Resumo: Este artigo apresenta um breve estudo, primeiramente sobre a instituição Estado, desde a sua gênese, na Antiguidade Clássica; na Grécia Antiga, onde os proprietários de terras eram os detentores do poder estatal; em Roma; na Idade Média, com o poder político atribuído aos nobres, até a criação do Estado Moderno, e atualmente do Estado Contemporâneo que tem por finalidade estabelecer o bem estar social, o bem público, não esquecendo, contudo que esse modelo está em crise, precisando adaptar-se a globalização. Depois é analisada a instituição Igreja também desde os seus primórdios, com o surgimento do Cristianismo estabelecendo as suas diferenças em relação aos dogmas religiosos praticados anteriormente. Foi Jesus Cristo o primeiro a fazer a desunião entre o Estado e a Religião. Dos séculos I ao VII ocorreu o fortalecimento da Igreja, e a partir disso, ela tornou-se a instituição mais poderosa da Idade Média, foi somente com o declínio do poder temporal dos papas que ela perdeu sua força. Apenas no período entre os séculos XIX e XX houve a separação teórica do Estado da Igreja. Por último foi estudada a separação efetiva e prática dessas duas instituições, importantíssimas para a construção de valores sociais e morais, fundamentadas na lei maior de um Estado, a Constituição, com o objetivo de valorizar a Ciência Jurídica e principalmente de tutelar todos os direitos e deveres dos cidadãos, por mais que eles sejam polêmicos – a utilização de embriões congelados para fins científicos com células-tronco; suscetíveis a preconceitos – o aborto de feto anencéfalos; sem aceitação social – a união homossexual; e outros ainda completamente repelidos e inaceitáveis – o uso de métodos contraceptivos, pelo único reinado absolutista existente no século XXI: a Igreja.
Palavras-chave: Separação; Estado; Religião; Igreja; Direito.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo fazer uma rápida abordagem sobre a separação prática e efetiva do Estado e da Igreja com o intuito de resguardar todos os direitos e deveres dos cidadãos sem fazer referência a religiões ao tratar-se de questões coletivas.
Inicialmente se fará uma análise retrospectiva da instituição Estado, com um enfoque especial nas suas transformações no decorrer da História, desde o momento do seu surgimento, quando os conflitos sociais põem em risco a sociedade e colocam em perigo os meios de produção. A primeira vez que a palavra Estado apareceu na História foi com Maquiavel, em O Príncipe, mas foi somente em meados do século XVI, que a palavra ascendeu com o conceito de sociedade política.
Antigamente a Religião e o Estado formavam uma instituição homogênea, haja vista, o faraó egípcio, antes de ser chefe de Estado era cultuado como uma divindade. A Religião dominava o Estado, pois ela escolhia os seus representantes. Essa estrutura foi válida até o momento em que eclodiu a Revolução Francesa, no século XVIII, foram várias as demonstrações de descristianização, e o homem passou a utilizar-se da razão.
Nesta esteira, será averiguada também a forte influência da instituição Igreja no Brasil, e a sua desvinculação com o Estado a partir da Proclamação da República. Mesmo assim, ainda há resquícios fortes dessa herança, provando que a profunda influência religiosa atinge as decisões do poder judiciário que, em tese, deveria se manter neutro em relação às questões religiosas.
Por fim, se destacará as grandes barreiras que a Igreja estabelece, com a finalidade de “proteger a vida humana”, quando se trata do aborto de fetos anencéfalos, ou quando em uma união homossexual é desperdiçado sêmen. É importante ressaltar que a religião é de ordem privada, e sendo o Estado laico, os indivíduos têm o direito de pecarem, não precisando se submeter à religiosidade de uma parcela dos cidadãos.
2. O ESTADO COMO ORGANIZAÇÃO POLÍTICA E SOCIAL
O Estado é um ente cultural, construído pelo homem, ele é uma ostentação de atos públicos ou particulares, originado para lidar com os interesses conflitantes que atravessam as relações sociais. Dessa forma o Estado é fruto da razão humana, porque pressentindo que a força física não era suficiente para a organização da vida social, passou a abster-se de alguns privilégios para constituir o poder político organizado, que sob esta óptica é o próprio Estado, único na função de garantir o exercício de atividades do sistema legal em vigor no recinto espacial de sua soberania.
Jean-Jacques Rousseau, em “Do Contrato Social” ressalta que a passagem do estado de natureza para o Estado Civil insere no homem um instinto de justiça, visto que o impulso físico perde espaço para “a voz do dever”, as faculdades humanas, uma vez perdidos os gozos da vida natural começam a desenvolver-se e a exercerem-se de forma nobre, bendizendo “o instante feliz que dela arrancou para sempre e fez de um animal estúpido e limitado, um ser inteligente e um homem” [1].
Historicamente, o Estado surge no momento em que os conflitos sociais colocam em risco a sociedade e expõem ao perigo os meios de produção, fazendo predominar os interesses da classe social dominante, haja vista, os interesses da monarquia, da nobreza, do clero e da burguesia.
A primeira vez que a palavra Estado aparece na História foi em 1513 através da obra de Maquiavel, O Príncipe, que assim preceitua:
“Todos os Estados, todos os domínios que tem havido e que há sobre os homens foram e são repúblicas ou principados. Os principados ou são hereditários, cujo senhor é príncipe pelo sangue, por longo tempo, ou são novos. Os novos são totalmente novos, como Milão com Francesco Sforza, ou são como membros acrescentados a um Estado que um príncipe adquire por herança, como o Reino de Nápoles ao rei da Espanha”[2].
Para o autor de O Príncipe, Estado é sinônimo de uma cidade independente, somente em meados do século XVI, a palavra ascendeu com o significado de sociedade política.
Para uma melhor compreensão do papel do Estado no decorrer do tempo é preciso estudá-lo desde a Antigüidade Oriental, mas especificamente, na história egípcia, onde a organização político-social estruturou-se ao longo da terra e dos canais de irrigação, tendo o Estado, que era despótico, o controle de toda a estrutura econômica, administrativa e social, através das instituições burocráticas, culturais, militares e religiosas, ele subordinava toda a população e garantia a realização das obras de irrigação. Segundo Dalmo de Abreu Dallari[3] nesse momento o pensamento político não se distinguia do pensamento religioso, da filosofia, da moral, e as duas características fundamentais eram a natureza unitária, uma vez que O Estado sempre aparece como uma unidade geral, não admitindo qualquer divisão interior, territorial e de funções, e a própria religiosidade, tão marcante que concebeu o conceito de Estado Teocrático.
Na Grécia Antiga os grandes proprietários de terras tornaram-se o grupo social dominante de cada pólis, organizando um regime oligárquico, participando das decisões políticas a respeito dos assuntos de ordem pública, sendo assim os detentores do poder do Estado. A expectativa esperada das cidades-Estado era a auto-suficiência, o poder absoluto, assistindo razão a Aristóteles:
“A sociedade formada por inúmeros pequenos burgos constitui-se uma cidade completa, com todos os meios para se prover a si mesma, e tendo alcançado, por assim dizer, a finalidade que se tinha proposto[4].”
O Estado Romano possui como característica principal a base familiar da organização, é provável que o aparecimento do Estado primitivo tenha ocorrido a partir da união de grupos familiares, as chamadas gens. O povo participava diretamente do governo, mas a significação da palavra era muito restrita, compreendendo apenas uma minoria ínfima da população. Os governantes eram os magistrados das famílias patrícias. Com uma longa e lenta evolução, os representantes de outras classes sociais foram adquirindo e exercendo seus direitos, por exemplo, os irmãos Graco (Caio e Tibério).
A partir da queda do Império Romano, começou a nascer o período chamado de Idade Média, ocorrido entre os anos de 476 e 1453. Nessa época o poder era local (restrito ao feudo) e descentralizado, sempre assumido pelos nobres. Os reis possuíam os reinos apenas legalmente, pois as terras estavam sob o controle da nobreza feudal. Não existiu realmente a autoridade de um Estado unificado, a nobreza mantinha-se no poder pelo vínculo de suserania e vassalagem. Nas palavras de Dallari o Estado Medieval possui certas características as quais são:
“(…) o cristianismo, as invasões bárbaras e o feudalismo (…), mais como aspiração do que como realidade: um poder superior, exercido pelo Imperador, com uma infinita pluralidade de poderes menores, sem hierarquia definida; uma incontável multiplicidade de ordens jurídicas, compreendendo a ordem imperial, a ordem eclesiástica, o direito das monarquias inferiores, um direito comunal que se desenvolveu extraordinariamente, as ordenações dos feudos e as regras estabelecidas no fim da Idade Média pelas corporações de ofícios”[5].
Com essas peculiaridades a instabilidade política, econômica e social era predominante, ocasionando a necessidade da criação do Estado Moderno como retentor da ordem e de autoridade. A busca por unidade e por um poder soberano foi estabelecida em grande parte pelo Tratado de Westfália[6], de 1648, que documentou um novo tipo de Estado, possuidor da particularidade básica de unidade territorial com um poder soberano, ficou, então, consagrado o modelo da soberania absoluta. O Estado Moderno passou a ter elementos indispensáveis para a sua composição que são: o povo, o território fixo reconhecido e a soberania.
As modernas Constituições junto com o direito positivado e mais os elementos do Estado Moderno, povo, território fixo reconhecido e soberania, formaram o Estado Contemporâneo, modelo de Estado que atualmente, está em vigor na sociedade. Ele detém o poder político visando como fim o bem comum. A crise do Estado Contemporâneo, contudo, é notória e a perda de soberania e autonomia dos Estados Nacionais na formulação de políticas internas é fato, devido em grande parte a globalização. Porém o mundo sofre constantes variações e tudo o que está inserido nele também tende a mudar, se acaso ocorrem mudanças, elas serão mais um passo dado pelo homem e registrado pela história.
3. OS DOGMAS RELIGIOSOS COMO DETENTORES DO PODER DO ESTADO
Os dogmas religiosos das antigas cidades eram baseados nos deuses domésticos e nas divindades políadas, no regime social a religião dominava de maneira soberana, o Direito, o Governo e o Estado derivavam dela. Nos séculos anteriores ao Cristianismo às ligações entre religião, direito e política já não eram tão profundas, devido aos estudos filosóficos e também aos esforços das classes oprimidas. O homem deixou de acreditar em suas crenças, e a religião acabou perdendo o seu vigor.
O sentimento religioso, todavia, renasceu sobre o espírito do ser humano, na forma do Cristianismo. Há características fundamentais que demonstram essa passagem, haja vista, com o seu advento, a alma humana e as forças da natureza deixaram de ser endeusadas, anteriormente cada homem criava o seu próprio deus, com o Cristianismo a figura de Deus foi centrada em um único ser, universal e infinito. Como destaca Fustel de Coulanges o Cristianismo foi o compositor de inúmeras outras inovações:
“Deixou de ser a religião doméstica de uma família, a religião nacional de uma cidade ou de uma raça. O cristianismo não pertencia nem a uma casta, nem a uma corporação. Desde o seu início, chamou a si toda a humanidade. Jesus Cristo disse aos seus discípulos: “Ide e ensinai todos os povos”[7]”.
Nos tempos antigos a Religião e o Estado formavam uma instituição única, por exemplo, o faraó egípcio, antes de ser chefe de Estado era considerado uma divindade. A Religião acabava assim, dominando o Estado, pois ela escolhia os seus representantes. Jesus Cristo ensinou que a religião não faz parte das coisas terrenas, “Daí a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” [8], foi a primeira vez que se separou a Igreja do Estado de forma tão nítida.
A organização e o fortalecimento da Igreja, nos séculos I ao VII, foi um período onde as primeiras gerações de cristãos foram perseguidas constantemente, pelo domínio absoluto dos romanos. O acontecimento que marca a organização da Igreja foi o Concílio de Nicéia, de 335, que presidiu também a sua união com o Estado Romano. O poder da Igreja, por conseguinte não era somente espiritual, era também temporal.
Com o passar do tempo ela tornou-se o maior proprietário de Terras da Idade Média. A instituição era a mais poderosa da época, os poderes locais dos senhores feudais integravam-se ao poder universal da Igreja, visando manter a organização econômica e feudal que lhes era favorável.
Dos anos 700 a 1300 ocorreu a simbiose entre a Igreja e o Império. Dois importantes fatos históricos aconteceram, o primeiro foi o Cisma, a separação do Oriente em 1054, devido às dificuldades encontradas para manter a homogeneidade da doutrina cristã, e o complicado relacionamento com a Igreja Bizantina, e o segundo foram as Cruzadas, que aspiravam como objetivo reconquistar a Terra Santa (Jerusalém, Belém, Nazaré) das mãos dos infiéis muçulmanos.
O tempo caracterizado pela dissolução do mundo cristão e ocidental, foi de 1300 a 1750, no qual ocorreu o Cisma do Ocidente, por iniciativa principalmente, de Lutero. O Papado acabou sendo despojado do seu poderio unificador. O Cardeal Arns assim exemplifica:
“Bonifácio VII (Papa de 1294 a 1303) ainda chega a afirmar a primazia sobre o Estado nacional da França. Mas será preso por Felipe, O Belo. Segue o tempo do exílio dos Papas, em Avignon, na França (1309 a 1378): período confuso e desnorteante para os fiéis. Declínio último do poder temporal dos Papas”[9].
A Revolução Francesa[10], em 1789, separou o Estado da Igreja ocasionando o fechamento das igrejas, os sinos foram descidos, a prataria sacra foi entregue à diligência das autoridades distritais e a iconoclastia, foram algumas demonstrações da descristianização. Os conceitos de fé são fortemente abalados, pois o homem passa a acreditar no seu potencial e na razão, dando a Igreja apenas a consciência de agir pelo povo e de cumprir a sua missão junto ao povo.
A Igreja no Brasil têm raízes, desde a colonização da América, no contexto do período colonial Júlio Maria esclarece:
“(…) o descobrimento da América foi uma compensação à Igreja na época em que o protestantismo arrancou à fé católica metade da Europa, desvairada pelo espírito pagão que renascera nas ciências, nas letras, nas artes, na política, nos costumes, na educação e deixou a outra metade profundamente abalada nas crenças, que certas nações católicas não repudiaram formalmente, mas de que, desde então, não mostraram mais como nações o exemplo e a prática”[12].
Os progressos da Igreja nesse momento histórico foram evidentes, os missionários catequizaram povos e tribos inteiras; o catolicismo se perpetuou rapidamente, em países como o México, Venezuela, Equador, Bolívia e no Brasil. Foram construídas igrejas, universidades e conventos, onde se apresentam inúmeros heróis santificados, como Henrique de Coimbra, Anchieta, Nóbrega…
Depois de mais de três séculos sob a forte influência do catolicismo, era inevitável que no Brasil não se fundasse um Império sem recorrer à religião. Quando a vontade de independência começou a florescer, o Brasil era católico, tão católico que a Constituição de 1824[13], isto é, o pacto fundamental do Império, reconheceu esse fato, sendo a religião oficial do Estado, o catolicismo. Assim sendo, a religião não foi inaugurada, ela era preexistente ao Império, o legislador constitucional entendeu que os privilégios legais eram um direito adquirido da nação brasileira.
A Proclamação da República, em 15 de Novembro de 1889, foi o ápice para que, aos 7 de janeiro de 1890, o Governo provisório publicasse o decreto da separação da Igreja e do Estado, proibindo no art. 1º ao Governo Federal leis, regulamentos ou atos administrativos sobre religião, e abolindo no art. 4º o padroado com todas as suas instituições, recursos e prerrogativas.
Há no Brasil de hoje duas forças: a Igreja e o povo. O desejo do Papa é uni-las, mas qual será o desejo do povo? Talvez seja o progresso, e os benefícios jurídicos que um Estado desvinculado dos dogmas religiosos possa trazer.
4. A SEPARAÇAO DO ESTADO E DA IGREJA COMO PRINCÍPIO BÁSICO PARA O ESTADO DE DIREITO
A separação do Estado e da Igreja no Brasil é um princípio basilar, visto que o Estado brasileiro é laico desde a Constituição de 1891, e a atual Constituição Federal de 1988 consagra essa separação no art.19[14]. A Carta Magna também protege a preferência religiosa estabelecida no art. 5º[15], porém ela nunca se completou. É possível citar inúmeros exemplos de assuntos polêmicos que estão tão vinculados à religião, ou melhor, a Igreja, que acabam sendo discriminados, por grande parte da sociedade, são eles: a união homossexual; o aborto de feto anencéfalos, o uso de métodos contraceptivos, a utilização de embriões congelados para fins científicos com células-tronco, entre tantos outros. Há ainda exemplos dessa união que podem ser considerados “benéficos” para a população em geral, é o caso dos feriados públicos religiosos.
Um dos assuntos mais discutidos até então é a união homossexual. Antigamente, na Grécia e em Roma a sodomia era uma prática aceitável, existe uma frase atribuída a Goethe que diz que a homossexualidade é tão antiga como a heterossexualidade, mas desde o advento do cristianismo, os homossexuais passarem a viver na intolerância, são considerados pervertidos e anormais, porquanto “o contato sexual é restrito ao casamento e exclusivamente para fins procriativos. Daí a condenação ao homossexualismo, principalmente ao masculino, por haver perda de sêmen[16]”.
No Brasil, o Direito tem preferido fechar os olhos a essas realidades em nome de posturas conservadoras, esse tipo de união estável é fato social e existe um interesse merecedor de tutela. Nesse sentido destaca-se a crítica de Maria Berenice Dias[17]: “O Direito não regula sentimentos, mas as uniões que associam afeto a interesses comuns, que, ao terem relevância jurídica, merecem proteção legal, independente da orientação sexual do par”.
É complicado presenciar em um Estado Democrático de Direito, que preza em seu texto constitucional o respeito à dignidade humana[18], os princípios de liberdade e de igualdade[19], e principalmente, a declaração que homens e mulheres são iguais em direitos e deveres[20], sendo estabelecida como finalidade fundamental do Estado a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação, ocorrer manifestações de preconceito por parte do Poder Judiciário. As uniões homossexuais não podem ser excluídas do mundo jurídico, por causa da intolerância social originada das relações, em grande parte, com o sentimento religioso.
Foi refletindo sobre essa questão que ocorreu a primeira decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em 14 de março de 2001[21], reconhecendo o vínculo homoafetivo como entidade familiar. Em face da omissão legal, já que o art. 226, inciso 3º[22] da Carta Constitucional Brasileira não reconhece a união homossexual, foi preciso usar a analogia aplicada à legislação que regula as uniões extramatrimoniais.
A biotecnologia é outro conflito dos tempos atuais entre Estado e Igreja. Todos os católicos esperam que o novo papa continue sua luta contra o aborto, no entanto, em certos contextos é imprescindível que ele mereça flexibilidade, por exemplo, nos casos de fetos anencéfalos. A Igreja católica apega-se ao seu compromisso com a vida humana, alegando que é incorreto matar a vida intra-uterina. Como é analisado, por conseguinte, a vida, e a saúde física e psicológica da gestante? Proteger o direito à vida acompanhado de um profundo e constante sofrimento é válido? Túlio Lima Vianna esclarece:
“No Estado Democrático de Direito não há espaço para a imposição de crenças religiosas travestidas de leis ou sentenças, pois a base da democracia é a pluralidade e a tolerância ao diferente. Se as pesquisas com células-tronco e os abortos de anencéfalos são ou não pecado não cabe aos políticos e aos ministros do STF decidirem, mas aos clérigos, a partir da interpretação dos livros sagrados de sua fé. A licitude de tais pesquisas e a criminalização de tais abortos, por outro lado, são questões de natureza política e jurídica e, portanto, de natureza temporal, não havendo, pois, como serem impedidas por contrariarem qualquer religião”[23].
Destarte, o juiz Jesseir Coelho de Alcântara, da 13ª Vara Criminal de Goiânia, autorizou o aborto de feto anencéfalo[24], de uma gestação de 22 semanas. O juiz poderia ter usado somente a parte normativa do Direito, mas ele levou em consideração que o Poder Judiciário não pode deixar de buscar soluções para os problemas que são existentes. Na visão do juiz:
“É sabido que o direito à vida, abrangendo as vidas uterinas, assegurado pelo artigo 5º da Constituição é inviolável. Todavia, esse elementar direito não se apresenta absoluto, admitindo exceções conforme prescreve o artigo 128 e seus incisos do Código Penal. Tenho assim, que a situação requer a adaptação do ordenamento jurídico à evolução do tempo e às avançadas técnicas que auxiliam a medicina”[25].
Alguns afirmam que a Igreja não pode ser maleável, pois abriria precedentes. O Prof. Dr. Mário Antonio Sanches discorda, “pois crescer na consciência moral, é crescer na capacidade de discernimento, é crescer na capacidade de ver como diferente, situações que são de fato diferentes[26]”. A Igreja protege a vida humana em plenitude, mas não será também esse o objetivo da Ciência? Não é possível ver a Ciência apenas com ingenuidade, e concordar com tudo o que é posto e praticado em nome da Igreja, no entanto é necessário resguardar os direitos e deveres dos cidadãos de maneira que lhes sejam mais dignos, mais seguros, mais justos e acima de tudo, mais humanos.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Estado como organização política e social existe desde as civilizações antigas, mas nesse período ele era vinculado com a religião, a primeira vez que ocorreu a separação das duas instituições foi com Jesus Cristo ainda no Império Romano, depois dessa ruptura o Estado deixou de ser uma criação divina, para preocupar-se somente com os “interesses conflitantes que permeiam as relações sociais” [27].
Destacou-se também a história da Igreja, com a finalidade de buscar subsídios para a compreensão do forte vínculo, que ainda hoje, une essas duas Instituições. A Igreja nasceu com Jesus Cristo e teve o seu apogeu na Idade Média, onde aliou-se com o poder feudal, dominando não somente o poder espiritual, mas também o poder temporal da sociedade. Durante toda a história as duas instituições caminharam lado a lado, dependendo e justificando-se “mutuamente do poder para conquistar ainda mais poder e mais recursos para seus dirigentes” [28]. Umas vezes a Igreja ficou acima do Estado, como na Idade Média, e outras vezes o Estado se sobrepôs sob a Igreja, a qual é necessária para a consumação do atual Estado Democrático de Direito.
Fez-se, também uma rápida análise da desvinculação histórica entre o Estado e a Igreja, ocorrida na Revolução Francesa, no século XVIII, e no Brasil com a Constituição de 1891, tornando o Estado, dessa forma laico nas questões que envolvem religiosidade. Por conseguinte, atualmente, a separação não é tão eficaz o quanto deveria ser no âmbito jurídico, ela ainda é vista como uma forma de “pecado” perante a Deus, ou mais detidamente, à Igreja, pois é ela que condena as condutas dos seus fiéis.
Apesar de ser difícil para a sociedade separar as normas jurídicas das normas religiosas, é preciso que o Direito como regulador dos direitos e deveres dos cidadãos faça essa ruptura, nessa passagem é oportuno destacar o pensamento de Rudolf Von Jhering:
“Se o direito não lutasse, não resistisse vigorosamente, renegar-se-ia a si próprio; e essa luta há de perdurar tanto quanto o direito tiver de se precaver contra os ataques da injustiça, isto é, por tão longo tempo quando existir o mundo”. [29]
As barreiras impostas para a não concretização de atos jurídicos, quando se trata de assuntos polêmicos ligados a religião, como os citados neste artigo (união homossexual e aborto de feto anencéfalo) existem, mas por outro lado às rupturas estão surgindo, e isso foi provado através das decisões judiciais que conceberam o aborto de um feto anencéfalo e reconheceram um vínculo homoafetivo como entidade familiar.
Informações Sobre o Autor
Bruna Caroline Pereira