa-fé objetiva:
“A esse respeito, em primeiro lugar, chama a atenção o fato de o apelante José Otávio manter com a apelada desde meados de 1990 e de ter se dedicado a esta última desde então, a ponto de ter construído e incrementado a empresa coapelante para bem desempenhar a parceria formada entre os litigantes, muito embora não usufruísse da necessária segurança, à falta de um contrato escrito.
E os serviços prestados pelos apelantes renderam muitos bons frutos à apelada por largo período, fato não questionado nos autos e explicitado pelo convincente depoimento do então gerente técnico da apelada, conquanto inquirido como informante (fls. 823/825).
Sendo assim, é evidente que os apelantes contavam com a continuidade do vínculo, tanto que, como remarcado, insistiam na formalização do contrato.
A apelada, de seu turno, acalentava tal confiança, haja vista ter elaborado carta de intenções, minutas do contrato etc. (fls. 147/151, 167/184, 185/190). (p. 8-9 do acórdão) […]
Daí que o abrupto rompimento da parceria infringiu o princípio da boa-fé objetiva, vale dizer, o da ética que os contratantes devem observar na execução do negócio frente às expectativas recíprocas.
A indenização é devida para compensar as perdas experimentadas pelos apelantes com os investimentos que certamente realizaram com vistas à formação e continuidade da parceria e com os gastos também presumivelmente havidos com a desativação da estrutura pertinente ao negócio. […]
Tal entendimento, fundado, insisto, no princípio da boa-fé, é hoje traduzido em texto legal expresso, como se vê do art. 473 do CC […]” (p. 10-11 do acórdão)
A apelação foi julgada parcialmente procedente, determinando a indenização pelos danos decorrentes dos gastos no aumento e posterior desativação da estrutura necessária à prestação dos serviços, e indenização pelo rompimento do contrato sem razoável aviso prévio, não tendo sido acolhido o pedido de danos morais.
Conforme se verifica da análise do acórdão, a Turma Julgadora estabeleceu um modelo objetivo de conduta que deveria ter sido observado pelos contratantes, considerando, para tanto, além do conjunto de normas pertinentes, circunstâncias peculiares ao caso, assim como particularidades relacionadas ao tipo de negócio e o meio no qual está inserido, e apontou em quais situações houve violação ao princípio da boa-fé objetiva, o qual foi aplicado em sua função integrativa, conforme o artigo 422 do Código Civil.
Caso nº 2 – Semelhantemente, outra impecável aplicação do princípio da boa-fé, em demanda que teve reciprocamente como apelantes e apelados Petrobrás Distribuidora S/A e Posto Petrocity Ltda., foi a Apelação nº 891.290-1, 16ª Cam. D. Priv., TJSP, rel. Candido Alem, j. 19-05-2009, v.u. (Disponível em: <www.tj.sp.gov.br>. Acesso em: julho de 2010.), da qual optamos por transcrever alguns trechos para a preservação da essência de seus fundamentos; in verbis:
“RESCISÃO CONTRATUAL – Contrato de fornecimento de produtos derivados de petróleo – Ação de rescisão contratual por quebra de exclusividade, com reintegração de equipamentos emprestados (comodato) e cobrança de multa compensatória – Responsabilidade solidária – Desnecessidade de notificação – Redução da multa – Princípio da boa-fé objetiva – Inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor – Reintegração de posse dos bens que é de rigor – Recursos providos em parte.
Cuidam-se de apelações de r. sentença. Cujo relatório se adota, que julgou procedente em parte ação de reintegração de posse de bens entregues em comodato, e de multa, movida pela Petrobrás Distribuidora S/A contra empresa estabelecida com posto de revenda de combustíveis.[…]
Isso não é novidade no mundo jurídico. Há muito vigora o princípio “duty to mitigate the loss”, ou mitigação do prejuízo pelo próprio credor, ou não oneração do devedor a causar-lhe maior prejuízo […].
Isso constitui um dever de natureza acessória, um dever “anexo”, derivado da boa conduta que deve existir entre os negociantes.[…]
Para o ilustre jurista, a exigência de comportamento leal entre os contratantes compreende, ainda, a idéia contida em conceitos como “surrectio” e “supressio” […] A “supressio” refere-se ao fenômeno da supressão de determinadas relações jurídicas pelo decurso do tempo. A “surrectio”, por sua vez, consagra o fenômeno inverso, ou seja, o surgimento de uma prática de usos e costumes locais. Assim, tanto a “supressio” como a “surrectio” consagram formas de perda e aquisição de direito pelo decurso do tempo.[…]
Verificando eventual descumprimento do contrato, deveria a distribuidora de combustíveis acioná-lo imediatamente, não o fazendo acreditar em perdão, ou não esperando o agravamento da situação econômica dele, impedindo-o de reagir ante o montante exagerado do aludido débito, pois segundo o art. 422 do CC, o contratante é obrigado a guardar assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.[…]
Tem-se observado, em casos como o presente, de rescisão contratual por consumo de combustível abaixo do mínimo contratado, a imposição de absurda multa previamente contratada, sempre para exigir da revendedora a fidelidade negocial ou “da bandeira”, evitando com isso a mudança de revenda de produtos com maiores vantagens, a fim de safar-se da massacrante concorrência. Ante as dificuldades naturais do negócio de venda de combustíveis, pequena margem de lucro (no caso não impugnada a de 3% – fls. 74), grandes investimentos, alta desproporcional de salários, ônus sociais […].
Por isso que, tendo a imposição da multa caráter de apenas manter a fidelidade à bandeira da distribuidora, sem levar em conta as outras conseqüências, deve ser desconsiderada como já foi (RT 684/73 – Ap. 166.178-1/7 – 2ª Cam. – TJSP, j. 12.5.92), ou minimizada no limite da suportabilidade do posto-réu. E ante o contratado, ou seja, ante as conseqüências da finalidade do contrato, esta última é a solução a ser adotada, porque mais consentânea com a realidade dos fatos.
Tem-se ainda, sabidamente, a distribuidora, sem que o posto fizesse o consumo mínimo, vinha tolerando normalmente isso sem qualquer manifestação, levando os réus a crer que não seriam apenados. E, na realidade, só pretendeu isso ao argumento de que se estaria mudando de bandeira. Assim, fica a multa alterada para 5% da diferença entre a média apurada do lucro líquido do movimento do último ano, o que é suportável, a ser apurado em liquidação.”
Esse acórdão, transcrito em parte, acima, demonstra o que de fato é a aplicação do princípio da boa-fé objetiva como fundamento da decisão. A Turma Julgadora analisou primeiramente a função da boa-fé objetiva aplicável referindo-se às teorias da “supressio”, “surrectio” e “duty to mitigate the loss”, e ao art. 422 do CC; considerou o contrato em seu contexto amplo e não somente cláusulas isoladas; igualmente, analisou circunstâncias peculiares às partes e ao meio no qual o contrato estava inserido, apontando questões econômicas e concorrenciais relacionadas aos postos de gasolina. Após isso, construíram um modelo objetivo de conduta aplicável ao caso, para somente então confrontaram o comportamento das partes com tal modelo de conduta, aplicando, assim, como verdadeiro fundamento da decisão, o princípio da boa-fé objetiva. A fundamentação foi impecável, inclusive, na aplicação da multa, que foi reduzida com base nos princípios de proporcionalidade e razoabilidade.
Há outros excelentes exemplos de aplicação do princípio da boa-fé objetiva de forma impecável como os acima demonstrados tais quais se observou nos acórdãos a seguir relacionados.
Apelação nº 1.172.406-0/5, 31ª Cam. de Direito Privado, TJSP, rel. Des. Carlos Vieira Von Adamek, j. 02-06-2009, v.u. (Disponível em: <www.tj.sp.gov.br>. Acesso em: julho de 2010.), na qual, após ter sido detalhadamente fundamentado (p. 4-6 do acórdão), o princípio da boa-fé foi aplicado na função integrativa, evocando deveres contratuais anexos ao principal.
Ação Rescisória nº 992.09.049036-2, 31ª Cam. de Direito Privado, TJSP, rel. Des. Adilson de Araujo, j. 01-12-2009, v.u. (Disponível em: <www.tj.sp.gov.br>. Acesso em: julho de 2010.), na qual foi aplicado o princípio da boa-fé na função integrativa, pela teoria da “supressio”, aplicando-se, juntamente, o princípio da função social do contrato (p. 16-21 do acórdão).
Apelação nº 218.315-4/7-00, 8ª Cam. D. Priv., TJSP, rel. Caetano Lagrasta, j. 11-11-2009, v.u. (Disponível em: <www.tj.sp.gov.br>. Acesso em: julho de 2010.), aplicação do princípio da boa-fé na função integrativa (p. 3-4, 6-7 e 9-11).
Apelação nº 7.392.210-4, 11ª Cam. D. Priv., TJSP, rel. Gilberto dos Santos, j. 24-09-2009, v.u., aplicação do princípio da boa-fé pela teoria do “tu quote”, vedando o aproveitamento de posição jurídica indevidamente obtida (p. 3-5).
Agravo de Instrumento nº 1.272.647-0/6, 26ª Cam. D. Priv., TJSP, rel. Des. Carlos Alberto Barbi, j. 07-07-2009, v.u. (Disponível em: <www.tj.sp.gov.br>. Acesso em: julho de 2010.), aplicação do princípio da boa-fé objetiva e do dever de cooperação, assim como da teoria do adimplemento substancial (p. 3-6).
Apelação nº 695.485-0/3, 32ª Cam. D. Priv., TJSP, rel. Des. Walter Cesar Incontri Exner, j. 22-10-2009, v.u. (Disponível em: <www.tj.sp.gov.br>. Acesso em: julho de 2010.), na qual se verifica, com excelente fundamentação, a aplicação da boa-fé objetiva na função integrativa, considerando, em suma, num contrato de locação visando a instalação de livraria em shopping Center em fase de construção (res sperata), celebrado em conjunto com “contrato de participação no fundo de instalação e decoração do Grand Shopping Santo André”, o fato de não haver prazo para inauguração do Shopping no contrato não justificaria demora demasiadamente excessiva para o término das obras; os magistrados levaram em conta os aspectos legais, contratuais e as circunstâncias peculiares do caso e do ramo, construindo modelo objetivo de conduta que foi confrontado com a conduta das partes; (p. 7, 9-12 e 17-24). Considerado por este autor aplicação da boa-fé objetiva de forma impecável.
Enfim, em todos os acórdãos classificados neste grupo, com maior ou menor perícia técnica dos magistrados, verificou-se a aplicação do princípio da boa-fé objetiva como verdadeiro fundamento da decisão.
Os demais acórdãos desse grupo 1 encontra-se arrolados no Anexo desta obra.
3.2.2 Aplicação superficial do princípio da boa-fé objetiva como fundamento da decisão[8].
Neste grupo encontram-se decisões cuja fundamentação não poderia ser classificada no grupo 1, tendo em vista os critérios adotados.
Em alguns dos acórdãos relacionados neste grupo, verifica-se ao analisá-los de forma mais aprofundada, uma proximidade quanto à efetiva fundamentação exigida no grupo 1. Em tais decisões parece que, de fato, os julgadores aplicaram a boa-fé objetiva, mas não justificam sua fundamentação apontando um modelo objetivo de conduta aplicável ao caso, de forma que fica difícil um observador externo à decisão constatar a efetiva aplicação do princípio.
No entanto, na maior parte das decisões neste grupo relacionadas observou-se que os magistrados apontavam, primeiramente, a culpa de um ou ambos os contratantes para, com base nisso fundamentar a violação à boa-fé objetiva. Ora, conforme na referido no capítulo 3 desta obra, a culpa é elemento subjetivo, psicológico, e diz respeito à boa-fé subjetiva. Vale esclarecer que, embora possa ocorrer de a parte agir com culpa ou dolo, quando da violação da boa-fé objetiva, não são estes os critérios de verificação desta espécie de boa-fé (objetiva), uma vez que na aplicação desta é analisado o comportamento do contratante, independentemente se suas intenções. Com efeito, ao iniciar-se a análise para verificação do elemento culpa aplica-se a teoria da boa-fé subjetiva, a qual é o oposto de má-fé, que constitui-se em elemento subjetivo, psicológico do contratante.
Nesses acórdãos, deste grupo 2, cuja fundamentação se deu pela aplicação da boa-fé subjetiva, mas erroneamente chamada pelos julgadores de boa-fé objetiva, os magistrados, em alguns casos, adotaram a teoria da aparência com forma de aplicação da boa-fé objetiva. Ora, teoria da aparência é elemento característico da boa-fé subjetiva, conforme melhor esclarecido no terceiro capítulo, retro.
Contudo, falta o espaço, nesta obra, para uma análise mais aprofundada deste grupo, de forma que se optou por não expor pormenorizadamente a análise de nenhum dos acórdãos.
Com efeito, todos os acórdãos relacionados neste grupo 2, os quais foram analisados um a um, encontram-se arrolados no Anexo desta obra.
3.2.3 Aplicação do princípio da boa-fé objetiva como mera argumentação retórica[9].
Caso nº 3 – Ap. Cív. 651.005-4/0-00, 6ª Cam. D. Priv., TJSP, rel. Sebastião Carlos Garcia, j. 10-12-2009, v.u. (Disponível em: <www.tj.sp.gov.br>. Acesso em: julho de 2010.)
Seguem-se trechos do acórdão seguidos de análise do caso.
“PLANO DE SAÚDE – Contrato Coletivo – Pleito ajuizado pela empresa contratante de plano de saúde para seus beneficiários – Pretendida declaração de nulidade da cláusula contratual que prevê o direito de rescisão, com pedido de manutenção do contrato – Descabimento – Previsão de rescisão contratual que não se mostra irrita ao bom direito, tanto mais porque prevista para ambos os contratantes e condicionada à prévia notificação – Ausência de violação a dispositivo da Lei n° 9.656/98, posto que esta aplica-se apenas aos contratos individuais e familiares – Entendimento do Colendo Superior Tribunal de Justiça – Descabimento da sustentação da violação da boa-fé objetiva e da função social dos contratos – Apelo improvido.
1ª Igreja Reunida em São Mateus ingressou com ação declaratória de nulidade de cláusula contratual, cumulada com obrigação de fazer, havendo sido julgada improcedente (fls. 135/138).
Irresignado, porém, apelou o autor, sustentando, em síntese que: embora o contrato de plano de saúde seja empresarial, sujeita-se ao Código de Defesa do Consumidor, e, assim, a cláusula 17.1, que prevê a resilição unilateral e imotivada é abusiva, à luz do artigo 51, inciso IV, desse diploma legal, assim como no concernente à Lei nº 9.656/98 (fls. 142/158).
Efetuado o preparo, o recurso foi processado e contrariado (fls. 164/169).
É o relatório.
O recurso não está em caso de ser provido, mantendo-se a respeitável sentença por seus bem deduzidos fundamentos, sem embargo, não obstante, dos argumentos dos apelantes em suas razões recursais.
Nesse sentido, primeiramente, insta consignar que a pretensão deduzida nesta demanda refere-se à declaração de nulidade da cláusula n. 17.1 do contrato de plano de saúde, a qual prevê o direito de rescisão do contrato por ambas as partes, de resto invocada e exercida pela ora ré-apelada, ao cancelar efetivamente o contrato, resultando daí também o pedido da autora-apelante de continuidade da avença.[…]
Especificamente no caso dos autos, a resilição era prevista como iniciativa facultada a ambas as partes, desde que cumprida a formalidade da notificação com prazo mínimo de 60 (sessenta) dias. Nada havia de ilegal, portanto, na resilição operada pela ré.[…]
Conquanto a apelante sustente que a rescisão do contrato trará prejuízos aos beneficiários do plano de saúde, especialmente os idosos e aqueles que estão sob tratamento médico, com supedâneo na cláusula contratual impugnada de rescisão da avença, com a qual anuiu, não é possível a alteração do rumo da improcedência desta demanda, pois de ilegal ou de abusiva não se pode acoimá-la.
Nessa ordem de idéias, descabe falar em violação aos princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva (artigo 422 do Código Civil), pois as partes livremente pactuaram a possibilidade de rescisão da avença mediante prévia comunicação, o que de resto foi observado nos autos, e tal pactuação não é ilegal nem contrária ao bom direito, do que decorre a manutenção do decreto de improcedência da ação.” (grifo nosso)
A aplicação do princípio da boa-fé objetiva se deu como mera argumentação retórica, ou melhor, não foi efetivamente aplicado o princípio, embora haja menção do mesmo nos fundamentos da decisão. Os magistrados unicamente analisaram a validade ou não de cláusula contratual que admitia resilição unilateral de contrato mediante notificação prévia de 60 dias. Porém, para que fosse efetivamente aplicado o princípio da boa-fé objetiva seria necessário analisar o contexto no qual a relação contratual se encontra, assim como algumas peculiaridades relacionadas às partes. Outrossim, embora mencionem certos aspectos fáticos, estes não foram sequer considerados, uma vez que a suma de toda a decisão se fundamenta no fato de haver cláusula contratual permitindo rescisão do contrato mediante notificação prévia de sessenta dias. Além de tal fundamento, o resto são meras tergiversações e menção ao princípio da boa-fé destituída, porém, de qualquer conteúdo quanto sua forma de aplicação.
Vale frisar que os julgadores sequer mencionaram há quanto tempo o contrato vigorava entre as partes, uma vez que num contrato de seguro de acidente ou de saúde que vigore durante 15 anos, o direito de resilição unilateral deve ser visto de forma diferente do que num contrato com o mesmo objeto celebrado há menos de 2 (dois) anos. Com efeito, as relações obrigacionais de longa duração exigem grau diferenciado de lealdade, em especial quando se trata da saúde de pessoas, mormente quando em tratamento médico.
Deveria a turma julgadora ter estabelecido um modelo objetivo de conduta a ser considerado no caso como leal, probo e de boa-fé, para aí sim analisar o comportamento das partes em confronto a esse modelo.
No entanto, os magistrados, limitando-se a analisar a validade ou não de cláusula contratual, como foi feito no caso, sem levar em conta o comportamento das partes e nem suas peculiaridades, não aplicaram nem de longe, o princípio da boa-fé objetiva. (p. 2-4 e 6).
Outrossim, embora os julgadores tenham mencionado decisão do STJ amparando seu entendimento, nem assim há razão para tal fundamento, vez que trata-se de entendimento minoritário e ultrapassado.
Há considerável número de decisões do STJ e, principalmente, do TJ-SP no sentido de impedir denúncia imotivada de contratos de plano de saúde – inclusive coletivos –, exigindo para tanto justa causa, quando a relação obrigacional já vigora a tempo razoável, como sete ou dez anos. Alguns desses acórdãos são os seguintes: REsp. nº 602.397-0 – RS, rel. Min. Castro Filho, Terceira Turma, v.u.; Ag. I. 376.586-4/6, TJSP, rel. Des. Morato de Andrade, j. 12-04-2005, v.u.; Ap. 426.876-4/8, TJSP, re. Des. Ênio Santarelli Zuliani; Ap. 436.229.4/0-00, 4ª Cam. D. Priv., TJSP, rel. Des. Francisco Loureiro, j. 29-05-2008.
Além desses acórdãos mencionados, há vários outros recentes impedindo a rescisão unilateral imotivada de contrato de plano de saúde cuja relação obrigacional já perdura há cerca de dez anos – ressaltando-se que os magistrados basearam-se no princípio da boa-fé objetiva –, são eles: Ap. 1.184.873-00/8, 26ª Cam. D. Priv. TJSP, rel. Des. Norival Oliva, j. 04-02-2009, v.u.; Emb. Infr. 1.158.176-1/6, 35ª Cam. D. Priv., TJSP, rel. Des. José Malerbi, j. 23-11-2009, v.u.; segue-se, ainda, a ementa de outro desses acórdãos, in verbis:
“EMENTA: SEGURO DE VIDA E ACIDENTES PESSOAIS EM GRUPO – AÇÃO DECLARATÓRIA – RECUSA DA SEGURADORA À RENOVAÇÃO DO CONTRATO – DISPOSIÇÃO CONTRATUAL QUE AUTORIZA A DENÚNCIA IMOTIVADA – NULIDADE – VIOLAÇÃO DE DISPOSITIVOS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E AFRONTA AOS PRINCÍPIOS DA BOA-FÉ OBJETIVA E FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO – É nula de pleno direito a cláusula que admite a rescisão unilateral, pela segui adora, de contrato de seguro de vida, com fulcro em simples manifestação de vontade no sentido de não pretender a renovação da apólice. Permitir tal rescisão, após sucessivas renovações automáticas, por diversos anos, e no momento em que a idade do segurado o torna mais suscetível à ocorrência do sinistro, importa em violação à boa-fé objetiva e função social dos contratos e coloca o consumidor hipossuficiente em desvantagem excessiva, o que não se pode admitir – Apelos improvidos.” (Ap. 1.070.646-0/4, 35ª Cam. D. Priv., TJSP, rel. Des. José Malerbi, j. 23-11-2009, v.u.)
Curiosamente, o outro acórdão no qual o princípio da boa-fé objetiva foi utilizado como mera argumentação retórica foi a Apelação nº 7.073.039-1, 18ª Cam. D. Priv. , TJSP, rel. Des. Rubens Cury, j. 14-04-2009, v.u. (Disponível em: <www.tj.sp.gov.br>. Acesso em: julho de 2010.), na qual, de forma semelhante ao que se deu com o acórdão desse mesmo grupo 3, acima analisado, os julgadores contrariaram linha jurisprudencial predominante.
A conclusão que se pode extrair da análise deste terceiro grupo é que, quando os magistrados usaram o princípio da boa-fé objetiva de forma meramente retórica, destituída de conteúdo e fundamento, esses julgadores contrariaram a linha jurisprudencial predominante da aplicação da boa-fé objetiva e violaram esse princípio.
Felizmente, os únicos acórdãos nos quais o princípio da boa-fé objetiva foi aplicado como mera argumentação retórica foram esses classificados no Grupo 3, ou seja, apenas 2 (dois) acórdãos. Mesmo assim, constitui-se efetivo prejuízo ao Direito, em especial àqueles que tiveram seu direito lesado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O resultado deste estudo parece satisfatório. Levando-se em consideração, como é cediço, o elevado número de processos que tramitam anualmente no Tribunal de Justiça de São Paulo, somado à “pressão” exercida pelo Conselho Nacional de Justiça sobre o Poder Judiciário cobrando celeridade nos julgamentos e estabelecendo metas aos magistrados, pode-se considerar que o TJ-SP vem fazendo um bom trabalho.
Os números falam por si:
– de um total de 48 (quarenta e oito acórdãos);
– 30 (trinta) foram julgados de forma plenamente satisfatória (63%);
– 16 (dezesseis) foram julgados de forma razoavelmente satisfatória (33%);
– 2 (dois), apenas, foram julgados de forma reprovável (4%).
No entanto, ao considerar-se o dito popular de que “o bom é inimigo do excelente”, o que se constatou é que há necessidade de aperfeiçoamento quanto aos julgamentos realizados pelo Tribunal de Justiça de São Paulo no que diz respeito ao assunto desenvolvido neste estudo.
É necessário que se admita que há três motivos (pelo menos) pelos quais esses percentuais não devem ser considerados como uma amostra do que ocorre no todo sobre o tema desta obra, quais sejam: (i) este estudo foi realizado sobre um curto lapso temporal (por motivos já esclarecidos), que foi o ano de 2009, fato que, por si só, limita os resultados do estudo; (ii) embora se tenha empregado consideráveis esforços em selecionar todos (ou quase todos) os acórdãos que correspondessem àqueles que foram objeto de julgamento pelo TJ-SP, no período proposto, sobre o tema do estudo, há, sem dúvida, sérios riscos de que alguns acórdãos que deveriam tem sido analisados não o foram; (iii) o último, e, talvez principal motivo, seja que o autor desta obra pode não ter realizado as análise dos acórdãos com toda a perícia técnica necessária.
Com efeito, em que pesem tais limitações, acreditamos que o estudo proposto chegou a resultados relativamente próximos à realidade.
Por meio das análises realizadas verificou-se que há considerável número de decisões de altíssimo nível, vale dizer, decisões nas quais se empregou uma apurada técnica para a realização dos julgamentos.
Vale considerar, por fim, que de acordo com a análise histórica do tema, pela qual se verificou, conforme já afirmado, que de 1850, início da vigência do Código Comercial – no qual já vinha expressamente prescrito o princípio da boa-fé objetiva –, até a década de 1980, a boa-fé objetiva praticamente não foi utilizada, e que com a promulgação do Código do Consumidor – o qual também dispõe sobre o princípio – tal dispositivo passou a ser aplicado pelos magistrados de forma indiscriminada, cometendo-se excessos, verifica-se que com o início da vigência do Código Civil de 2002 a aplicação do princípio da boa-fé objetiva vem tomando um norte, no sentido de serem estabelecidos critérios e criados precedentes, os quais têm norteado os magistrados e respaldado os operadores do Direito em geral.
Por isso, o que se conclui é que há certa segurança jurídica na aplicação do princípio da boa-fé, norma de tamanha importância, que, nas palavras de Miguel Reale (2003, p. 1), considerado o “pai” do novo Código Civil, constitui-se em “uma norma que condiciona e legitima toda a experiência jurídica, desde a interpretação dos mandamentos legais e das cláusulas contratuais até as suas últimas conseqüências”.
Informações Sobre o Autor
Rodolfo Rubens Martins Correa
Advogado. Pós-Graduado em Direito Empresarial pela FGV-SP. Mestrando em Direito Comercial pela PUC-SP.