Considerações principiológicas sobre a Constituição Federal Brasileira

Num primeiro momento procuramos humildemente o conceito de Constituição principalmente por ser alvo de tantas discussões científicas e, por ser amplíssimo seu conceito apesar de ser bem concreta sua estrutura.


Há ainda um sentido político de Constituição desenvolvido por Carl Schmitt[1] que significa o conjunto das decisões fundamentais sobre o modo e forma de existência da unidade de poder.


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Ferdinand Lassall[2]e sustenta que a Constituição é algo situado no mundo de ser, é dizer, a Constituição é o reflexo das relações de poder que se interagem em uma determinada comunidade política informando todas as leis e instituições jurídicas nesta existente.


Constituição advém do latim constitutio, de constituere (constituir, construir, formar, organizar), no sentido do Direito Público , possui significação elevada: designa o conjunto de regra e preceitos, princípios  que se reconhecem como fundamentais, estabelecidos pela soberania de um povo, para servir de base à sua organização política e firmar os direitos e deveres de cada um de seus componentes.


É a Lei Magna de um povo, politicamente organizado, desde que nesta se assentam todas as bases do regime escolhido, fixando as relações recíprocas entre governantes e governados. Estabelece todas as formas necessárias para delimitar a competência de poderes públicos, impondo as regras de ação das instituições públicas e as restrições que devem ser adotadas para garantia dos direitos individuais.


Salienta com razão Eduardo Garcia de Enterria que “a Constituição não é apenas uma norma, senão precisamente a primeira das normas do ordenamento inteiro, a norma fundamental, a lex superior.


Por que a Constituição[3] define o sistema de fontes formais do direito, é a norma nomarum, a fonte das fontes. A Constituição é expressão de uma intenção fundacional configuradora de um sistema inteiro que nesta se baseia, tem uma pretensão de permanência ou duração e de superioridade.


A Constituição é constituída de normas jurídicas imperativas autorizantes. Não podemos, porém, nos contentar com o conceito de Kelsen[4] devido ao seu aspecto exageradamente reducionista.


Mas lembremos que a Constituição é norma jurídica, mas a esta não se reduz, é conveniente adotarmos o conceito tridimensional, posto que mais adequado à dimensão axiológica de documento legal.


Desta forma, a Constituição se revela em ser conjunto de normas jurídicas disciplinadoras do exercício do poder político, estatui a ordem fundamental jurídica da coletividade.


Traz em seu bojo os valores fundamentais, perseguidos pela sociedade, é norma limitadora do poder político, e também asseguradora dos direitos individuais-fundamentais[5] (que foram particularmente conquistados no final do século XVIII pelo movimento chamado constitucionalismo).


A Constituição ideal é aquela que reflete os desígnios da unidade política a esta subjacente, correspondente ao conjunto de normas superiores elaborado pelo Poder Constituinte, cuja titularidade pertença ao povo e tem por objeto não a criação e regulamentação dos poderes constituídos, bem como, o estabelecimento de direitos e garantias fundamentais individuais e coletivos.


Pretende a Constituição ser norma duradora, além de social e juridicamente eficaz, devendo ter atualização dinâmica, por isso, sofre reformas constitucionais, porém tal compulsão reformista pode acarretar a banalização da supremacia da Constituição.


Evidentemente a Constituição deve revitalizar sua força normativa por meio da interpretação constitucional. Vige certo consenso sobre a normatividade dos princípios jurídicos constitucionais, e nesse sentido, ratifica Larenz[6], pois assinala o seu alto teor de generalidade e abstração.


Por isso, precisam de sucessivas concretizações de modo que os princípios mais generalistas são especificados em outros subprincípios, até que atinjam o grau necessário à sua aplicação.


Os princípios se apresentam como uma idéia jurídica geral ou diretiva que serve de base e direção para a sua concretização futura, atuando como um verdadeiro fio condutor.


O princípio se esclarece por meio de suas concretizações e estas ganham significado quando voltadas a este numa autêntica atividade de esclarecimento recíproco.


Devido ao seu alto grau de abstração, os princípios não são inteiramente capazes de subsunção e, conseqüentemente, não podem ser aplicados de forma imediata, a menos que haja a sua concretização por meio de outros subprincípios e de valores singulares com material próprio.


Desta forma, os princípios precisam de normatização, caso queiram incidir na realidade fática para ordenar condutas. Os princípios esquadrinham uma tábua valorativa e atuam como autênticas normas jurídicas.


Paulo Bonavides aponta o desenvolvimento do conceito de princípios em três fases distintas: a jusnaturalista[7], a juspositivista[8] e a pós-positivista[9].


O jusnaturalista condiciona a legitimidade da ordem jurídica elaborada pelo Estado à outra ordem superior e transcendental. Pois acima das leis humanas existe o Direito Natural para lhe conferir suporte axiológico voltado para determinado valor reputado como fundamental.


No jusnaturalismo[10], os princípios estão na ordem supralegal, de tal maneira que não integram o direito posto criado pelos agentes estatais.


Entretanto, os princípios sumarizam valores máximos que correspondem à ideal de justiça e de direito, assumindo as características do Direito Natural (que guardam identificação axiomática com valores universais advindos da natureza humana e revelados à luz da reta razão).


Por se situarem na esfera tão abstrata e distante, os princípios possuem uma normatividade basicamente nula e duvidosa, daí carecerem de carga vinculatória[11].


Na fase positivista, segundo o autor, os princípios estão insertos no ordenamento jurídico positivo, fazendo parte dele.  Assim dentro do positivismo, a lei possui verdadeira primazia e os princípios ocupam um lugar secundário, servindo tão-somente em caso de eventuais vazios normativos desempenhando função meramente supletiva na aplicação do direito.


 Os princípios jurídicos muito se aproximam daquilo que em doutrina pátria chamamos de princípios gerais de direito.


Resta evidente a partir do disposto no art. 4º da Lei de Introdução do Código Civil[12] que data de 1942 e apontava o papel essencialmente supletivo dos princípios gerais de direito.[13]


Os princípios gerais do direito dentro do contemporâneo acabam por assumir nova roupagem e galgaram status constitucional. Vejamos como exemplos recentes a função social da propriedade, da posse, da empresa, do contrato, a boa-fé objetiva na esfera obrigacional e contratual, tudo no sentido de garantir o mínimo ético.[14]


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Notas:

[1] É considerado um dos mais significativos (porém também um dos mais controvertidos) doutrinadores do direito constitucional e internacional da Alemanha do século XX. Sua carreira foi fatalmente  manchada pela sua proximidade com o regime nacional-socialista. O seu pensamento era firmemente enraizado na fé católica, tendo girado em torno das questões do poder, da violência, bem como da materialização dos direitos.

Schmitt é hoje lembrado não só como um “jurista maldito” (sobretudo em razão do seu engajamento na causa nacional-socialista), e como um adversário da democracia liberal, chegando a ser chamado por um de seus críticos, o jurista alemão Günter Frankenberg, de “coveiro do liberalismo” e “Cassandra de Plettenberg do direito público”,mas também como um “clássico do pensamento político” (Herfried Münkler). As mais importantes influências sobre o seu pensamento provieram de filósofos políticos, tais como Thomas Hobbes, Niccolò Machiavelli, Jean-Jacques Rousseau, Juan Donoso Cortés, Georges Sorel, e Vilfredo Pareto mas principalmente de Friedrich Nietzsche.

As suas idéias continuam atraindo atenção de filósofos e cientistas políticos contemporâneos, dentre os quais: Jacques Derrida, Giorgio Agamben e Chantal Mouffe.

[2] É considerado um precursor da social-democracia alemã. Foi contemporâneo de Karl Marx, com quem esteve junto durante a Revolução Prussiana de 1848. Combativo e ativo propagandista dos ideais democráticos. Proferiu conferência em 1863, que serviu de base para um livro importante para o estudo do direito constitucional (editado e traduzido para o português com nome “A Essência da Constituição”). Lassalle morreu em 31 de agosto de 1864, nos subúrbios de Genebra, três dias depois de ser mortalmente ferido em um duelo pela mão de sua ex-noiva, Hélène von Dönniges. Seu corpo foi enterrado num cemitério judeu de Breslau – atualmente Wroclaw, na Polônia.

Cunhou o conhecido conceito sociológico de Constituição ao estabelecer que tal documento deve descrever rigorosamente a realidade política do país, sob pena de não ter efetividade, tornando-se um mera folha de papel. Esse conceito nega que a Constituição possa mudar a realidade.

[3]  Curioso é o posicionamento de Gustav Radbruch que se tornou defensor do direito natural(quando antes era ferrenho opositor) após de 1945, no prólogo de sua obra Arbitrariedade Legal y Derecho Supralegal comenta María Isabel Azaretto de Vásquez:

A experiência nacionalsocialista produz uma tal impressão nele, que o obriga a repensar seu anterior positivismo, e esta reflexão o leva a rechaçá-lo, já que vê na separação do direito e da moral a base em que se apoiou o nazismo para levar a cabo, sob a aparência de legalidade, as maiores injustiças. A formação positivista dos juízes e advogados os inabilitou para defender-se contra a legalidade injusta. Isto leva a Radbruch a sustentar que uma lei que contrarie os princípios básicos da moralidade não é direito, ainda que seja “formalmente válida”.

O positivismo desarmou de fato aos juristas alemães frente a leis de conteúdo arbitrário e delitivo. O positivismo ademais, não está em condições de fundamentar com suas próprias forças a validade das leis. A idéia de direito não pode ser diferente da idéia de Justiça.

[4] Por ser judeu, Kelsen foi perseguido pelo nazismo vindo a emigrar para os EUA, onde  exerceu o magistério na Universidade de Berkeley. Em 2011, foi lançada uma versão em língua portuguesa da “Autobiografia de Hans Kelsen” (publicada pela Forense Universitária sendo traduzida por Gabriel Nogueira Dias e José Ignácio Coelho Mendes Neto). Dentre as inúmeras contribuições do jurista para o mundo prático do Direito, pode ser citada a Constituição da Áustria de 1920 (a “Oktoberverfassung“), redigida sob sua inspiração. Sob a influência do pensamento de Kelsen, esta Carta Política Austríaca inovou às anteriores, introduzindo no Direito Positivo o conceito de controle concentrado da constitucionalidade das leis e atos normativos como função jurisdicional ao cargo de um Tribunal Constitucional, incumbido da função exclusiva de guarda da integridade da Constituição

[5] Relativos à liberdade, igualdade, propriedade, segurança e vida; os direitos sociais (relativos à educação, trabalho, lazer, seguridade social entre outros); os direitos econômicos (relativos ao pleno emprego, meio ambiente e consumidor); e direitos políticos (relativos às formas de realização da soberania popular).

[6] A teoria de Karl Larenz sobre interpretação jurídica tem como pressuposto a necessidade da interpretação das normas, a qual deriva de situações de fato problemáticas quanto à compreensão do sentido e alcance do texto da norma, como, por exemplo, quando o intérprete da lei se vê diante de conceitos/palavras que comportam mais de um sentido ou quando verifica que há uma espécie de conflito de normas que potencialmente regulam a mesma situação fática, mas em sentidos totalmente contrários.

[7] É a doutrina que reconhece a existência de um direito natural, que tem validade em si e é anterior e superior ao direito positivo, devendo prevalecer caso haja um conflito entre as normas do direito positivo e as do direito natural. Todo jusnaturalista, portanto, defende duas teses: a dualidade (existem duas manifestações do direito, o positivo e o natural) e a superioridade (O direito natural é superior ao positivo). De modo distinto, para o positivismo só há um direito: o positivo.

O jusnaturalismo contemporâneo deitou raiz após a Segunda Grande Guerra Mundial, por se basear em valores morais, e surgiu como boa solução para o cenário formado, pois existia a necessidade de controle do Estado, o que culminou com a criação da ONU. Havia a consciência de que não existiam valores morais universais, de maneira que a nova geração de jusnaturalista considerava o direito natural como histórico, e não como universal e imutável, ou seja, foram abertas concessões quanto ao conceito de direito natural. Severas críticas ao renascimento do jusnaturalismo surgiram, principalmente por escapar ao modelo positivista e ainda por ampliar muito o poder ao juiz, o que nos leva dois sérios busilis: a) a insegurança jurídica e a ruptura da tripartição dos poderes, pois afinal o judiciário acabaria por legislar.

[8] Surgia o positivismo. Nesta fase, tinha-se a pretensão de criar uma Ciência Jurídica com objetividade científica e características similares das conferidas às Ciências Exatas. Apartava-se, assim, o Direito da Moral, de modo a inseri-los em compartimentos estanques para fins científicos

[9] A queda do positivismo coincide com a época em que o homem passou a se preocupar mais com os direitos sociais, atribuindo uma dimensão superior à necessidade de se solucionar conflitos independentemente das leis, viu-se que não é sempre que a lei é legítima, ou seja, que a norma corresponde à vontade social. A estimação exasperada à lei fria, conseqüentemente, passou a granjear justas críticas, encontrando no Brasil defensores da irrestrita relação entre diferentes elementos: o fato social, o valor, e, é óbvio, a norma jurídica (Miguel Reale e outros).

No remanescente do mundo, outros pensadores, como Ronald Dworkin e F. Muller, passaram a sustentar, apesar de algumas adjacências, as mesmas idéias-base. Era o início do pós-positivismo jurídico. A nova fase passou a atribuir maior importância não somente às leis, mas aos princípios do direito. E os princípios, analisados como espécies de normas, tinham, ao contrário das regras, ou leis, um campo maior de abrangência, pois se tratavam de preceitos que deveriam intervir nas demais normas, inferiores, para obter delas o real sentido e alcance. Tudo se ressalte, para garantir os direitos sociais do homem. 

[10] Direito natural (em latim ius naturali) ou jusnaturalismo é uma teoria que postula a existência de um direito cujo conteúdo é estabelecido pela natureza e, portanto, válido em qualquer lugar. A expressão “direito natural” é por vezes contrastada com o direito positivo de uma determinada sociedade, o que lhe permite ser usado, por vezes, para criticar o conteúdo daquele direito positivo. Para os jusnaturalistas (isto é, os juristas que afirmam a existência do direito natural), o conteúdo do direito positivo não pode ser conhecido sem alguma referência ao direito natural.

A teoria do direito natural abrange uma grande parte da filosofia de Tomás de Aquino, Francisco Suárez, Richard Hooker, Thomas Hobbes, Hugo Grócio, Samuel von Pufendorf, John Locke e Jean-Jacques Rousseau, e exerceu uma influência profunda no movimento do racionalismo jurídico do século XVIII, quando surge a noção dos direitos fundamentais, no conservadorismo, e no desenvolvimento da common law inglesa (in http://pt.wikipedia.org/wiki/Direito_natural).

[11] Exatamente no pós-positivismo, os princípios jurídicos deixam de possuir apenas a função integratória do direito, conquistando o status de normas jurídicas vinculantes.

[12] Através da Lei 12.376, de 30 de dezembro de 2010, entrando em vigor em 31 de dezembro de 2010, alterou-se a ementa da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942), passando a vigorar com a seguinte redação: “Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.” Assim o Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 passou a denominar-se LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO” e não mais Lei de Introdução do Código Civil.

[13] Os princípios gerais do Direito, classificados como monovalentes segundo Miguel Reale em seu livro “Lições preliminares de Direito” são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico em sua aplicação e integração ou mesmo para a elaboração de novas normas. Os princípios gerais do direito são os alicerces do ordenamento jurídico, informando o sistema independentemente de estarem positivados em norma legal.

São exemplos:
Falar e não provar é o mesmo que não falar; 
Ninguém pode causar dano, e quem causar terá que indenizar; 
Ninguém pode se beneficiar da própria torpeza; 
Ninguém deve ser punido por seus pensamentos; 
Ninguém é obrigado a citar os dispositivos legais nos quais ampara sua pretensão, pois se presume que o juiz os conheça; 
Ninguém está obrigado ao impossível; 
Não há crime sem lei anterior que o descreva

[14] A teoria do mínimo ético foi exposta por Jeremias Bentham e depois desenvolvida por  vários autores, entre eles o alemão Georg Jellinek. Significa que o Direito representa apenas o mínimo de moral declarado obrigatório para que possa a sociedade sobreviver.


Informações Sobre os Autores

Gisele Leite

Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, pedagoga, advogada, conselheira do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.

Denise Heuseler

Professora assistente, bacharel em Direito pela UNESA, Pós-Graduada Lato Sensu em Direito Civil, Advogada, Tutora da FGV On-line. Membro do Conselho do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas (INPJ)


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