A judicialização do direito à saúde: uma análise a partir dos paradigmas e parâmetros estabelecidos nas decisões dos Recursos Extraordinários nº 566471 e 657718

Resumo: O artigo se propõe ao estudo sistemático do direito à saúde amparado pela Constituição Federal, a partir da análise do teor das decisões dos Recursos Extraordinários nº 566471 e 657718 do Supremo Tribunal Federal bem como verificar os paradigmas de ambas as decisões e as limitações estabelecidas pelos julgados a fim de investigar a (im) possibilidade do Estado fornecer medicamentos de alto custo não registrados pela ANVISA, com enfoque específico no fenômeno da judicialização do direito à saúde. Nessa esteira, se dedica à reflexão sobre a (in) viabilidade do Estado em fornecer tais medicamentos, sem o devido registro legal, sob o viés da sustentabilidade social e da inviabilidade da manutenção do direito coletivo a longo prazo, principalmente do Sistema “SUS”. Além disso, o presente artigo se presta para cotejar o contexto do Estado Democrático de Direito, e o papel do Poder Judiciário em ser o responsável por dizer o direito, pautado na lei, mais precisamente, na Constituição Federal e no direito universal à saúde trazido pela Carta Magna.

Palavras-chave: judicialização; direito à saúde; Constituição Federal de 1988.

Abstract: The article proposes to the systematic study of the right to health protected by the Federal Constitution, based on the analysis of the content of the decisions of Extraordinary Appeals 566471 and 657718 of the Federal Supreme Court as well as verifying the paradigms of both decisions and the limitations established by the judges in order to investigate the (im) possibility of the State supplying high cost medicines not registered by ANVISA, with specific focus on the phenomenon of the judicialization of the right to health. Along these lines, it is dedicated to the reflection on the (in) viability of the State to provide such medicines, without due legal registration, under the bias of social sustainability and the non-viability of maintaining long-term collective rights, system “SUS”. In addition, this article lends itself to comparing the context of the Democratic State of Law, and the role of the Judiciary in being responsible for saying the law, based on the law, more precisely, the Federal Constitution and the universal right to health brought by Magna Carta.

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Keywords: judicialization; right to health; Federal Constitution of 1988.

Sumário: Introdução. 1. Breve contextualização sobre a judicialização do direito à saúde. 2. Análise do recurso extraordinário nº 566471/RN. 3. Análise do recurso extraordinário nº 657.718/MG. Conclusão. Referências.

Introdução

Considerando a atual problemática envolvendo os processos que tramitam em todo o País, no que tange ao dever ou não do Estado de ser compelido a fornecer medicamentos de alto custo que não têm registro na ANVISA, imperiosa se mostra a análise do posicionamento do Supremo Tribunal Federal, nos recentes Recursos Extraordinários nº 657.718/MG e nº 566.471/RN., surge a necessidade de analisar o paradigma destas decisões a fim de verificar a viabilidade do Poder Público, a partir da Judicialização do Direito à Saúde, especificamente no que tange à interrogação sobre a adequação científica e jurídica, em fornecer medicamentos sem registro na ANVISA, sem que tal conduta gere risco à sustentabilidade da saúde pública e a manutenção principalmente do sistema “SUS”, a longo prazo.

Diante deste contexto, há muito tempo tem se falado sobre a judicialização do direito à saúde, uma vez que a Constituição Federal de 1988, reconheceu o direito à saúde como direito fundamental e está expresso no artigo 6º, nos seguintes moldes:

Todavia, a efetivação deste direito tão importante que inclusive ganhou destaque Constitucional, sempre desafiou o Poder Público e a necessidade de implementação de políticas que fossem capazes de corroborar a dada importância ao que ficou determinado no artigo 6º da CF/88.

Entretanto, passados quase 30 anos da promulgação da Constituição Federal, nos últimos anos sem que o Estado conseguisse efetivar este direito, o Poder Judiciário têm se deparado com inúmeras ações que visam a concretização do direito à saúde por meio de imposição da obrigação do Estado em fornecer determinados tratamentos e/ou medicamentos, assim surge a expressão “judicialização do direito à saúde”.

É a partir deste ponto que o presente trabalho busca trazer uma análise quanto a positivação do direito à saúde, o conceito de judicialização do direito à saúde e os paradigmas apresentados e analisados pelo Superior Tribunal Federal em ambos os Recursos Extraordinários nº. 657.718/MG e nº 566.471/RN. Nesse ponto, o presente ensaio abordará o direito à saúde em cotejo com (im) possibilidade do Estado em fornecer medicamentos de alto custo sem registro na ANVISA e os limites apresentados pelo STF na tentativa de equilibrar o assunto, frente a necessidade da população brasileira ao acesso a medicamentos, sendo em um primeiro momento será abordada a Constitucionalização da saúde e o direito da população a ter acesso ou não, a todos os recursos médicos, especialmente dos medicamentos, independentemente de registro da ANVISA.

Em um segundo momento, abordar-se-á especificamente o teor de ambas as decisões e os padrões que foram estabelecidos pelo STF e por fim, será feita uma análise sobre a real efetividade do Estado em fornecer medicamentos à população brasileira e se vem sendo possível o concreto acesso universal à saúde no País.

Nesse sentido, será utilizado o método de abordagem dedutivo que é um processo de análise de informação que busca chegar a uma conclusão. Dessa maneira, usa-se da dedução para encontrar o resultado final, neste caso, a partir da análise de dois Acórdãos julgados pelo Excelso Superior Tribunal Federal com repercussão geral, para se chegar a conclusão a ser aplicada aos demais casos análogos que chegam até o Poder Judiciário todos os dias. Frisa-se que este método geralmente é usado para testar hipóteses já existentes, para assim, provar teorias, e por consequência é denominado de método hipotético-dedutivo.

1. BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO SOBRE A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

Antes de adentrar na análise dos parâmetros e paradigmas estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal propriamente dito, cumpre contextuar o tema abordado referido que a judicialização da saúde refere-se à busca do Poder Judiciário como alternativa para obtenção de tratamento medicamentos que foram negados administrativamente, seja pelo Estado ou até mesmo pelos planos de saúde.

Nesse sentido, impende salientar que a judicialização da saúde surge especialmente a partir de um sistema de deficitário que não conseguiu efetivar de maneira ampla a prestação que deveria fornecer a toda a população. Assim, em razão da falta de acesso da população ao direito básico à saúde, o Poder Judiciário acaba sendo sobrecarregado de ações que visam efetivar políticas públicas que não foram alcançadas pelos demais poderes, Legislativo e Executivo.

Entretanto, esta “banalização” da judicialização acaba por evidenciar alguns problemas, visto que, a quantidade de decisões que condenam municípios, estados e União sozinhos ao custeio integral de tratamentos de saúde pode conduzir a um desequilíbrio de orçamento, prejudicando políticas públicas e sobretudo a manutenção do sistema de saúde e o direito ao mínimo acesso ao restante da população Brasileira.

Assim, frente a enorme judicialização do direito à saúde os inúmeros processos ajuizados para discussão de fornecimento de medicamentos às custas do Estado, o Supremo Tribunal Federal, então, tinha o dever de manifestar-se sobre o tema, no que tange especialmente aos medicamentos de alto custo e os medicamentos que não possuem registro na ANVISA.

Nesse sentido, o presente artigo se presta a analisar ambos os Acórdão que foram julgados pelo STF com repercussão geral, a fim de verificar os parâmetros mínimos ali estabelecidos que servirão de base para moldar as novas ações que seguirem surgindo sobre o mesmo tema.

2. ANÁLISE DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 566471/RN

Nesse aspecto o foco iniciar irá se deter nos preceitos e paradigmas que foram objeto de análise pelo Superior Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº. 566471 oriundo do Estado do Rio Grande do Norte de Relatoria do Ministro Marco Aurélio.

De pronto, cumpre trazer à baila que o referido recurso partiu inicialmente dos argumentos do Estado no sentido da impossibilidade de fornecimento de medicamento de alto custo fora do programa financeiro do ente público, sob pena de colocar em risco a ordem e à economia públicas.

Isto porque, o Estado não pode colocar em risco o todo da saúde pública em prol de um fornecimento individualizado de medicamentos onerosos, sobretudo porque a saúde está amparada no artigo 6º da Constituição Federal como um direito social e não como direito fundamental, devendo ser matéria legislada infraconstitucionalmente.

Nesse sentido, inicialmente o Estado do Rio Grande do Norte entendeu pelo indeferimento do pedido de fornecimento do medicamento de alto custo sob argumento da “ausência de previsão no Programa de Dispensação de Medicamentos”. O Tribunal de Justiça e o Juiz de primeiro grau, ambos deram procedência no pedido de fornecimento do medicamento solicitado, em razão da imprescindibilidade do remédio para o procedimento terapêutico, assim como a incapacidade financeira da paciente e da família para adquiri-lo.

Assim tanto o Juiz singular quanto o Tribunal concluíram pela afronta aos direitos constitucionalmente protegidos, assentando o dever de a Administração Pública fornecer o medicamento.

O caso chegou até o Supremo Tribunal Federal e o inicialmente alguns pontos foram colocados em pauta pelo Ministro Marco Aurélio, os quais valem a reprodução ipsis litteris:

“Os fundamentos do acórdão recorrido e as razões do extraordinário revelam as perplexidades decorrentes de decisões dessa natureza: teria o Tribunal usurpado as competências do Executivo e do Legislativo? Ou a relevância constitucional do direito envolvido e as circunstâncias concretas legitimam a atuação judicial interventiva? Quais os limites e as possibilidades da interferência judicial sobre os deveres positivos do Estado quanto aos ditos direitos fundamentais de segunda geração – os direitos socioeconômicos? A circunstância de a universalização do direito à saúde depender da formulação e execução de políticas públicas exclui a competência do Poder Judiciário em casos como o da espécie? É possível a fixação de critérios objetivos capazes de racionalizar os milhares de litígios sobre a matéria espalhados por todo o país?”

Dito isso, o que se pode perceber a partir da citação acima é que o caso da judicialização dos medicamentos de alto custo chegaram ao STF sem e ainda geravam inúmeras dúvidas e ambiguidades aos próprios Ministros, que fixaram as referidas controvérsias a fim de iniciar a uniformização dos preceitos a fim da repercussão geral destinada ao Recurso Extraordinário.

Assim, o preceito inicial balizado pelo Excelentíssimo Desembargador Marco Aurélio é a efetividade dos direitos fundamentais, onde está incluído o direito à saúde e o alcance da população ao chamado mínimo existencial. Logo, a partir desta máxima é que iniciaram-se as buscar pelas respostas aos quesitos que foram destacados acima e a necessidade de se construir um linha geral em relação ao tema da judicialização do direto à saúde.

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Nesse sentido, muito embora os direitos fundamentais e sociais estejam elencados em momentos diversos na Constituição Federal de 1988, o que se pode perceber é que na leitura do nosso Supremo Tribunal Federal, tanto direito as garantias fundamentais quando ao direito à saúde previsto como direito social, estão associados e, conforme o próprio Ministro Marco Aurélio refere, “é fruto do progresso das constituições, ou seja, a afirmação dos direitos sociais mostra-se etapa das mais relevantes dessa caminhada dos direitos”.

Isto porque, o que pode-se verificar inicialmente é que a alegação de o direito a saúde ser um direito social e não fundamental é mera conjectura a qual está estabelecida a partir da cumulação das gerações de direitos, ou seja, as gerações não representam o fim da anterior, mas representam a sua completude e por isso mesmo foram reconhecidos na Constituição Federal, no artigo 6º, e nos artigo 194 a 200 foram disciplinas as questões relativas a seguridade social e a saúde mais uma vez é tratada como Dever do Estado e direito de todos, por meio da universalização do direito à saúde.

Nesse aspecto, com base na universalização do direito à saúde estão englobados não só o acesso a médicos, mas também o acesso a medicamentos e o direito ao mínimo existencial como direito fundamental da pessoa humana.

Nesse aspecto pode-se referir a partir dos preceitos de TORRES (2009):

“O direito ao mínimo existencial consiste no “direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado na via dos tributos (= imunidade) e que ainda exige prestações estatais positivas.”

E o Eminente Doutrinador segue no seguinte sentido:

“Não obstante, configurada ameaça ao mínimo existencial em casos particulares, com violação da dignidade humana e ausência de condições iniciais da liberdade, os direitos sociais apresentam-se como plenamente judicializáveis, merecedores de amplas garantias institucionais, independentemente de reservas orçamentárias”

Ainda nas palavras de Torres, os direitos sociais são plenamente fundamentais e estão inseridos neste contexto do mínimo existencial, conforme refere o Ministro Marco Aurélio para justificar a necessidade e possibilidade do Estado em fornecer os medicamentos solicitados pela população independentemente de estarem ou não disciplinados no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, como direito fundamental.

A partir dos preceitos de Torres, para que não reste dúvidas quanto ao enquadramento do direito à saúde no mínimo existencial e portanto como direito fundamental, seguem as palavras do Ministro Marco Aurélio sobre o tema:

“Revelando-se a dificuldade de indivíduos ou de grupos de indivíduos à existência digna, ante a implementação desses riscos, estará configurada a dimensão de mínimo existencial dos direitos sociais.

Os “direitos sociais máximos”, de acordo com o autor, hão de ser obtidos na via do exercício da cidadania reivindicatória e da prática orçamentária, a partir do processo democrático.”

Feitas tais considerações, do primeiro aspecto o qual foi analisado pelo Supremo Tribunal Federal, passa-se de imediato para a interpretação do que refere o artigo 196 da Constituição Federal, onde está previsto que as políticas públicas são o meio para assegurar o acesso universal e igualitário ao direito saúde.

Salienta-se neste aspecto que no cerne dar argumentações do Estado do Rio Grande do Norte também surgem alegações de impossibilidade financeira e administrativa, sobretudo no que tange a reversa do possível e a legalidade orçamentária para sustentar a inviabilidade de procedência das ações que versem sobre medicamentos de alto custo.

Assim, muito embora o Ministro Marco Aurélio destaque que os direitos sociais máximos dependem de políticas públicas e a necessidade de se construir diretrizes para assegurar o acesso destes direitos à população, o ponto nefrálgico da questão gira em torno da impossibilidade de acesso a medicação pelo paciente que não possui condições financeiras para o tratamento, ou seja, o mínimo existencial, no que tange ao acesso de tais medicamentos de alto custo, pressupõe a hipossuficiência financeira do paciente e sua família.

No que se refere a política nacional de medicamentos que também é referida pelo Estado do Rio Grande do Norte como justificativa para obstaculizar o fornecimento de medicamentos também não podem ser entendidas, por si só pelo poder judiciário para negar o fornecimento, uma vez que conforme o Ministro Marco Aurélio refere “não cabe ao Poder Judiciário formular políticas públicas, mas pode e deve corrigir injustiças concretas”.

     E o Ministro segue referindo que:

“Verificada transgressão ao mínimo existencial, o direito individual à saúde revela-se imponderável frente aos mais relevantes argumentos de ordem administrativa, como o do comprometimento de políticas de universalização da prestação aos demais cidadãos e de investimentos em outras áreas. Objeções de cunho administrativo, de primazia da expertis eda Administração Pública, não podem subsistir ante violações ao mínimo existencial.”

A partir destes preceitos e muito do que se extrai dos ensinamentos do Doutrinador Ricardo Lobo Torres, o que se busca por meio da judicialização do direito à saúde é a satisfação do mínimo existência que é vista como o “núcleo duro” dos direitos sociais, quando o Estado a partir de políticas públicas não consegue alcançar este mínimo a população necessitada.

De outrora, com base em ambos os preceitos de direitos sociais serem considerados como fundamentais sob aspecto da complementação das gerações de direito e a necessidade de o Estado alcançar à população o mínimo existencial, verifica-se que surge um binômio necessário para o fornecimento de medicamentos de alto custo, qual seja: a imprescindibilidade do medicamento e a  incapacidade financeira do paciente em adquiri-lo, conforme já foi há muito sedimentado pelo Excelso Superior Tribunal Federal no REx 607.381/SC, por exemplo.

Nesse sentido, a questão da judicialização do direito à saúde, muito embora já tenha sido objeto de tantos outros recursos extraordinários, como o que foi acima referido, mostrava-se importante a repercussão geral do assunto, a fim de estabelecimento de parâmetros mínimos para fornecimento destes medicamentos. E foi com este intuito que o Ministro Marco Aurélio, afim delimitou o tema:

“Dos pronunciamentos mencionados e dos aportes teóricos desenvolvidos sobre o tema, surge que a delimitação há de ocorrer em torno de dois elementos: a imprescindibilidade do medicamento para a

concretização do direito à saúde – elemento objetivo do mínimo existencial – e a incapacidade financeira de aquisição – elemento subjetivo do dever estatal de tutela do mínimo existencial. A identificação conjunta, nos casos sob análise, desses dois elementos – um substancial quanto ao mínimo existencial, o outro relativo ao dever estatal de tutela desse mínimo –, com as nuances próprias a serem desenvolvidas a seguir, implicará a configuração do mínimo existencial passível de tutela mediante intervenção judicial, independentemente do alto custo dos remédios ou de esses não constarem em listas elaboradas no âmbito da Política Nacional de Medicamentos ou do Programa de Medicamentos de Dispensação em Caráter Excepcional.”

Assim, a partir destes parâmetros, o que se pode concluir é que a imprescindibilidade estará corroborado por meio de laudo técnico, ou seja, atestado médico ou indicação do médico quanto a necessidade da utilização do medicamento de alto custo, que não está nos programas do governo, cabendo por obvio, prova em contrário pelo Estado. 

Da mesma forma, mais uma vez o Ministro Marco Aurélio refere que se for concluído pela inutilidade ou a insegurança sobre os resultados positivos do medicamento para o caso, ou ainda a existência de outro fármaco com menor custo e mesma eficácia, a imprescindibilidade estará afastada.

Em não sendo afastada a imprescindibilidade do medicamento, esta será considerada como elemento objetivo para a concretização do mínimo existencial, uma vez que o direito ao tratamento médico será o reflexo do acesso universal do direito à saúde.

Ultrapassado o elemento objetivo do acesso à saúde surge o elemento subjetivo que será o segundo aspecto do binômio, que é a incapacidade financeira para aquisição do medicamento de alto custo. Este aspecto é de grande valia para o Estado, sobretudo porque o Supremo Tribunal Federal balizou a sua decisão a partir dos preceitos da solidariedade familiar, e o dever subsidiário do Estado em relação aos membros de uma família, expressos no artigo 229 da Constituição Federal de 1988.

A fim de justificar a solidariedade familiar faz-se uso das palavras de MORAES e TEIXEIRA (2013):

“Em oposição ao modelo tradicional, a Constituição de 1988, fiel a seu tempo, adotou este modelo democrático de família, em que não há discriminação entre os cônjuges ou entre os filhos, nem direitos sem responsabilidades, ou autoridade sem democracia. Com efeito, para pôr fim àquelas desigualdades, a Constituição exerceu o papel fundamental de, ao estabelecer a igualdade entre cônjuges e entre os filhos, garantir a autonomia individual (mais ou menos ampla conforme a idade) e pressupor a solidariedade entre os seus membros.”

No mesmo sentido, as referidas Doutrinadoras destacam que o artigo 229 da Constituição Federal de 1988, é o espelho do “princípio da solidariedade no âmbito das relações parentais”. Isto é, este princípio destaca a assistência mutua entre todos os membros da família pelo simples fato do pertencimento a este núcleo, e este dever precede o estatal, que acaba por ser subsidiário e irá depender da capacidade financeira do paciente e de cada parente. De modo que parente está sendo intitulado conforme preceitua o artigo 1.694 do Código Civil/2002.

Apenas em caráter meramente contextualizador impende referir além do artigo 1.694 do CC/2202, que destaca o direito aos alimentos, mas também, o 1.566, III e 1.724 que tratam do dever de mutua assistência entre cônjuges e companheiros e o 1.697 que trata sobre os alimentos em relação de parentesco em linha reta e colateral, respeitando por obvio a ordem de prioridade preceituada no Código Civil, a qual não será abordada, por não ser o foco principal da presente analise.

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De outra banda, a partir destes preceitos o que o Ministro Marco Aurélio faz questão de enfatizar ao longo da sua abordagem é que o Acórdão não se trata de inovação jurídica, nem está enfraquecendo o mínimo existencial, tampouco está abrangendo outros direitos sociais.

Mas é que na realidade a questão de fornecimento de medicamentos de alto custo que não estão presentes nos programas governamentais, estão sobremaneira conectados a diversos outros preceitos não só Constitucionais, mas jurídicos como um todo e deverão ser analisados sob o aspecto do direito social à saúde.

Assim, a tese que surge firmada no STF no que se refere aos medicamentos de alto custo sem previsão nos programas, necessariamente deverão passar pelo crivo do binômio imprescindibilidade/insuficiência econômica de maneira bem minuciosa, a fim de se verificar se o Estado deverá ou não fornecer estes medicamentos.

Por conseguinte, segue ipsis litters a tese fixada sob aspecto da repercussão geral:

“o reconhecimento do direito individual ao fornecimento, pelo Estado, de medicamento de alto custo, não incluído em Política Nacional de Medicamentos ou em Programa de Medicamentos de Dispensação em Caráter Excepcional, depende da comprovação da imprescindibilidade – adequação e necessidade –, da impossibilidade de substituição do fármaco e da incapacidade financeira do enfermo e dos membros da família solidária, respeitadas as disposições sobre alimentos dos artigos 1.694 a 1.710 do Código Civil”

3. ANÁLISE DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 657.718/MG

O segundo ponto de análise do presente ensaio se presta a analisar o Recurso Extraordinário nº 657.718, originário do Estado de Minas Gerais e de Relatoria também do Ministro Marco Aurélio e trata especificamente sobre o dever do Estado em fornecer medicamentos sem registro na ANVISA.

De imediato impende salientar que os aspectos que foram analisados acima, no que se refere a direito universal à saúde e dever Constitucional de acesso a medicamentos pela população seguem valendo para tudo o que será abordado a partir de agora.  A única questão que fica para discussão é sobre a falta de registro do medicamento na ANVISA.

Inicialmente este processo foi julgado procedente pelo Juízo da origem, de modo que fosse o Estado obrigado a fornecer a medicação, independentemente de ser registrado ou não na ANVISA. Em segunda instância, o Tribunal Estadual de Minas Gerais reformou a decisão por considerar que o Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos sem registro.

Na mesma esteira do caso discutido acima, inúmeras foram as ações versando sobre o tema, de modo que coube ao Excelso Superior Tribunal Federal manifestar-se sobre o caso em repercussão geral, a fim de estabelecer os parâmetros mínimos para casos análogos.

Assim, quanto ao mérito propriamente dito, mais uma vez o Ministro Marco Aurélio refere a indagação presente no caso: “cuidando-se de remédio não registrado na Agencia Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, há obrigatoriedade de o Estado custeá-lo?”

A fim de balizar o caso e tentar resolver as controvérsias apresentadas nos Tribunais Regionais, o STF, então inicialmente destacar a insegurança do uso de medicamento sem registro na Anvisa, uma vez que este órgão é que é o responsável por registrar, definir a forma de comercialização dos fármacos, bem como a sua importação, conforme preceitua o artigo 12 da Lei 6.330 de 1976, o qual se faz imprescindível a citação:

“Art. 12. Nenhum dos produtos de que trata esta Lei, inclusive os importados, poderá ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes de registrado no Ministério da Saúde.”

Ou seja, a falta de registro no órgão, tanto deixa o paciente à mercê, sem segurança nenhuma da efetividade do medicamento, como ainda deixa em circulação no país medicamentos “ilegais” e que não foram vistoriados por técnicos capacitados para regularizar os medicamentos.

Nesse sentido, a circulação de medicamentos sem registro na ANVISA, pode inclusive, em última análise, configurar crime de descaminho e colocar em risco o interesse da coletividade previsto no artigo 37 da Constituição Federal de 1988.

Para que não reste dúvidas quanto o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, cumpre transcrever as palavras do Ministro Marco Aurélio, no teor da decisão do REx:

“Em última análise, é autorizar o experimentalismo farmacêutico às expensas da sociedade, que financia a saúde pública por meio de impostos e contribuições.

Não podem juízes e tribunais, sob o pretexto de dar efetividade ao direito constitucional à saúde, colocá-lo em risco, considerados pacientes particulares, determinando o fornecimento estatal de medicamentos que não gozam de consenso científico, revelado mediante o registro do produto – exigido em preceito legal – no órgão público competente, no caso, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa.”

Por conseguinte, segue ipsis litters a tese fixada sob aspecto da repercussão geral: “o registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa é condição inafastável, visando concluir pela obrigação do Estado ao fornecimento.”

Portanto, o que se pode concluir a partir da análise de ambos os Recursos Extraordinários é que entre eles não há contradição. O que há na realidade é que o cerne do segundo julgado gira em torno da falta de registro para que um medicamento circule no território nacional, enquanto que o segundo gira exclusivamente em torno da falta de apontamento nas relações governamentais.

Considerações Finais

Com o presente artigo, pretendeu-se tratar os nuances sobre o dever do Estado em fornecer medicamentos à população. Inicialmente buscou-se tratar a partir da análise do REx  566.471/RN a questão dos medicamentos de alto custo que não estão previstos nas políticas públicas, frente a necessidade do paciente ter acesso ao medicamento, a fim de garantir o seu direito universal à saúde, onde foi possível verificar que o nosso Excelso Superior Tribunal Federal de maneira bastante sóbria analisou um dos casos com repercussão geral e conclui pela necessidade da presença do binômio imprescindibilidade/insuficiência financeira.

E neste binômio devem ser analisados inúmeros outros aspectos Constitucionais e infraconstitucionais a fim de verificar a necessidade do paciente e a sua hipossuficiência financeira, sobretudo perpassando por conceitos como mínimo existencial e solidariedade familiar.

Em um segundo momento pretendeu-se analisar o dever do Estado em fornecer medicamentos que não têm registro na ANVISA, e mais uma vez a conclusão do STF que se pode verificar, foi pela sobriedade da análise, uma vez que neste Acórdão foram tratados do descaminho à segurança do próprio paciente em fazer uso de um medicamento que sequer passou pelo crivo de análise do órgão fiscalizar responsável.

Apesar de o STF ter chegado a um consenso de que as políticas públicas de acesso universal igualitário devam ser concretizadas em sua inteireza nas hipóteses de omissão, e de que o Estado não pode se responsabilizar em oferecer tratamentos e medicamentos experimentais, nas áreas mais sensíveis do tema, ou seja, naquelas em que parâmetros mais claros e seguros são exatamente necessários, o tribunal parece deixar a situação como atualmente está: se é para concretizar o direito à saúde, qualquer reivindicação, à qualquer custo, será garantida.

Vale dizer, que ambas as decisões inauguram uma nova fase no enfrentamento do fenômeno da judicialização da saúde, em razão da superação do entendimento que admitia o fornecimento de medicamentos e tecnologias experimentais, sem registro na Anvisa ou destituídos das melhores práticas de evidência científica.

Por conseguinte, espera-se, que a partir do estabelecimento destes novos paramentos pelo STF, haja um maior controle nas demandas, haja vista que com tal decisão em sede de repercussão geral há estabelece que não há obrigatoriedade de fornecimento de medicamento sem registro na ANVISA, de modo que haja uma maior racionalização das decisões judiciais sobre o tema, sempre com o fim de resguardar adequadamente o núcleo essencial do direito à saúde, a manutenção do sistema de saúde e principalmente a integridade do paciente que fará uso desta medicação.

 

Referências
BRASIL. Constituição Federal, 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm>. Acesso em 25 ago 2017.
_______. Código Civil Brasileiro 2002, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em 25 ago 2017.
________. Supremo Tribunal Federal. Acórdão Recurso Extraordinário 657.718/MG. Relator: MELLO, Marco Aurélio Mendes de Farias. Publicado no DJ de 30/06/2017.  Disponível em <https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/…/recurso-extraordinario-re-657718-mg-stf.> Acesso em: 25 de ago 2017.
_________. Supremo Tribunal Federal. Acórdão Recurso Extraordinário /MG. Relator: MELLO, Marco Aurélio Mendes de Farias. Publicado no DJ de 30/06/2017.  Disponível em < stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/23301847/recurso-extraordinario-re-657718-mg-stf.> Acesso em: 25 de agos 2017.
TORRES, Ricardo Lobo. O Direito ao Mínimo Existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.

Informações Sobre o Autor

Fernanda Duarte da Silva

Graduada pelo Centro Universitário¡rio Franciscano – UNIFRA, Pós Graduada em advocacia trabalhista – Universidade Anhanguera – UNIDERP; Pós graduada em direito e processo do trabalho – Centro Universitário¡rio Franciscano – UNIFRA. Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria-RS


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