As teorias e os pressupostos de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro

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Resumo: Analisar a pessoa jurídica como ente dotado de autonomia, direitos e obrigações e abordar as teorias que englobam a desconsideração da personalidade jurídica, bem como os pressupostos autorizadores de sua aplicação.

Palavras-chave: Pessoa jurídica – personalidade – desconsideração – teorias – aplicação.

Sumário: 1. Introdução; 2. Existência da pessoa jurídica – personalidade, capacidade e autonomia; 3. A desconsideração da personalidade jurídica; 3.1. A teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica; 3.2. A teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica; 3.3. A desconsideração inversa; 4. Breves apontamentos sobre a desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro; 5. Conclusão; 6. Referências bibliográficas.

1. Introdução

Na atual conjuntura da vida moderna, muitas organizações societárias são criadas para fraudar credores ou burlar a lei. A desconsideração da personalidade jurídica é um instituto que serve para coibir tais atos ilícitos e para proteger a própria autonomia da sociedade. Deste modo, o presente artigo científico possui como escopo principal expor ao leitor os motivos que levam à aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, em análise de suas teorias maior e menor, solidificado na doutrina e no entendimento dos tribunais.

2. Existência da pessoa jurídica – personalidade, capacidade e autonomia

Desde os tempos mais remotos, o homem reunia-se em grupos para realizar propósitos em comum. Segundo PABLO STOLZE GAGLIANO e RODOLFO PAMPLONA FILHO, “o homem é um ser gregário por excelência”.[1]

Com o surgimento da economia e, posteriormente, o desenvolvimento econômico dos povos, a reunião em grupos fez-se mister para que o homem pudesse progredir economicamente e atingir objetivos em comum, como dito anteriormente. De acordo com ORLANDO GOMES, citado por PABLO STOLZE GAGLIANO e RODOLFO PAMPLONA FILHO, “surge assim, a necessidade de personalizar o grupo, para que possa proceder a uma unidade, participando do comércio jurídico, com individualidade”.[2]

Desta forma, pode-se classificar a pessoa jurídica como o conjunto de pessoas ou bens, dotado de personalidade jurídica própria, constituído na forma da lei, com o intuito de atingir objetivos lícitos e comuns.

Para o surgimento da pessoa jurídica, são necessários alguns pressupostos básicos, quais sejam: a) vontade humana, ou seja, a vontade de duas ou mais pessoas com interesses em comum; b) elaboração do ato constitutivo (contrato ou estatuto social), que é o meio pelo qual a pessoa jurídica adquire personalidade jurídica, desde que arquivado no registro peculiar; c) o objetivo da sociedade deve ser lícito e possível, sob pena de não ser reconhecida a existência legal da pessoa jurídica possuidora de objeto inidôneo, que está em desacordo com a legislação vigente. Portanto, a existência da pessoa jurídica somente se dará com o registro do ato constitutivo no Registro Público de Empresas Mercantis, a cargo das Juntas Comerciais, no caso de sociedades empresárias; e no Cartório de Registro Civil de Pessoa Jurídicas, no caso de fundações, associações e sociedades simples. Importante frisar que as sociedades de advogados terão seus atos constitutivos registrados na seção da Ordem dos Advogados do Brasil do estado em que estão sediadas. Desta feita, o Código Civil Brasileiro, em seu artigo 45, dispõe:

“Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo”.

Em relação à capacidade jurídica da pessoa jurídica, esta nasce independentemente do registro do ato constitutivo no respectivo órgão competente, sendo caracterizada, então, as sociedades irregulares ou de fato. A distinção feita entre as duas sociedades é simples: a primeira funciona sem as formalidades de um contrato ou estatuto social, ou seja, como se o acordo entre os sócios fosse meramente verbal, e na segunda, o ato constitutivo existe, mas não foi devidamente inscrito no registro peculiar. Neste sentido, preceitua CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA:

“A compreensão do tratamento que a lei dispensa à sociedade irregular somente pode decorrer daquele princípio, segundo o qual a aquisição de direitos é conseqüência da observância da norma, enquanto que a imposição de deveres (princípio da responsabilidade) existe sempre”. [3]

A pessoa jurídica não se confunde com a pessoa de seus sócios. O Código Civil de 1916 previa esta situação, que mesmo não recepcionada pelo novel Código, continua a vigorar doutrinariamente, a saber:

“Art. 20. A pessoa jurídica tem existência distinta da de seus sócios”.

A entidade pessoa jurídica e seus respectivos sócios possuem direitos e obrigações distintos, pois constituem pessoas distintas. O patrimônio da sociedade não se confunde com o patrimônio dos sócios e vice-versa. Neste sentido, tem-se a lição de AMADOR PAES DE ALMEIDA:

“[…] em princípio, os bens da sociedade regular ou de direito (pessoa jurídica) não se confundem com os bens dos sócios. […] goza a sociedade constituída em pessoa jurídica de capacidade, podendo adquirir direitos e contrair obrigações, obtendo, outrossim, a chamada personalidade judiciária (legitimatio ad causam ativa e passiva)”.[4]

No mesmo sentido, a Jurisprudência pátria:

“A personalidade jurídica da sociedade não se confunde com a personalidade jurídica dos sócios. Constituem pessoas distintas. Distintos também os direitos e obrigações. O sócio, por isso, não pode postular em nome próprio direito de entidade. Ilegitimidade ativa ad causam”.[5]

E, ainda, a lição do mestre RUBENS REQUIÃO:

“A sociedade transforma-se em novo ser, estranho à individualidade das pessoas que participam de sua constituição, dominando um patrimônio próprio, possuidor de órgãos de deliberação e execução que ditam e fazem cumprir a sua vontade. Seu patrimônio, no terreno obrigacional, assegura sua responsabilidade direta em relação a terceiros. Os bens sociais, como objetos de sua propriedade, constituem a garantia dos credores, como ocorre com os de qualquer pessoa natural”. [6]

3. A desconsideração da personalidade jurídica

A doutrina da desconsideração da personalidade jurídica surgiu na jurisprudência inglesa, em 1897, no caso Salomon vs. Salomon & Co.

O comerciante Aaron Salomon constituiu uma company, para quem cedeu seu fundo de comércio, recebendo, em contrapartida, vinte mil ações representativas do capital social desta sociedade, enquanto os outros seis sócios, todos seus familiares, receberam uma ação cada, para integrarem o capital social daquela company. Diante desta transação, Salomon recebeu obrigações garantidas no valor de dez mil libras esterlinas. Por conta do ocorrido, a sociedade logo se verificou insolvente, não tendo recursos para solver seus débitos perante terceiros.

Em juízo, o liquidante sustentou que a atividade da company nada mais era que a atividade de Salomon, que este desejava limitar sua responsabilidade e que ele deveria arcar com as dívidas. Em primeiro grau, foi acolhida a desconsideração da personalidade jurídica para atingir a pessoa de Aaron Salomon, mas em segundo grau a sentença foi reformada. Mesmo assim, surgiu o precedente necessário para que um estudo mais elaborado acerca deste instituto fosse proposto.

Em suma, as sociedades empresárias possuem direitos e obrigações distintos dos que possuem seus sócios, constituindo, desta forma, uma autonomia individualizada. A sociedade não se confunde com a pessoa de seus sócios. Diante desta prerrogativa, muitas vezes a pessoa jurídica, sujeito de direito autônomo, pode ser usada como instrumento na realização de fins ilícitos propostos por seus sócios, ou seja, nos dizeres de FÁBIO ULHOA COELHO:

“[…] em determinadas situações, ao se prestigiar o princípio da autonomia da pessoa jurídica, o ilícito perpetrado pelo sócio permanece oculto, resguardado pela licitude da conduta da sociedade empresária”. [7]

Portanto, desconsidera-se a personalidade da pessoa jurídica quando restar comprovado que seus sócios agiram com fraude ou abuso de direito, ou ainda se restar configurado confusão entre o patrimônio da sociedade e o patrimônio de seus sócios. Este entendimento encontra-se corroborado no artigo 50, do Código Civil, a saber:

“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.

A fraude caracteriza-se quando os sócios fazem mau uso da pessoa jurídica para se desvencilhar de obrigações perante terceiros; o abuso de direito configura os abusos nos atos praticados pelos sócios, desrespeitando a vontade de terceiros de boa fé e aos fins dispostos no contrato ou estatuto social da sociedade (desvio de finalidade), e a confusão patrimonial é a inexistência de separação entre o patrimônio do sócio e o patrimônio da sociedade.

A desconsideração da personalidade jurídica possui como objetivo preservar a autonomia da pessoa jurídica ao coibir os atos ilícitos praticados pelos seus sócios. Exsurge, então, a idéia de que a autonomia da pessoa jurídica poderá ser relativizada quando devidamente provado que seus sócios agiram com o intuito de burlar a lei. Desta forma, as pessoas físicas responderão pessoalmente pelos danos causados, sendo preservado o instituto pessoa jurídica, conforme entendimento abaixo:

“Comprovadas a infração à lei e ao contrato social, por atos empiorados pela presença de dolo e abuso de direito, impõe-se responsabilizar o sócio que, escondido sob o manto da capacidade autônoma de contrair direitos e obrigações, prejudica terceiros, fraudando a própria empresa em seu benefício exclusivo. Pela desconsideração da personalidade jurídica, recai sobre o sócio de limitada o mister de honrar, com o patrimônio particular, os compromisso assumidos pela empresa cujo apanágio é servir-lhe aos lucros, tornando inoperante a circunscrição da responsabilidade ao capital integralizado”. [8]

Faz-se mister salientar que a desconsideração da personalidade jurídica não implica a anulação do ato constitutivo da sociedade, mas apenas sua ineficácia perante o episódio ocorrido.

3.1. A teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica

A teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica possui como regra desconsiderar a autonomia da sociedade nos casos em que for configurado que seus sócios agiram com fraude ou abuso, ou ainda que houve confusão patrimonial entre os bens da pessoa física e os bens da pessoa jurídica. O supracitado artigo 50, do Código Civil aborda a teoria maior da desconsideração.

Geralmente, quando se trata na doutrina ou na jurisprudência de “desconsideração da personalidade jurídica”, refere-se à teoria maior, por possuir ampla aplicabilidade.

Existe, nas pessoas jurídicas, o chamado pressuposto da licitude, que referindo-se à idéia de FÁBIO ULHOA COELHO, tem-se o seguinte:

“[…] enquanto o ato é imputável à sociedade, ele é lícito. Torna-se ilícito apenas quando se o imputa ao sócio, ou administrador”.[9]

O pressuposto da licitude serve para distinguir a desconsideração de outras hipóteses, não relacionadas com o uso fraudulento ou abusivo da pessoa jurídica, pelas quais os sócios ou administradores da sociedade podem ser responsabilizados.

Abaixo exemplo do ilustre FÁBIO ULHOA COELHO, para melhor distinguir a abordagem do parágrafo anterior:

“A responsabilização, por exemplo, do administrador de instituição financeira sob intervenção por atos de má administração faz-se independentemente da suspensão da eficácia do ato constitutivo da sociedade. Ela independe, por assim dizer, da autonomia patrimonial da pessoa jurídica da instituição financeira. Tanto faz se a companhia bancária é considerada ou desconsiderada, a má administração é ato imputável ao administrador. É ele o direto responsável, porque administrou mal a sociedade; a obrigação é imputada a ele diretamente, sem o menor entrave, derivado da personalidade jurídica desta”. [10]

A teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica possui duas formulações, a objetiva e a subjetiva. A primeira delas trata da confusão patrimonial, situação que possui maior facilidade de ser comprovada. Já a formulação subjetiva pressupõe a fraude e o abuso de direito, elementos estes com maior dificuldade de serem comprovados, pois a intenção que o sócio possui em frustrar os interesses do credor deve ser demonstrada.

Para esta teoria, o simples inadimplemento de obrigações para com os credores não configura a desconsideração, a saber:

“A teoria maior não pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, aqui, para além da prova de insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade, ou a demonstração de confusão patrimonial”.[11]

A teoria maior também encontra-se corroborada no Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078/1990), em seu artigo 28:

“Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”.

Importante salientar que o § 5° do supracitado artigo 28, refere-se à teoria menor da desconsideração, que será abordada logo adiante.

3.2. A teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica

A teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica é muito menos elaborada do que a teoria maior, pois a sua aplicação pressupõe o simples inadimplemento para com os credores, sem ao menos analisar os reais motivos que levaram a sociedade a deixar de se obrigar perante terceiros.

Também é aplicada a teoria menor nos casos de insolvência ou falência da pessoa jurídica, pouco importando se o sócio utilizou fraudulentamente o instituto, se houve abuso de direito, tampouco se foi configurada a confusão patrimonial; a preocupação maior é não frustrar o credor da sociedade.

A questão da insolvência e da falência da pessoa jurídica gera muitas discussões, pois nem sempre a sociedade torna-se insolvente ou falida por motivos de má administração, e sim porque os negócios não fluíram ou por qualquer outro motivo que não configure a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.

No caso de má administração, ou seja, mau uso do instituto, conforme o disposto no artigo 28, da Lei n° 8.078/1990, caberia a desconsideração, sendo acolhida então a teoria maior.

Diante do exposto, abaixo o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:

“A teoria menor da desconsideração, por sua vez, parte de premissas distintas da teoria maior: para a incidência da desconsideração com base na teoria menor, basta a prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial.

Para esta teoria, o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica“. [12]

Em análise a esta teoria, pode-se afirmar que sua aplicação implicaria em danos aos sócios ou administradores da pessoa jurídica, pois não leva em conta se houve ou não a intenção de fraudar credores, e sim a frustração do crédito do credor.

Mesmo diante dos motivos expostos acima, há em alguns julgados do ordenamento jurídico brasileiro, entendimento de que se insolvente for a sociedade, possível é a desconsideração de sua personalidade jurídica para solver o débito perante o credor, qual seja:

“A tese levantada pelo recorrente, de que se deve aplicar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, não encontra guarida, uma vez que não se verifica nos autos a ocorrência dos seus requisitos basilares, tais como, a caracterização de fraude, a demonstração de insolvência ou, ainda, a latente confusão patrimonial existente entre a pessoa jurídica e a pessoa física do ora apelante (grifei)”. [13]

Esta teoria, apesar de todo o conteúdo exposto acima, se enquadra no Direito do Consumidor, pois independentemente se houve dolo ou culpa do agente causador do dano, este deve ser reparado. Um exemplo em que a teoria menor foi adotada, foi na explosão do Osasco Plaza Shopping, em 11 de junho de 1996, por conta de um vazamento de gás. Em tese, não houve a intenção por parte dos sócios de causar danos, mas, no entanto, em decorrência da explosão, foram 40 (quarenta) mortos e mais de 300 (trezentos) feridos, que detinham o direito de serem indenizados por danos patrimoniais e morais. Como o patrimônio da sociedade (no caso o shopping) era inferior ao montante das indenizações, sua personalidade jurídica foi desconsiderada com base na teoria menor, para atingir o patrimônio pessoal dos sócios. Este entendimento encontra-se firmado, conforme mencionado acima, no § 5° do artigo 28, do Código de Defesa do Consumidor:

“§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”.

O caso acima é um exemplo em que a teoria menor pode ser aplicada em detrimento de um motivo plausível, e não pura e simplesmente por inadimplemento de credores, como exposto acima.

Conforme dito anteriormente, o artigo 28 acata a teoria maior, e o § 5° relata a teoria menor. Este entendimento também é encontrado na Jurisprudência:

“[…] o caput do art. 28 do CDC acolhe a teoria maior subjetiva da desconsideração, enquanto que o § 5° do referido dispositivo acolhe a teoria menor da desconsideração, em especial se considerado for a expressão “Também poderá ser desconsiderada”, o que representa, de forma inegável, a adoção de pressupostos autônomos à incidência da desconsideração”. [14]

3.3. A desconsideração inversa

A desconsideração inversa pressupõe a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade para responsabilizá-la por dívidas do sócio. Possui como intuito coibir, principalmente, o desvio de bens da pessoa física para a pessoa jurídica.

A pessoa física, para obter benefícios em seu favor, transfere seus bens para a pessoa jurídica e continua a usufruir os mesmos, como se ainda os pertencessem. Esta transação de bens ocorre freqüentemente quando o sócio possui o intuito de fraudar credores, pois estes últimos não terão como saldar a dívida tomando posse dos bens da pessoa física, apenas se desconsiderada for a personalidade jurídica da sociedade com a qual a transferência foi realizada.

Considerando o exposto nos parágrafos anteriores, abaixo o entendimento da Jurisprudência:

“Na desconsideração inversa da personalidade jurídica de empresa comercial, afasta-se o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, responsabilizando-se a sociedade por obrigação pessoal do sócio. Tal somente é admitido, entretanto, quando comprovado suficientemente ter havido desvio de bens, com o devedor transferindo seus bens à empresa da qual detém controle absoluto, continuando, todavia, deles a usufruir integralmente, conquanto não integrem eles o seu patrimônio particular, porquanto integrados ao patrimônio da pessoa jurídica controlada”. [15]

Esta situação também é muito comum no caso de separação conjugal, conforme bem ilustra FÁBIO ULHOA COELHO:

“Se um dos cônjuges ou companheiros, ao adquirir bens de maior valor, registra-os em nome de pessoa jurídica sob seu controle, eles não integram, sob o ponto de vista formal, a massa a partilhar. Ao se desconsiderar a autonomia patrimonial, será possível responsabilizar a pessoa jurídica pelo devido ao ex-cônjuge ou ex-companheiro do sócio, associado ou instituidor”.[16]

Na aplicação da desconsideração inversa, deve-se tomar a precaução, novamente, de verificar se o sócio agiu de forma fraudulenta, com abuso ou se foi configurada realmente a confusão patrimonial, para não causar danos ao desconsiderar a personalidade jurídica injustamente.

Outra questão importante a esclarecer é que para a aplicação da desconsideração inversa, é imprescindível que a pessoa física realmente não possua bens os quais sejam suscetíveis de penhora, para assim justificar a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, para que esta possa arcar com as dívidas do sócio.  Este entendimento encontra-se firmado na Jurisprudência, qual seja:

“Contudo, essa medida extrema torna absoluta a indispensabilidade de comprovação, pelo credor, de todos os pressupostos autorizatórios da desconstituição inversa da personalidade jurídica da empresa comercial, o que não ocorre quando, comprovadamente, o executado tem bens próprios, sendo passíveis de penhora […]”.[17]

4. Breves apontamentos sobre a desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro

No ordenamento jurídico brasileiro, o primeiro doutrinador a tratar do tema desconsideração da personalidade jurídica foi Rubens Requião e o primeiro dispositivo legal a tratar do assunto foi o artigo 28, do Código de Defesa do Consumidor.

Logo após foi tratada no artigo 18, da Lei n° 8.884/1994:

“Art. 18. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”.

Também está corroborada no artigo 4°, da Lei n° 9.605/1998:

“Art. 4°. Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente”.

E, por fim, a desconsideração da personalidade jurídica foi abordada no já citado artigo 50, do Código Civil Brasileiro.

Atualmente, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei n° 2.426, de 2003, de autoria do Deputado Ricardo Fiúza, que visa centralizar os entendimentos para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, com o intuito de ser destinado a todos os órgãos do Poder Judiciário.

Esta atitude, sem dúvida, merece reconhecimento, pois a base legal para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica encontra-se esparsa em nosso ordenamento jurídico, devendo ser unificada para evitar quaisquer prejuízos que possam ser causados às partes interessadas.

5. Conclusão

Diante de todo o conteúdo estudado e explicitado neste artigo científico, pode-se concluir que a pessoa jurídica é um instituto dotado de direitos e obrigações que merecem ser respeitados, e que esta não deve servir como “escudo” para que seus sócios se abstenham de agir dentro dos ditames previstos na legislação.

Realmente, é de suma importância que a desconsideração da personalidade jurídica seja padronizada em uma só legislação, pois atualmente encontra-se esparsa em nosso ordenamento sem transmitir um objetivo unitário e concreto.

A teoria menor da desconsideração merece maior atenção em sua aplicação, pois é muito comum ver-se esta teoria sendo aplicada de maneira errônea, sem serem observados os pressupostos legais de atuação, podendo causar danos aos sócios ou aos administradores da pessoa jurídica.

Ao questionar a desconsideração inversa, deve-se verificar se ocorreram os pressupostos os quais autorizam a aplicação desta modalidade da desconsideração da personalidade jurídica, ou seja, se realmente houve a intenção fraudulenta por parte do sócio, pois como dito acima, a pessoa jurídica é um instituto que merece ser respeitado, pois é autônomo e neste caso, responderá pelas dívidas da pessoa física. Outro fator que deve ser verificado é se a pessoa física realmente não possui bens pessoais suscetíveis de penhora, caso contrário, não pode a desconsideração inversa ser acatada.

Por fim, conclui-se que de todo o modo, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica veio para coibir atos de má fé e preservar a autonomia concedida à pessoa jurídica, evitando que seja prejudicada injustamente.

 

Referências Bibliográficas
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, volume II. 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005.
REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, volume I. 25ª edição. São Paulo: Saraiva, 2003.
MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: direito societário: sociedades simples e empresárias, volume 2. 1ª edição. São Paulo: Atlas, 2004.
ALMEIDA, Amador Paes de. Execução de bens dos sócios: obrigações mercantis, tributárias, trabalhistas: da desconsideração da personalidade jurídica. 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2004.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume I, parte geral. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2006.
GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito civil, parte geral, volume I. 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2006.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, volume I. 19ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
GUIMARÃES, Márcio Souza. Aspectos modernos da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3996>.  Acesso em: 02/10/2006.
XAVIER, José Tadeu Neves. A teoria da desconsideração da pessoa jurídica no novo Código Civil. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5259>. Acesso em: 02/10/2006.
 
Notas:
[1] GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito civil, parte geral, volume I. 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 181.
[2] Idem, p. 182.
[3] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, volume I. 19ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 219.
[4] ALMEIDA, Amador Paes de. Execução de bens dos sócios: obrigações mercantis, tributárias, trabalhistas: da desconsideração da personalidade jurídica. 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 185.
[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Mandado de segurança – legitimidade ativa. MS 469. Impetrante: Joelmir Sant’Anna. Impetrado: Ministro de Estado da Economia, Fazenda e Planejamento. Relator: Ministro Vicente Cernicchiaro. Brasília, 09 de outubro de 1990. 1ª seção, DJ em 12/11/1990.
[6] REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, volume 1. 25ª edição. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 373.
[7] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, volume 2. 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 31.
[8] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Ação declaratória de responsabilidade solidária c/c desconsideração de personalidade jurídica. Agravo retido. Suspeição do perito e afronta ao contraditório. Inocorrência. Despropósito da confecção de novo laudo. Cerceamento de defesa insubsistente. Apelação cível nº 1999.005940-5. Apelante: Milton Klauck. Apelada: Massa falida de Materiais Klauck de Construção Ltda. Relatora. Desembargadora Maria do Rocio Luz Santa Ritta. Florianópolis, 12 de fevereiro de 2004. DJ em 01/03/2004.
[9] Idem, p. 42.
[10] Ibidem, p. 43.
[11] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Responsabilidade civil e Direito do consumidor. Recurso especial. Shopping Center Osasco-SP. Explosão. Consumidores. Danos Materiais e morais. Ministério Público. Legitimidade ativa. Pessoa jurídica. Desconsideração. Teoria maior e teoria menor. Limite de responsabilização dos sócios. Código de defesa do Consumidor. Requisitos. Obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. Art. 28, § 5°. Recurso especial n° 279.273 – SP. Recorrente: B Sete Participações S/A e outros. Recorrido: Ministério Público do Estado de São Paulo. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Brasília, 04 de dezembro de 2003. DJ em 29/03/2004.
[12] Idem.
[13] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Apelação cível – ação de consignação em pagamento cumulada com tutela antecipada – ilegitimidade ativa ad causam mantida – pedido de desconsideração da personalidade jurídica não acolhido – fraude, insolvência ou confusão patrimonial não demonstradas – inépcia da inicial por ausência de interesse processual da parte – recurso desprovido. Apelação cível n° 2005.006802-1. Apelante: Rogério Sant’Ana. Apelado: Jocir da Silva. Relator: Desembargador Sérgio Izidoro Heil. Florianópolis, 30 de maio de 2005. DJ em 13/06/2005.
[14] Idem item 10.
[15] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Agravo de instrumento. Execução proposta contra pessoa física. Desconsideração inversa da personalidade jurídica. Penhora de crédito da sociedade comercial integrada pelo devedor. Pressupostos não comprovados. Decisão insubsistente. Reclamo recursal acolhido. Agravo de instrumento nº 2000.018889-1. Agravante: Thivi Administradora de Bens Ltda. Agravado: Pedro Rodrigues Rita. Relator: Desembargador Trindade dos Santos. Florianópolis, 13 de setembro de 2001. DJ em 25/01/2002.
[16] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso…, p. 45.
[17] Idem item 14.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Nicole Vieira de Assis

 

Acadêmica da Faculdade de Direito de Joinville

 


 

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