Conflito entre princípios fundamentais na recusa da testemunha de jeová em realizar tratamento hemoterápico

Resumo: O presente estudo discute o confronto ocorrido entre o direito à vida e o direito à liberdade religiosa, existente quando o seguidor da religião Testemunhas de Jeová, em tratamento médico e sob fundado risco de morte, se recusa a realizar tratamento hemoterápico. Tal recusa gera discussões éticas, sociais, biológicas e jurídicas, ao tempo em que ponderar a responsabilidade médica em função de ambos os direitos se torna tarefa difícil. Enfatizando casos em que menores e incapazes são de origem seguidora de tal religião, e expressam sua recusa por meio de seus representantes, serão expostos os possíveis posicionamentos a serem tomados pelos médicos. Para que tal compreensão sobre o posicionamento da Testemunha de Jeová seja possível, será explanada a história de tal religião e os motivos que os levaram a acreditar na orientação divina para o não recebimento de sangue alheio, bem como os tratamentos alternativos já em utilização, relatando a jurisprudência atual e defendendo a ponderação de interesses.

Palavras-chave: Princípios Fundamentais. Direito à vida. Liberdade religiosa. Testemunhas de Jeová. Transfusão de sangue.

Abstract: The present study discusses the confrontation between the right to life and the right to religious freedom that exists when the follower of the Jehovah's Witnesses sect, in medical treatment and under a well-founded risk of death, refuses to perform hemotherapy. Such refusal leads to ethical, social, biological and legal discussions, while consideration of medical responsibility for both rights becomes a difficult task. Emphasizing cases in which minors and incapacitates are of follower origin of such religion, and express their refusal through their representatives, will be exposed the possible positions to be taken by the doctors. In order for such an understanding of Jehovah's Witness positioning to be possible, the history of such a religion will be explained and the motives that led them to believe in the divine guidance for non-receipt of the blood of others, as well as alternative treatments already in use, the current jurisprudence and defending the balance of interests.

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Key words: Fundamental Principles. Right to life. Religious freedom. Jehovah's Witnesses. Blood transfusion.

Sumário: 1 Introdução; 2 Origem e funções dos direitos fundamentais; 2.1 Distinção entre direitos e garantias; 2.2 Limitações e conflitos; 2.3 Direito à vida e Direito à liberdade de crença religiosa; 2.4 A História das Testemunhas de Jeová ; 2.5 Testemunhas de Jeová e o sangue; 3 A colisão entre o direito à vida e a liberdade religiosa; 3.1 A recusa ao recebimento de sangue alheio; 3.2 Dos tratamentos substitutivos; 3.3 Da responsabilidade médica em proteger a vida; 3.4 Dos entendimentos jurisprudenciais; 4 Conclusão; Referências.

1. INTRODUÇÃO

A recusa do paciente médico seguidor da religião Testemunha de Jeová a submeter-se a transfusão de sangue, ainda que diante de eminente risco de morte, abre um leque de discussões sociais e ideológicas envolvendo direitos fundamentais como vida, liberdade religiosa e dignidade, todos protegidos constitucionalmente.

Inicialmente, faz-se necessário compreender que as Testemunhas de Jeová entendem o sangue como sagrado interpretando a proibição de sua transfusão nos textos bíblicos de Gênesis 9: “3. Tudo quanto se move, que é vivente, será para vosso mantimento; tudo vos tenho dado como a erva verde.
4. A carne, porém, com sua vida, isto é, com seu sangue, não comereis.”; Livro de Levítico 17:10: “10. E qualquer homem da casa de Israel, ou de seus estrangeiros que peregrinam entre ele, que comer algum sangue, contra aquela alma porei a minha face, e a extirparei de seu povo”;
Atos 15 : 28, 29: "28. Na verdade pareceu bem ao Espírito Santo e a nós, não vos impor mais encargo algum, senão estas coisas necessárias: 29.Que vos abstenhais das coisas sacrificadas aos ídolos, e do sangue, e da carne sufocada, e da fornicação, das quais coisas bem fazeis se vos guardardes. Bem vos vá."

Diante de tais escritos as Testemunhas de Jeová acreditam que Deus os proibiu de receber sangue alheio e aquele que o fizer será impuro e perderá seu valor.[i]

É importante relembrar que a Bíblia embora inicialmente escrita em hebraico e grego foi, durante toda Idade Média, transcrita para o latim para que apenas o clero a pudesse ler. Contudo, por iniciativa de Martin Lutero, o qual dedicou a vida ao estudo do livro, a mesma foi traduzida de forma literal para o alemão, causando tal compreensão a parte da população que começara a lê-la.

Alguns autores justificam esta interpretação pelo despreparo teológico da população, contudo, deve ser respeitado por se tratar de um dogma religioso.

É importante ressaltar que a recusa não se funda em desejo de renúncia à vida, mas, de um desejo de um tratamento alternativo, os quais já existem em alguns casos, conforme será demonstrado adiante.

Ocorre que, a transfusão sanguínea ainda se faz necessária em grande parte dos casos, e na ânsia do médico em manter o paciente vivo se cria o conflito entre liberdade religiosa e direito à vida.

Muito se discute sobre qual direito deve prevalecer, entendendo a doutrina que no caso de inexistência de potencial risco de morte a vontade do paciente deve ser respeitada, permanecendo a autonomia da vontade e o direito fundamental à liberdade religiosa.

Em contrapartida, no caso de incapazes e pessoas em grave risco, deveria prevalecer a responsabilidade médica em resguardar o direito à vida, uma vez que este é regido pela inviolabilidade e irrenunciabilidade.

A recusa na transfusão de sangue é questão delicada, juridicamente falando, uma vez que coloca de um lado a obrigação legal do médico e o direito à vida e de outro lado da balança o direito à liberdade religiosa.

Sabendo da responsabilidade do Estado em preservar a vida de seus cidadãos surge a necessidade de prestação jurisdicional para interpretação do caso concreto.

O presente trabalho utiliza-se de pesquisa jurídico-teórica e de aspectos ideológicos para o estudo do tema "Conflito de princípios fundamentais na recusa de transfusão de sangue", demonstrando a jurisprudência atual e o posicionamento dos profissionais da medicina, analisando o problema criado diante de tal recusa.

Fazendo uso do raciocínio indutivo será utilizado para o fechamento de conclusões gerais, com base nas diversas correntes.

Dividido em três capítulos, aonde o primeiro discorre sobre a conceituação dos direitos fundamentais, enfatizando o direito à vida e à liberdade religiosa, o segundo capítulo trata do estudo da religião Testemunhas de Jeová e o terceiro faz estudo da colisão do direito à vida e a liberdade religiosa, tendo incluso a explanação sobre a responsabilidade médica em salvar vidas.

2. ORIGEM E FUNÇÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Os direitos e garantias fundamentais são tratados no Título II da Constituição da república (arts. 5º a 17) são destinados às pessoas naturais e possuem origem na Carta Magna inglesa de 1215, a qual assegurava poder político aos barões mediante a limitação dos poderes do rei.

A positivação dos direitos fundamentais deu-se a partir da Revolução Francesa com a Declaração dos Direitos do Homem em 1789, e das declarações de direitos formulados pelos Estados Americanos, ao firmarem sua independência em relação à Inglaterra em 1776.

O doutrinador Marcelo Alexandrino ensina que os primeiros direitos fundamentais surgiram da necessidade de limite aos atos praticados pelo Estado, ou seja, criaram uma obrigação de não fazer ao Estado em respeito à liberdade individual.

A respeito das funções dos direitos fundamentais Marcelo Alexandrino professa:

“Os direitos fundamentais desempenham as mais variadas funções na ordem jurídica, a depender do seu campo específico de proteção. Com efeito, os direitos fundamentais ora asseguram aos indivíduos o direito de defesa frente à ingerência abusiva do Estado, ora legitimam a exigência de atuação positiva do Estado e, ainda, podem assegurar ao indivíduo o chamado direito de participação". (ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional descomplicado. 2011.)

Os direitos fundamentais se constituem, pela doutrina e constituição, como o direito das pessoas em face do Estado, sendo também classificados como direitos de terceira geração, como destaca Alexandre de Morais, in verbis:

“Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade.” (MORAIS, Alexandre de. Direito Constitucional / Alexandre de Morais. – 23. ed.)

Levando-se em conta o momento de seu surgimento e reconhecimento os direitos fundamentais são classificados em gerações, sendo os relativos à liberdade individual classificados como de primeira geração, os de igualdade material classificados como de segunda geração, a solidariedade e fraternidade como de terceira geração, e a democracia como direito de quarta geração, conforme defende o doutrinador Paulo Bonavides[ii].

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1.1. Distinção entre direitos e garantias

Importante demonstrar a existência de diferenças entre direitos e garantias, conforme ensina Marcelo Alexandrino:

“Os direitos fundamentais são o bem em si mesmo considerados, declarados como tais nos textos constitucionais. As garantias fundamentais são estabelecidas pelo texto constitucional como instrumento de proteção aos direitos fundamentais. As garantias possibilitam que os indivíduos façam valer, frente ao Estado, os seus direitos fundamentais”. (ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional descomplicado. 2011)

Sendo assim, o direito é o bem abstrato enquanto a garantia é o exercício desta proteção constitucional.

1.2. Limitações e conflitos

Os direitos e garantias não possuem caráter absoluto, uma vez que na proteção de outros valores constitucionalmente protegidos podem ser reprimidos, assim, segundo Marcelo Alexandrino, normas infraconstitucionais podem impor restrições ao exercício de direito fundamental, sendo chamada de teria dos limites.

Acerca da colisão entre os direitos fundamentais, Alexandre de Moraes ensina:

“No caso de conflito entre dois ou mais direitos fundamentais, o intérprete deverá lançar mão do princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual, sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com suas finalidade precípuas.” (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 2014)

Ou seja, na ocorrência de um conflito de interesse cada uma das partes invoca um direito fundamental em sua proteção e por não haver hierarquia entre estes deverá o julgador realizar juízo de ponderação, considerando o caso concreto.

1.3. Direito à vida e direito à liberdade de crença religiosa

O direito à vida é expresso no artigo 5º da Carta Magna, do qual todos os demais direitos dependem.

É protegido de forma geral e conforme ensina Marcelo Alexandrino[iii] possui duplo aspecto, um sobre o prisma biológico e o outro sobre aspecto material/espiritual.

Já a liberdade religiosa não possui conceito único, conforme ensina o doutrinador José Afonso da Silva[iv]: “A liberdade de religião engloba, na verdade, três tipos distintos, porém intrinsecamente relacionados de liberdades: a liberdade de crença; a liberdade de culto; e a liberdade de organização religiosa”.

Quanto à liberdade de crença, José Afonso da Silva professa que ela compreende a liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar de religião, e também a liberdade de não aderir a religião alguma, bem como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo. (.)

No que tange à liberdade de culto, José Afonso da Silva explica:

“(…) a religião não é apenas sentimento sagrado puro. Não se realiza na simples contemplação do ente sagrado, não é simples adoração a Deus. Ao contrário, ao lado de um corpo de doutrina, sua característica básica se exterioriza na prática dos ritos, no culto, com suas cerimônias, manifestações, reuniões, fidelidades aos hábitos, às tradições, na forma indicada pela religião escolhida.”. (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 1999).

A Constituição assegura ainda, a liberdade de consciência ou de crença, sendo a primeira de foro íntimo não religiosa e a segunda voltada para a religião. Acerca disso, Kildare Gonçalves Carvalho define objeção de consciência como:

“A objeção de consciência é a recusa ao cumprimento dos deveres incompatíveis com as convicções morais, filosófica e políticas, e se fundamenta na liberdade de consciência e de crença, confundindo-se com a dignidade pessoal. O Estado não tem o poder de ingerência com os assuntos privativos da consciência individual, não alcançando, portanto, o foro intimo e a privacidade da pessoa’. (CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional / Kildare Gonçalves Carvalho. – 2007).

A escusa de consciência é o conflito de uma obrigação com uma crença religiosa, seja por obrigação sanitária ou tratamento médico, como explica Kildare:

“É a recusa ao tratamento médico e a tratamentos sanitários obrigatórios impostos pelo estado para prevenir determinada enfermidade. O Código de Ética Médica, referindo-se aos direitos do paciente, em seu art. 48 veda ao médico exercer sua autoridade de maneira a limitar o direito do paciente de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem estar. E pelo art. 51, tem o paciente o direito de recusar tratamento para atender às suas convicções, em que o médico é proibido de: …b) efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida, notando-se que nesses casos há uma hierarquia de valores entre o dever do médico e o direito do paciente, devendo-se salientar que a vida vale mais que a crença religiosa.” (CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional / Kildare Gonçalves Carvalho. 2007)

Conforme dito anteriormente a liberdade religiosa, como todos os direitos fundamentais, não é ilimitada.

1.4. A história das Testemunhas de Jeová

A seita foi fundada por Charles Taze Russell, em 1872, em razão de sua dificuldade em aceitar a condenação eterna ao inferno. Ele defendia a inexistência de punição permanene, bem como a deidade de Cristo e o Espírito Santo. 

Em 1870, organizou uma classe bíblica em Pittsburgh iniciando a defesa do dogma religioso. E em 1879, co-publicou a revista "The Herald of the Morning", tomando o controle da publicação em 1884 e dando-lhe o novo nome de "The Watchtower Announcing Jehovah's Kingdom", A Sentinela Anuncia o Reino de Jeová, e fundou a "Zion's Watch Tower Tract Society", agora conhecida como "Watch Tower Bible and Tract Society", Sociedade Bíblica Torre de Vigia.

A primeira edição da revista era de 6.000 cópias mensais, enquanto atualmente imprime mais 100.000 livros e 800.000 cópias de duas revistas, diariamente.

Depois da morte de Russel, em 31 outubro de 1916, um advogado do Missouri chamado Joseph Franklin Rutherford recebeu o controle da Sociedade Torre de Vigia que era conhecida, então, como Associação Bíblica Dawn.

Em 1931, ele mudou o nome da organização para "As Testemunhas de Jeová" tendo hoje mais de 7 milhões de membros em todo o mundo.

As Testemunhas de Jeová acreditam que a doutrina da Trindade é de origem pagã e por isto possui parte com o diabo.

Em termos Teológicos a única autoridade religiosa reconhecida pelas Testemunhas de Jeová é a Bíblia, bem como a versão utilizada é a traduzida pela Novo Mundo Escrituras, publicada pela própria seita, sendo impedidos, por seu código de ética de realizar leituras ou estudos a qualquer outra forma de entendimento dogmático.

Para a Seita a Religião é vista como modo de vida, e a bíblia possui aplicação prática e obrigatória da qual retiram todos os possíveis aconselhamentos e proibições constantes em seus códigos.

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Sendo assim, seguimos para o ponto principal para compreensão do presente trabalho, o motivo da recusa do uso do sangue em tratamentos médicos, ainda que sob iminente risco de morte.

1.5. Testemunhas de Jeová e o sangue

Para as testemunhas de Jeová o sangue é vida, e vida sendo somente pode ser dado por Deus, tal dogma é baseando em passagens bíblicas citadas no início do trabalho (Gênesis 4:10; 1:29; 9:34; Levítico 17:13-14; Atos 15:28, 29; 21:25) e assim sendo, abster-se dele é tão sagrado quanto evitar a idolatria e a imoralidade sexual.

Eles acreditam que podem comer carne animal, contudo, jamais ingerir seu sangue, nisto incluem a transfusão de sangue e o descumprimento de tal proibição leva o indivíduo a ser expulso da comunidade, tornando-se indigno de conviver com qualquer participante da seita, não se sendo permitido sequer contato com os familiares convertidos.

Para as Testemunhas de Jeová o único uso correto do sangue era feito pelos israelitas como forma de penitência, ou seja, existindo um pecado eles podiam obter o perdão oferecendo um animal e colocando parte do seu sangue sobre o altar. Contudo, na atualidade não oferecem nenhum tipo de sacrifício.

Quanto a forma de solucionar a necessidade de transfusão de sangue eles exaltam a vontade de viver, contudo, sem utilizar de alternativas as quais incluem tratamentos com sangue, uma vez que acreditam que se submeterem a estes perderam a vida eterna.

2. A COLISÃO ENTRE O DIREITO À VIDA LIBERDADE RELIGIOSA

2.1. A recusa ao recebimento de sangue alheio

Uma vez que o paciente se recusa a realizar a transfusão de sangue alegando crença religiosa inicia-se o conflito entre o direito à liberdade religiosa e o direito à vida.

Enquanto a doutrina se divide sobre o assinto, há os que veem a recusa embasada em um dogma religioso que deve ser respeitada, enquanto outra corrente entende o direito à vida como irrenunciável, na prática, a não aceitação ao tratamento hemoterápico pode resultar na morte do paciente, neste sentido explana Fábio Dantas de Oliveira:

“Em caso de situação emergente o médico pode solucionar de acordo com sua ética ou a solução pode ser dada pela justiça. Entretanto, pode o médico conseguir uma liminar que o autorize a realizar os tratamentos médicos devidos. De acordo com o artigo 2º do Conselho Federal de Medicina, independentemente do consentimento do enfermo ou dos seus representantes legais, o médico pode praticar a transfusão sangüínea, em caso grave onde a vida do paciente está em risco.” (OLIVEIRA, Fábio Dantas de. Aspectos da liberdade religiosa no ordenamento jurídico brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2966, 15 ago. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/19770>. Acesso em: 08 nov. 2014.)

A defesa para a recusa da transfusão de sangue é em primeiro ponto baseada no direito do indivíduo a se submeter a tratamento alternativo, uma vez que com o avanço da medicina, em determinados casos, é possível fazer uso de outros meios. Contudo, não existem alternativas para todos os casos, como ocorre no caso de uma grande perda de sangue.

Em segundo ponto tal corrente defende a recusa trazendo à tona o princípio da dignidade da pessoa humana, pois uma vez que a Testemunha de Jeová que receber a transfusão sanguínea não será mais aceita em seu meio social por ter se tornado um indivíduo impuro.

Pelo que, na ausência de risco de morte, a vontade do paciente deve ser respeitada, conforme preceitua o próprio Conselho Federal de Medicina, no parecer nº 21/80 que deu origem a resolução 1.021/80:

“A transfusão de sangue teria precisa indicação e seria a terapêutica mais segura para a melhora ou cura do paciente. Não haveria, contudo, qualquer perigo imediato para a vida do paciente se ela deixasse de ser praticada. Nessas condições, deveria o médico atender o pedido de seu paciente, abstendo-se de realizar a transfusão de sangue”. (CRM resolução 1.021/80)

No mesmo sentido, Celso Ribeiro Bastos explica:

“[…] o paciente tem direito de recusar determinado tratamento médico, inclusive a transfusão de sangue, com fundamento no art. 5º, II, da CF. Por este dispositivo, fica certo que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei (princípio da legalidade).[…]” (TOKARSKI, Mariane Cristine. Liberdade e vida: a recusa à transfusão de sangue à luz dos direitos fundamentais. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n.891, 11 dez. 2005. Disponível em: < http:// www.jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7711>. Acessado em 15 de out. de 2014)

No entanto, havendo risco de morte para o paciente o Conselho Federal de medicina orienta:

“O paciente se encontra em iminente perigo de morte e a transfusão é a terapêutica indispensável para salvá-lo. Em tais condições, não deverá o médico deixar de praticá-la apesar da oposição do paciente ou de seus responsáveis em permiti-la.” (CRM resolução 1.021/80)

O Tribunal de Alçada de São Paulo em acórdão publicado também segue o mesmo sentido:

“A vida humana é um bem coletivo, que interessa mais à sociedade que ao indivíduo, egoisticamente, e a lei vigente exerce opção axiológica pela vida e pela saúde, inadmitindo a exposição desses valores primordiais na expressão literal do texto, a perigo direto e iminente […] Uma vez comprovado efetivo perigo para a vítima, não cometeria delito nenhum o médico que, mesmo contrariando a vontade expressa dos por ela responsáveis, à mesma tivesse ministrado transfusão de sangue”. (LEME, Ana Carolina Reis Paes. Transfusão de sangue em testemunhas de Jeová. A colisão de direitos fundamentais. Jus Navigandi, Teresina, ano 9 , n. 632, 1 abr. 2005. Disponível em: <http://www. jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6545> Acessado em 12 de out. 2014).

Há ainda, uma terceira corrente aonde é defendida o direito das Testemunhas de Jeová, de recusarem o tratamento com sangue, contudo, tal posicionamento não parece sensato e conforme sabiamente afirma Alexandre de Morais: ”O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos”.

A liberdade religiosa apenas deve prevalecer quando o for capaz, e não correndo risco de morte manifestar de forma expressa a recusa para qualquer tratamento que envolva sangue.

Entretanto, em caso de risco iminente, o médico como garantidor da proteção à vida deve realizar todos os procedimentos necessários para que o mesmo mantenha-se vivo.

2.2. Dos tratamentos substitutivos

Os tratamentos alternativos[v] às transfusões de sangue são utilizados para encher o volume de fluido e transportar o oxigênio e outros gases ao sistema circulatório.

Uma vez que tais tratamentos não executam todas as funções do sangue, como, os globulos vermelhos que transportam o oxigênio, os glóbulos brancos que defendem o organismo infecções bacterianas, as plaquetas que promovem coagulação, e as proteínas do plasma que executam várias outras funções. Enquanto os tratamentos alternativos são, na verdade, expansores do volume e e transportadores de oxigênio.

O aumento do volume sanguíneo por expansores faz-se com que um paciente tolere níveis baixos de hemoglobina.

Fluidos que transportam oxigênio são usados como expansores de volume. Soluções cristalóides e soluções colóides podem ser variados, dentre eles cita-se: hidroxietila de amido[]; Lactato de ringer e Ringer com lactato de sódio ou Solução de Hartmann; uso de soluções salinas (soro fisiológico a 0,9%), Dextrose (5% diluído); Cristaloides e Colóides baseados em Haemaccel, e Gelofusin.[]

Além de tecnicas como: []Uso de bisturis elétricos para cirurgias mais simples; Uso de bisturis ultrassônicos para cirurgias complexas; Haemmacell (solução gelatinosa que substitui até 1000 ml de plasma); Eritropoietina[] ou EPO – hormônio produzido nos rins que estimula a medula óssea a produzir hemácias em ritmo acelerado; Máquinas de recuperação sanguínea[] que recuperam o sangue perdido durante cirurgias ou traumas; Instrumentos cirúrgicos que cortam e cauterizam os vasos sanguíneos ou grandes partes de tecido; Transfusão autóloga – Existem dois tipos: 1) O paciente retira seu próprio sangue alguns dias antes da cirurgia e esse sangue fica guardado em bolsas até que seja necessário utilizá-lo durante a cirurgia programada. 2)- No outro tipo, o sangue é retirado no início da cirurgia e armazenado, sendo substituído por soluções cristalóides ou colóides como expansores do volume do plasma. Ocorrendo algum sangramento ele obviamente será menor, já que estará diluído. Ao final da cirurgia o sangue é reposto.

Contudo, importante salientar que tais tratamentos não abrangem todos os casos, como ocorre em perda de grande quantidade de sangue.

2.3. Da responsabilidade médica em proteger a vida

A relação médico-paciente é pautada na informação. Conforme salienta Gustavo Tepedino, in verbis:

“O dever de informação diz com os riscos do tratamento, a ponderação quanto às vantagens e às desvantagens da hospitalização ou das diversas técnicas a serem empregadas, bem como a revelação quanto aos prognósticos e ao quadro clínico e cirúrgico, salvo quando tal informação possa afetar psicologicamente o paciente.” (TEPEDINO, Gustavo. A responsabilidade médica na experiência brasileira contemporânea. Porto Alegre: Revista Jurídica, Vol. 311. 2003)

Segundo o artigo 59 do Código de Ética Médica (Resolução do Conselho Federal de Medicina nº. 1.246, de 08 de janeiro de 1988) o médico não pode “deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta ao mesmo possa provocar-lhe dano, devendo, nesse caso, a comunicação ser feita ao seu responsável legal”.

Uma vez que é através desta que o paciente decide “livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida”.[vi]

Todavia, se o paciente se encontrar em iminente risco e assim impossibilitado de expressar sua vontade, o médico deve agir imediatamente visando salvaguardar a vida do mesmo. Ruy Rosado de Aguiar Júnior observa:

“em certas circunstâncias, a inexistência do assentimento é evidente, como no caso do surgimento de um fato novo, no desenrolar da cirurgia. Se possível suspender o ato, sem risco, para submeter à decisão ao paciente em vista de novos exames do material encontrado, essa a providência é recomendada”. (AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. Responsabilidade civil do Médico: Revista dos Tribunais, vol. 718)

No caso das Testemunhas de Jeová, o Conselho Federal de Medicina determina que o Médico deve seguir o Código de Ética, o qual determina, que não havendo risco iminente de morte a vontade do paciente deve prevalecer, caso contrário o médico procederá à transfusão de sangue. Conforme se lê:

“RESOLUÇÃO CFM nº 1.021/80 O CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA,
CONSIDERANDO o caso de paciente que, por motivos diversos, inclusive os de ordem religiosa, recusam a transfusão de sangue;

RESOLVE:

Adotar os fundamentos do anexo PARECER, como interpretação autêntica dos dispositivos deontológicos referentes a recusa em permitir a transfusão de sangue, em casos de iminente perigo de vida.

PARECER PROC. CFM nº 21/80

O problema criado, para o médico, pela recusa dos adeptos da Testemunha de Jeová em permitir a transfusão sangüínea, deverá ser encarada sob duas circunstâncias: 1 – A transfusão de sangue teria precisa indicação e seria a terapêutica mais rápida e segura para a melhora ou cura do paciente.Não haveria, contudo, qualquer perigo imediato para a vida do paciente se ela deixasse de ser praticada. Nessas condições, deveria o médico atender o pedido de seu paciente, abstendo-se de realizar a transfusão de sangue. Não poderá o médico proceder de modo contrário, pois tal lhe é vedado pelo disposto no artigo 32, letra "f" do Código de Ética Médica: "Não é permitido ao médico:

f) exercer sua autoridade de maneira a limitar o direito do paciente resolver sobre sua pessoa e seu bem-estar".

2 – O paciente se encontra em iminente perigo de vida e a transfusão de sangue é a terapêutica indispensável para salvá-lo.

Em tais condições, não deverá o médico deixar de praticá-la apesar da oposição do paciente ou de seus responsáveis em permiti-la.
O médico deverá sempre orientar sua conduta profissional pelas determinações de seu Código.
No caso, o Código de Ética Médica assim prescreve:
"Artigo 1º – A medicina é uma profissão que tem por fim cuidar da saúde do homem, sem preocupações de ordem religiosa…"
"Artigo 30 – O alvo de toda a atenção do médico é o doente, em benefício do qual deverá agir com o máximo de zêlo e melhor de sua capacidade profissional".
"Artigo 19 – O médico, salvo o caso de "iminente perigo de vida", não praticará intervenção cirúrgica sem o prévio consentimento tácito ou explícito do paciente e, tratando-se de menor incapaz, de seu representante legal".
Por outro lado, ao praticar a transfusão de sangue, na circunstância em causa, não estará o médico violando o direito do paciente.
Realmente, a Constituição Federal determina em seu artigo 153, Parágrafo 2º que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei".
Aquele que violar esse direito cairá nas sanções do Código Penal quando este trata dos crimes contra a liberdade pessoal e em seu artigo 146 preconiza:
"Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda".
Contudo, o próprio Código Penal no parágrafo 3º desse mesmo artigo 146, declara:
"Não se compreendem na disposição deste artigo:
I – a intervenção médica ou cirúrgica sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida".
A recusa do paciente em receber a transfusão sangüínea, salvadora de sua vida, poderia, ainda, ser encarada como suicídio. Nesse caso, o médico, ao aplicar a transfusão, não estaria violando a liberdade pessoal, pois o mesmo parágrafo 3º do artigo 146, agora no inciso II, dispõe que não se compreende, também, nas determinações deste artigo: "a coação exercida para impedir o suicídio".

CONCLUSÃO

Em caso de haver recusa em permitir a transfusão de sangue, o médico, obedecendo a seu Código de Ética Médica, deverá observar a seguinte conduta:
1º – Se não houver iminente perigo de vida, o médico respeitará a vontade do paciente ou de seus responsáveis.

2º – Se houver iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue, independentemente de consentimento do paciente ou de seus responsáveis.”

Conforme demonstrado o entendimento do Conselho Federal de Medicina há a duplicidade de atitude a ser tomada pelo médico dependendo da análise do caso concreto.

2.4. Dos entendimentos jurisprudenciais

A maior parte dos tribunais brasileiros, ao longo dos anos, tem entendido que o direito à vida é bem primário, do qual parte todos os demais direitos, e assim sendo, deve ser preservado. Conforme se pode ver nos julgados abaixo:

“PROCESSO CIVIL. CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TUTELA ANTECIPADA. CASO DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. PACIENTE EM TRATAMENTO QUIMIOTERÁPICO. TRANSFUSÃO DE SANGUE. DIREITO À VIDA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E DE CRENÇA. – No contexto do confronto entre o postulado da dignidade humana, o direito à vida, à liberdade de consciência e de crença, é possível que aquele que professa a religião denominada Testemunhas de Jeová não seja judicialmente compelido pelo Estado a realizar transfusão de sangue em tratamento quimioterápico, especialmente quando existem outras técnicas alternativas a serem exauridas para a preservação do sistema imunológico. – Hipótese na qual o paciente é pessoa lúcida, capaz e tem condições de autodeterminar-se, estando em alta hospitalar.

CAUTELAR. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. NÃO CABE AO PODER JUDICIÁRIO, NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO, AUTORIZAR OU ORDENAR TRATAMENTO MÉDICO-CIRÚRGICOS E/OU HOSPITALARES, SALVO CASOS EXCEPCIONALÍSSIMOS E SALVO QUANDO ENVOLVIDOS OS INTERESSES DE MENORES. SE IMINENTE O PERIGO DE VIDA, É DIREITO E DEVER DO MÉDICO EMPREGAR TODOS OS TRATAMENTOS, INCLUSIVE CIRÚRGICOS, PARA SALVAR O PACIENTE, MESMO CONTRA A VONTADE DESTE, E DE SEUS FAMILIARES E DE QUEM QUER QUE SEJA, AINDA QUE A OPOSIÇÃO SEJA DITADA POR MOTIVOS RELIGIOSOS. IMPORTA AO MÉDICO E AO HOSPITAL E DEMONSTRAR QUE UTILIZARAM A CIÊNCIA E A TÉCNICA APOIADAS EM SÉRIA LITERATURA MÉDICA, MESMO QUE HAJA DIVERGÊNCIAS QUANTO AO MELHOR TRATAMENTO. O JUDICIÁRIO NÃO SERVE PARA DIMINUIR OS RISCOS DA PROFISSÃO MÉDICA OU DA ATIVIDADE HOSPITALAR. SE TRANSFUSÃO DE SANGUE FOR TIDA COMO IMPRESCINDÍVEL, CONFORME SÓLIDA LITERATURA MÉDICO-CIENTÍFICA (NÃO IMPORTANDO NATURAIS DIVERGÊNCIAS), DEVE SER CONCRETIZADA, SE PARA SALVAR A VIDA DO PACIENTE, MESMO CONTRA A VONTADE DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ, MAS DESDE QUE HAJA URGÊNCIA E PERIGO IMINENTE DE VIDA (ART. 146, § 3º, INC. I, DO CÓDIGO PENAL). CASO CONCRETO EM QUE NÃO SE VERIFICAVA TAL URGÊNCIA. O DIREITO À VIDA ANTECEDE O DIREITO À LIBERDADE, AQUI INCLUÍDA A LIBERDADE DE RELIGIÃO; É FALÁCIA ARGUMENTAR COM OS QUE MORREM PELA LIBERDADE POIS, AÍ SE TRATA DE CONTEXTO FÁTICO TOTALMENTE DIVERSO. NÃO CONSTA QUE MORTO POSSA SER LIVRE OU LUTAR POR SUA LIBERDADE. HÁ PRINCÍPIOS GERAIS DE ÉTICA E DE DIREITO, QUE ALIÁS NORTEIAM A CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, QUE PRECISAM SE SOBREPOR AS ESPECIFICIDADES CULTURAIS E RELIGIOSAS; SOB PENA DE SE HOMOLOGAREM AS MAIORES BRUTALIDADES; ENTRE ELES ESTÃO OS PRINCÍPIOS QUE RESGUARDAM OS DIREITOS FUNDAMENTAIS RELACIONADOS COM A VIDA E A DIGNIDADE HUMANAS. RELIGIÕES DEVEM PRESERVAR A VIDA E NÃO EXTERMINÁ-LA.” (Apelação Cível Nº 595000373, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Gischkow Pereira, Julgado em 28/03/1995)

Em 2007, no no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, foi prolatado que é dever do médico zelar pela vida de seu paciente, no entanto, relatou-se que o hospital carecia de interesse processual para demandar em juízo:

“APELAÇÃO CÍVEL. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. RECUSA DE TRATAMENTO. INTERESSE EM AGIR. Carece de interesse processual o hospital ao ajuizar demanda no intuito de obter provimento jurisdicional que determine à paciente que se submeta à transfusão de sangue. Não há necessidade de intervenção judicial, pois o profissional de saúde tem o dever de, havendo iminente perigo de vida, empreender todas as diligências necessárias ao tratamento da paciente, independentemente do consentimento dela ou de seus familiares. Recurso desprovido”. (Apelação Cível Nº 70020868162, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Umberto Guaspari Sudbrack, Julgado em 22/08/2007)

Não obstante, há posicionamentos em favor da prevalência da liberdade religiosa e da dignidade da pessoa humana[vii], conforme ocorreu no caso de um paciente em tratamento quimioterápico e de outro o qual se submeteria a procedimento cirúrgico com risco de hemorragia:

“EMENTA: PROCESSO CIVIL. CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TUTELA ANTECIPADA. CASO DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. PACIENTE EM TRATAMENTO QUIMIOTERÁPICO. TRANSFUSÃO DE SANGUE. DIREITO À VIDA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E DE CRENÇA. – No contexto do confronto entre o postulado da dignidade humana, o direito à vida, à liberdade de consciência e de crença, é possível que aquele que professa a religião denominada Testemunhas de Jeová não seja judicialmente compelido pelo Estado a realizar transfusão de sangue em tratamento quimioterápico, especialmente quando existem outras técnicas alternativas a serem exauridas para a preservação do sistema imunológico. – Hipótese na qual o paciente é pessoa lúcida, capaz e tem condições de autodeterminar-se, estando em alta hospitalar”. (Agravo de Instrumento 1.0701.07.191519-6/001, Relator: Des. Alberto Vilas Boas, 1ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 14/08/2007, publicação da súmula em 04/09/2007).
“EMENTA: TESTEMUNHA DE JEOVÁ – PROCEDIMENTO CIRÚRGICO COM POSSIBILIDADE DE TRANSFUSÃO DE SANGUE – EXISTÊNCIA DE TÉCNICA ALTERNATIVA – TRATAMENTO FORA DO DOMICÍLIO – RECUSA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA – DIREITO À SAÚDE – DEVER DO ESTADO – RESPEITO À LIBERDADE RELIGIOSA – PRINCÍPIO DA ISONOMIA – OBRIGAÇÃO DE FAZER – LIMINAR CONCEDIDA – RECURSO PROVIDO. Havendo alternativa ao procedimento cirúrgico tradicional, não pode o Estado recusar o Tratamento Fora do Domicílio (TFD) quando ele se apresenta como única via que vai ao encontro da crença religiosa do paciente. A liberdade de crença, consagrada no texto constitucional não se resume à liberdade de culto, à manifestação exterior da fé do homem, mas também de orientar-se e seguir os preceitos dela. Não cabe à administração pública avaliar e julgar valores religiosos, mas respeitá-los. A inclinação de religiosidade é direito de cada um, que deve ser precatado de todas as formas de discriminação. Se por motivos religiosos a transfusão de sangue apresenta-se como obstáculo intransponível à submissão do recorrente à cirurgia tradicional, deve o Estado disponibilizar recursos para que o procedimento se dê por meio de técnica que dispense-na, quando na unidade territorial não haja profissional credenciado a fazê-la. O princípio da isonomia não se opõe a uma diversa proteção das desigualdades naturais de cada um. Se o Sistema Único de Saúde do Estado de Mato Grosso não dispõe de profissional com domínio da técnica que afaste o risco de transfusão de sangue em cirurgia cardíaca, deve propiciar meios para que o procedimento se verifique fora do domicílio (TFD), preservando, tanto quanto possível, a crença religiosa do paciente”. (TJ-MT, 5ª Câm. Civ., Ag 22395/06, rel. Des. Sebastião de Arruda Almeida, j,31.5.2006).

Conforme foi exposto, a recusa do Testemunha de Jeová busca guarida na inviolabilidade à liberdade de consciência e de crença, na autonomia da vontade e nos princípios da dignidade da pessoa humana.

Todavia, para solução mais benéfica, em razão da colisão de direitos, é necessário a análise das peculiaridades do caso concreto.

CONCLUSÃO

Conforme exposto, conclui-se que a recusa da Testemunha de Jeová em se submeter a tratamento hemoterápico gera um conflito entre os princípios fundamentais, quais sejam, direito à vida e liberdade religiosa, fazendo-se necessário o balanceamento dos mesmos para que se alcance um resultado constitucionalmente desejado.

Foi demonstrado a inexistência de hierarquia entre tais direitos, bem como a inexistência de um direito absoluto em nosso ordenamento jurídico, bem como a inexistência de norma proibitiva de recusa à transfusão de sangue.

Se viu que a maior parte da doutrina, bem como o Conselho Federal de Medicina se posiciona para que em casos aonde o paciente se encontra em pleno gozo de suas faculdades mentais prevalece a autonomia da vontade na recusa, em razão do princípio da dignidade da pessoa humana, não há, neste caso, a possibilidade da vontade do médico, ainda que fundada em conceitos técnicos se sobressair. Sendo assim, o Testemunha de Jeová tem a faculdade de se submeter a terapias alternativas.

Todavia, em contrapartida, nos casos em que verse direito de menor ou incapaz em risco iminente de morte foi demonstrado a necessidade do Estado em proteger o bem vida, como seu bem maior, tal qual, cabe ao médico, de acordo com as normas do Conselho Federal de Medicina, utilizar de todos os meios para priorizar a vida biológica.

 

Referências
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CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional / Kildare Gonçalves Carvalho. – 13. ed., rev. atual. e ampl. – Belo Horizonte: Del Rey, 2007, pág. 613
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Notas
[i] Site Oficial das Testemunhas de Jeová. Disponível em: < http://www.jw.org/pt/>. Acesso em: 14 de nov. 2014.

[ii] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19ª Edição, São Paulo : Editora Malheiros, 2006

[iii] ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional descomplicado.

[iv] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 251

[v] Biblioteca Virtual em Saúde. Disponível em: <http://bvsalud.org/>. Acesso em: 20 de out. de 2014.

[vi] Artigo 56 do Código de Ética Médica

[vii] Dignidade em si não é um direito, mas um atributo inerente a todo ser humano, […]. O reconhecimento da dignidade como fundamento impõe aos poderes públicos o dever de respeito, proteção e promoção dos meios necessários a uma vida digna (NOVELINO, 2009, p. 348).


Informações Sobre o Autor

Suellen Christina Ribeiro e Oliveira

Bacharel em Direito pela Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva; Pós Graduanda em Direito Processual pelo Pontífica Universidade Católica de Minas Gerais; Pós Graduanda em Gestão Jurídica e de Contencioso pelo IBMEC.


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