Autora: Camila Borges Pires, graduada em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) e Pós-Graduada em Ordem Jurídica e Ministério Público pela Fundação Escola do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT). E-mail: [email protected]
Orientador: Cristiano Chaves de Farias, mestre em Ciências da Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador – UCSal, professor de Direito Civil e membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. E-mail: [email protected]
Resumo: A tutela da autodeterminação corporal aplicada à criogenia de corpos humanos e a forma como essa escolha deve ser manifestada para ser juridicamente válida é tema que repercute de forma polêmica na seara jurídica, moral e religiosa, razão pela qual se justifica o aprofundamento no estudo. Do ponto de vista jurídico, existe uma lacuna normativa no ordenamento acerca da possibilidade de criogenização de corpos humanos, sendo necessária a integração. Faz-se, então, por meio de pesquisa doutrinária e pelo método hipotético-dedutivo, um paralelo com a autorização dada pelo artigo 14 do Código Civil em relação à autodeterminação corporal e com os dispositivos legais que permitem maneiras distintas do sepultamento convencional, como a cremação. Dessa forma, busca-se aplicar o estudo sobre autonomia privada e a análise do ordenamento jurídico brasileiro no primeiro caso submetido à jurisdição brasileira, a fim de consolidar e comprovar o entendimento de que é possível a técnica da criogenia em corpos humanos sem vida no Brasil, e ainda que a escolha feita pelo então falecido não tenha sido documentada por testamento, basta que seja passível de comprovação por meio de prova idôneo admitido em Direito para que seja considerada e prevaleça.
Palavras-chave: Criogenia. Dignidade. Autonomia privada. Autodeterminação.
Abstract: The protection of body self-determination applied to the cryogenics of human bodies and the way in which this choice must be manifested to be legally valid is a topic that has a controversial effect on the legal, moral and religious fields, which is why it is justified to deepen the study. From the legal point of view, there is a normative gap in the ordering about the possibility of cryogenization of human bodies, and integration is necessary. Through doctrinal research and the hypothetical-deductive method, a parallel is made with the authorization given by article 14 of the Brazilian Civil Code in relation to body self-determination and with the legal devices that allow different ways of conventional burial, such as cremation. Thus, we seek to apply the study on private autonomy and the analysis of the legal system in the first case submitted to brazilian jurisdiction, in order to consolidate and prove the understanding that cryogenics is possible in lifeless bodies in Brazil, and even if the choice has not been documented by a formalized will, it is enough that it can be proved through suitable evidence admitted in law for it to be considered and prevail.
Keywords: Cryogenics. Dignity. Private autonomy. Self-determination.
Sumário: Introdução. 1. A vontade post mortem no Direito Civil contemporâneo e a técnica da criogenia. 1.1. O Direito das Sucessões em uma perspectiva contemporânea. 1.2. A validade da vontade post mortem – documentada e não documentada. 1.3. O Biodireito e a técnica da criogenia. 2. A tutela da autodeterminação corporal no ordenamento jurídico brasileiro. 2.1. A autonomia privada sob viés constitucional. 2.2. A autodeterminação corporal post mortem à luz da legislação brasileira. 2.3. A lacuna normativa no ordenamento jurídico brasileiro em relação à criogenia e o Direito comparado. 3. A técnica da criogenia para conservação do corpo após a morte e a análise do Recurso Especial nº 1693718/RJ (2017/0209642-3). Conclusão. Referências.
Introdução
A temática da interpretação da vontade daqueles que não mais podem exprimi-la, seja em função de uma incapacidade superveniente, seja pela ocorrência da morte, gera constantes discussões no âmbito jurídico. Isso se deve ao fato de que a tutela jurisdicional recairá, nesses casos, sobre a vontade daqueles que têm proximidade à pessoa que não mais pode exprimir sua vontade; sobre a vontade da própria pessoa expressa antes do fato que a tornou incapaz de exprimir vontade; ou, ainda, sobre a interpretação dos atos daquela pessoa que possam indicar sua vontade.
Em relação à destinação do corpo sem vida, é cediço que o ordenamento jurídico possibilita a expressão da vontade de disposição do próprio corpo após a morte para fins científicos, tais como doação de órgãos, estudo laboratorial e desenvolvimento de pesquisas. Ainda, é admitida em Direito a cremação como destinação final diferente em relação ao sepultamento tradicional. Entretanto, tema ainda controverso e que se apresenta como problema deste trabalho é a submissão do corpo sem vida à técnica da criogenia humana e a possibilidade de considerar a escolha feita quando esta não for documentada formalmente.
Essa técnica já é utilizada há algum tempo pela medicina, notadamente para preservação de material genético para reprodução assistida. A criogenia humana, por sua vez, feita com corpos sem vida e na intenção de que sejam reavivados quando a ciência encontrar solução para as doenças que levaram à morte, é uma novidade no país e, por isso, gera tanta discussão científica, moral e jurídica.
No que tange ao espectro do Direito, tem-se primeiramente a dificuldade para se determinar que o corpo seja submetido à criogenia quando a vontade proferida em vida pelo titular do corpo não coincide com a vontade dos seus herdeiros após a morte. Dificuldade também existe quando o titular do corpo não deixa sua vontade expressamente consignada, mas pratica uma série de atos que levam a crer ser aquela a sua vontade.
Destarte, a submissão de corpos sem vida à técnica da criogenia humana no Brasil envolve diversos fatores que tangenciam o Direito Civil, especialmente quanto à autonomia privada, a interpretação de vontade não documentada e a lacuna normativa no ordenamento jurídico brasileiro quanto ao tema. Diante de tantos questionamentos ainda sem resposta no sistema jurídico atual e o surgimento das primeiras decisões judiciais acerca do tema, a criogenia humana se apresenta como terreno fértil à pesquisa científica jurídica, justificando o desenvolvimento do presente artigo.
O estudo a ser feito se aprofunda, por meio da pesquisa doutrinária e jurisprudencial, utilizando-se do método hipotético-dedutivo, na temática da autonomia privada, da lacuna normativa existente quanto ao tema e da possibilidade de levar a manifestação de vontade em consideração mesmo quando o então falecido não a deixou consignada em testamento, mas é possível comprová-la por outros meios de prova idôneos.
É necessário, também, que se faça análise detida do caso jurisprudencial que chegou ao Superior Tribunal de Justiça trazendo à tona todos os pontos ainda indefinidos no sistema jurídico brasileiro, de modo a impulsionar o presente artigo, que atinge como resultados a constatação de que não há limitação à autodeterminação corporal no sentido de submissão do corpo à criogenia, bem como não há exigência de que a vontade esteja formalizada em documento específico, bastando que seja comprovada por outro meio de prova admitido em Direito.
1 A vontade post mortem no Direito Civil contemporâneo e a técnica da criogenia
O Direito Civil contemporâneo é fruto de mudanças na conjuntura social do país que culminaram na publicação do Código Civil de 2002 e de outros normativos. Além disso, a jurisprudência consagra cotidianamente essas novidades da contemporaneidade civilista e apresenta as novas configurações jurídicas das relações civis. Há, portanto, uma constante lapidação do Direito Civil para que se molde às rápidas mudanças na sociedade atual.
Nessa seara, surge a preocupação e necessidade do debate acadêmico no tocante à regulamentação jurídica acerca das novidades que afetam a sociedade, inclusive no campo do Biodireito. Deve se designar especial atenção à manifestação de vontade (e sua validade) post mortem quando se tratar de inovações biotecnológicas, como a técnica da criogenia, pelas razões detalhadas a seguir.
1.1 O Direito das Sucessões em uma perspectiva contemporânea
Inicialmente, é importante que o estudo do Direito das Sucessões seja desenvolvido sob viés contemporâneo. Para tanto, é necessária uma compreensão de que esse ramo do Direito se caracteriza pela integração entre o direito de propriedade e o Direito das Famílias, sendo que a acepção objetiva do Direito Sucessório diz respeito à regulação da transmissão de patrimônio em decorrência da morte, enquanto o sentido subjetivo corresponde ao direito de suceder propriamente dito. (DIAS, 2019, p. 50).
Nesse aspecto da interdisciplinaridade da matéria, Luiz Paulo Vieira de Carvalho destaca (2019, p. 1):
“A sucessão mortis causa, universal ou singular, objeto do Direito das Sucessões, tem sua origem conexa aos direitos familiares, já que se apresenta, inicialmente, como modo de perpetuação das próprias famílias, em época anterior a um Estado organizado como sociedade política de base territorial.”
Assim sendo, com a mutação dos direitos patrimoniais e familiares, ocorre impacto também no campo sucessório, e há de se convir que tais mudanças são recorrentes e profundas, ou seja, é grande a relevância da atualização do estudo para ser possível aplicar as normas sucessórias em conformidade com a configuração social do momento.
O ponto fulcral dessa discussão entre panoramas clássico e contemporâneo deve ser a Constituição da República Federativa do Brasil, enquanto norma suprema do ordenamento jurídico, sendo imprescindível, portanto, que o viés constitucional esteja presente no estudo do Direito Civil, e consequentemente do Direito das Sucessões.
É relevante notar que o fenômeno da constitucionalização do direito infraconstitucional é processo recente do ponto de vista histórico, assim como ocorreu em outros países de democratização tardia, como Espanha e Portugal. O centro do sistema jurídico, antes concentrado no Direito Civil, se deslocou, sendo que a Teoria Geral do Direito, antes estudada como parte integrante do Direito Civil, ganhou autonomia, e a centralização do sistema jurídico recaiu sobre o Direito Constitucional. (BARROSO, 2018).
Ainda, com a repersonalização do Direito – ideia de que o respeito à pessoa humana deve ser o cerne dos saberes – o Direito Sucessório passou a ser fortemente pautado no Direito Constitucional, haja vista que nas normas sucessórias é possível perceber a concretização do reconhecimento de direitos e garantias fundamentais, tanto para os sucessores, quanto para o autor da sucessão em relação às suas vontades anteriormente manifestadas. (DIAS, 2019, p. 51-52).
Na linha evolutiva que se percorreu para chegar ao presente, o Direito Civil clássico, que se contrapõe ao contemporâneo, não foi abandonado. Pelo contrário, ainda permanece inscrito em várias páginas dos normativos e decisões judiciais, por vezes instando evidente desatualização ou descompasso sistêmico em relação às demais áreas.
Nessa análise, há que se destacar que é interessante que se aborde o viés clássico nos estudos civilistas, até mesmo para compreensão da gênese dos institutos, mas imprescindível que se faça uma repaginação do tratamento dado aos seus conteúdos, a fim de atender a perspectiva constitucional, que se irradia por todo o sistema jurídico. (FARIAS; ROSENVALD, 2020, p. 49).
Diante disso, resta clara a necessidade de um novo olhar sobre o Direito das Sucessões. No entanto, o que se vê é uma defasagem evidente entre a evolução metodológica desse ramo do Direito em relação aos demais ramos associados, como o Direito das Famílias.
Enquanto é possível acompanhar as novidades legislativas e jurisprudenciais no sentido do acolhimento dos novos desdobramentos das formas de famílias e da valorização do afeto, como no reconhecimento de novas configurações familiares (destaca-se aqui a família eudemonista, ou seja, aquela na qual, independentemente da composição, os membros estão em busca da felicidade individual) (MADALENO, 2019) ou na legitimação da multiparentalidade (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2014), o cenário que se apresenta nas sucessões é distinto e desatualizado, sem o acompanhamento legislativo e judicial da modificação estrutural da sociedade.
De certo que a evolução no Direito das Famílias não acompanha em tempo real a evolução social, mas se aproxima da realidade na medida em que é possível ao sistema jurídico estruturar as adaptações. Porém, o Direito Sucessório foi praticamente deixado de lado, de modo que os estudos se dedicam aos campos familiares, contratuais, reais, e parecem contornar, ou apenas tangenciar, a esfera sucessória. As atualizações, quando chegam, já deram margem a muitas injustiças pela chegada tardia, como o moroso reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal de inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2017).
Observa-se que não apenas os estudos acadêmicos, mas também as atividades legislativas e judicantes se abstêm de aprofundamentos das novidades e seus impactos na regulamentação jurídica do fenômeno morte. Talvez pelas polêmicas geradas ao se envolver patrimônio, ou pelos valores morais arraigados, o que se vê é um conservadorismo na elaboração e aplicação da Lei quando se fala em falecimento, como se os olhos dos acadêmicos, legisladores e operadores da lei permanecessem vendados diante dos claros avanços sociais e mudanças estruturais nas relações sucessórias.
Inclusive, a despeito da relação entre o Direito das Sucessões e o Direito das Famílias ser claramente estreita, não se pode deixar de mencionar a contínua interação também com o Direito Tributário, Previdenciário, Penal e Processual. Isso reforça a necessidade de que haja atualização no campo sucessório que seja compatível com a manutenção harmônica do sistema, visto que a maioria dos demais ramos estão em consonância com a contemporaneidade, ao contrário do direito causa mortis. (VENOSA, 2018, p. 11)
Na verdade, a estrutura do Direito Sucessório é basicamente a mesma que existia no Código Civil de 1916, com poucas alterações (FARIAS; ROSENVALD, 2020, p. 51), revelando desatenção estatal com o panorama sucessório. Assevera-se que o direito para além da vida contém raízes familiares, está fundado no afeto e na perpetuação da unidade familiar e, em muitos momentos, o fato deste estar em franca evolução, e aquele não, acaba por provocar tropeços interpretativos e morosidade na resposta judicial.
A título de ilustração da defasagem do Direito das Sucessões brasileiro e com a finalidade de traçar um comparativo com outros países, verifica-se a existência de Regulamento na União Europeia que disciplina sobre a sucessão transnacional, estimulando o planejamento sucessório dos cidadãos por meio de testamentos, conferindo à matéria visibilidade e promovendo uma cultura de envolvimento de toda a sociedade com as características desse ramo do Direito ao qual todos foram submetidos enquanto herdeiros ou serão submetidos ao final da vida. (COMISSÃO EUROPEIA, 2018).
Isso reforça a necessidade de debate na comunidade acadêmica pátria sobre os temas considerados polêmicos em sociedade acerca das sucessões, na busca de adequar ao máximo os institutos à evolução social, envolvendo-se todos os cidadãos no processo.
Destarte, o fenômeno sucessório requer uma análise a partir da constitucionalidade, a fim de que sejam integrados os valores e garantias apresentados na Constituição da República. Conforme raciocínio traçado, a função social do Direito Sucessório é evidente quando se constata que a transmissão de direitos e obrigações de uma pessoa falecida proporciona a conservação do estado econômico em benefício de seu núcleo familiar, aqui entendido sob a vertente da afetividade. (FARIAS; ROSENVALD, 2020, p. 55).
Dessa forma, pode-se dizer que o Direito Sucessório tem sua razão de existir enquanto importante ramo do Direito Civil-Constitucional, com escopo de solucionar questões atinentes ao patrimônio e, ao mesmo tempo, que não se distanciam do afeto inerente às relações familiares. (CARVALHO, 2019, p. 17).
Esse ambiente de realização do Direito das Sucessões é permeado pelo desafio de adaptação à perspectiva contemporânea, ainda que a maior parte de seus institutos mantenham estrutura desatualizada. Ao enfrentamento dessas lacunas este artigo será dedicado nas páginas seguintes.
1.2 A validade da vontade post mortem – documentada e não documentada
Na intenção de solidificar a base das provocações que serão feitas mais a frente, revela-se importante o estudo da validade post mortem da manifestação de vontade feita pelo autor da sucessão em vida, e as diferenças práticas entre essas vontades serem materializadas documentalmente ou não.
É válido o ato jurídico com lastro fático perfeito, ou seja, quando há perfeita harmonia entre o ato e o ordenamento jurídico vigente. Se algum elemento nuclear do ato estiver eivado de característica deficitária em relação ao que a Lei considera essencial para a perfectibilidade, haverá o fenômeno da invalidade. (MELLO, 2019, p. 43).
No campo sucessório, a maioria dos atos jurídicos são formalizados em vida, mas produzem efeitos apenas após a morte, uma vez que as disposições de vontade feitas traduzem o desejo do falecido em relação à partilha de seu patrimônio ou do que deve ser feito com seu corpo após o fim de sua vida, por exemplo.
Nessa análise, verifica-se o testamento como um instituto que, embora ainda não seja culturalmente adotado em larga escala no Brasil, possibilita a materialização da última decisão de uma pessoa (DIAS, 2019, p. 475), seja no campo patrimonial, da autodeterminação corporal e até mesmo em relação aos procedimentos médicos a serem adotados caso o testador não esteja em capacidade plena de expressão de vontade – conhecido como testamento vital ou diretivas antecipadas de vontade (DAV).
Essas diretivas são regulamentadas, por exemplo, nas leis portuguesas e espanholas de modo detido. No Brasil, ainda não há centralização desses documentos em alguma espécie de Registro Nacional de DAV, nem mesmo há exigência de que seja feita por escritura pública própria, o que seria capaz de conferir maior segurança ao documento e seu cumprimento posterior. (DINIZ, 2017, p. 558). Isso se justifica pela ausência de cultura testamentária no país, conforme dito anteriormente.
O Enunciado n. 528 da V Jornada de Direito Civil declara que (BRASIL, 2012): “É válida a declaração de vontade expressa em documento autêntico, também chamado ‘testamento vital’, em que a pessoa estabelece disposições sobre o tipo de tratamento de saúde, ou não tratamento, que deseja no caso de se encontrar sem condições de manifestar a sua vontade.”
Nessa linha também se destaca o Enunciado n. 37 da I Jornada de Direito da Saúde do CNJ (BRASIL, 2014): “as diretivas ou declarações antecipadas de vontade, que especificam os tratamentos médicos que o declarante deseja ou não se submeter quando incapacitado de expressar-se autonomamente, devem ser feitas preferencialmente por escrito, por instrumento particular, com duas testemunhas, ou público, sem prejuízo de outras formas inequívocas de manifestação admitidas em direito.”
Esse aspecto da materialização da vontade por meio do testamento é fundamental, mas não é somente por meio de um documento como esse que se faz o anúncio de vontades para além da vida, e mais, não é condição absoluta para que essa vontade seja levada em consideração pelo Direito o fato de estar (ou não) documentada. Por conseguinte, cabe falar em validade da vontade post mortem não documentada.
Ressalta-se que vontade não manifestada não possui relevância jurídica, mas ao se optar pela exteriorização do desejo interno, muitas podem ser as formas de fazê-lo – escrita, oral, por meio do silêncio ou de atitudes. Por vezes a sistematização de normas exige do ato requisitos formais para ser considerado jurídico.
Nesse caso, se há exigência de forma, esta deve ser atendida para que não se incorra em invalidade do ato jurídico. Entretanto, sendo a forma capaz de transmitir exatamente a vontade interior e não havendo exigência legal de forma, é o bastante para que seja levada em consideração. (MELLO, 2019, p. 85).
No momento em que isso toca disposições como a forma que o falecido gostaria de ser sepultado, é urgente que se considere outros elementos além de documentos formalizados, sob pena de atropelo à dignidade da pessoa humana que, embora já tenha falecido, gozava de pleno exercício de sua capacidade, fruto da personalidade inerente à pessoa humana, no momento em que dispôs sua vontade, ainda que perante testemunhas ou registros diversos.
É evidente que os casos devem ser analisados em suas particularidades, para que não se tome decisões irreversíveis com base em fundamentos frágeis, nem mesmo para que se deixe envolver por possível manipulação dos fatos. É justamente na dificuldade em se desvelar a vontade real daquele que não mais pode exprimi-la que está a necessidade cada vez maior de debater o tema.
Maria Berenice Dias, em sua obra dedicada ao Direito das Sucessões, afirma que: “A escolha levada a efeito em vida precisa ser respeitada mesmo após a morte”. (DIAS, 2019, p. 49). É nisso que se sustenta, em casos específicos que serão trabalhados no decorrer do texto, a validade jurídica da vontade post mortem mesmo que não esteja documentada.
1.3 O Biodireito e a técnica da criogenia
Na temática da interpretação da vontade post mortem é possível se falar em disposições de autodeterminação corporal, ou seja, aquilo que a pessoa humana designa a respeito do que deve ser feito com seu corpo após a morte. Muitos indivíduos, por exemplo, registram vontades de que seus órgãos sejam doados, sendo possível esse registro de maneira formal ou apenas dando ciência aos membros da família.
Outros tantos exemplos são recorrentes, como a declaração de vontade para que seja feita inseminação artificial com material genético mesmo após o falecimento ou até a expressão do desejo de ser cremado ou enterrado, bem como as condições específicas da realização dos rituais mortuários. Há, ainda, pessoas que escolhem destinar seus corpos a estudos e pesquisas científicas.
Dessa forma, o que se verifica é uma variedade de determinações do que deve ser feito com o próprio corpo após a morte e a necessidade de que estas sejam respeitadas, caso não sejam contrárias ao ordenamento jurídico nem prejudiquem direito alheio.
Nessa análise, é perceptível que o avanço científico, que naturalmente provoca um salto evolutivo na Medicina (DINIZ, 2017, p. 25), tem responsabilidade pelo surgimento de novas possibilidades de destinação do corpo após a morte, o que impacta diretamente na tutela estatal da autodeterminação corporal, que precisa acompanhar essa evolução para validar – ou não – as novidades.
É diante desses novos mundos possíveis que surgiu a Bioética, responsável por garantir a observância da dignidade da pessoa humana nos procedimentos científicos, sendo um conjunto de pensamentos filosóficos e morais sobre a vida e as práticas médicas empregadas individualmente. É um desafio da contemporaneidade a estabilização de princípios para a solução das questões que surgem com o progresso da ciência e a disponibilidade de tecnologias no campo da Saúde. (DINIZ, 2017, p. 29-36).
É evidente que a sociedade secular não aceita o destino com facilidade e, diante dos avanços tecnológicos, demandam dos cientistas maneiras de contrariar as vias naturais dos acontecimentos, de modo que o ímpeto científico é impulsionado também pela própria avidez social. (SCHLINK; MARTINS, 2014). Por outro lado, aqueles que ainda se amoldam ao modo natural de vida, se contrapõem às criações técnico-medicinais distantes do que se conhece por natureza humana.
No entanto, ainda que seja desafiador, é urgente e necessário que se desenvolva os parâmetros para solução dessas questões. As ciências biomédicas estão em franco desenvolvimento e, por isso, é maior o risco para os humanos no sentido de que as pesquisas científicas realizadas podem ocasionar danos irreversíveis, físicos e psíquicos, tanto em vida, quanto após a morte, neste último caso em relação aos familiares.
Pelo exposto, e considerando que o Direito deve acompanhar o progresso social, surgiu a disciplina do Biodireito, que é a união da Bioética com o Direito, se prestando a fazer o cotejo entre o progresso científico e a ética, direito e dignidade da pessoa humana, de modo a assegurar que estes prevaleçam sobre aquele. (CAMILO; SOARES, 2007, p. 51-59).
São princípios básicos do Biodireito: a autonomia, a beneficência, a sacralidade da vida, a dignidade humana, a justiça, a cooperação entre os povos, a precaução e a ubiquidade. (MALUF, 2020, p. 29-31). Recorta-se o princípio da autonomia, pela importância para o tema ora suscitado neste artigo.
Por esse princípio, tem-se a necessidade de que a vontade do paciente ou do de cujus seja levada em consideração, por ter o domínio de sua própria vida. (DINIZ, 2017, p. 39). O foco do desenvolvimento dessas vertentes de estudo é promover um novo sentido à vida humana, tendo como objetivo a felicidade e realização pessoal. (MALUF, 2020, p. 461).
Dentro do escopo desse princípio, o Código de Ética Médica (CFM, 2009) prevê a necessidade de respeito, em certa medida, aos preceitos morais e crenças religiosas do paciente, bem como ressalta a importância do consentimento livre e informado do paciente, que deve estar em pleno exercício de sua capacidade no momento da manifestação de vontade. Isso vale também para a autodeterminação corporal para após a morte, sendo que o respeito à vida deve prevalecer inclusive na dimensão da valorização à dignidade do falecido. (MALUF, 2020, p. 462).
As discussões no âmbito do Biodireito passam pelas temáticas do aborto, da reprodução assistida, da utilização de células-tronco, transplante de órgãos, transfusão de sangue e, especialmente, em relação à terminalidade da vida, momento em que se discute a eutanásia, ortotanásia, mistanásia e distanásia.
Diante das possibilidades técnicas de reprodução humana assistida, a inseminação post mortem é um procedimento que gera diversos questionamentos dentre os especialistas no campo da biogenética e Biodireito. A fim de solucionar parte dessa celeuma, o Conselho Federal de Medicina possui Resolução (1.957/2010) no sentido de permitir a utilização post mortem do material biológico criopreservado, desde que haja autorização prévia específica do falecido. (GOZZO; LIGIERA, 2012).
É interessante para este trabalho o destaque de que só é possível a utilização de material genético para reprodução assistida após a morte em função do seu congelamento. É cediço que técnicas que permitem a conservação da vida por congelamento, seja ela em forma de esperma humano, embriões ou o corpo após a morte, como se verá adiante, geram inúmeras repercussões polêmicas.
Para fins de disposições a serem cumpridas após a morte, é importante que seja definido o momento em que se configura a morte para, somente após, serem tomadas as medidas de conservação de tecidos e órgãos, bem como da retirada para transplante, por exemplo. De acordo com a Resolução n. 2.173/17, do Conselho Federal de Medicina (CFM, 2017), a morte é declarada no momento em que ocorre a parada total e irreversível das funções encefálicas.
Existem casos, no entanto, que mesmo com o funcionamento cerebral existente, não há mais o que possa ser feito para a retomada das atividades cardiopulmonares e os recursos se esgotam. Noutros casos, a atividade cerebral pode estar aparentemente inativa, mas retomar após algum tempo de preservação adequada com as características de personalidade e memória do indivíduo, como em alguns exemplos já conhecidos. É a partir deste marco que se delineia o tema principal deste trabalho – a técnica da criogenia.
A respeito disso, insta delimitar a nomenclatura adequada, pois existem várias denominações diferentes com significados próximos. Inicialmente, criopreservação é o processo de resfriamento das células a temperaturas muito baixas, a fim de preservá-las. Por exemplo, esse é o procedimento adotado para evitar que as células morram nos casos de preservação de sangue, medula óssea e outros tecidos humanos.
Por seu turno, a criônica, tradução do inglês cryonics, que deriva de palavra grega que significa “congelado”, é a técnica de preservação do corpo completo (humano ou animal) após a morte. A ideia é preservar todas as células e tecidos para trazer a pessoa de volta à vida plena após algum tempo. E por fim, a criogenia é um termo utilizado na física para descrever o estudo comportamental dos materiais em temperaturas muito baixas. (HUMAN TISSUE AUTHORITY, 2018).
Nota-se que o objeto deste artigo é, na verdade, a criônica. Porém, como os termos se misturam por vezes e a técnica de conservação do corpo todo após a morte se consagrou conhecida como criogenia, esta será a denominação adotada neste trabalho para tratar desse procedimento que, apesar de ainda não ser amplamente conhecido e debatido, surgiu na década de 1960 e desde então vem se desenvolvendo e recebendo adesões ao redor do mundo.
Originalmente, a criogenia tem como “pai” o Professor Robert C. W. Ettinger, que estudou e publicou seus estudos sobre a imortalidade por volta de 1962, tendo larga repercussão midiática. Com esse panorama, surgiram institutos dedicados à prática da criogenização de corpos humanos e animais, como o Cryonics Institute – Technology for Life, situada nos Estados Unidos.
Conforme definição de David Ettinger, filho de Robert Ettinger, criogenia é a submissão do corpo humano a baixíssimas temperaturas logo após a ocorrência da morte, com a utilização de nitrogênio líquido, a fim de que sejam preservados, na expectativa de no futuro terem sua vida retomada com a cura da doença que os levou à morte, pressupondo-se o avanço da Medicina e a descoberta de cura para muitas doenças. (ETTINGER, 2013).
Conforme o cientista João Pedro de Magalhães, que estuda a biologia do envelhecimento, apresenta em sua página virtual: “Resumidamente, após serem declarados mortos, nos pacientes são injetados compostos anticongelantes chamados crioprotetores para impedir a formação de gelo, a temperatura é lentamente reduzida e, eventualmente, os pacientes são criopreservados em nitrogênio líquido a temperaturas muito baixas (<-130 ° C), esperando um dia serem reanimados. Algumas empresas oferecem aos pacientes a opção de criopreservar todo o corpo ou apenas a cabeça (neuropreservação). Com as tecnologias atuais, a criônica danifica gravemente as células do corpo, o que significa que serão necessários grandes avanços científicos, em áreas como células-tronco e nanotecnologia , para tornar esses indivíduos vivos e saudáveis novamente, conforme discutido mais adiante.” (tradução nossa)
A referida nanotecnologia, ao ser aplicada na Medicina, diz respeito à “manipulação da matéria em níveis moleculares ou atômicos”. (MAGNUS, 2018). A utilização dessa tecnologia permite avanços de forma rápida e precisa nos diagnósticos de saúde. A denominada nanomedicina permitiu grandes avanços na forma como os cientistas lidam com as percepções das doenças, estando constituída em um tripé: nanomateriais para diagnóstico, para Medicina regenerativa e para terapia. (IFSC, 2015).
Com o avanço e a utilização da nanotecnologia, a criogenia tem maior chance de atingir seu principal objetivo – a reativação plena e saudável dos indivíduos criopreservados, inclusive com a cura das doenças das quais eram portadores à época do óbito.
Retomando-se o estudo da técnica da criogenização, tem-se que, após a morte, a sequência de procedimentos necessários para que haja sucesso na preservação criogênica é a seguinte: resfriamento inicial e transporte; perfusão, com a substituição do sangue pela substância crioprotetora, como soluções de vitrificação; por fim, é feito um novo processo de resfriamento, seguido do armazenamento.
Conforme publicação em repositório de artigos médicos nos Estados Unidos (BEST, 2008, p. 493-503): “A justificativa científica para a prática da criônica é baseada em vários conceitos-chave: (1) a baixa temperatura pode retardar o metabolismo. Temperaturas suficientemente baixas podem praticamente parar as mudanças químicas por séculos; (2) a formação de gelo pode ser reduzida ou mesmo eliminada pelo uso de misturas de vitrificação; (3) legalmente morto não significa “irreversivelmente morto”. A morte é um processo, não um evento, e o processo leva mais tempo do que geralmente se acredita; (4) danos associados à preservação de baixa temperatura e morte clínica que não são reversíveis hoje são teoricamente reversíveis no futuro.” (tradução nossa)
São muitas as considerações a respeito desse procedimento, mas é possível sintetizar que a ideia da criogenia é a de suspender a condição humana até que existam condições para reativá-la, sendo espelhada em técnicas de retomada da vida, como a ressuscitação cardiopulmonar, antes inatingível e hoje presente no cotidiano dos hospitais.
Os adeptos da ideologia criônica acreditam que a morte somente será absoluta quando as funções essenciais do cérebro forem destruídas, sendo que essas funções são justamente o que a técnica visa preservar ao máximo.
De todo modo, apesar de a ideia ser natural para os idealizadores e seus adeptos, o procedimento é polêmico na sociedade em geral, pois atinge questões morais e religiosas consolidadas há anos.
Por essa razão, diante da possibilidade fática de que os brasileiros escolham se submeter à criopreservação após a morte e dos efeitos sucessórios que isso promove, inclusive no que toca ao direito de sepultamento do corpo pelos familiares, é necessário analisar o ordenamento jurídico pátrio, a fim de compreender qual seria a sedes materiae ou o raciocínio exigido para se enquadrar o procedimento da criogenia na legislação vigente, cuja discussão será objeto do próximo tópico.
2. A tutela da autodeterminação corporal no ordenamento jurídico brasileiro
Para compreender como as técnicas de destinação do corpo post mortem se desenvolvem no panorama jurídico brasileiro, é necessário tratar do direito ao próprio corpo e da prerrogativa de decisão sobre o destino do corpo sem vida. Ainda, é essencial a análise de como é abordada essa questão da autodeterminação no ordenamento jurídico, especialmente aquela com efeitos postergados para além da vida.
Antes dessa análise detida da autonomia privada, faz-se necessário definir o conceito do vocábulo “autodeterminação”, utilizado tantas vezes neste trabalho. Entende-se que a autodeterminação abarcaria a ideia de autonomia privada, sendo um poder reconhecido juridicamente e com função social, fruto da abertura do homem em relação às experiências do mundo. Seriam, então, as escolhas individuais feitas pela pessoa humana em relação à política, ideologia, vida sexual, religião e, inclusive, saúde e direito sobre a própria vida e cadáver. (RODRIGUES JUNIOR, 2004, 113-130).
Ainda nessa delimitação e diferenciação de conceitos, registra-se que a autonomia privada é um espaço para manifestação da autonomia da vontade. Além disso, a boa-fé deve permear essa expressão de autonomia, não sendo vista como limitador da liberdade, mas sim como parâmetro imprescindível de razoabilidade no exercício da vontade. (BRANCO, 2000).
Posto isso, inicia-se o estudo de como essa autodeterminação se manifesta no direito brasileiro, a começar pelo espectro da autonomia privada relacionada à Constituição da República.
2.1 A autonomia privada sob viés constitucional
É tarefa difícil, mas recompensadora, estudar a autonomia privada. Difícil por ser um conceito mutável que atravessou gerações de pensamentos e mudou de sentido e relevância a cada uma. Recompensadora por agregar ao estudo do Direito Civil, em qualquer das suas áreas de desdobramento, maior profundidade de conhecimento.
Nesse aprofundamento se concentram os esforços das próximas linhas deste trabalho. Antes mesmo de se adentrar no cenário legislativo brasileiro, é relevante notar que a aplicação do princípio da autonomia privada deve ser feita de forma dinâmica, considerando-se os critérios da Análise Econômica do Direito para garantia de maior eficácia na aplicabilidade.
Com isso, é interessante que se observe a realidade socioeconômica do manifestante e do impactado pela autonomia privada, bem como a boa-fé objetiva e a função social do objeto da manifestação de vontade, sendo possível uma gradação do princípio de acordo com as condições mencionadas para melhor definição da proporção da intervenção estatal e da validade do exercício da autonomia. (REBOUÇAS, 2017).
Em sequência, constata-se que a liberdade humana em si não é suficiente para materializar os desejos individuais, sendo necessário o emprego dessa liberdade em negócios jurídicos e outros institutos que dependem de manifestação de vontade livre e geram, extinguem ou modificam direitos. Dá-se a designação de autonomia privada ao poder do homem, reconhecido pela ordem jurídica, de agregar efeitos juridicamente válidos às suas atividades de manifestação livre de vontade. (PRATA, 2017, p. 10-23).
A relevância do estudo da autonomia privada se justifica pela abrangência do tema em relação a todas as relações privadas, não somente do campo civilista. Ainda, por ser uma temática que relaciona poder, autoridade e liberdade, faz parte do momento crucial que o Direito vive, tendo de um lado a ampliação da autonomia individual e de outro a prevalência da vontade social em detrimento da particular. (AMARAL NETO, 1989, p. 207-230).
Ao destacar o campo do Direito Sucessório, nota-se que o envelhecimento da população, o aumento da expectativa de vida, as novas composições familiares, a queda nas taxas de natalidade, o distanciamento dos referenciais religiosos e as repercussões da blindagem patrimonial revelam um terreno fértil para a valorização da autonomia privada (RODRIGUES JUNIOR, 2019), que pode ser vista como um instrumento de consolidação e viabilização da defesa dos interesses particulares.
Mas somente pode ser considerada assim quando há prévia atribuição de poder jurídico pelo ordenamento e não ocasiona prejuízo de terceiros. O direito objetivo precisa conferir um quadro no qual o direito subjetivo se amolde. Dessa maneira, diz-se que o poder virtual contido em qualquer ação humana, que por si só é uma manifestação de vontade, figura como poder real no momento em que se enquadrar no regramento previamente delineado pela ordem jurídica. Diz-se que o ato de vontade não produz quaisquer efeitos sem que estes estejam previstos em lei, e somente quando se enquadrarem ao molde descrito na legislação. (PRATA, 2017, p. 16-22).
Em estudo dedicado à revitalização do conceito habermasiano de autonomia privada, Felipe Silva apresenta essa definição como a liberdade que o sujeito de direito possui de agir segundo seu arbítrio, configurando sua liberdade ética como uma expressão da autonomia do seu projeto de vida, limitado apenas aos seus direitos subjetivos. (SILVA, 2016).
Essa externalização de vontade como poder real leva à proteção do direito subjetivo de um sujeito privado. Mas a despeito da guarda ocorrer na esfera particular, a tutela estatal exercida sobre essa autonomia privada é de interesse público, denotando novamente a vinculação entre as esferas pública e privada no tocante à autonomia. (PRATA, 2017, p. 21).
Assim, por ser tópico de interesse de todo o Estado, a autonomia privada deve ser estudada sob o olhar da norma primordial do sistema jurídico brasileiro, aquela na qual se fundamentam as demais, a Constituição da República Federativa do Brasil. Nesse escopo, destacam-se os conceitos de dignidade da pessoa humana, base da regulação constitucional, de direito à vida e à liberdade, necessários enquanto parâmetros do exercício e interpretação da autonomia privada.
Considerando a natureza desses princípios e direitos citados como direitos fundamentais, é importante estudar a teoria da eficácia direta ou imediata dos direitos fundamentais, desenvolvida pelo alemão Hans Carl Nipperdey, segundo a qual há eficácia dos direitos fundamentais nas relações do Estado com os particulares e nas relações entre particulares. Essa teoria encontrou grande adesão no Brasil, até maior do que a hoje existente na própria Alemanha. (RODRIGUES JUNIOR, 2019).
Adotado o viés da máxima efetividade e eficácia direta dos direitos fundamentais, começa-se a análise pela dignidade da pessoa humana, que é naturalmente vinculada à liberdade, e foi reconhecida pelo direito internacional e constitucional aos poucos, sendo possível verificar sua tutela na Constituição Federal de 1988 em vários dispositivos – artigos 1°, III; 170, caput; 226, §7º; 227, caput; 230, caput, todos da Constituição Federal de 1988, com remissões diretas – e artigos 5º, III e XLVII, também da CF (BRASIL, 1998), por meio de remissões indiretas.
Tratando especificamente do artigo 1º, inciso III, ao elevar a dignidade da pessoa humana a fundamento do Estado Democrático de Direito, a Constituição Federal deixou clara sua opção por declarar que o Estado está a serviço e existe por causa da pessoa humana. Esse princípio é, por assim dizer, um valor-guia para todo o ordenamento jurídico, figurando, ainda, como mandado de otimização em relação a todas as situações em que poderá ser aplicado. (SARLET, 2013, p. 126).
Isso leva à conclusão de que a dignidade da pessoa humana é o centro de toda ação estatal, visto que o Estado tem como fim último a promoção do bem-estar comum. Os outros fundamentos do Estado Democrático – soberania, cidadania, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e o pluralismo jurídico – têm como objetivo a primazia da pessoa humana. (MAGALHÃES, 2012).
Diante da importância que tem, cabe à jurisprudência buscar a efetivação da dignidade da pessoa humana, de modo que a construção feita nos órgãos judiciários brasileiros dia após dia atribui sentido e delimitação de como deve ocorrer a aplicação desse princípio nos casos concretos. (SARLET, 2013, p. 128).
Há forte ligação entre a dignidade da pessoa humana e o direito à vida, também relevante para o estudo da autonomia da vontade com efeitos post mortem. Afinal, a manifestação de vontade em vida para o que deve ser feito após a morte tem relação com o respeito à vida digna, que se espera obter de acordo com suas próprias escolhas, refletidas inclusive no próprio corpo sem vida.
Nesse sentido, entende-se o direito de morrer dignamente como deslinde natural do direito à vida digna, sendo faces de uma mesma moeda. Ou seja, reconhecer o direito à vida digna implica consequentemente no reconhecimento do direito à morte digna, que deve ser respeitado inclusive quando vem à tona escolha da pessoa natural acerca dos aspectos de sua morte, como a destinação corporal. (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 309-310).
O direito à vida pode ser compreendido em duas vertentes: o direito de simplesmente manter a vida e não ser morto; o direito de ter uma vida digna. Respectivamente, temos uma dimensão positiva e outra negativa, ou seja, um dever de defesa estatal e um dever de proteção por parte do Estado. Assevera-se que, para se ter uma vida digna, a ideia é que seja assegurado o mínimo existencial. (BRANCO, 2018, p. 264).
Assim, o direito à vida, como decorrência do metaprincípio da dignidade da pessoa humana, deve ser intensamente respeitado. Não se fala em direito absoluto, mas em máximo respeito, limitado às opções também constitucionais feitas, como a possibilidade de pena de morte em caso de guerra. (NUNES JUNIOR, 2018, p. 867).
Ademais, ainda relacionando-se com as manifestações de vontade feitas em vida cujos efeitos se protraem para a morte, está a necessidade de respeito ao direito à liberdade individual pela sociedade, seja de manifestação do pensamento ou de consciência e crença, ambos vinculados à autodeterminação corporal post mortem, ao direito ao cadáver e ao sepultamento.
Em uma de suas obras, John Stuart Mill (2018) leciona a respeito da liberdade individual em relação à sociedade: “Tanto a individualidade como a sociedade receberão sua quota-parte, se cada um tiver aquilo que mais particularmente lhe diz respeito. À individualidade devia pertencer a parte da vida que diz principalmente respeito ao indivíduo; à sociedade, a parte que diz principalmente respeito à sociedade.”
A liberdade de manifestação do pensamento, prevista no artigo 5º, inciso IV, da Constituição Federal (BRASIL, 1998), se relaciona com a autodeterminação corporal porque a possibilidade de escolha do que é (ou não) feito com o próprio corpo, mesmo após a morte, é decorrência dessa espécie de liberdade. Ressalta-se que existem limites para o exercício da manifestação de pensamento, também definidos constitucionalmente.
Por fim, e sem a expectativa de esgotar os dispositivos constitucionais que tratam de temas correlatos ao deste artigo, mas apenas com a finalidade de fazer um recorte dos mais importantes, menciona-se a liberdade de consciência e crença (artigo 5º, inciso, VI, da Constituição Federal), que está vinculada especialmente ao direito ao sepultamento que tem como titulares os familiares do morto, e muitas vezes se exprime de acordo com a crença de cada familiar.
Essa liberdade assume caráter relevante quando se imagina a situação de aparente conflito entre a manifestação de pensamento com efeitos post mortem e a crença de seus herdeiros que pretendem definir o sepultamento de forma diversa.
Para analisar essa hipótese com maior propriedade de conhecimento, faz-se necessário abordar como está desenhada a tutela da autonomia privada no direito infraconstitucional brasileiro, comparando-se ao direito estrangeiro.
2.2 A autodeterminação corporal post mortem à luz da legislação brasileira
Numa linha de raciocínio histórica, é relevante dizer que o Código Civil de 1916 não era centrado na pessoa humana, razão pela qual naquela legislação os interesses da instituição familiar sobre a destinação do corpo sem vida de outro familiar preponderavam sobre a vontade manifestada por este anteriormente.
Isso porque foi somente com o viés constitucional da dignidade da pessoa humana que a legislação regente do Direito Civil foi modificada, em 2002, para ser centralizada na pessoa humana, ocorrendo o fenômeno da repersonalização das normas e da funcionalização dos institutos.
Não existe, portanto, no Direito brasileiro, autonomia negocial ilimitada, mas, ao contrário, autonomia solidária. Isso atinge a esfera do Direito Sucessório, especialmente no aspecto testamentário. Dessa maneira, a vontade do testador está condicionada ao atendimento da função social do testamento. (LÔBO, 2017).
Afirma-se que o Código Civil atual prestigia a autodeterminação da pessoa na medida em que não seja disfuncional. Assim, ficam unidas as ideias de personalidade e funcionalidade, diretrizes de todo o texto do Código. Em seu artigo 13, o diploma normativo trata do direito ao próprio corpo, trazendo para a própria pessoa a prerrogativa de decidir a respeito de si, com limitações, porém sem a necessidade de se submeter aos desígnios da Igreja, da família ou do Estado. (BRASIL. Código Civil, 2002, art. 13).
A tutela da autodeterminação corporal por parte do Estado não cessa com a morte. Numa perspectiva contemporânea, não há que se falar em transformação do corpo sem vida em coisa abandonada apenas porque cessou a personalidade. Ora, a vontade manifestada em vida correspondeu a um momento em que era pleno o exercício da personalidade, existindo apenas uma projeção dos efeitos dessa vontade para além da vida.
Da mesma forma que a vontade materializada em testamento merece guarida jurídica, também a vontade da destinação do próprio corpo após a morte deve ser atendida, desde que não seja contrária a outros preceitos, esteja materializada em testamento ou apta a ser comprovada de maneira robusta por outros meios de prova admitidos em Direito.
O direito ao corpo após a morte, ou direito ao cadáver, não patrimonial, mas sim privado, correspondente à possibilidade de determinar a forma do destino do cadáver, não deve ser visto como um direito da família ou dos herdeiros necessários, em um primeiro momento, mas sim do próprio “dono” do corpo. (CHAVES, 1979).
É cediço que, na ausência de disposição de vontade do falecido a esse respeito, cabe aos familiares decidirem a destinação, até mesmo destrinchando-se a mens legis do artigo 12 do Código Civil (BRASIL, 2002), que confere aos herdeiros a legitimidade para requerer a cessação de ameaças ou lesões aos direitos da personalidade do morto. (SCHREIBER, 2014).
O respeito coletivo em relação ao cadáver se deve ao fato de que ele ainda guarda traços de humanidade, consubstanciados em sua memória e legado deixados, bem como à sua forma física ainda estruturada. Dessa maneira, é salutar que lhe seja conferido respeito, por força da dignidade da qual um dia foi titular e também da dignidade da pessoa humana atribuída aos familiares supérstites.
A autodeterminação corporal é tutelada em dispositivos como o artigo 14, também do Código Civil (BRASIL, 2002), que trata da disposição gratuita do próprio corpo para fins científicos. Ainda, consoante a Lei 9.434/1997, é possível dispor do próprio cadáver para transplante de órgãos.
Não há exigência legal quanto à forma de externalização da vontade acerca do destino do próprio corpo para além da vida. Existem, embora não plenamente regulamentadas, as denominadas diretivas antecipadas de vontade, porém é preciso que sejam reconhecidas outras maneiras de exteriorização da vontade, posto que não há proibição ou restrição desse tipo de definição ao testamento vital. (SCHREIBER, 2014).
Condensa-se a ideia desenvolvida neste tópico com a afirmação de que não obstante a personalidade se inicie com a vida e se esvaia com a morte, conforme artigo 6º do Código Civil (BRASIL, 2002), as pessoas ainda vivas têm obrigação de respeitar alguns efeitos ainda ativos da personalidade daquele que ora está morto.
2.3 A lacuna normativa no ordenamento jurídico brasileiro em relação à criogenia e o Direito comparado
Após todo o estudo feito, é preciso voltar o olhar para a criogenia e tentar enquadrá-la no sistema jurídico brasileiro vigente. A realidade é que ainda há uma lacuna normativa no ordenamento em relação à técnica e resta aos juristas fazer uso das possibilidades previstas no artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) (BRASIL, 1942) para suprir esse vazio legislativo.
Foi em função dessa necessidade que se fez no ponto 2.2 um comparativo em relação ao que está disposto no artigo 12 do Código Civil – para justificar o envolvimento dos familiares na garantia da destinação final digna do corpo sem vida.
A verdade que se desvela é que o tema, por possuir forte cunho religioso e moral, ainda não é alvo de debates pela sociedade brasileira, e quando o é, há o tratamento de maneira distante, como se a criônica se tratasse de um procedimento de ficção científica e não como uma opção de tratamento. Essa não reação ou reação negativa nos debates sociais é o que impacta diretamente na inação legislativa acerca da temática.
Não há, portanto, previsão legal específica no Brasil para o tema, mas destaca-se a pesquisa para compreensão de como o tema é tratado pela Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).
Encontra-se, no âmbito do CFM, a Resolução atualizada 2.168/2017 (CFM, 2017), que trata a respeito das normas éticas para utilização das técnicas de reprodução assistida, trazendo nesse escopo a criopreservação de gametas ou embriões. A ANVISA, por sua vez, adotou resoluções com normas também para o funcionamento de bancos de células e tecidos germinativos para fins reprodutivos.
Ao se fazer um comparativo em relação às legislações de outros países, sendo que alguns inclusive possuem centros especializados para aplicação da técnica da criogenia em corpos sem vida, é interessante mencionar os casos descritos a seguir.
No caso dos EUA, há um vácuo legislativo sobre a abordagem direta da suspensão criônica. A legislação que mais se aproxima é o The Uniform Anatomical Gift Act (UAGA), que trata do corpo todo ou de partes para finalidades específicas dentre Ciência, Medicina e Educação. (ESTADOS UNIDOS, 2006).
Muitos Estados adotam esse documento, sendo que nele está prevista a possibilidade de escolher a destinação do cadáver em vida ou nomear procurador para fazê-lo. Há, ainda, uma ordem de quem poderá determinar essa escolha, caso o falecido não tenha manifestado sua vontade em vida. Entretanto, esses legitimados não poderão revogar ou modificar a vontade expressa do indivíduo, apenas indicar a destinação na ausência de qualquer expressão do desejo da pessoa. Interessante notar que três Estados abordam diretamente a legalidade da criopreservação de cadáveres. São eles: Arizona, Califórnia e Michigan. (SANTOS, 2020).
Os centros mais destacados de criogenia ficam no Arizona e em Michigan, sendo, respectivamente, Alcor Life Extension Foundation em Scottsdale, Arizona; e Cryonics Institute em Clinton Township, Michigan, este fundado por Robert Ettinger.
Nos Estados Unidos é crescente a realização de planejamento imobiliário e financeiro por meio de fundos de reavivamento nos casos de submissão à criogenia, ou seja, a administração de patrimônio para ser restituído ao titular quando este for reanimado no futuro. (KNUTSON, 2019).
Percebe-se que o cenário dessa operação é incerto, pois o patrimônio é conservado para um titular que talvez volte à vida em centenas de anos ou nem mesmo volte. Assim, são desenhadas pouco a pouco as definições sobre o período de tempo pelo qual o fundo ficaria ativo, bem como se algum familiar poderia findar o contrato firmado. De toda forma, mesmo que diante de incertezas, é interessante registrar os contornos e alcance que a criônica está atingindo ao redor do mundo.
A Espanha, por sua vez, não possui legislação adaptada diretamente à criogenia. (SANTOS, 2020). Entretanto, lá já existe o centro especializado em congelamento de corpos – Cecryon – situado em Valência, com o objetivo de se tornar referência na Europa no tocante à criopreservação.
Por seu turno, a Rússia é um exemplo onde a criogenia humana é legalizada, de modo que as pessoas têm plenos poderes para decidir destinar seus corpos ao congelamento. Cita-se a empresa KrioRus, sediada em Alabúshevo, nos arredores de Moscou, como a primeira nessa localidade a estruturar um banco de cérebros e corpos humanos em suspensão criônica, além de corpos de animais e outros serviços com a utilização de criostase.
Essa mesma empresa russa abriu escritório de representação em Mirandola, na Itália, em 2016, e estuda ampliar para os Estados Unidos e Suíça. Os serviços oferecidos são o de criopreservação corporal humano, de animais, cerebral e, ainda, a opção de que o armazenamento seja feito em órbita próxima à Terra, em parceria com empresa de tecnologia espacial.
O direito peruano aborda a questão ao consagrar em lei que a vontade expressa em vida pelo indivíduo ou pela família para a disposição cadavérica pode ser superada para que prevaleça o interesse da comunidade, havendo uma preponderância do interesse público sobre a autonomia da vontade do falecido e do direito de escolha da disposição do corpo por parte dos familiares. (VARSI ROSPIGLIOSI, 2019, p. 9-23).
Destaca-se, ainda na análise de como a criogenia humana é tratada no direito estrangeiro, o julgamento realizado na corte britânica, com decisão favorável à submissão do corpo sem vida de uma adolescente de 14 (quatorze) anos à criopreservação, após a própria ter manifestado que esse seria seu desejo, tendo o apoio de sua genitora e resistência na vontade de seu genitor. (HUXTABLE, 2018, p. 476-499).
A decisão da corte se lastreou na autonomia privada e no bem-estar que seria proporcionado à garota em seus últimos dias de vida por saber que teria sua vontade respeitada e concretizada. É oportuno trazer à baila declaração da adolescente que constou no processo, a fim de ilustrar o caso e enriquecer a exposição aqui proposta (ReJS, 2016): “Pediram-me para explicar por que eu quero essa coisa incomum feita. Tenho apenas 14 anos e eu não quero morrer, mas sei que vou. Eu penso que ser criopreservada me dá a chance de ser curada e acordada, mesmo que seja daqui a centenas de anos. Eu não quero ser enterrada no subsolo. Eu quero viver longamente e eu penso que no futuro eles podem encontrar a cura para o meu câncer e me acordar. Eu quero ter essa chance. Esse é o meu desejo.” (tradução nossa)
Este caso abriu precedente para que a autoridade Human Tissue Authority, com competência para regular a destinação de tecido humano para diversos fins, se posicionasse sobre o tema. (GEORGE, 2017, p. 109-111). Dessa maneira, o posicionamento oficial encontrado no sítio da organização pertencente ao Departamento de Saúde e Assistência Social do Reino Unido é de que não há regulamentação em lei para a criônica no Reino Unido. (HUMAN TISSUE AUTHORITY, 2018).
Entretanto, é possível que aquele que figurar como responsável por tomar posse do corpo sem vida inicie os procedimentos para submissão do corpo à criogenia. Como não há no Reino Unido centros especializados, o corpo deverá ser transportado para os Estados Unidos ou Rússia, tendo por fundamento o Removal of Bodies Regulations 1954 SI 448’ (as amended 1971. (REINO UNIDO, 1954).
Assim, após o caso emblemático mencionado, o Reino Unido avaliou a temática por meio de pesquisa, constatando que a atividade é rara no território britânico e que oferecia baixo risco potencial para o público, razão pela qual optou-se pela não regulamentação por ora.
De outro lado, na província de British Columbia, no Canadá, a técnica da criogenia é expressamente proibida em lei, o que não impede os cidadãos locais de contratarem o serviço em outra localidade, nem mesmo que o serviço funerário local faça o transporte dos corpos sem vida para institutos especializados em criogenia em outros Estados. (BRITISH COLUMBIA, 2004).
Feito esse paralelo e retomando-se a perspectiva brasileira, falta, por assim dizer, norma específica para a criogenia de corpos humanos sem vida no Brasil. Porém, diante da máxima constitucional de que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei”, prevista no artigo 5º, inciso II (BRASIL, 1998), e da ausência de norma proibitiva, entende-se como legítimo que qualquer brasileiro manifeste sua vontade de destinação do próprio corpo após a vida, incluindo-se nas possibilidades a criogenia.
Ainda, é evidente a relação entre a autonomia privada, no viés da autodeterminação corporal; a previsão do artigo 14 do Código Civil, no que tange à possibilidade de disposição gratuita do próprio corpo para depois da morte; e a opção pela criogenia.
Conforme mencionado, certo é que o sistema jurídico brasileiro não proíbe a submissão do corpo sem vida à criopreservação, mas para além disso, é possível constatar que há uma tendência a que essa técnica esteja sim em conformidade com o ordenamento. Isso se percebe justamente quando é feita a análise da valorização que se dá à autodeterminação corporal, bem como da expressa previsão no Código Civil da livre disposição do corpo de maneira gratuita com objetivo altruístico ou científico.
Diante de todo o caminho aqui exposto de abertura das normas no sentido de admissão de destinações corporais diversas do sepultamento tradicional, difícil é, portanto, afirmar que não há espaço para a criogenia na legislação brasileira.
Pelo exposto, é oportuno analisar o caso concreto decidido judicialmente acerca da criogenia de corpos sem vida no Brasil que inspirou o presente trabalho. É o que será feito no tópico adiante.
3. A técnica da criogenia para conservação do corpo após a morte e a análise do Recurso Especial nº 1693718/RJ (2017/0209642-3)
Após o estudo feito, e delineado o arcabouço doutrinário e legislativo suficiente para melhor compreensão da temática, passa-se à análise detida do caso concreto de criogenia humana que chegou ao judiciário brasileiro e inspirou necessários debates sobre o tema.
Ressalta-se que é comum e socialmente aceito se admitir a criogenia de óvulos, embriões, cordões umbilicais e material genético, mas a criogenia do corpo humano teve seu primeiro caso levado à tona em ação judicial neste processo ora em análise.
Trata-se de Recurso Especial, cuja ação originária tramitou no Rio de Janeiro, provido pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, no dia 26 de março de 2019, em conformidade com o voto do relator – Ministro Marco Aurélio Belizze. Confira-se a ementa:
“RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ORDINÁRIA. 1. DISCUSSÃO TRAVADA ENTRE IRMÃS PATERNAS ACERCA DA DESTINAÇÃO DO CORPO DO GENITOR. ENQUANTO A RECORRENTE AFIRMA QUE O DESEJO DE SEU PAI, MANIFESTADO EM VIDA, ERA O DE SER CRIOPRESERVADO, AS RECORRIDAS SUSTENTAM QUE ELE DEVE SER SEPULTADO NA FORMA TRADICIONAL (ENTERRO). 2. CRIOGENIA. TÉCNICA DE CONGELAMENTO DO CORPO HUMANO MORTO, COM O INTUITO DE REANIMAÇÃO FUTURA. 3. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL SOBRE O PROCEDIMENTO DA CRIOGENIA. LACUNA NORMATIVA. NECESSIDADE DE INTEGRAÇÃO DA NORMA POR MEIO DA ANALOGIA (LINDB, ART. 4º). ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO QUE, ALÉM DE PROTEGER AS DISPOSIÇÕES DE ÚLTIMA VONTADE DO INDIVÍDUO, COMO DECORRÊNCIA DO DIREITO AO CADÁVER, CONTEMPLA DIVERSAS NORMAS LEGAIS QUE TRATAM DE FORMAS DISTINTAS DE DESTINAÇÃO DO CORPO HUMANO EM RELAÇÃO À TRADICIONAL REGRA DO SEPULTAMENTO. NORMAS CORRELATAS QUE NÃO EXIGEM FORMA ESPECÍFICA PARA VIABILIZAR A DESTINAÇÃO DO CORPO HUMANO APÓS A MORTE, BASTANDO A ANTERIOR MANIFESTAÇÃO DE VONTADE DO INDIVÍDUO. POSSIBILIDADE DE COMPROVAÇÃO DA VONTADE POR QUALQUER MEIO DE PROVA IDÔNEO. LEGITIMIDADE DOS FAMILIARES MAIS PRÓXIMOS A ATUAREM NOS CASOS ENVOLVENDO A TUTELA DE DIREITOS DA PERSONALIDADE DO INDIVÍDUO POST MORTEM. 4. CASO CONCRETO: RECORRENTE QUE CONVIVEU E COABITOU COM SEU GENITOR POR MAIS DE 30 (TRINTA) ANOS, SENDO A MAIOR PARTE DO TEMPO EM CIDADE BEM DISTANTE DA QUE RESIDEM SUAS IRMÃS (RECORRIDAS), ALÉM DE POSSUIR PROCURAÇÃO PÚBLICA LAVRADA POR SEU PAI, OUTORGANDO-LHE AMPLOS, GERAIS E IRRESTRITOS PODERES.
CIRCUNSTÂNCIAS FÁTICAS QUE PERMITEM CONCLUIR QUE A SUA MANIFESTAÇÃO É A QUE MELHOR TRADUZ A REAL VONTADE DO DE CUJUS. 5. CORPO DO GENITOR DAS PARTES QUE JÁ SE ENCONTRA SUBMETIDO AO PROCEDIMENTO DA CRIOGENIA HÁ QUASE 7 (SETE) ANOS. SITUAÇÃO JURÍDICA CONSOLIDADA NO TEMPO. POSTULADO DA RAZOABILIDADE. OBSERVÂNCIA. 6. RECURSO PROVIDO.
(…)
(REsp 1693718/RJ, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/03/2019, DJe 04/04/2019) (grifo nosso) (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, 2019)”.
Basicamente, duas das filhas do falecido ajuizaram ação ordinária com pedido de tutela antecipada no Rio de Janeiro a fim de assegurar que o destino dado ao corpo do pai fosse o sepultamento tradicional, visto que a outra filha havia enviado o corpo do pai para criopreservação em empresa especializada no Rio de Janeiro até trasladar o corpo para o instituto de criogenia nos Estados Unidos já definido.
Esta filha, ao se defender, afirmou que fez isso por ser a vontade de seu pai, e que era ela a convivente próxima dele há mais de 30 anos, ao contrário das irmãs, que não mantinham contato perene com o genitor. A despeito do pai não ter deixado a vontade acerca da destinação de seu corpo após a morte documentada, foram juntadas aos autos diversas provas de pessoas que conviviam proximamente a ele afirmando que essa seria de fato a sua vontade – ser criogenizado.
Em primeira instância, o juízo deu procedência parcial ao pedido, determinando que o corpo deveria ser sepultado, em uma sentença com viés moral e religioso evidente. Após recurso de apelação, o Egrégio Tribunal do Rio de Janeiro reformou a sentença para reconhecer a validade da vontade do falecido, ainda que não documentada em testamento ou codicilo, autorizando inclusive o envio do corpo ao Instituto Cryogenics, em Michigan, tendo sido a ementa nos seguintes termos:
“CRIOGENIA. DESTINAÇÃO DE RESTOS MORTAIS. DISPOSIÇÃO DE ULTIMA VONTADE. INEXISTÊNCIA DE TESTAMENTO OU CODICILO. DIREITO DA PERSONALIDADE. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. AUSENCIA DE CONSENSO ENTRE AS LITIGANTES. PROVA DOCUMENTAL ROBUSTA, QUE DEMONSTRA QUE O DE CUJUS DESEJAVA VER O SEU CORPO SUBMETIDO AO PROCEDIMENTO DA CRIOGENIA. 1. A criogenia ou criopreservação consiste na preservação de cadáveres humanos em baixas temperaturas para eventual e futura reanimação e se insere dentre os avanços científicos que deram nova roupagem à ciência, rompendo com antigos paradigmas sociais, religiosos e morais. 2. Disputa acerca da destinação dos restos mortais do pai das litigantes, cujo desate não consiste na unificação da vontade das partes, mas sim na perquirição da real vontade do falecido.3. Disposição de última vontade quanto à destinação de seu cadáver, que recai no rol dos direitos da personalidade constitucionalmente assegurados. Inexistência de testamento ou codicilo que não deve inviabilizar o cumprimento dos seus desígnios, sob pena de afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana. 4. Em que pese a solenidade e o conservadorismo do direito sucessório pátrio, são reconhecidas formas excepcionais de testamento, como o particular, nuncupativo, marítimo e aeronáutico que prescindem das formalidades ordinárias e visam impedir que o indivíduo venha a falecer sem fazer prevalecer sua derradeira vontade. 5. Os elementos constantes dos autos, em especial a prova documental, demonstram de forma inequívoca o desejo do falecido de ter o seu corpo congelado após a sua morte.6. Inafastável a aptidão da parenta mais próxima do falecido, com quem mantinha relação de afeto e confiança incondicionais, no caso, sua filha Lygia, para dizer sobre o melhor destino dos restos mortais, ou seja, aquele que melhor traduz suas convicções e desejos à época de seu óbito. 7. Ausência de previsão legal acerca do tema – criogenia – que, na forma do art. 4º da LICC, autoriza a aplicação analógica das disposições existentes acerca da cremação, para a qual a Lei de Registros Públicos não estabeleceu forma especial para a manifestação de vontade. Precedentes deste Egrégio Tribunal.8. Inexistência de paradigma jurisprudencial que não inviabiliza a pretensão diante da ausência de vedação legal e da demonstração de ser esta a disposição de última vontade do de cujus.Recurso provido. Vencida a Des. Ines da Trindade. (grifo nosso) (BRASIL, Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 2012)”.
Destaca-se que a reforma da sentença, que tinha cunho conservador e religioso, traz a lume questão importante, que é a laicização do Estado e como isso deve se refletir nas decisões judiciais. O Supremo Tribunal Federal tratou da questão em caso polêmico recente materializado na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, 2012). A ação tratava da interrupção de gravidez em caso de feto anencéfalo e, a despeito do resultado da ADPF, cumpre ressaltar argumentação utilizada pelo relator, Ministro Marco Aurélio – a afirmação de que os valores morais e concepções religiosas não podem se imiscuir nas decisões e atos de Estado.
Após essa observação importante, retoma-se a análise do caso. Após a decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro autorizando a criogenização do corpo sem vida, a filha ora recorrente enviou o corpo do pai para o instituto de criogenia nos Estados Unidos, deixando claro durante o deslinde processual que custeou toda a conservação do corpo no Brasil e o traslado.
Em determinado momento, em declaração própria no processo, disse que abriria mão inclusive da parte que lhe coubesse na herança, apenas para ver a vontade de seu pai sendo cumprida, se comprometendo, ainda, a pagar duas viagens por ano para as irmãs recorridas visitarem o corpo do pai no instituto, vez que este é legalmente registrado como cemitério e tem procedimentos de visita regulamentados.
Entretanto, as requerentes da ação originária, ainda irresignadas, propuseram Embargos Infringentes, que ocasionaram uma decisão de acolhimento no sentido de que o corpo deveria, na verdade, ser tradicionalmente sepultado em solo brasileiro. Em face dessa decisão, a filha requerida propôs o Recurso Especial em tela e obteve o resultado aqui analisado, de que poderia manter o corpo do genitor criogenizado.
Entendeu-se que as provas do processo eram suficientes para demonstrar que essa era a vontade do falecido. Ademais, considerou-se a situação consolidada, visto que o corpo já estava criopreservado há quase 7 (sete) anos à época do julgamento.
O raciocínio feito no voto do relator, acompanhado unanimemente pela Turma, foi o de que há uma lacuna normativa quanto ao cabimento ou descabimento da criogenia post mortem de corpos humanos. Com isso, se faz necessária a aplicação da previsão do artigo 4° da LINDB, referenciado anteriormente, para integrar a norma por meio de analogia.
Assim, cumpre ressaltar que o direito brasileiro admite outras formas de destinação do corpo humano após a morte diferentes do sepultamento, também denominado inumação, a exemplo da cremação. Neste sentido, o artigo 77, parágrafo 2º, da Lei de Registros Públicos, dispõe (BRASIL, Lei nº 6.015, 1973, art. 77, §2º):
“Art. 77. Nenhum sepultamento será feito sem certidão do oficial de registro do lugar do falecimento ou do lugar de residência do de cujus, quando o falecimento ocorrer em local diverso do seu domicílio, extraída após a lavratura do assento de óbito, em vista do atestado de médico, se houver no lugar, ou em caso contrário, de duas pessoas qualificadas que tiverem presenciado ou verificado a morte.
(…)
- 2º A cremação de cadáver somente será feita daquele que houver manifestado a vontade de ser incinerado ou no interesse da saúde pública e se o atestado de óbito houver sido firmado por 2 (dois) médicos ou por 1 (um) médico legista e, no caso de morte violenta, depois de autorizada pela autoridade judiciária.” (grifo nosso)
Observa-se que o parágrafo 2º fala em manifestação de vontade em relação à incineração, mas não especifica nenhuma forma obrigatória que deve ser adotada nessa expressão da vontade, permitindo que a autonomia da vontade seja manifestada e comprovada por qualquer meio idôneo de prova.
Esse foi outro argumento utilizado no julgamento do recurso, ou seja, além de haver a lacuna normativa, coberta pelo fato de que o ordenamento jurídico brasileiro prevê outras formas de destinação do corpo humano após a morte que não somente a inumação, ainda existe a ausência de forma estabelecida para a manifestação de vontade de algumas dessas destinações, como a de cremação.
Assim, em paralelo, consolida-se que a criogenia é uma forma não convencional de submissão do corpo após a morte, sendo que não há nenhuma proibição acerca disso em lei. Ademais, a manifestação de vontade de ser criogenizado não precisa estar materializada em testamento, codicilo ou outra forma oficial, visto que não há previsão legal para tanto, e outros normativos admitem a manifestação de vontade de forma livre, desde que seja possível a comprovação e que o meio de prova seja admitido em direito.
Em função disso, e sabido que a filha mais próxima do genitor, que era inclusive sua procuradora legalmente constituída, esboçou que seu desejo era o de ser submetido à criônica, assim como outros profissionais e pessoas próximas a ele declararam o mesmo, configura-se acertada a decisão exarada pelo Superior Tribunal de Justiça.
Esse foi o primeiro caso judicializado sobre a temática, mas diante dos aprimoramentos tecnológicos e do crescente número de adeptos da técnica ao redor do mundo, inclusive no Brasil, outros casos irão reverberar na sociedade e, consequentemente, no Judiciário. Imperioso é, então, o debate acadêmico sobre o assunto, a fim de subsidiar as decisões e a atividade legislativa que será necessária para suprir a lacuna normativa e pacificar os pontos controvertidos acerca da criogenia humana post mortem.
Por ora, diante do sistema jurídico existente, tem-se que não há óbice à opção de ser criogenizado, com a obrigação de respeito por parte do Estado à autonomia da vontade da pessoa humana, sendo que essa obrigação produz efeitos mesmo após a morte da pessoa. Ainda, como não existe forma pré-definida, nada impede que seja comprovada essa vontade por outro meio de prova que não seja um documento formal como o testamento.
Conclusão
O tema abordado neste trabalho foi a tutela da autodeterminação corporal, em uma análise da técnica da criogenia e interpretação da vontade post mortem não documentada. Existe uma grande preocupação no cenário jurídico em torno do tema proposto, em função da repercussão moral e religiosa da temática e da importância para os direitos de personalidade e concretização da dignidade da pessoa humana daquele que manifestou vontade e de seus familiares.
A criogenia humana de corpos sem vida é um tema pouco explorado no Brasil, embora já seja aplicada ao redor do mundo desde 1960. Aos poucos as discussões em torno disso vêm se ampliando à medida que mais cidadãos escolhem submeter seus corpos, quando das suas mortes, ao congelamento com vitrificação – técnica da criogenia – na esperança de serem reanimados no futuro com a cura para as doenças que os levaram ao óbito.
O problema que o trabalho propôs foi: em que medida se dá a eficácia da vontade post mortem não documentada para fins de submissão do de cujus à técnica da criogenia?
Para que fosse possível responder a essa questão, o estudo se orientou pelo Direito das Sucessões contemporâneo, com o objetivo de compreender quais são as novidades no âmbito sucessório e apontar o descompasso entre a evolução social e o avanço legislativo e jurisprudencial neste ramo do Direito.
Em seguida, houve detalhamento da manifestação de vontade – documentada e não documentada – para efeitos de tutela jurisdicional perante o ordenamento jurídico brasileiro, constatando-se que algumas expressões de vontade devem seguir forma definida em lei e outras são livres, sendo necessário apenas que sejam comprovadas por algum meio de prova idôneo para que sejam tuteladas.
Ademais, o estudo passou pela análise da bioética e biodireito, a fim de entender as novas técnicas empregadas pela medicina com o uso de tecnologias, especialmente no que tange à conservação dos corpos humanos sem vida. Aprofundou-se no entendimento da criogenia humana. Somente após esse entendimento inicial foi possível adentrar as nuances legislativas.
Assim, o caminho feito percorreu a análise da Constituição Federal, do Código Civil e de outros normativos como a Lei de Registros Públicos. Nesse momento, o intuito do artigo foi esclarecer como a legislação trata a destinação final dos corpos, apresentando as possibilidades admitidas que são distintas do sepultamento tradicional e, principalmente, como é tratada a validade da vontade manifestada e documentada (ou não) em vida com efeitos post mortem, tudo sob o viés da técnica da criogenia.
Avaliou-se, no âmbito do Direito comparado, como os países tratam a temática ao redor do mundo, dando ênfase aos que possuem institutos especializados em criônica e estão atuantes há anos. Essa comparação é importante para que se entenda o nível de engajamento do Brasil quanto ao tema, bem como hipotetizar o tratamento futuro que será dado à questão em solo nacional.
Feitas essas considerações, apresentou-se o estudo jurisprudencial do Recurso Especial julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, que foi o primeiro e ainda único a chegar ao judiciário brasileiro trazendo os desafios que a temática impõe quanto à admissão da criogenia humana e prevalência de vontade manifestada em vida, mas não documentada.
Concluiu-se, por meio da pesquisa em doutrina, legislação, jurisprudência e estudo comparado com Estados estrangeiros que é válida a hipótese eleita ao problema proposto, qual seja, a de que é possível interpretar a vontade post mortem por intermédio de outras provas que não um documento formal.
Deve ser dada prevalência à vontade manifestada em vida pelo falecido como expressão da dignidade da pessoa humana que se protrai para a morte. Diante da ausência de regramento sobre o tema, não há óbice, portanto, à submissão de corpos sem vida à criogenia, nem mesmo obrigatoriedade de que a vontade seja documentada, desde que possa ser comprovada por outros meios de prova admitidos em Direito.
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