Resumo: Este trabalho pretende analisar a antinomia preexistente entre os artigos 15 e 55 da Constituição Federal, agitados perante o julgamento da Ação Penal 470/MG perante o Supremo Tribunal Federal. Para tanto, abriu-se mão da pesquisa doutrinária e jurisprudencial, a fim de esclarecer o conceito de antinomia, sua classificação, sua evolução histórica, e como ela será resolvida ao se ter um conflito de normas. Levantou-se a questão da Constituição Federal de 1988 ser antinômica, vez que trata de diferentes interesses da sociedade. Também fora analisado o acórdão do julgamento da referida ação, para fins de dirimir eventuais divergências quanto à interpretação de mencionados artigos. De um lado o Poder Legislativo outorga essa competência a si mesmo, conforme previsão do art. 55, §2º. De outro, o Poder Judiciário confere a si essa legitimidade, interpretando-se a Constituição Federal de forma una. Propõe-se, ao final, que cabe ao Poder Judiciário decida acerca da perda do mandato eletivo em se tratando de parlamentar condenado por crime contra a Administração Pública.
Palavras-chave: Antinomia. Constituição Federal Brasileira de 1988. Ação Penal 740/MG.
Abstract: This work discusses the antinomy existing between articles 15 and 55 of the Federal Constitution, agitated before the trial of the criminal action 470/MG, in the Supreme Court. For this, it was used doctrinal teachings and jurisprudential research to clarify the concept of antinomy, its classification, its historical evolution, and how it will be resolved by having a conflict of norms. Raised the question of the Constitution of 1988 is antinomian, as it deals with different interests in society. Also examined was the judgment of the trial of that action, for purposes of resolving any disputes as to the interpretation of such articles. On one side the Legislature granting such powers to itself, as stipulated by art. 55, § 2. In another way, the Judiciary gives to itself this legitimacy, interpreting the Constitution as a unity. It is proposed that, in the end, it is up to the courts to decide about the loss of an elective office in the case of parliamentary convicted of a crime against the Government.
Keywords: Antinomy. Brazilian Constitution of 1988. Criminal Action 740/MG.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo trata do estudo da existência de antinomia entre normas constitucionais, especificadamente nos artigos 15, III e 55, § 2º da Constituição Federal.
Há algumas situações em que ordenamento jurídico brasileiro revela-se inconsistente, face à existência de antinomias que dificulta o operador do direito encontrar uma solução para os problemas que lhe são apresentados, o que por muitas vezes gera uma disputa entre os poderes legislativo e judiciário.
O tema revela grande complexidade e ganhou relevância no julgamento da Ação Penal 470, movida pelo Mistério Público da União, contra diversos acusados pela suposta prática de esquema a envolver crimes de peculato, lavagem de dinheiro, corrupção ativa, gestão fraudulenta dentre outras fraudes, em que o Supremo Tribunal Federal decidiu pela cassação imediata dos mandatos dos parlamentares envolvidos, com fulcro no art. 15, inciso III da CF.
Não obstante, conforme preleciona o art. 55, §2º do mesmo Diploma, a competência para decisão sobre a perda do mandato é do Senado Federal, em se tratando de Senador; ou da Câmara dos Deputados, em se tratando de Deputado Federal.
A partir dessa premissa, será feita uma abordagem teórica, tendo-se como base a pesquisa bibliográfica; e uma abordagem jurisprudencial, enfocando-se a Ação Penal Originária 470 processada perante o Supremo Tribunal Federal.
O foco preciso da presente pesquisa é analisar o critério a ser adotado quando, no ordenamento jurídico constitucional, duas disposições disciplinam a mesma matéria de forma contraditória, demando do intérprete a utilização de métodos hermenêuticos variáveis para solução do conflito normativo.
A antinomia será aprofundada à luz das várias concepções encontradas em nosso ordenamento jurídico. Será discorrida também uma abordagem panorâmica histórica do estudo das antinomias jurídicas e sua classificação.
Estes são apenas alguns aspectos que serão abordados e que resultarão na atuação harmônica dos “Poderes” ou “Funções”, preconizadas em termos principiológicos pelo Constituinte, que dependem, em boa medida, de um devido exercício das competências constitucionais que lhes foram conferidas constitucionalmente.
2. ANTINOMIAS
2.1. Conceito e classificação
O estudo das antinomias jurídicas relaciona-se às lacunas de conflitos, à questão da consistência do ordenamento jurídico, à condição de um ordenamento não apresentar simultaneamente normas jurídicas que se excluem mutuamente, ou seja, que sejam antinômicas entre si, a exemplo de duas normas, em que uma manda e outra proíbe a mesma conduta.
Na lição de Tércio Sampaio FERRAZ JÚNIOR, entende-se por antinomia jurídica
“[…] a oposição que ocorre entre duas normas contraditórias (total ou parcialmente), emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo, que colocam o sujeito numa posição insustentável pela ausência ou inconsistência de critérios aptos a permitir-lhe uma saída nos quadros do ordenamento dado.” (FERRAZ JÚNIOR, 1994, p. 211).
Norberto BOBBIO define antinomias jurídicas como sendo “aquela situação que se verifica entre duas normas incompatíveis, pertencentes ao mesmo ordenamento e tendo o mesmo âmbito de validade.” (BOBBIO, 1995, p. 88).
Juridicamente, emprega-se o termo antinomia como sendo "uma oposição existente entre duas normas e princípios no momento de sua aplicação." (DINIZ, 1998, p. 210).
Importante salientar que um dos graves problemas de um ordenamento jurídico revelar-se inconsistente ante a existência de antinomias é justamente a dificuldade que causa ao operador do direito, no momento em que este precisa encontrar uma solução para o caso concreto que lhe é apresentado. Saber qual norma deverá ser eliminada.
Quanto a sua classificação podemos distinguir que em determinadas situações, a antinomia encontrada pelo operador será considerada aparente, também denominada de solúveis, porque, ainda que difícil alguma solução existirá para afastá-la.
Já em outras situações, no entanto, a remoção do conflito será impossível, neste caso tem-se a antinomia real, ou insolúvel, porque não há no ordenamento jurídico regras normativas de solução. E então a alternativa, na maioria dos casos, será a ab-rogação de uma das normas antinômicas.
Para a existência da antinomia, duas ou mais normas jurídicas em conflito, devem estar em plena vigência, embora necessariamente não pertençam ao mesmo ordenamento jurídico, deverão ser emanadas de autoridades competentes para editá-la e que seus conteúdos reflitam a negação entre si das disposições normativas.
Considerando que o presente artigo destina-se ao estudo das antimoniais existentes entre as normas constitucionais, não podemos deixar de definir a “antinomia” constitucional como sendo aquela que se observa no interior da Constituição, entre um e outro dispositivo, ou entre suas regras e os seus princípios, ou, ainda, entre os próprios princípios da Constituição.
É de se considerar ainda, com fundamento no pensamento da mais abalizada doutrina do constitucionalismo moderno, que o fato de a Constituição abarcar sistema aberto de princípios acaba por gerar a ocorrência das tensões envolvendo os muitos princípios que dão a estrutura ao Texto Constitucional, ou ainda entre os princípios gerais e os especiais. E tal ocorre pelo fato de a Constituição não congregar um sistema absolutamente hermético e eivado de harmonia, posto que tenta acomodar os interesses de vários segmentos da sociedade, que muitas vezes não convergem para o mesmo ponto. Por tal razão o ideal de pleno consenso entre princípios e normas constitucionais não chega a ser maior e mais efetivo que a prática de ideias antagônicas advindas do pluralismo de interesses vários que formam a sociedade, e que pululam a cada instante da vida social, política, econômica, moral, religiosa e jurídica de um povo (CANOTILHO, 1994, p. 195-196).
2.2. Panorama histórico das antinomias
A origem histórica do vocabulário antinomia, propriamente dita, remete para a antiguidade, com o filósofo Plutarco de Queronéia, autor de Dilações sobre a Justiça Divina, dentre outras bibliografias.
No entanto, sua aparição teve maior destaque em Gloclenius (1613), no século XVII, em sua obra Lex philosophicumquontanquan clave philosophiase fores aperiuntur, onde distinguiu a antinomia tanto no sentido amplo, que segundo o autor ocorria entre sentenças e proposições, quanto no sentido estrito, existente entre leis. Em 1660, A Eckolt distingue antinomia real e aparente.
Já no século XVIII, Zedler (1732), em sua obra Grosses vollstaendiges Universallex, a define como conflitos de leis existentes quando há contradição ou contraposição. E em 1770, Baumgartem, faz referência à antinomia entre direito natural e direito civil, no seu livro Philosophiageneralis.
Contudo, a ideia do conflito normativo como premissa do conceito adotado nos tempos modernos deve sua aparição no período de consolidação de ideias políticas e jurídicas da Revolução Francesa, com John Gilissen, que firmou a preponderância da lei enquanto fonte do direito, o controle da legalidade das decisões judiciárias e principalmente, a concepção do direito como sistema, imprescindíveis para o contato com a problemática da antinomia jurídica em termos de profundidade.
Verifica-se também a crescente importância da lei como motivação para o homem moderno do século XIX positivar as normas, ou seja, a transcrição das normas em Leis escritas. Esta positivação do direito é a origem da pesquisa científica da problemática da antinomia jurídica, exposta com propriedade por Maria Helena Diniz (DINIZ, 2001, p. 5-6):
“Com a positivação cresce a disponibilidade espaço-temporal do direito, pois sua validade se torna maleável, podendo ser limitada no tempo e no espaço, adaptada a prováveis necessidades de futuras revisões.
Resta-nos, por derradeiro, assinalar que a teorização do problema do conflito normativo só surgiu no pleno domínio do positivismo jurídico, porque nos leva à concepção do direito como um sistema normativo.
Foi preciso que o direito fosse concebido como um sistema normativo para que a antinomia e sua correção se revelassem como problemas teóricos. A antinomia jurídica aparece como um elemento do sistema jurídico e a construção do sistema exigem a resolução dos conflitos normativos, pois todo o sistema deve e pode alcançar uma coerência interna.
O problema científico do conflito normativo é uma questão do século XIX, surgindo com o advento do positivismo jurídico e da concepção do direito como sistema, que criaram condições para o aparecimento de teses em torno da coerência ou incoerência (lógica) do sistema jurídico e da questão da existência ou inexistência de antinomias jurídicas.” (DINIZ, 2001, p.5-6)
Parte da realidade jurídica brasileira também está presente na positivação do direito, frisa-se a esta observação a existência de códigos em nosso ordenamento, um estado avançado na positivação das normas. Reis Friede (2002) retrata esta particularidade no direito no Brasil:
“Como, em nosso País, a realidade do direito se expressa, sobretudo, por sua inerente normatividade e esta, por seu turno, em forma de produção estatal, de cunho preponderantemente legislativo, é lícito deduzir que, embora reconhecidamente o direito transcenda à exclusiva existência normativa (e a norma jurídica ao escopo restrito de atuação da lei), a maior parte do Direito se encontra necessariamente na norma e esta, ato contínuo, na lei, obrigando-nos, por efeito, a reconhecer que o Direito (no Brasil e na esmagadora maioria das nações ocidentais) se constitui em uma realidade essencialmente normativa e preponderamente legal.” (FRIEDE, 2002. p. 127).
Neste contexto, as palavras de Paulo Dourado Gusmão (2000) revelam os ensinamentos aqui expostos:
“Sistema jurídico é, pois, a unificação lógica das normas e dos princípios jurídicos vigentes em um país, obra da ciência do direito. Para obtê-la, elimina o jurista contradições porventura existentes entre normas e entre princípios; estabelece hierarquia entre as fontes do direito, escalonando-as; formula conceitos, extraídos do conteúdo das normas e do enunciado nos princípios, agrupa normas em conjuntos orgânicos e sistemáticos, levando em conta a função que devem elas cumprir, como é o caso das instituições; estabelece classificações, ou seja, aponta o lugar de cada norma no sistema”. (GUSMÃO, 2000, p. 11).
Essas contradições encontradas no ordenamento jurídico somente podem ser avaliadas ou julgadas se levado em conta o conteúdo das normas, não bastando referir-se apenas à autoridade jurídica da qual emanaram. É neste ponto há uma grande divergência Bobbio e Kelsen.
Para Kelsen (2000, p. 163-167), o sistema jurídico é fundamentalmente um sistema dinâmico, ou seja, um sistema puramente formal, que não se refere à conduta que as normas regulam, mas tão somente à maneira como essas normas foram impostas. Ainda segundo filósofo, a existência de duas normas que tenham conteúdo contraditório não torna ilegítimo o sistema, como também invalida as normas contraditórias.
Já Norberto Bobbio (1995) não concorda com esse ponto de vista porque considera que ele viola a ideia de sistema como totalidade ordenada. O autor apresenta então três concepções distintas de sistema, que foram desenvolvidas na filosofia do direito.
O primeiro significado de sistema diz que um dado ordenamento é um sistema enquanto todas as normas jurídicas deste ordenamento seriam deriváveis no sentido de sistema dedutivo, no qual todas as normas de um ordenamento são de alguns princípios gerais, considerados da mesma maneira que os postulados de um sistema científico. Essa concepção de sistema foi típica do jusnaturalismo.
Outra concepção de sistema indica um ordenamento da matéria realizado através do processo indutivo, ou seja, partindo do conteúdo das simples normas com a finalidade de construir conceitos sempre mais gerais e classificações ou divisões da matéria inteira, gerando um procedimento de classificação.
Por fim, o terceiro significado de sistema, que para o autor, é o mais interessante, diz-se que um ordenamento jurídico constitui um sistema porque não podem coexistir nele normas incompatíveis. Se houver normas incompatíveis, uma ou ambas deverão ser eliminadas.
Ainda, segundo o autor, “o Direito não tolera antinomias” (BOBBIO, 1995, p. 81).
2.3. Constituição Federal de 1988: antinômica?
Como anteriormente abordado, é sabido que, pelo óbvio motivo da Constituição Federal tratar dos mais diversos interesses da sociedade, ela se torna, por muitas vezes, antinômica.
Ao adentrar no objeto fonte de debate deste artigo científico, o tema revela grande complexidade, uma vez que se trata de normas antinômicas dentro do mesmo ordenamento jurídico, configurando, assim, normas antinômicas em seu sentido real.
E é por conta deste conflito que o operador do direito encontra dificuldade em definir qual norma será aplicada, posto que os critérios – cronológico, hierárquico ou da especialidade – que a princípio solucionariam esse dilema, se tornam insuficientes diante deste caso, por se tratarem de normas promulgadas em uma mesma época e pertencentes ao mesmo ordenamento jurídico, qual seja, a Constituição Federal de 1988.
De um lado, o art. 15, inciso III da CF autoriza o Poder Judiciário a determinar a perda ou a suspensão dos direitos políticos – inclusive a perda do mandato parlamentar – nos casos de condenações criminais transitadas em julgado enquanto durarem seus efeitos.
De outro, o art. 55, §2º da mesma Carta Magna outorga ao Congresso Nacional essa competência, atribuindo o poder de determinação da perda do mandato eletivo pelo Senado Federal, em se tratando de Senador; ou pela Câmara dos Deputados, em se tratando de Deputado Federal. Para tanto, exige-se que os parlamentares deliberem secretamente e por maioria absoluta, assegurando ao detentor do mandato o direito à ampla defesa.
Fato é que a República Federativa do Brasil, ao promulgar a Constituição Federal com o fim de extinguir o poder arbitrário do Estado, mergulhou numa imensidão de contradições normativas, dentre elas, o que já foi mencionado supra.
Obviamente não era este o objetivo quando da inauguração da CF/88, o qual visava à maior previsibilidade quanto à aplicação do direito, de forma a trazer maior segurança jurídica ao aplicar a lei ao caso concreto; e também uma divisão dos poderes de forma mais equânime. Paulo Bonavides (2011) resguarda a importância do princípio da separação dos poderes em um Estado democrático de Direito:
“Com efeito, poderia afigurar-se um anacronismo, reproduzir aqui as lições dos constituintes e publicistas do liberalismo que, durante o curso dos séculos XVIII e XIX, vazaram, em fórmulas lapidares, tanto nas Constituições como nas páginas de doutrina, a intangibilidade da separação de poderes. Mas nunca essa censura se poderia fazer àqueles autores e àquelas Constituições que ainda no fim do século XX mantêm o princípio em apreço como uma das pedras inquebrantáveis do edifício constitucional, cavando alicerces que, se abalados fossem, fariam desabar toda a construção.
A presença, pois, de autores contemporâneos que continuam vendo no princípio uma das mais excelsas garantias constitucionais do Estado de Direito não diminuiu na literatura jurídica deste século. Não diminuiu provavelmente em razão da virtude que tem ele – conforme Montesquieu já assinalara, com a clarividência de um pensamento meridianamente lógico – de limitar e controlar poderes, refreando assim a concentração de sua titularidade num único órgão ativo da soberania. A concentração seria, sem dúvida, lesiva ao exercício social da liberdade humana em qualquer gênero de organização do Estado.” (BONAVIDES, 2011) (grifo nosso)
Com a devida e máxima vênia, 75% (setenta e cinco por cento) dos países no mundo adotam esse modelo separatista dos poderes, e apenas 25% (vinte e cinco por cento) adere às versões limitadas de imunidade parlamentar, a exemplo dos Estados Unidos, do Reino Unido e da Alemanha, que confere um alto grau de independência e autonomia do Poder Legislativo em detrimento dos demais Poderes. Não é a toa que estes Estados, em sua maioria, adotam o regime do common law, que geralmente são caracterizados por sua insegurança jurídica (STF, AP 470/MG, fls. 53.058-53.060).
Dessa forma, tudo o que deu origem ao positivismo jurídico (segurança jurídica, separação nítida dos poderes) cai por terra quando nos deparamos com quem seria competente para determinar a perda dos mandatos dos parlamentares eleitos pelo povo, tornando impossível descobrir qual seria a intenção do legislador-Estado ao editar referidas normas.
2.4. STF: A Ação Penal 470
Em 12 de novembro de 2007, deu-se início a um dos processos mais complexos e instigantes da história brasileira. O Supremo Tribunal Federal deu prosseguimento a ação penal movida pelo Ministério Público da União contra 38 (trinta e oito) réus, a maioria ligada a mandatos eletivos e a instituições financeiras.
O processo durou mais de 4 (quatro) anos, e em 22 de abril de 2013, o Tribunal Superior condenou 25 (vinte e cinco) réus, absolveu 12 (doze), e decretou a nulidade do processo para 1 (um) dos acusados.
Com relação à perda dos mandatos eletivos para os réus condenados, este foi o entendimento da Suprema Corte (STF, AP 470/MG, fls. 51.635-51.637):
“PERDA DO MANDATO ELETIVO. COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES E FUNÇÕES. EXERCÍCIO DA FUNÇÃO JURISDICIONAL. CONDENAÇÃO DOS RÉUS DETENTORES DE MANDATO ELETIVO PELA PRÁTICA DE CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. PENA APLICADA NOS TERMOS ESTABELECIDOS NA LEGISLAÇÃO PENAL PERTINENTE.
1. O Supremo Tribunal Federal recebeu do Poder Constituinte originário a competência para processar e julgar os parlamentares federais acusados da prática de infrações penais comuns. Como consequência, é ao Supremo Tribunal Federal que compete a aplicação das penas cominadas em lei, em caso de condenação. A perda do mandato eletivo é uma pena acessória da pena principal (privativa de liberdade ou restritiva de direitos), e deve ser decretada pelo órgão que exerce a função jurisdicional, como um dos efeitos da condenação, quando presentes os requisitos legais para tanto.
2. Diferentemente da Carta outorgada de 1969, nos termos da qual as hipóteses de perda ou suspensão de direitos políticos deveriam ser disciplinadas por Lei Complementar (art. 149, §3º), o que atribuía eficácia contida ao mencionado dispositivo constitucional, a atual Constituição estabeleceu os casos de perda ou suspensão dos direitos políticos em norma de eficácia plena (art. 15, III). Em consequência, o condenado criminalmente, por decisão transitada em julgado, tem seus direitos políticos suspensos pelo tempo que durarem os efeitos da condenação.
3. A previsão contida no artigo 92, I e II, do Código Penal, é reflexo direto do disposto no art. 15, III, da Constituição Federal. Assim, uma vez condenado criminalmente um réu detentor de mandato eletivo, caberá ao Poder Judiciário decidir, em definitivo, sobre a perda do mandato. Não cabe ao Poder Legislativo deliberar sobre aspectos de decisão condenatória criminal, emanada do Poder Judiciário, proferida em detrimento de membro do Congresso Nacional. A Constituição não submete a decisão do Poder Judiciário à complementação por ato de qualquer outro órgão ou Poder da República. Não há sentença jurisdicional cuja legitimidade ou eficácia esteja condicionada à aprovação pelos órgãos do Poder Político. A sentença condenatória não é a revelação do parecer de umas das projeções do poder estatal, mas a manifestação integral e completa da instância constitucionalmente competente para sancionar, em caráter definitivo, as ações típicas, antijurídicas e culpáveis. Entendimento que se extrai do artigo 15, III, combinado com o artigo 55, IV, §3º, ambos da Constituição da República. Afastada a incidência do §2º do art. 55 da Lei Maior, quando a perda do mandato parlamentar for decretada pelo Poder Judiciário, como um dos efeitos da condenação criminal transitada em julgado. Ao Poder Legislativo cabe, apenas, dar fiel execução à decisão da Justiça e declarar a perda do mandato, na forma preconizada na decisão jurisdicional.
4. Repugna à nossa Constituição o exercício do mandato parlamentar quando recaia, sobre o seu titular, a reprovação penal definitiva do Estado, suspendendo-lhe o exercício de direitos políticos e decretando-lhe a perda do mandato eletivo. A perda dos direitos políticos é “consequência da existência da coisa julgada”. Consequentemente, não cabe ao Poder Legislativo “outra conduta senão a declaração da extinção do mandato” (RE 225.019, Rel. Min. Nelson Jobim). Conclusão de ordem ética consolidada a partir de precedentes do Supremo Tribunal Federal e extraída da Constituição Federal e das leis que regem o exercício do poder político-representativo, a conferir encadeamento lógico e substância material à decisão no sentido da decretação da perda do mandato eletivo. Conclusão que também se constrói a partir da lógica sistemática da Constituição, que enuncia a cidadania, a capacidade para o exercício de direitos políticos e o preenchimento pleno das condições de elegibilidade como pressupostos sucessivos para a participação completa na formação da vontade e na condução da vida política do Estado.
5. No caso, os réus parlamentares foram condenados pela prática, entre outros, de crimes contra a Administração Pública. Conduta juridicamente incompatível com os deveres inerentes ao cargo. Circunstâncias que impõem a perda do mandato como medida adequada, necessária e proporcional.
6. Decretada a suspensão dos direitos políticos de todos os réus, nos termos do art. 15, III, da Constituição Federal. Unânime.
7. Decretada, por maioria, a perda dos mandatos dos réus titulares de mandato eletivo.” (grifo nosso)
Não há dúvidas que o Poder Judiciário, a fim de conferir legitimidade para si, atrai o direito de decretar a perda do mandato de réus detentores de mandatos eletivos e condenados pela prática de crimes contra a Administração Pública. Contudo, é legítima essa competência? Ou cabe ao Poder Legislativo decidir acerca da perda do mandato eletivo, uma vez que ele o detém?
O art. 15 da Constituição Federal é claro ao dizer que ficam suspensos os direitos políticos no caso de condenação criminal transitada em julgado enquanto durarem seus efeitos, pois limitado o tempo de duração dos efeitos da condenação. No mesmo raciocínio, vem o art. 55 dispondo que perderá o mandato, o Deputado ou Senador que perder ou tiver suspensos os seus direitos políticos, ou que sofrer condenação criminal transitada em julgado:
“Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:
I – que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior;
II – cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar;
III – que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada;
IV – que perder ou tiver suspensos os direitos políticos;
V – quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos nesta Constituição;
VI – que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.
§ 1º – É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas.
§ 2º – Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
§ 3º – Nos casos previstos nos incisos III a V, a perda será declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
§ 4º A renúncia de parlamentar submetido a processo que vise ou possa levar à perda do mandato, nos termos deste artigo, terá seus efeitos suspensos até as deliberações finais de que tratam os §§ 2º e 3º.”
É sabido que o mandato representativo concretiza o laço político-jurídico entre quem elege e quem é eleito; e que o art. 55 da CF outorga competência para o Congresso Nacional para que ele decida, conferindo ampla defesa ao parlamentar que poderá vir a perder seu mandato. Nesse sentido, caso exista uma deliberação em sentido contrário, é eminente a presença do stares decisis et quieta non movere, instituto caracterizador do common law, que possibilita ao juiz a interpretação de forma mais ampliada àquela imposta pela legislação.
O Revisor da presente ação, Ministro Ricardo Lewandovski, ainda traz à baila o art. 92, inciso I, alíneas ‘a’ e ‘b’ do Código Penal, que determina a perda do mandato eletivo nos casos de aplicação de pena privativa de liberdade igual ou superior a 1 (um) ano contra a Administração Pública; ou acima de 4 (quatro) anos, independentemente do bem jurídico violado. Ele afirma que esta disposição é interpretada em desarmonia com a Carta Magna, e remete ao pensamento de Gomes Canotilho, ao dizer que isto se trata de um
“[…] verdadeiro contrassenso lógico e jurídico de interpretar-se a Constituição segundo a lei ordinária, porquanto se incorreria em evidente inconstitucionalidade, reverberando, nesse aspecto, a advertência de juristas alemães que repudiam essa exegese, que subverte a hierarquia normativa, à qual denominam de gesetzeskonformen Verfassungsinterpretation”. (STF, AP 470/MG, fl. 59.673)
E é nesse sentido que ele reitera que não cabe ao Senado Federal ou à Câmara dos Deputados (dependendo se o condenado for Senador ou Deputado Federal, respectivamente) a simples declaração da perda do mandato advinda de condenação criminal. O que deverá ocorrer, neste caso, é uma votação na Casa respectiva para que se delibere acerca da perda ou não do mandato parlamentar. Auro Augusto Caliman (2005, p. 153) também corrobora o entendimento do Min. Ricardo Lewandovski, senão vejamos:
“A perda do mandato, não só dos parlamentares federais, como também dos estaduais e distritais, em decorrência de condenação por infração criminal, não será automática, mediante ato declaratório da Mesa da respectiva Casa Legislativa. Poderá ocorrer, sim, mas somente após soberana decisão do plenário, na votação do projeto de resolução que preveja a perda em razão de condenação criminal. Trata-se de decisão política, não vinculada a nada. Se, em escrutínio secreto, maioria absoluta dos parlamentares da Casa Legislativa decidir aprovar o projeto de resolução que concluiu pela perda de mandato, o mandato estará cassado. Posto a votos e não atingido o quorum de maioria absoluta para aprovação do projeto, o parlamentar continuará investido no mandato e a propositura será considerada rejeitada, pois a simples maioria importa absolvição”. (CALIMAN, 2005, p. 153).
Portanto, de acordo com esta visão legalista, não cabe ao Poder Judiciário deliberar favoravelmente acerca da perda do mandato parlamentar caso o réu seja condenado, bem como não se admite a simples declaração dos efeitos da condenação pelo Legislativo, a fim de que se possa determinar a perda do mandato. O que é possível, nesse modo de pensar, é que, advindo condenação criminal de parlamentar por crime contra a Administração Pública, cabe ao Poder Legislativo providenciar escrutínio secreto para que conclua pela perda do mandato, mediante maioria absoluta, por se tratar o art. 55 da CF de uma exceção à regra geral prevista no art. 15 do mesmo ordenamento.
Por outro caminho, segue o posicionamento de doutrinadores e juízes que acreditam ser o Poder Judiciário o responsável para decidir acerca da perda do mandato dos Deputados Federais e Senadores condenados por crimes contra a Administração Pública. Rodrigo López Zilio (2012) disserta que é possível a decretação da inelegibilidade para o parlamentar condenado criminalmente para 08 (oito) anos além daquele imposto para a execução da pena.
O Revisor da AP 470, Ministro Joaquim Barbosa, revela que as normas incertas nos artigos 15 e 55 da Carta Magna possuem apenas conflito aparente. Aquele parlamentar que sofrer condenação criminal transitada em julgado, a Casa respectiva decidirá acerca da perda do mandato; mas o parlamentar que tiver perdido ou suspenso o seu direito político, caberá à Mesa da Casa respectiva declarar a perda do mandato (STF, 2013, fls. 53.082).
Auro Augusto Caliman, nesse sentido, também deixa claro o seguinte:
“Da análise das normas, conclui-se como especial a hipótese prevista no inciso VI do artigo 55, daí sua superior imperatividade em relação à norma geral de perda dos direitos políticos prevista no inciso IV deste mesmo artigo, combinado com o artigo 15, inciso III. Consequentemente, a decisão da perda do mandato parlamentar será constitutiva quando ocorrer condenação por infração criminal; e declaratória para as demais hipóteses de perda de direitos políticos. (CALIMAN, 2005, p. 152-153)” (grifo nosso)
Sendo assim, de acordo com o Poder Judiciário, cabe a ele dar procedência ou não de ação penal intentada perante ele, e caso sobreveia condenação criminal por crime contra a Administração Pública, deverá a Casa respectiva declarar a suspensão do mandato eletivo, por se tratar de fato objetivo previsto no texto constitucional (vide art. 37, §4º da CF). A Casa respectiva só deliberará acerca da perda ou não do mandato eletivo quando se tratar de condenação criminal de forma genérica, ou seja, outro fato objetivo que não importe improbidade administrativa.
3. CONCLUSÃO
Alexandre de Moraes expõe com propriedade o que objetiva a Constituição Federal quando se tem duas ou mais normas aparentemente conflitantes:
“[…] em face de duas normas constitucionais aparentemente conflitantes (CF, arts. 15, III, e 55, VI), deve-se procurar delimitar o âmbito normativo de cada uma, vislumbrando-se sua razão de existência, finalidade e extensão, para então interpretá-las no sentido de garantir-se a unidade da Constituição e a máxima efetividade de suas previsões.
[…] a razão de existência do art. 55, inciso VI, e § 2º, da Constituição Federal é de garantir ao Congresso Nacional a durabilidade dos mandatos de seus membros, com a finalidade de preservar a independência do Legislativo perante os demais poderes. (MORAES, 2002)” (grifo nosso).
De um lado, fora visualizado que o Poder competente para a deliberação da perda do mandato eletivo de parlamentar condenado é o Legislativo. D’outro, que em se tratando de parlamentar condenado por crime contra a Administração Pública, o Poder competente para a decretação da perda do mandato eletivo é o Judiciário, cabendo apenas ao Legislativo declará-la.
Ora, seria muito conveniente para o Poder Legislativo deliberar acerca da perda de um membro próprio, caso este fosse condenado por delito contra a Administração Pública, podendo incorrer, inclusive, na máxima vedada por nosso ordenamento jurídico: o venire contra factum proprium. O Ministro Luiz Fux tratou com franqueza ao disciplinar acerca da matéria:
“Há, ainda, um argumento teleológico a ser considerado: a sustação do andamento da ação penal, de que trata o art. 53, § 3º, visa a conferir ao Parlamento um eficaz instrumento para evitar que congressistas sejam alvo de perseguições políticas através do aparato judiciário. Em situações que tais, a Casa Legislativa respectiva pode, pelo voto da maioria de seus membros, reconhecer no caso concreto a existência de verdadeiro julgamento de exceção, sustando, incontinenti, o curso da ação penal. Por outro lado, superado in albis o termo ad quem consubstanciado na “decisão final”, resta claro que o Legislativo atestou a lisura do julgamento a que submetido o parlamentar, não havendo qualquer justificativa para que venha a obstar o cumprimento da sentença condenatória eventualmente emanada pelo Judiciário, sob pena de verdadeiro venire contra factum proprium.” (STF, AP 470/MG, fl. 57.196).
O que se pretende, nesse entendimento, é reduzir a aplicabilidade do art. 55, §2º da Constituição Federal, ou seja, só poderá o Legislativo deliberar acerca da perda do mandato eletivo quando se tratar de crime cometido antes da diplomação. Para o crime cometido depois da diplomação, e mais, contra a Administração Pública, cabe a ele apenas declarar a regular produção dos efeitos da condenação. Tudo o que for feito em sentido contrário, poderia ser entendido como autêntico venire contra factum proprium.
Além de todo o exposto, o Estado Democrático de Direito adotado pelo Brasil tem como uma de suas características a Separação dos Poderes. O sistema de freios e contrapesos (checks and balances) é determinante para que um Poder não tenha domínio sobre o outro. Dessa forma, o que se pretende, ao determinar a perda do mandato eletivo pelo Poder Judiciário não é apenas reforçar seu caráter julgador, mas também evitar que o Poder Legislativo crie uma instância destoante de poder, incompatível com esse sistema.
Informações Sobre os Autores
Fabiola Sayonara Ferreira de Araújo
Advogada pós-graduada em direito Processual pela Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES
Gláucia Maria Flávia Soares do Carmo
Pós-graduanda pela Universidade Estadual de Montes Claros. Advogada
Paula Carvalho do Amaral
Pós-graduanda pela Universidade Estadual de Montes Claros. Advogada