Resumo: O presente trabalho tem por objetivo discutir o paradigma constitucional alemão instaurado a partir da subida do poder do Nacional-Socialismo, principalmente tendo como referencial a desconstrução do ambiente jurídico-constitucional da República de Weimar. Tendo como base a análise de obras nacionais e internacionais, buscou-se entender Constituição Nazista como uma estrutura organizacional, um dado da realidade que se contrapõe ao constitucionalismo de Weimar, identificandoas características e os parâmetros principiológicos que darão vasão ao totalitarismo instaurado – Volksgemeinschaft, Füherprinzipe o princípio do movimento. Na análise do processo, verificou-se como a própria crise da República de Weimar abre espaço para que a realidade jurídica ceda espaço para a política, criando uma ambiente fértil para doutrinas extremistas. E em um segundo aspecto, verificou-se que a complexidade dos postulados organizacionais do III Reich se dá em diferentes níveis; ora utilizando as estruturas normativas, ora se baseando em uma realidade subjacente.
Palavras-Chaves: Constituição de Weimar, Constituição Nazista, Volksgemeinschaft,Führerprinzip.
Abstract: This paper aims to discuss the German constitutional paradigm established by the rise of the power of National Socialism, mainly with reference to the deconstruction of the legal-constitutional environment of the Weimar Republic. Based on the analysis of national and international works, we sought to understand the Nazi Constitution as an organizational structure, a fact that contrasts with Weimar's constitutionalism, identifying the characteristics and the principles that will lead to totalitarianism established – Volksgemeinschaft, Füherprinzip and the principle of movement. In the analysis of the process, it was verified how the crisis of the Weimar Republic makes possible for the legal reality to give way to politics, creating a fertile environment for extremist doctrines. And in a second aspect, it was verified that the complexity of the organizational postulates of the III Reich occurs in different levels; sometimes using normative structures, sometimes based on an underlying reality.
Keywords: Weimar Constitution, Nazi Constitution, Volksgemeinschaft, Führerprinzip.
Sumário: Introdução. 1. Definição: Constituição Nazista x Constituição de Weimer. 2.Alteração substancial da constituição. 2.1.A desconstrução do paradigma constitucional de weimar (1919). 2.1.1 Suspensão dos princípios constitucionais. 2.1.2. Suspensão do pluralismo social (Gleichschaltung) e do federalismo. 2.2.Instauração do paradigma constitucional do nazismo. 2.2.1 Volksgemeinschaft 2.2.2.Füherprinzip 2.2.3.Princípios do Movimento. 3 A construção do sistema constitucional nacional-socialista: uma narrativa. 3.1 entre a tirania e o caos. 3.2. A ascenção do nazismo 3.3.o epílogo. Considerações Finais. Referencias bibliográficas.
INTRODUÇÃO
O Nacional Socialismo (ou Nazismo) foi uma ideologia que transfigurou um regime totalitário na Alemanha durante os anos 1933 a1945. Interessante perceber que sua montagem se deu por meio doapoderamento das instituições da República de Weimar em uma progressiva e interna corrosão e, de maneira surpreendente, com vultos de legalidade. É justamente esta desconstrução/reconstrução do modelo de Estado alemão durante este período que centrou-se a problemática deste trabalho.
Esta perspectiva leva em conta o impacto que o regime nazista tem nas ciências jurídicas, ora servindo como postulado de negação/invalidação de uma teoria – às vezes no exagero do reductio ad hitlerum -, ora na maneira em que os paradigmas constitucionais do pós-guerra se constroem para evitar reincidência de regime análogos. Aqui residem as justificativas para este trabalho, pois tem-se que, conhecendo algumas das premissas jurídicas do Nacional-Socialismo, entende-se melhor a realidade jurídica contemporânea.
Deve-se ter em mente que, a percepção do Nazismo enquanto fenômeno abrange aspectos políticos, culturais e sociais que, obviamente, influenciam na percepção jurídica. Não obstante a isto, assumiu-se uma análise focada precipuamente juridicamente no objeto de estudo, mesmo que, às vezes, tenha sido necessário lançar mão da interdisciplinaridade para compreensão melhor do tema.Portanto, a abordagem de certos aspectos da ideologia nazista –por exemplo, a superioridade racial, anti-semetismo – foram tangenciais.
Assim sendo, o objetivo geral do presente trabalho é analisar a desconstrução/reconstrução do modelo constitucional alemão a partir 1933, caracterizando o que se poderia chamar de Constituição Nazista. Para isto, especificamente, pretendeu-se analisar: a definição de Constituição Nazista e suas teorias que lhe dão suporte; identificar as concepções básicas que deram a desconstrução do paradigma constitucional de Weimar e sua substituição pela forma de organização política nazista e, por último, identificar a trajetória deste processo.
1. DEFINIÇÃO: CONSTITUIÇÃO NAZISTA X CONSTITUIÇÃO DE WEIMAR
A linha mestra deste trabalho é a concepção que o paradigma constitucional alemão foi materialmente alterado com a subida do poder do partido Nacional-Socialista em 1933. E isto significa que, a partir deste evento, a estrutura constitucional instituída pela Constituição de Weimar de 1919 não disciplinava mais efetivamente a sociedade alemã, ainda que tenha permanecido formalmente em vigor. Havia sido instituída uma Constituição Nazista.
Embora este processo de transfiguração constitucional tenha sido relativamente linear (não houve rupturas revolucionárias), suas bases são demasiadamente complexas. Aliás, o termo “Constituição” utilizados na expressão “Constituição de Weimar de 1919” não pode ser tido como inteiramente correspondente ao da “Constituição Nazista”. Há uma quebra de significado que traduz duas concepções e construções de poder.
O projeto constitucional de Weimar está inserido dentro da linha de evolução do constitucionalismo e se baseava em quatros nortes: república, democracia, Estado Federal e direitos fundamentais (GUSY, 2000). Ou seja, a Constituição de Weimar (1919) estava inseridos no contexto de documentos constitucionais que visavam limitar e disciplinar o poder, organizando as instituições e estabelecendo direitos fundamentais – com uma nítida feição prescritiva.
Por sua vez, o que se pretende chamar de Constituição Nazista trata-se de uma formulação que expõe os aspectos da organização política e funcionamento das instituições do Estado Alemão de 1933 a 1945 – em uma feição/percepção puramente descritiva. Parte de uma acepção menos técnica do termo Constituição e pressupõe que todo Estado tem uma forma e parâmetros organizacionais. Esta concepção se aproxima o que BARROSO (2014, p.96/97) chama de Constituição histórica ou institucional, designando o “modo de organização do poder político do Estado, sendo antes um dado da realidade que uma criação racional.”
Esta evocada racionalidade, se concebida dentro das concepções iluministas-liberais, ganha importante relevo como marco distintivo das duas ordens constitucionais. O direito do Nacional Socialismo rechaça os paradigmas jurídicos racionalistas fruto das concepções iluministas-positivistas. E isto se dá pela ótica da teoria da ordem concreta. Segundo PINTO (2015), por este modelo “a ordem da vida está antes da norma jurídica, ou seja, não é a norma ou a regra que criam a ordem, antes a norma possui apenas certa função regulatória.” E quando se fala em “ordem da vida”, refere-se a mecanismos internos que dadas instituições (a comunidade, a família, empresa) tem de se auto ordenar, o direito como algo interior a elas. E se há o choque entre a lei vigente e a ordem da vida, esta última deveria prevalecer.
Em um segundo aspecto, o que se pretende chamar de “Constituição Nazista” também trata-se de uma aproximação do que Ferdinand Lassale chamou de fatores reais de poder (relações fáticas resultantes de conjugação de fatores políticos) e que constituiria a Constituição real do país (HESSE, 1991, p.9).
Ambas as percepções transparecem na visão nazista de Constituição que pode ser vista por meio de um dos discursos proferidos Hans Frank, Comissário de Justiça do III Reich, conforme citado por LACERDA (2012, p.45):
“(a teoria constitucional não deve ser mais vista como uma ciência) (…) das relações entre cidadãos dotados de direitos públicos subjetivos, de um lado, e, de outro os representantes do estado carregando o peso das obrigações correspondentes. Deve, ao contrário, ser vista como uma teoria de ordem baseada no elemento pessoal da lealdade da nação em seguir o líder que legitimou. (…)”
Em suma, portanto, o que pretende-se aqui chamar de constituição tem um caráter altamente peculiar que se afasta da noção construída pelo constitucionalismo, se tratando muito mais de mais um dado concreto, uma realidade fática.
2. ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DA CONSTITUIÇÃO
2.1. A DESCONSTRUÇÃO DO PARADIGMA CONSTITUCIONAL DE WEIMAR (1919)
A destruição do paradigma de constitucional de Weimar não se deu com base em uma revolução ou um atentado frontal a ordem legal, pelo menos não inicialmente ou em um nível aparente.Os Nazistas utilizaram-se de suas formas, de espaços interpretativos, de clausulas gerais, para implementação de sua ideologia. Várias de suas normas foram expedidas conforme as regras constitucionais.
Mas o caráter do jogo constitucional foi efetivamente alterado. EcomoobservaLEPSIUS (2003, p.21) “the material destruction of the Weimar constitutional order is an essential feature of National Socialist constitutional theory”. [1]
Este autor, ao analisar a mudança de paradigma, lança as seguintes características pela inativação material da Constituição de Weimar:
2.1.1. Suspensão dos princípios constitucionais
Uma das faces mais evidentes e relevantes na percepção da destruição do paradigma de Weimar é a suspensão de uma série de direitos fundamentais e afastamento das balizas de organização do governo. Os principais instrumentos jurídicos para isto foi o “decreto presidencial para proteção do povo e do Estado” (de 27 de fevereiro de 1933), com base nas prerrogativas conferidas pelo art.48 da Constituição[2], e o Ermächtigungsgesetz (Ato habilitante de 23 de março de 1933).
O primeiro, sob alegação de controle da ordem pública, suspende uma série de direitos fundamentais – efetivado por meio da decretação do estado de Emergência (ficando em vigor por tempo indeterminado). O segundo ato normativo foi uma lei aprovado pelo Parlamento (Reichstag), na forma de emenda à Constituição, dando lhe portanto caráter de lei constitucional. Seu conteúdo conferia poderes legislativos ao governo do Reich. Interessante notar o conteúdo de seu art.2º, conforme citado por LACERDA (2012, p.30): “As leis promulgadas pelo governo do Reich podem não estar em harmonia com a Constituição desde que não afetem as instituições do Reichstag e Reichsrat. Os direitos de Presidente permanecem inalterados.”
Esta configuração, já demonstra que efetivamente o governo passa ter poder de inovar a ordem jurídica, passando a ser titular de uma espécie de “poder constituinte”, cujos os limites eram praticamente inexistentes.
2.1.2.Suspensão do pluralismo social (Gleichschaltung) e do federalismo
Um segundo aspecto da destituição da ordem constitucional de Weimar foi a instituição de uma política em que todos associações civis, partidos políticos e instituições econômicas deveriam se enquadrar dentro dos aspectos da ideologia Nacional-Socialista, instituindo efetivamente o totalitarismos. As principais normas que caracteriza este aspecto são a lei de 7 de abril de 1933 (ato de restauração do serviço público profissional), a lei contra a formação dos novos partidos de 14 de julho de 1933 e a Lei para a Salvaguarda da Unidade do Partido e do Estado.
A terceira etapa para a desmonte da ordem constitucional de Weimar tratou-se da suspensão do federalismo. Os mecanismos para isto partiram da própria reestruturação das concepções de poder pelo nazismo. Tendo em vista a existência de um partido único, todas as instâncias de poder estavam alinhadas com o poder central. Deve-se frisar que o próprio art.48 da Constituição, tinha sido usado durante a república de Weimar para justificar intervenções nos Estados.
2.2. INSTAURAÇÃO DO PARADIGMA CONSTITUCIONAL DO NAZISMO
Descrever o paradigma constitucional nazista impõe certo desafio, principalmente pelo fato que ele não pode ser descrito pelos tradicionais termos jurídicos. Aliás, a negação destes é uma das características centrais da formulação que regeu o III Reich. Adicionalmente, a percepção de funcionalidade deste regime obedece ao que LEPSIUS chamou de princípios fundamentais (core principles), estruturas conceituais que pretendiam dar suporte a um novo “direito constitucional”, são eles: Volksgemeinschaft, Füherprinzipe o chamado princípio do movimento.
Contudo, deve frisar que não existe uma verdade objetiva em tais postulados, seus conteúdos eram de baixa densidade semântica e, na prática, serviam como pseudo-justificativas para o arbítrio. A Constituição Nazista era uma constituição sem normas em sua acepção objetiva, e por isso, STOLLEIS (1998) afirma que não havia direito constitucional enquanto ciência jurídica, já que não se pode fazer uma abordagem objetiva.
Não obstante a isto, contemporaneamente ao Regime Nazista, houve obras jurídicas que analisava o Direito Constitucional com base nestes princípios fundamentais. Conforme LISPUS (2003), a emblemática a obra Verfassungsrecht des Großdeutschen Reiches (de 1937) de Ernst Rudolf Huber analisava a funcionalidade jurídica do Estado nas categorias “Volk”, “Füher” e “movimento”. Estas ideias fluem também por trabalhos de Otto Koellreuter e Carl Schmitt. Obviamente, estes autores tinham uma preferência por uma abordagem mais política de constituição.
Sendo estas considerações feitas, deve-se analisar agora minimamente a definição destes os postulados, buscando fazer contraponto com a estrutura jurídica da República de Weimar. Mas fica a reflexão que, em um cenário distópico em que os nazistas tivessem vencido a guerra, o quanto diferente seria a formulação de direito constitucional, ou mesmo da ciência jurídica como um todo.
2.2.1. Volksgemeinschaft
Quando se debruça na ordem constitucional nazista, o Volksgemeinschaft (ou völkischesrecht) aparece como um de seus princípios substantivos de maior relevância. Trata-se de uma construção teórica de baixa densidade semântica que tinha como núcleo um conjunto de valores tradicionais e comuns do povo alemão (concebido aqui dentro de uma suposta acepção puramente étnico-racial). Segundo LEPSIUS (2003, p.24), assimpoderiaseranalisadoo conceito:
“In content, it was chratacterised negatively by rejection of individualistic, normative concept of the people (the people – Volk – as the sum of nationals of the State), as presented in the Weimar Republic. In positive terms, the term Volksgemeinschaft promised a collective unity defined in value terms by, for instance, features of Blut und Boden (blood and soil), community experiences, and thus also inner ideas and feelings of belonging together”.[3]
Como se pode observar, a perspectiva comunitária se sobrepõe ao indivíduo. Este é tido como portador do espírito do völkish, e seus valores comunitários passam a ser uma referência jurídica cuja observância é obrigatória, mesmo que sua acepção seja imprecisa – ou algo contraditório, como observa LEPSIUS (2003). Reinhardt Höhn, jurista com grande proeminência na Alemanha Nacional-Socialista assim apresenta uma defesa contumaz desta sobrepujação, conforme discurso citado em LACERDA (2012, p.45):
“Na comunidade, o indivíduo se despoja completamente de sua personalidade individual, ele se funde com o espírito da comunidade. Torna-se portador desse espírito e está agora pronto a fazer sacrifícios, mesmo que seus interesses individuais sejam, por isso, severamente prejudicados”.
Corroborando tal passagem, STOLLEIS (1998), explicita o funcionamento do referido princípio:
“After the victory of National Socialism, the German people are no longer split into different groups, such as classes, confessions, or rulers and ruled. Instead, they form a community organically structured into sub communities. The state, as the instrument of leadership, must serve this community. The leadership articulates the law, as part of order to be developed out of the “essence” of the community. The opposition between public and private law, between the individual and the state, is dialectically “transcended” in communal law.” [4]
Deve-se atentar que a concepção do elemento comunitário que despojava a individualidade não tolera elementos exógenos que só visam enfraquecer e perverter a unidade e a coesão social. E por esta perspectiva que se “constitucionaliza” a exclusão e a perseguição de grupos minoritários.
A penetração deste princípio na estrutura jurídica nazista se dá por meio de cláusulas gerais, a qual ele serviria de parâmetro interpretativo, ou mesmo como parâmetro supralegal de validade. Por sua vez, a vagueza e as incertezas deste conceito são solucionados pelo interprete. E o legitimo e oficial interprete é o Füher, cujo papel se dá por meio Füherprinzip (princípio da liderança).
2.2.2.Füherprinzip
Outro ponto central do desenvolvimento da “ordem constitucional” nazista é o princípio da liderança (em alemão, Führerprinzip). Este consistia na organização do Partido (e posteriormente do próprio Estado) em esferas de atribuições de total responsabilidade de um líder. Estas esferas eram organizadas de maneira piramidal, ao qual este líder estava inserido dentro de uma esfera maior de responsabilidade de outro líder, isto sucessivamente até chegar na figura do Füher (Adolf Hitler).
Desta forma, um líder local tem sua autoridade derivada ao do Füher, e deve guiar suas ações em consonâncias aos princípios e disposições por ele estipuladas, “o que implica a orientação pelo alto e a responsabilidade para o alto; pela sincronização de todas as organizações sociais, não somente para controlá-las, mas também para fazê-las úteis ao aparelhamento estatal” (PINTO,2015). Impressionante são as palavras proferidas pelo próprio Adolf Hitler que dá uma dimensão de sua percepção do funcionamento do princípio:
“Quando nossos opositores dizem: “Para você é fácil: você é um ditador” nós lhe respodemos: “Não, senhores, vocês estão errados; não há um simples ditador, mas dez mil, cada um no seu lugar.” E mesmo a mais alta autoridade na hierarquia tem um único desejo, nunca transgredir contra a autoridade suprema perante a qual ela é, também, responsável. Desenvolvemos em nosso movimento esta lealdade em seguir o líder, esta obediência cega que os outros não conhecem e que nos deu poder de superar tudo.”
Neste particular aspecto, a ordem constitucional no Nacional-Socialismo põe no centro a autoridade do Führer, isto se dá de tal modo que o seu poder político é executado sem quaisquer restrições, inclusive legais. Em discurso proferido pelo Obergruppenführer Hans Frank, Comissário de Justiça e, depois, Governador dos Territórios Ocupados na Polônia a um grupo de juízes revela a feição disto:
“ (…) Não há independência da lei contra o Nacional Socialismo. Digam a vocês mesmos em cada decisão que proferirem: “Como o Füher decidiria em meu lugar ?” (…) A base para interpretação de todas as fontes legais é a ideologia Nacional Socialista, tal como expressa particularmente no programa do partido e nas declarações do Füher.”
Deste modo, fica evidenciado a percepção de que o princípio da liderança orientava a organização (e não a limitação) do poder, subvertendo formalmente o sistema legal, pois a vontade do líder máximo Adolf Hitler era tido como baliza máxima de parâmetro de validade normativa.
2.2.3. Princípios do Movimento
Tendo ainda como base o trabalho de LEPSIUS, este autor aborda o aspecto dinâmico da relação entre Füherprinzip e Volksgemeinschaft,principalmente tendo em conta a fluidez – enquanto não estaticidade – das suas concepções pseudo-normativas. Trata-se da percepção uma determinação só seria válida enquanto fosse conveniente. A interpretação do Füher sobre o direito não se solidificariam. Prevenia-se, assim, a criação de uma ordem objetiva de direitos.
3. A CONSTRUÇÃO DO SISTEMA CONSTITUCIONAL NACIONAL-SOCIALISTA: UMA NARRATIVA
3.1. Entre a tirania e o caos
Talvez de todas as experiências artísticas alemãs do período da República de Weimar, o que mais retrata o estado do espírito da época tenha sido o expressionismo, principalmente em sua manifestação cinematográfica. Por esta manifestação, a razão (enquanto construção iluminista) não era uma ferramenta suficiente para descrever a realidade, mas que esta poderia ser percebida a partir de referências subjetivas (de como os sujeitos percebiam o objeto), mesmo que isto ganhasse aparentemente tons de épater le bourgeois.
Nas telas, as distorções do cenário, dos personagens, do enredo refletiam a realidade de Weimar – o terror, o medo, a humilhação – frutos da guerra, do desemprego, da subversão de valores, da recessão, da inflação e etc. Em tal cenário, a alma se deparava com a aparente inevitável alternativa entre a tirania e o caos. EINER (2002, p.17) descreve bem esta visão:
“Os anos que seguem a Primeira Guerra Mundial são uma época singular na Alemanha: o espírito germânico se repõe com dificuldade do sonho imperialista; (…) A atmosfera conturbada atinge seu paroxismo com a inflação, que prova a destruição de todos os valores; e a inquietação inata dos alemães adquire proporções gigantescas.”
Tal passagem vai de encontro com a percepção de EVANS (2017, p.123) em que o “medo e o ódio regiam os dias na Alemanha ao final da Primeira Guerra Mundial”. A República de Weimar, fruto da Revolução de 1918/1919, em vez de sanar as feridas socioeconômicas e políticas causadas pelo conflito mundial, apenas as acentuou.
Sua constituição aprovada em 31 de julho de 1919 ainda guardava muitos traços da ordem estabelecida por Otto von Bismarck quase meio século antes. Guardava ainda uma tradição dentro do constitucionalismo alemão de uma preponderância do executivo sobre outros poderes. Este traço é observável, por exemplo, pelo artigo 48 da Constituição que dispunha que, em tempos de emergência nacional, poderia se governar por decreto e usar o Exército para restaurar a lei e a ordem.[5]
E de fato tal dispositivo foi muito usado. Conforme aponta EVANS (2017, p.125), apenas no governo do primeiro presidente Friedrich Elder, cujo mandato abrangeu de 1919 a 1925, tal norma foi utilizada 136 (cento e trinta e seis) vezes, inclusive para intervir nos Estados Federados.
Mas o grande comprometimento da ordem constitucional de Weimar foi a ausência de vontade política. A estrutura republicana jamais agradou totalmente as diferentes forças políticas; conservadores ainda se ressentiam pelo termino da monarquia e a esquerda, pela revolução de 1919 não ter ganhado os contornos da russa de 1917. EVANS (2017, p.134) comenta os entraves da Constituição de Weimar:
“No fim das contas, a constituição da Alemanha de Weimar não era pior que as constituições da maioria dos países na década de 1920, sendo um bocado mais democrática do que muitas. Suas cláusulas mais problemáticas poderiam não ter importado tanto se as circunstâncias tivessem sido diferentes. Mas a fatal ausência de legitimidade de que a república padecia multiplicou em muitas vezes as falhas da constituição”.
Em muitos aspectos, o comportamento de todos os atores políticos já colocava em xeque da república parlamentar em 1932. Exemplo disto, são os eventos ocorridos na Prússia a partir de confrontos armados envolvendo comunistas, nazistas e as forças de segurança em 17 de julho de 1932 (conhecidos como “Domingo Sangrento de Altona”). Sob a justificativa de manter a lei e a ordem, o governo do Chanceler von Papen intervêm no estado da Prússia e destitui o governo socialdemocrata (evento conhecido como Preußenschlag[6]) – e tendo como base o art.48 da Constituição.
O governo prussiano tentando repelir tal ato, recorre ao Tribunal do Estado, alegando a inconstitucionalidade. Em seu pronunciamento, o Tribunal nega-se a definir limites da atuação do Presidente e do Chanceler alemão – dado o caráter político da decisão. A decisão do Tribunal do Estado de 25 de outubro de 1932, no caso Reich vs. Prússia permite à constatação que as circunstâncias políticas tinham de fato atropelado a realidade jurídica. É quase consenso que esta decisão facilitou a ascensão do Nazismo. EVANS (2017) chega afirmar que, de fato, Preußenschlag representou o fim da República Parlamentar.
De qualquer forma, as circunstâncias no início da década de 30 do século passado lançam um torpor caótico na sociedade alemã. A democracia parecia não oferecer respostas as demandas sociais e, talvez, a ausência de soluções tornou-se atrativa a figura da tirania.
3.2. A ascensão do nazismo
A subida de poder do Partido Nazista e de seu líder, Adolf Hitler, em janeiro de 1933 se deu por meio de uma manobra típica de sistemas parlamentares. Mas, inicialmente, os tumultos sociais não cessaram. Um incêndio no parlamento supostamente por um grupo de comunistas (cujas circunstâncias não ainda foram totalmente elucidadas pelos historiadores) é utilizado como pretexto para início da suspensão da garantias constitucionais. Para isto, em fevereiro de 1933, lançou-se mão mais uma vez do famigerado art.48 da Constituição de Weimar (1919) para a expedição do “decreto presidencial para proteção do povo e do Estado”.
Em 23 de março de 1933, o Partido Nazista consegue aprovação da lei habilitante (Ermächtigunsgsgesetz), permitindo a criação de lei pelo governo sem aprovação parlamentar. A partir daqui, é decretada a ilegalidade do partido comunista e social-democrata, e todos os demais partidos são pressionados a se auto dissolverem, tornando o Partido Nazista única agremiação legal na Alemanha.
Mesmo o judiciário, sofreu seus golpes. Vários juízes que não demonstravam afinidade com a ideologia foram aposentados. Algumas tentativas de se controlar judicialmente atos da Schutztaffel-SS (força paramilitar do partido nazista), foram rechaçadas por tratarem de questões políticas de sobrevivência do Reich, e não jurídicas, conforme aponta STOLLEIS (1998).
Até mesmo quando o Tribunal do Reich não condenou todos os acusados do incêndio ao parlamento, o regime reagiu criando um tribunal mais alinhado aos princípios do regime – o Tribunal do Povo – para julgar crimes que atentassem contra o Estado. Contudo, deve estar atentos que a existência de uma aparato judicial próprio não era empecilho para ações das forças de segurança agissem a margem da lei, inclusive perseguindo e matando opositores.
Assim, havia uma dualidade no funcionamento do Regime. Como aponta STOLLEIS (1998), por um lado havia uma conjunto de disposições em que é possível traçar aparente continuidade com o regime de Weimar, dentro de uma encadeamento normativo. Por isso que se pode considerar valida a afirmação de ARAUJO (2015) de que “grande parte das injustiças perpetradas durante a Segunda Guerra Mundial tinha amparo jurídico e estava, se não direta, indiretamente em atos normativos editados ao menos com forma e pretensão de serem jurídicos”. Por outro lado, vários atos foram cometidos atropelando as bases normativas formalmente em vigor, tendo como fundamento o “estado de necessidade do Estado”, o Volksgemeinschaft, ou a a ordem concreta.
3.3.O epílogo
O último documento legal do III Reich foi a rendição das tropas aliadas. Contudo, talvez seja mais apropriado para o encerramento deste trabalho seja a menção do “Processo contra os juristas” (em inglês Judges’ Trial ou oficialmente The United States of America vs. Josef Altstötter, et al.) que foi o um dos julgamentos por crimes de guerra em que as autoridades dos Estados Unidos organizaram em sua zona de ocupação na Alemanha em Nuremberg após o final da Segunda Guerra Mundial. Neste julgamento, vários integrantes do judiciário e do Ministério da Justiça alemão são acusados por crimes cometidos no exercício de suas funções. Interessante, perceber as palavras do Tenente Brigadeiro Taylor que exerceu a função acusatória no julgamento:
“In summary, the defendants are charged with the judicial murder and other atrocities which they committed by destroying law and justice in Germany, and by then utilizing the emptied forms of legal process for persecution, enslavement, and extermination under law. The true purposes of this proceeding, therefore, are broader than the mere visiting of retribution on a few men for the death and suffering of many thousands. I have said that the defendants know, or should know, that a court is a house of law. (…). Great as was their crime against those who died or suffered at their hands, their crime against Germany was even more shameful. They defiled the German temple of justice, and delivered Germany into the dictatorship of the Third Reich, “with all its methods of terror, and its cynical and open denial of the rule of law.”[7] (NUREMBERG MILITARY TRIBUNAL, 1951, p.32/33)
Simbolicamente, trata-se mais do que uma simples condenação por crimes de guerras, mais a rejeição de um paradigma jurídico, aliás, cuja a própria juridicidade é negada. Trata-se, portanto, da reafirmação das balizas desenvolvidas pelo constitucionalismo clássico que, a partir deste momento, ganharia uma nova toada, justamente em razão da experiência nazista. A experiência demonstrou que a existência formal de uma Constituição e a democracia em seu nível puramente procedimental não eram suficientes para evitar a barbárie.
Considerações finais
Tendo em vista o trabalho desenvolvido, percebeu-se dois modelos constitucionais que se contrapõe: o de Weimar instaurado a partir de 1919, e o Nazista, instaurado a partir de 1933. Esta contraposição não é apenas de paradigmas jurídicos, mais no próprio núcleo de definição de Constituição.
Para a passagem de um regime a outro, foi necessário “desligar” a ordem de um, e por meio de alteração do paradigma, incluir novas estruturas informativas – Volksgemeinschaft, Füherprinzipe o princípio do movimento – que nunca tiveram pretensão de solidificar um sistema, mas servir ao arbítrio.
Por fim, verificou-se como a própria crise da República de Weimar abre espaço para que a realidade jurídica ceda espaço para a política, criando uma ambiente fértil para doutrinas extremistas.
Informações Sobre o Autor
Tiago da Costa Brito
Servidor Público Federal. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia 2010 Pós-graduado Lato Sensu em Gestão Pública pela Universidade Federal de Uberlândia 2012; Pós Graduado Lato Sensu em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp 2017