1- INTRODUÇÃO
As páginas que seguem não têm outra pretensão que a de constituir o início a uma análise que pretende aproximar o tema objeto de minhas pesquisas no âmbito do Direito da Infância e da Juventude e os Direitos Étnicos-Culturais, mais precisamente, os direitos indígenas. A perspectiva escolhida reflete um primeiro olhar sobre um assunto que necessariamente deverá ser melhor desenvolvido e resolvido. Trata-se, na verdade, de um exercício exploratório e, portanto, inevitavelmente aberto e geral.
2 – IDENTIDADE, ALTERIDADE E INFÂNCIA – UMA APROXIMAÇÃO DE CONCEITOS
Como premissa inicial, proponho buscarmos o significado de infância. Não aquele que trata diretamente de crianças, mas da infância como conceito [1]. O descolamento do âmbito menorista é fundamental para a aproximação que ora se pretende. É essencial, assim, lidar com uma idéia de infância, ou seja, com um conceito de infância, que significa muito mais do que a expressão de uma determinada realidade material. Explica LÓPEZ:
“Os conceitos têm vida própria ; são a matriz a partir da qual extraímos da realidade, que é múltipla, caótica e ambígua, uma série de traços, a partir dos quais podemos capturá-la e fazê-la funcional em um mundo cultural determinado. Desse modo, um conceito expressa uma realidade complexa, sendo esse conceito sempre menos que a realidade que expressa. O conceito é um recorte da realidade que a reduz e a estabiliza, tornando-a compreensível e governável.”[2]
Como assevera esse mesmo autor, os conceitos não existem isoladamente e para entender o sentido de infância, necessitamos entender os demais conceitos com os quais esta se comunica e as forças que nela se expressam[3].
Na perspectiva de aproximação pretendida pelo presente trabalho, façamos a ligação entre o conceito de infância, com os de identidade e de alteridade.
Para compreender o conceito de alteridade, devemos assentar, em um primeiro momento, o que se compreende por etnia.
Conceitua-se etnia como conjunto de fatores materiais, subjetivos e simbólicos que dão identidade própria para determinado grupo social [4]. A identidade étnica [5] constitui, assim, uma categoria relacional que se define na comparação de um frente ao Outro, em processos dialógicos, para usar as palavras de Charles Taylor [6]. Um grupo étnico existe graças à diferenciação que apresenta em perspectiva comparativa com outras sociedades percebidas como de distinta natureza, ou seja, como outros grupos étnicos. O contraste é essencial porque é graças a ele que um grupo étnico se diferencia, exibe suas características principais, possibilitando criar o sentimento de pertencimento e unidade de identidade. Em última análise, é do mecanismo de comparação que surgem os atributos que definem a identidade étnica de um determinado grupo social.
Para a comparação há necessidade do encontro das diferenças, e a esse processo se conceitua como alteridade [7].
Voltando à nossa empreitada de aproximar conceitos, verificaremos que a proximidade de infância com alteridade resultará de questionamentos que a Europa formula para si mesma no momento em que sua expansão colonial começava.
De fato, a expansão marítima, iniciada por países católicos e conservadores, buscara legitimidade e apoios na tradição das cruzadas e associara, aos interesses comerciais, a motivação e a justificação da sua “missão evangelizadora”. Observa CABAÇO que logo após os contatos iniciais, que foram amistosos, se verificariam profundos desajustamentos entre os ideais anunciados e a prática dos navegadores-guerreiros nas relações estabelecidas com os povos de ultramar, mas o maniqueismo que caracterizara o espírito das cruzadas permaneceu presente [8]. O encontro de culturas e civilizações se pautava pelo desconhecimento recíproco, pela incompreensão e, freqüentemente, pela intolerância em relação a essas diferenças.
Desde o início da Conquista instaura-se e desenvolve-se na Europa uma discussão que visa construir um discurso jurídico-moral que tornasse aceitável aos olhos dos conquistadores a apropriação das terras e os recursos do novo mundo. O apogeu do debate se dá com a “célebre disputa que no ano de 1550 sustentaram em Valladolid ( Espanha) o filósofo Gines de Sepúlveda e o padre dominicano e bispo de Chiapas Bartolomé de Las Casas” [9]. Relata LÓPEZ :
“Contrapunham-se, assim, duas doutrinas. A primeira – baseada em Aristóteles e representada por Sepúlveda – concebia a hierarquia como condição natural da sociedade humana; a segunda – representada por Las Casas -,apelando ao universalismo cristão, afirmava ser a igualdade o estado natural”.[10]
Observa o autor que a idéia de infância aparece com freqüência de ambos os lados do confronto. Se para os defensores da desigualdade natural, os indígenas eram como crianças em virtude de sua irracionalidade e imaturidade, para Bartolomé de Las Casas e os defensores da igualdade, aqueles compartiam com as crianças sua inocência e ductilidade.
O status ambíguo da infância é perfeito para estruturar a relação com o Outro conquistado, porque “esse status está dado pelo fato de as crianças serem, ao mesmo tempo “um de nós”, no sentido de terem nascido de nós e de prolongarem nossa existência depois da morte, e diferente de nós, na medida em que não falam nossa língua e desconhecem nossos costumes” [11].
Essa posição ambígua oferecida pela infância, ou seja, esse meio caminho entre o próprio e o alheio, entre o mesmo e o Outro, entre a identidade e a diferença, a infância se torna um conceito chave para uma forma de controle social denominada colonialismo.
Sobre tal patrimônio conceitual se consolidam as percepções de “superioridade” da cultura européia sobre o colonizado, cujo etnocentrismo nega a igualdade, e transforma os indígenas em “selvagens”, “raças infectas”, “ignorantes”, e “crianças grandes”, fundamentando e legitimando a intervenção dos conquistadores em termos pedagógicos e evangelizadores, em um primeiro momento e, posteriormente, despojado de seu conteúdo religioso e adotado por outras potências coloniais européias sob o nome de “missão civilizadora” [12] [13]. COLAÇO afirma que duvidava-se da humanidade dos índios, chegando-se, posteriormente, à conclusão “de que eram homens, porém inferiores e incapazes” [14]
A visão do outro como diminuído [15] serviu à Europa para afirmar sua identidade, experimentar sua potência, confirmar sua superioridade e para projetar seus desejos e utopias políticas. Fazia-se necessário levar a “verdade” européia, não apenas religiosa, mas também cultural, científica, técnica e organizacional a todos.
A ambigüidade conceitual da infância permitiu ao “processo civilizatório” desenvolver um arcabouço de controle social sobre o Outro, que tinha a forma de um “não ser ainda”, ou como “ainda não”, idéias que se reproduzem na legislação da época do Brasil colonial e que se mantém até os nossos dias [16].
Constata-se, assim, que à similitude da criança, o indígena é portador da infância, ou seja, é aquele que não fala, possui o silêncio. Na verdade, é o colonizador quem fala e o índios são os de quem se fala [17]–[18] .
Analisemos, assim, a trajetória histórica dos direitos indígenas, que reproduzem o pensamento etnocêntrico de afastar a efetividade dos direitos dentro de uma perspectiva de se prolongar a infância até o infinito.
3- RETROSPECTIVA DOS DIREITOS INDÍGENAS NO BRASIL
A costa atlântica foi percorrida e ocupada por inumeráveis povos indígenas. Nos séculos que antecederam à Conquista, foram os índios de fala tupi que se instalaram na área, tanto à beira-mar, ao longo de toda a costa atlântica e pelo Amazonas acima, como subindo pelos rios principais, como o Paraguai, o Guaporé, o Tapajós, até suas nascentes.
Assim, os grupos indígenas encontrados no litoral pelo português eram principalmente tribos de tronco tupi. DARCY RIBEIRO relata que somavam, talvez, 1 milhão de índios, divididos em dezenas de grupos tribais, cada um deles compreendendo um conglomerado de várias aldeias e trezentos a 2 mil habitantes [19]. Além da mandioca, cultivavam o milho, a batata-doce, o urucu, o cará, o feijão, o amendoim, o tabaco, a abóbora, o urucu, o algodão, o carauá, cuias e cabaças, as pimentas, o abacaxi, o mamão, a erva-mate, o guaraná, entre muitas outras plantas, além de dezenas de árvores frutíferas. A agricultura lhes assegurava fartura alimentar, matérias – primas, condimentos, venenos e estimulantes.
Os conquistadores ao adentrarem no território brasileiro não se espantaram com a presença dos indígenas, mas sim, com o seu modo de vida, completamente diferente do seu. Estabeleceram-se, assim, as primeiras relações entre indígenas e portugueses, que foram amistosas, caracterizando-se pela troca de bens manufaturados por pau-brasil.
A partir de 1530, a colonização portuguesa no Brasil se inicia e se expande, apoderando-se dos territórios indígenas e escravizando os povos autóctones. O estabelecimento das capitanias hereditárias se deu em 1534 e a necessidade de mão de obra fomentava a compra de cativos das guerras indígenas. Os portugueses dependiam da produção de alimentos para seu sustento e produção para o comércio.
Com a instalação do Governo Geral em 1549, em Salvador, o governador Tomé de Souza contou com a presença dos jesuítas para aldeamento e catequese dos indígenas da costa. Esboçava-se, assim, a política indigenista colonial portuguesa: catequizar para humanizar os”bárbaros”, ou seja, tornar civilizados aqueles que “ainda não são”, ao mesmo tempo em que os convertem em trabalhadores produtivos sob a ótica do mercado colonial [20]. É o etnocentrismo declarado na afirmação da infância do Outro.
Dentro desse contexto, outras formas de controle social passaram a ser perseguidas pelas autoridades políticas e religiosas na América portuguesa. Em 1570 foi instituída a Guerra Justa, em represália a ataques indígenas, como única forma de aquisição de cativos e deveria ser autorizada pelo rei ou pelo governador. A liberdade dos indígenas começou a ser administrada politicamente, na medida em que as opções colocadas eram o cativeiro oriundo das guerras inter-étnicas, para obtenção de mão de obra e o aldeamento nas “reduções jesuíticas” [21] [22].
Surgem aldeamentos realizados pelos jesuítas, em áreas doadas pelo governador, com o objetivo de livrar os índios e catequizá-los.[23] Esse processo introduziu elementos alheios à cultura indígena, por caracterizar-se pela mistura e homogeneização das culturas, controle da terra e do trabalho. Os colonos, de início, foram simpatizantes á instituição dos aldeamentos, esperando poder usufruir da domesticação dessa mão-de-obra, mas, posteriormente, revoltaram-se porque eram impedidos de negociar com os indígenas, obrigada que era a participação dos religiosos.
A captura de indígenas do sertão ganhou novo impulso com as chamadas bandeiras, expedições compostas por portugueses, mamelucos e indígenas.
No contexto da demarcação de limites entre as Portugal e Espanha, o Tratado de Madrid de 1750, que alterou o Tratado de Tordesilhas, estipulava que haveria uma troca entre a Colônia de Sacramento fundada por portugueses, mas em poder dos espanhóis, pela região de Sete Povos das Missões, posse espanhola que passaria a ser de Portugal. Os indígenas (Guarani) reagiram envidando intensa correspondência ao rei espanhol e lutando contras as tropas espanholas e portuguesas que se aliaram e derrotaram os guaranis. A transferência determinada no Tratado de Madrid foi um processo complexo que culminou com a expulsão dos jesuítas do Brasil em 1759.
Na verdade, explica BERTHO:
“Na América Portuguesa mesmo alguns anos antes da expulsão dos jesuítas, a política indigenista reiterava sua ambigüidade entre os interesses dos colonos, favoráveis á utilização da mão de obra indígena escrava, e o interesse dos jesuítas, que defendiam a separação dessas populações sob seu missionamento”[24].
A política liberal de Marquês de Pombal, em 1755 decretou dois alvarás para a política indigenista. O primeiro incentivava o casamento inter-racial, e equiparava os índios aos colonos. O segundo decretava a liberdade irrestrita dos índios, e suprimia o trabalho religioso junto a eles. Essa legislação acrescentava a educação do índio em língua portuguesa, suprimindo as línguas nativas [25] . Essa lei revoga o Alvará de 1º. de abril de 1680, que estabelecia que os indígenas não podiam ser transferidos de seus lugares contra a sua vontade [26].
Seguem-se a Carta Régia de 1798 e a Constituição de 1824, que sequer menciona a existência de índios no território nacional. Lei de 27 de outubro de 1831 livra os índios dos serviços obrigatórios.
Observa COLAÇO que o instituto da tutela aparece na transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado. Entretanto, o formato dado à época ao instituto não nos permite a aproximação de conceitos pretendida pelo presente trabalho, por não estar vinculado à idéia de proteção à uma suposta “infantilidade”, o que viria ocorrer mais tarde, e sim à dificuldade de incorporá-los ao mercado de trabalho, ou seja, como forma de evitar a evasão dos índios libertos e residentes nas povoações coloniais para o seu estágio de “barbárie” [27].
O período histórico posterior é marcado com uma certa independência das províncias em lidar com iniciativa anti-indígenas, cabendo ao Regulamento das Missões de 1845 o lugar de única norma indigenista geral do governo imperial [28].
Em 1850, as terras indígenas são incorporadas ao patrimônio nacional, de tal maneira que aos indígenas somente resta o usufruto da terra e não a sua propriedade.
A entrada em vigor do art. 6º. do Código Civil, em 1916 ( Lei n. 3.071, de 1º. de Janeiro de 1916) vem dar outras característica ao tratamento legal do indígena, alterando o instituto da tutela, e classificando o indígena como incapaz. Reafirma-se, assim, uma infantilidade eterna e um desenvolvimento mental incompleto ou deficiente dos índios, dentro de uma perspectiva que se iniciou com a Conquista e se manteve com a colonização [29].
Após a proclamação da República, as terras indígenas são cada vez mais invadidas pelas estradas de ferro, pela navegação fluvial e pela expansão das plantações de café.
O Decreto 8.072 de 20 de julho de 1910 cria o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPI – LTN), ligada ao Ministério da Agricultura. Fundado por Cândido Rondon, generaliza-se a tutela, no que Darcy Ribeiro irá chamar de “intervenção protecionista”. [30] [31]
Nos anos 50, a corrupção invadiu o Serviço Proteção ao Índio, chegando ser acusada de prática por funcionários de assassinatos, torturas e, expropriação de terras. Em 1967 (Lei n. 5.371 de 5 de dezembro de 1967), a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) substitui o SPI. Objetivamente sua função era dar apoio a política do governo militar e a integração dos grupos indígenas para facilitar a ocupação da Amazônia.
Na década de 70 ocorre o VII Congresso Indigenista Interamericano, realizado em Brasília (1972), preocupa-se em afirmar que os países americanos tinham a obrigação de incluir o desenvolvimento dos grupos indígenas em seus planos nacionais de desenvolvimento, garantindo-lhes o direito de participar dos planos e das decisões e declarava inalienáveis as terras habitadas por estes grupos. Nos anos que se seguiram e ante a expansão brasileira na Amazônia foi necessário outro estatuto que se adaptasse perfeitamente à política do governo militar. A polêmica se instalou em torno da política indigenista nos seguintes termos: deveria se manter o índio em uma caixa de cristal ou prepará-lo com vista à sua integração à comunidade nacional. Existiam, assim, duas soluções em jogo: apartá-los da “civilização” e conservá-lo em um parque, como uma espécie em via de extinção ou “integrá-lo” à “civilização “.
Ao que parece, era ainda era impossível imaginar uma terceira solução, que resgataria o índio de sua eterna infância, ou seja, deixar ao próprio índio, em quanto sujeito, assumir suas relações com o resto da sociedade. Nas soluções apontadas, o índio não intervém, não fala ( infância) e recebe, como se fosse um objeto e não sujeito, as decisões que são tomadas por eles.
Nesse contexto, se promulga o Estatuto do Índio – Lei n. 6.001 de 17 de dezembro de 1973 – que legaliza a sua transferência forçada dos grupos indígenas a outras regiões nas hipóteses em que o governo considere que suas terras são de interesse vital para o “desenvolvimento e segurança do país”. Os índios somente têm o usufruto, e não a propriedade, de suas terras, e portanto, tampouco exercem o controle das riquezas que estas possam ter. Depreende-se de seus Princípios e Definições que o objetivo do Estatuto do Índio:
“seria garantir temporariamente alguns direitos, eliminando aos poucos o elementos índio, já que com o passar do tempo, iria perder sua cultura original, deixando de ser índio e de ter direitos como tal a partir de sua incorporação à comunidade nacional”[32].
4- MARCO JURÍDICO DE PROTEÇÃO AO ÍNDIO – rumo a maturidade.
4.1. PLANO INTERNO
Da maturidade no trato da questão indígena se aproximou, finalmente, a Constituição de 1988. Com a novo arcabouço constitucional acabam as perspectivas assimilacionistas e integracionistas das legislações anteriores. O índio não é mais tratado como o detentor de uma infância eterna, como aquele que não fala, mas de quem se fala, ou que por ele falam. Adquiri o direito à alteridade, ou seja, ter respeitada a sua especifidade étnico-cultural, de ser e permanecer índio [33].
As inovações dizem respeito à proteção de seus direitos territoriais, culturais e de auto-organização. A Constituição de 1988 tutela, assim, o direito ao ensino fundamental, regular e diferenciado ( art. 210, parágrafo 2º. c.c. art. 215, parágrafo 1º. ). Quanto à questão das terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, o novo texto constitucional passa a reconhecer tal direito como um direito originário, inalienável, indisponível e imprescritível. Cabe, ainda, ao Congresso Nacional autorizar o aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas, após a prévia audiência com as comunidades envolvidas, sendo assegurada a elas a participação nos resultados da exploração art. 49, XVI) . Proíbe-se as remoções de grupos indígenas de suas terras.
Cabe, ainda, à Constituição de 1988 transformar os índios em sujeitos de direito, reconhecendo a legitimidade processual dos índios, suas comunidades e organizações para juntamente, com o Ministério Público, ingressaram em juízo em defesa de seus direitos e interesses ( art. 232).
Esses são os chamados por COLAÇO de “novos direitos indígenas”, ou seja, direitos que garantem o direito à diversidade cultural, o direito à diferença [34] assegurados pela Constituição Federal.
Na verdade, esse “novos direitos” constitucionalmente dispostos asseguram, por um lado, que os povos indígenas têm o direito a continuar existindo enquanto tais, e à garantia de seus territórios, recursos naturais e conhecimentos , por outro lado, toda a sociedade brasileira tem o direito à diversidade cultural e à presença das manifestações culturais dos diferentes grupos étnicos e sociais que a integram.
A Constituição Federal de 1988 claramente segue o paradigma do multiculturalismo ao reconhecer direitos territoriais aos povos indígenas e ao romper com o modelo assimilacionista, integracionista e homogeneizador do Código Civil de 1916 e do Estatuto do Índio [35].
A Constituição Federal valorizou, assim, o patrimônio cultural dos povos indígenas, o seu direito de permanecerem tais como são, rompendo com o paradigma integracionista que trazia até um passado muito recente, elementos do conceito de infância.
4.2. PLANO INTERNACIONAL
Verifica-se que, nos últimos anos, o reconhecimento dos direitos indígenas têm provocado intensos debates nos diversos espaços políticos, intelectuais e acadêmicos.
De fato, a importância do reconhecimento desses direitos ultrapassa as fronteiras e encontra amparo em organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas ( ONU) e a Organização Internacional do Trabalho ( OIT).
No plano internacional, o foco do debate se situa acerca do reconhecimento dos direitos indígenas, discussão que como vimos, se remonta às épocas passadas, quando teólogos e juristas recorriam ao conceito de infância para justificar, de um lado o tratamento violento que lhes impingido e de outro lado, propugnar por um tratamento mais justo e humano.
A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, adotada em Genebra, em 27 de junho de 1989 é até hoje o documento legal que maior atenção tem trazido à questão indígena no plano internacional [36] . Dentre as várias ações prescrita pela Convenção se destacam: a de facilitar a igualdade de direitos e oportunidades dentro da legislação interna de cada Estado; outorgar a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais dos povos indígenas com respeito a sua identidade e seus costumes; dos governos terem o dever de eliminar as diferenças sócio-econômicas entre os membros indígenas com os demais integrantes da comunidade, inserindo-os no desenvolvimento social e econômico do Estado;eliminar todas as formas d discriminação toda vez que constituírem um obstáculo ao desenvolvimento dos povos indígenas.
Além desse documento internacional e em paralelo à Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão da Organização das Nações Unidas – ONU , encontramos um importante instrumento de proteção e reconhecimento dos direitos indígenas: a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas, que contém 45 artigos e foi elaborada no ano de 1994 por um grupo de trabalho da ONU. Esse ordenamento reafirma que os povos indígenas têm os mesmos direitos que todos os seres humanos e inclui, ainda, várias disposições relativas à questão étnica. Notável resistência tem encontrado a aprovação dessa Declaração dentro da Comissão de Direitos Humanos da ONU, na qual se debate acerca de seu conteúdo e redação [37].
5- A POLÍTICA INDIGENISTA NA ATUALIDADE – buscas e desencontros
O modelo tutelar que sempre caracterizou a forma como a legislação brasileira (dês) cuidava da questão indígena encontrou o seu final com a Constituição de 1988.
A Constituição de 1988 expressa, assim, uma conquista expressiva na proteção aos direitos indígenas. Reconhecer o afastamento do tratamento infantil dos indígenas , não significou entretanto, a plenitude da maturidade, ou seja,
“… o fim de formas de exercício de poder, de moralidades e de interação que se poderia qualificar como tutelares, nem representa um novo projeto para o relacionamento entre os povos indígenas, poderes públicos e segmentos dominantes da sociedade brasileira, assumido com clareza pelas instâncias governamentais”[38].
Do ponto de vista jurídico, a tramitação desde 1991 no Congresso Nacional do Projeto de Lei n. 2.057 , conhecido como novo “Estatuto do Índio “, proposto para garantir a execução Constituição na parte referente aos direitos indígenas, a desconsideração da diferenças cultural na aplicação da legislação penal pelo Poder Judiciário, levando às prisões índios acusados e condenados por práticas que não são consideradas criminosas em sua cultura[39], as idas e vindas na relação entre Poder Executivo e Poder Judiciário quanto à demarcação das terras indígenas constituem exemplos da precariedade que ainda reveste a proteção dada pelo texto constitucional.
Como pontuam LIMA e BARROSO – HOFFMANN [40]: “Essa precariedade é mais nítida quando lidamos com o patrimônio indígena, seja seu legado, cultural e genético, sejam os recursos naturais existentes em suas terras, tanto florestais quanto minerais”.
De fato, o Estado não tem cumprido o papel legal de proteção às áreas indígenas, que estão constantemente sujeitas às invasões de garimpeiros, mineradores, madeireiras e posseiros, são cortadas por estradas, ferrovias, linhas de transmissão, inundadas por usinas hidrelétricas e outros impactos decorrentes de projetos econômicos da iniciativa privada e projetos desenvolvimentistas governamentais. [41]
O respeito às populações indígenas deve partir, fundamentalmente, de sua relação com a natureza e, nesse contexto, no reconhecimento das formas de seu manejo. Os índios são detentores de um conhecimento rico, fruto da sua relação diferenciada com a natureza e que constituem uma manifestação da diversidade cultural. Sua dependência do recursos naturais para a sobrevivência torna as medidas ecológico- sustentáveis fundamentais no desenvolvimento das atividades dessas populações.
Na última década se descobriu uma estreita correspondência entre a diversidade biológica e a diversidade cultural. A conservação da biodiversidade, ou seja, a diversidade dos organismos biológicos que compartilham com a espécie humana o planeta terra protegem e reforçam as cultura indígenas a elas ligadas. [42]
A ligação da comunidade indígena com a biodiversidade constitui instrumento de sua preservação em relação de reciprocidade, ou seja, a sobrevivência da população depende da biodiversidade e esta depende da população indígena. Trata-se de uma relação de condicionante e condicionada. A destruição do ecossistema diante da relação umbilical mantida pode colocar em risco a própria sobrevivência da cultura. Por outro lado, a conservação da biodiversidade depende do respeito aos direitos dos indígenas.
Dessa relação simbiótica, ou seja, da relação da biodiversidade com a diversidade cultural nela inserida e da necessidade de sua proteção surge um conceito mais abrangente conhecido por sociobiodiversidade.
A proteção dessa biodiversidade necessita do olhar do direito e da política, com a estruturação de instrumentos legais e políticas públicas capazes de proteção das populações indígenas e do meio ambiente.
Entretanto, a proteção que tem sido oferecida pelo legislador à matéria referente ao patrimônio genético e conhecimentos tradicionais, no Brasil, merece críticas.
A Constituição Federal de 1988 reconhece a diferença entre as culturas através do reconhecimento como direitos coletivos o direito à sociodiversidade ( artigo 215), o direito ao patrimônio cultural ( artigo 216), o direito à biodiversidade ( artigo 225). Em julho de 2000 o governo federal brasileiro editou a Medida Provisória 2.052 para regulamentar o acesso ao patrimônio genético, que posteriormente foi substituída pela Medida Provisória 2.186-16, de 24 de agosto de 2001.
A análise dos textos legais mencionados deixa claro que as regras jurídicas brasileira pretendem transformar a patrimônio coletivo em propriedade privada, concluindo SPAREMBERGER e KRETZMANN que a legislação existente veio para proteger os interesses econômicos de grupos empresarias ligados à biotecnologia, e não oferecem, de forma alguma, proteção aos direitos socioambientais assegurados na Constituição Federal [43].
É indiscutível que as discussões contemporâneas trazem um esforço no sentido da mudança na forma de tratar da questão indígena, verificando-se que sob a perspectiva do chamado etnodesenvolvimento, ou seja, “uma nova relação entre diferentes, tornando-se fundamental a construção de instrumentos que localizem as áreas que melhor asseguram o direito à diferença e se prestam à troca de saberes ou de bens entre as sociedades indígenas, os segmentos sociais dominantes e administração indigenista” [44] [45] , há uma passagem da infância – modelo tutelar de gestão – rumo a maturidade no tratamento da questão.
6- CONCLUSÃO
A grande preocupação do índio é a terra. Na verdade, não querem saber de outra coisa a não ser a terra. É algo de significação muito maior que a pátria porque para o índio aquilo é a sua origem. A terra é o antepassado. É nela que foram sepultados seus ancestrais. É na terra onde passa todo o seu mundo religioso e seu mundo mítico. A terra tem essa significação muito maior para o índio do que para o civilizado.
Os povos indígenas constituem um povo estável, que se dá ao luxo de viver sem chefe, e que podem sobreviver sem a presença dos civilizados, mas que passa a depender do civilizado, quando este invade a cultura indígena. Para sobreviver o índio precisa ser mantido dentro de suas áreas o mais possível, oferecendo-lhe o aquilo que a tecnologia possa melhorar a sua vida, mas nunca pensando em integrá-los à sociedade mais forte, porque nessa transição ele desaparece como povo.
A cultura indígena não é uma cultura primitiva. Ela constitui outra humanidade, outra ética. Como lembra TOURAINE:
“não mais aceitamos ver na criança apenas um ser da natureza que é preciso disciplinar para que se torne um ser social; não mais acreditamos que se possa definir os selvagens como primitivos, ou seja, como o contrário de nossa modernidade, o que nos permite legitimar a dominação exercida sobre eles” [46].
Não é por outro motivo que não admite se posicionar como um sujeito passivo, acatando, em uma infância que se mantêm até a eternidade, as decisões tomadas pela sociedade ocidentalizada.
Apesar dos avanços inquestionáveis da legislação brasileira, principalmente após o advento da Constituição Federal, fato é que um conjunto de normas oriundas não necessariamente do Estado, mas do ativismo dos movimentos indígenas, da sociedade civil, de cidadãos conscientes e da coragem de juízes e reguladores precisa surgir para que o arcabouço regulatório atinja a maturidade.
Por fim, é sempre necessário lembrar as lições de LÉVI – STRAUSS, para quem, na verdade, não existem povos infantes. Todas as sociedades humanas são adultas, mesmo os que não mantiveram um diário de sua infância e adolescência [47].
Informações Sobre o Autor
Claudia Maria Carvalho do Amaral Vieira
mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade São Paulo. Doutorando em Direito do Centro de Pós-graduação do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC – professora das Faculdades de Direito da UNIFIEO e da Universidade São Judas.