Resumo: Tomando como base as propostas de mudanças o Projeto de Emenda Constitucional N° 51/2013 – PEC 51, nosso artigo sem a pretensão de esgotar o tema, irá apresentar um breve histórico motivacional de algumas propostas e mudanças no sistema de segurança pública do país que já surgiram no ordenamento jurídico nacional, o modelo atual e sua ineficácia, algumas percepções de eficiência de modelos consolidados em outros países, as mudanças da PEC 51 e seus aspectos legais, propostas debatidas anteriormente sobre o Sistema brasileiro, uma reflexão rápida sobre o papel do município na nova ordem jurídica e finalizaremos com uma conclusão que corrobora com o diagnóstico que apresenta a necessidade de mudanças estruturais no Sistema de Segurança Pública do país.
Palavras chaves: Sociedade, Segurança Pública, Justiça Criminal, Constituição Federal e Polícia.
Abstract: Based on the proposals of changes to the Brazilian Criminal Justice System included at the Draft Constitutional Amendment 51/2013 (PEC 51), this article – which does not claim to be exhaustive – will present: a brief history of the motivations for proposals and changes in the Brazilian public security system that already appeared in national law; the current model and its ineffectiveness; some perceptions about the efficiency of models established in other countries; the changes proposed in PEC 51 and its legal aspects; previously discussed proposals about the Brazilian system; a quick reflection on the role of municipalities in the new legal order; and a conclusion that confirms the diagnosis on the need for structural changes in the country's Public Security System.
Key words: Society, Public Safety, Criminal Justice, Federal Constitution and Police.
Introdução
O Brasil possui o histórico de apresentar transformações ou propostas de transformação da sua visão de Segurança Pública no calor reativo de fatos midiáticos que pressionam os Poderes Legislativo, Executivo e algumas vezes o próprio Judiciário. O que denota uma falta de gestão pública continuada e de planejamento estratégico de longo prazo para o tema da segurança pública no país. A matéria apesar de sua importância para a sociedade não possui uma pasta específica no âmbito do Governo Federal para tratar das questões da violência, crime e criminalidade, apesar de já ter sido objeto de várias propostas a criação do Ministério da Segurança Pública nunca passou de propostas. É importante ressaltar que mesmo com esse modelo de transformação baseado na forma reativa e pouco sistêmica que o país vem adotando na aplicação de novas abordagens e políticas de segurança, tivemos nos últimos 20 anos uma evolução considerável pelo menos no que tange a inclusão da segurança pública na agenda de debates da Nação. É fato notório que nesse período os trabalhos acadêmicos que começaram a surgir com maior intensidade sobre as questões da violência, crime e criminalidade passaram a ser mais divulgados e debatidos pela sociedade em geral. Apenas para exemplificar essa tendência de transformação reativa podemos citar alguns casos:
A visão de que as transformações da área são, via de regra, uma reação a um momento ou preocupação momentânea, a nosso ver, fica claro quando consideramos que o próprio surgimento da policia no Brasil do século XIX, com a vinda da Família Real para o país, pode ser considerado um exemplo dessa reação a problemas crescentes da sociedade. Naquele momento de mudanças surge o Intendente Geral de Polícia, para o cargo seria nomeado o advogado Paulo Fernandes Viana, as suas funções englobariam os temas originários na atualidade ao prefeito e a polícia. Era no dizer de Francis Albert Cotta “um agente civilizador” dos costumes do Rio de Janeiro. (apud Gomes, 2007) Ao ser consolidada suas funções incluíam principalmente o controle dos espaços urbanos, obras públicas e o controle da população escrava nas ruas, essa última a maior preocupação da sociedade da época com uma possível insurgência de escravos contra as elites dominantes.
Quase duzentos anos depois surge outra mudança a reboque de um fato, o ônibus 174[1], surge então o Fundo Nacional de Segurança Pública – FNSP, criado pela Lei 10.201 de 14 de fevereiro de 2001. O fato desencadeou um debate sobre a capacidade de investimento em segurança pública e capacitação dos policiais pelos estados, culminando com o surgimento do FNSP para que a União pudesse por meio de projetos tentar suprir essa lacuna.
Com o crescente aumento da violência no Brasil chegando à casa de 47 mil homicídios no ano de 2007 (Waiselfisz, 2012) surge outra idéia de mudança, dessa vez o desafio proposto seria atuar na raiz do problema da violência com ações de cunho social que possibilitassem uma maior integração dos operadores de segurança pública com a sociedade, cliente de suas atividades. Surge então no âmbito do Ministério da Justiça a abordagem do Programa Nacional de Segurança com Cidadania – PRONASCI, lançado em agosto de 2007.
Atualmente vivenciamos momentos conturbados onde integrantes da sociedade resolveram ir para as ruas e demonstrar sua insatisfação com a atual relação do Estado com a Sociedade. Independente de se considerar os movimentos legítimos ou ilegítimos é fato que são parte de uma reação de descontentamento com várias questões e ausências de políticas públicas em áreas consideradas essenciais como a saúde, transporte, educação e segurança. Nos meses de junho e julho as manifestações de ruas se intensificaram ocasionado um forte enfrentamento entre as forças do estado e os atores dos manifestos violentos. Na pauta multifacetada dos manifestantes também apareceu as diversas opiniões sobre possíveis mudanças no Sistema de Segurança Pública, essa pressão das ruas foi o que ocasionou no dia 25 de junho de 2013 a rejeição pela Câmara Federal da proposta de Emenda Constitucional número 37/2011 (PEC 37)[2] com a votação expressiva e inconteste de 430 votos contra, 09 votos a favor e 02 abstenções. Ficou conhecida pelo forte embate tendo de um lado os delegados de polícia do Brasil e do outro os representantes dos Ministérios Públicos do Brasil e demais categorias de policiais não delegados, ou seja, um enfrentamento de idéias entre atores do fluxo de justiça criminal. A opinião pública escolheu seu lado e por um clamor das ruas estava sentenciado o sepultamento da proposta.
O artigo 1° da Constituição Federal adota o conceito de Estado Democrático de Direito para o Brasil, o professor José Afonso da Silva ensina que a expressão: Estado Democrático de Direito “irradia os valores da democracia sobre todos os elementos constitutivos do Estado e, pois, também sobre a ordem jurídica”. (SILVA, 2011), nesse sentido completa ainda o renomado doutrinador que o princípio da Legalidade é um dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito:
“A lei é efetivamente o ato oficial de maior realce na vida política. Ato de decisão política por excelência, é por meio dela, enquanto emanada da atuação da vontade popular, que o poder estatal propicia ao viver social modos predeterminados de conduta, de maneira que os membros da sociedade saibam, de antemão, como guiar-se na realização de seus interesses.” (SILVA, 2011, pg.121)
Nesse diapasão, se é certo que as forças policiais do Estado não devem e não podem abrir mão da legalidade nas suas ações, também é correto igualmente afirmar que os manifestantes não podem à guisa da liberdade de expressão, cometer múltiplos atos ilegais e criminosos. Ações dessa natureza de ambas as partes só enfraquecem o Estado Democrático de Direito.
Ao que parece, incentivado pelos recentes acontecimentos uma proposta de mudança orientada pelo professor Luiz Eduardo Soares, vem à tona, a Proposta de Emenda Constitucional número 51/2013 (PEC 51)[3], cognominada nas redes sociais de PEC da Polícia Cidadã.
Os exemplos de mudanças apresentados demonstram que o Sistema de Segurança Pública ao longo dos anos vem sofrendo diversas influencias enraizadas nas mudanças de comportamento dos integrantes da sociedade. A nova ordem apresentada pela Emenda Constitucional número 51 (PEC 51/2013) deve ser debatida pela sociedade na busca de uma maior eficiência na prestação de serviço de segurança para a população brasileira sem radicalizações, revanchismos ou corporativismo.
O modelo atual e sua ineficácia.
Quando tratamos do Fluxo de Justiça Criminal Brasileiro temos que ter em mente que dentro das atividades e competências existentes nesse fluxo irão atuar diversos atores entre operadores de segurança pública, operadores do direito, assistências sociais, para citar apenas alguns dos responsáveis pela complexa tramitação do fluxo criminal. A doutora Ludmila Ribeiro ensina que as organizações que compõem o sistema de justiça criminal no Brasil na sua ordem de atuação, em regra, são: Polícia Militar, Polícia Civil, Ministério Público, Defensoria Pública, Judiciário e Sistema Penitenciário. (Ribeiro & Silva, 2010). Entendemos que na verdade esse fluxo não finaliza no Sistema Penitenciário, ou pelo mesmo não deveria finalizar, seu termino seria mais correto nas estruturas municipais de assistência social que deveriam ser os receptores dos reeducandos no seu retorno ao convívio social. A recepção dos egressos do sistema prisional na sociedade precisa ser acompanhada de perto pelo poder municipal ajudando-os na recolocação ao mercado de trabalho e convívio pacifico na comunidade a que pertencem. Só assim poderiam evitar os alarmantes índices de reincidências que registramos atualmente no Brasil[4].
A lógica do atendimento de um fato criminoso pelo fluxo, em tese, segue a ordem apresentada. Sendo normalmente os primeiros atores a iniciarem o fluxo as polícias ostensivas de forma geral (no estudo da Doutora Ribeiro representado pela Polícia Militar), já que são rapidamente identificáveis pela sociedade em decorrência de suas atividades de rua e estrutura de resposta rápida. Após iniciados os trabalhos imediatos de atendimento surge o segundo ator institucional do fluxo: a Polícia Civil, responsável pelas investigações e polícia judiciária. A proposta de Emenda Constitucional N° 51, foca nesses dois primeiros atores do fluxo, ou seja, na esfera policial do fluxo de justiça criminal.
Os críticos do modelo atual demonstram em diversos estudos que a “passagem do bastão”[5] na esfera policial frequentemente apresenta falhas e ineficiências que refletem diretamente nas atividades que serão desencadeadas nas ações futuras do fluxo. Pesquisadores citados pela Doutora Ludmila que tiveram como objeto de suas pesquisas o problema do fluxo de justiça criminal em diversas regiões do país, como a professora Myriam Mesquita Pugliese de Castro com foco em São Paulo, Luiz Eduardo Soares com foco no Rio de Janeiro, Theofilos Rifiotis com foco na região metropolitana de Florianópolis, Luiz Flávio Sapori com foco em Belo Horizonte, Luiz Ratton com foco em Recife, dentre outros renomados pesquisadores, apresentam dados que comprovam a ineficiência do atual modelo brasileiro. Ribeiro em suas conclusões afirma:
“De fato, os dados sumarizados neste artigo confirmam a percepção de que a capacidade do sistema de justiça criminal brasileiro para punir os crimes é muito limitada: poucos são os casos que conseguem transpassar a fase policial, e entre os que possuem sucesso nesse empreendimento, poucos são os que sobrevivem até a fase de sentença.” (Ribeiro & Silva, 2010). (grifo nosso)
Revela ainda:
“ Uma importante conclusão derivada desses estudos é o fato de que a maior filtragem no sistema ocorre na fase policial, dado que apenas 1/5 do total de casos de homicídio doloso que ingressam nas organizações policiais sai destas com a sua autoria esclarecida no período compreendido entre os anos de 1990 e 2005.” (Ribeiro & Silva, 2010) (grifo nosso).
O quadro: Estudos sobre fluxo do sistema de justiça criminal realizados no Brasil, de acordo com a metodologia empregada, o crime analisado, o local da análise, o período de pesquisa, taxa de esclarecimento e taxa de condenação, (Ribeiro & Silva, 2010) demonstra que a taxa de condenação por crimes de homicídios no país figura em torno de 8 a 10%, resultados considerados insatisfatórios e causadores da sensação de impunidade de assola o Brasil.
Diante do quadro apresentado pelas diversas pesquisas sobre o tema aliado, as observações empíricas do dia a dia violento das cidades brasileiras, podemos afirmar que atualmente o modelo das policias brasileiras não está funcionando a contento, apesar dos esforços da grande maioria dos policiais em melhorar a prestação de serviço à sociedade, os problemas de estrutura organizacional continuam atrapalhando a fluidez das ações do fluxo de justiça criminal e seu maior gargalo está exatamente na esfera policial.
Breve apresentação da percepção de eficiência de modelos consolidados
Sem pretender fazer um estudo comparado de forma aprofundada passaremos a apresentar comentários com a visão de estudiosos e diplomatas brasileiros sobre o Sistema de Justiça Criminal dos países: Alemanha, Canadá e Estados Unidos da América, em um contra ponto da percepção que nós brasileiros temos do nosso sistema atual.
No livro Mundo Afora – Violência Urbana, produzido pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil, no ano de 2005, os diplomatas escreveram em capítulos suas percepções da violência urbana em diversos países que o Brasil mantém representação diplomática. Esse trabalho pode trazer uma contribuição valiosa para mensurar a avaliação dos sistemas de Justiça Criminal daqueles países:
No capítulo que trata da Alemanha os autores escreveram:
“A descentralização que caracteriza a política administrativa da República Federal da Alemanha se faz presente também na segurança pública. Cabe, assim, a cada um dos dezesseis Estados da Federação gerir sua estratégia nessa área. Para o Estado Bávaro a segurança interna constitui não só uma das necessidades básicas do cidadão, mas também um direito social que alicerça a qualidade de vida da população. A segurança pública é considerada, assim, requisito da estabilidade social e instrumento de liberdade individual.” (De Andrade & Stille, 2005) (grifo nosso)
Os autores finalizam seu artigo com a seguinte observação:
“As estatísticas parecem indicar que a estratégia de segurança pública adotada pelo estado é correta. Dados referentes ao ano de 2003 indicam que a Baviera é uma das unidades federativas mais seguras da Alemanha. Com um índice de elucidação de 64,7% de todas as ações criminosas, o estado tem o melhor desempenho entre seus pares, o que comprova a excelência de sua força policial.” (De Andrade & Stille, 2005) (grifo nosso)
No capítulo que trata do Canadá os autores escreveram:
“Embora o Índice de Desenvolvimento Humano da ONU, de 2002, situe o Canadá na invejável posição de terceiro colocado em todo o mundo, o nível de segurança desfrutado pela população canadense (um dos componentes do Índice), embora também elevado, ocupa uma faixa média entre os países desenvolvidos. Na comparação direta com o Brasil, tomando-se por base sempre a mesma fonte estatística das Nações Unidas, verifica-se terem ocorrido, em 2002, aproximadamente 30.000 homicídios no Brasil e 540 homicídios no Canadá. Proporcionalmente ao tamanho da população de cada país (174 milhões para o Brasil e 29 milhões para o Canadá), os dados revelam que o total de homicídios cometidos anualmente no Canadá corresponde aproximadamente a um décimo do total de delitos do mesmo tipo cometidos no Brasil. (…)”(Leão Neto & Maciel, 2005) (grifo nosso).
Continuam suas observações tratando agora da estrutura do Sistema canadense:
“A responsabilidade por questões de segurança Pública e combate à criminalidade, no Canadá, está dividida entre as esferas federal – o recém-criado Ministério da Segurança Pública e Proteção Civil – provincial (polícias Provinciais) e municipal (Polícias Municipais)” (…) À semelhança da experiência britânica, a implantação de programas policiais se faz de forma descentralizada e o modelo tem-se revelado eficiente. (Leão Neto & Maciel, 2005) (grifo nosso).
Em artigo publicado sobre as policias estadunidenses Magalhães relata:
“O sistema de segurança pública nos Estados Unidos é estruturado em instituições que operam segurança pública nos níveis de municípios, condados, estados e federação. Segundo o professor doutor George Felipe de Lima Dantas, a origem do sistema norte-americano de segurança pública é baseado nos “controles locais” e foi constituído inicialmente com o surgimento da própria nação norte-americana, que já naquela época demonstrava uma forte “idiossincrasia” em relação a instituições federais de poder centralizador. Ainda segundo os ensinamentos do professor Dantas, o povo norte-americano possui uma forte relação de identificação da polícia, como sendo a organização policial que atua no município ou condado. A polícia é identificada como parte do núcleo de poder público mais próximo do cidadão, é a entidade de segurança pública mais diretamente ligada ao cidadão, ou seja, “Polícia” é a entidade que faz “policing” na redondeza de sua residência. As polícias que integram esse sistema base da política pública estadunidense realizam seus recrutamentos entre os cidadãos nativos da localidade, em tese, facilitando o policiamento, já que os integrantes recrutados são residentes e conhecem o local onde irão atuar como policiais.” (Magalhães, 2006) (grifo nosso)
Os Estados Unidos da América mesmo com um sistema considerado complexo, segundo pesquisa da Agencia das Nações Unidas – United Nations Office on Drugs and Crime – UNDOC, publicada em 2012, apresentou uma taxa de 4,8 homicídios para cada 100 mil habitantes, totalizando 14.748 homicídios no ano de 2010, enquanto o Brasil no mesmo ano, amargou uma taxa de 21,0 homicídios para cada 100 mil num total de 40.974 homicídios no mesmo ano. O Sistema norte americano com sua complexidade e grandeza, com mais de 17.000 agências policiais atuando, não pode deixar de ser observado em um estudo sobre sistemas de segurança pública e fluxo de justiça criminal.
Mudanças da PEC 51 e Aspectos Legais
O tema da Segurança Pública está na Constituição de 1988, fundamentando o atual modelo com uma áurea constitucional. Entretanto, conforme leciona o professor Gabriel Dezen Junior, “Já está ultrapassada a noção de Constituição como um documento cuja rigidez conduz à imutabilidade. O documento constitucional aspira à permanência, mas não à perenidade. (DEZEN JUNIOR, 2001, pg. 87) Para tanto a própria Carta Magna prevê o processo de Emenda Constitucional, ou Reforma ou ainda, a Revisão Constitucional. No processo de Emenda Constitucional diferentemente das conseqüências advindas de uma nova ordem constitucional não ocorre a ruptura ou a descontinuidade do sistema jurídico vigente. A Emenda ao ser aprovada revoga exclusivamente os dispositivos emendados, seus efeitos são ex nunc, ou seja, do momento da promulgação pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal em diante. Ungido por essa possibilidade de modificação da constituição em vigor, no dia 24 de setembro de 2013 o Senador da República do Estado do Rio de Janeiro, Lindbergh Farias apresentou o texto do Projeto de Emenda Constitucional n° 51/2013, projeto que é fruto dos trabalhos de pesquisa do Professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Doutor Luiz Eduardo Soares e sua equipe.[6] As modificações propostas se aprovadas irão transformar consideravelmente o fluxo de justiça criminal e seus atores na esfera policial.
A primeira modificação proposta é relacionada às competências da União, incluindo no rol do artigo 21 os incisos XXVI e XXVII. José Afonso da Silva leciona que no rol deste artigo estão as competências materiais exclusivas da União. (Silva, 2011) Os incisos incluídos no rol do artigo 21 pela proposta rezam:
“Art. 21.(…)
XXVI – estabelecer princípios e diretrizes para a segurança publica, inclusive quanto à produção de dados criminais e prisionais, à gestão do conhecimento e à formação dos profissionais, e para a criação e o funcionamento, nos órgãos de segurança pública, de mecanismos de participação social e promoção da transparência; e
XXVII – apoiar os Estados e municípios na provisão da segurança pública.”
O inciso XXVI ao transformar o estabelecimento de princípios e diretrizes sobre a segurança pública uma competência material exclusiva da União define o ente Federativo como o norteador do Sistema Nacional de Segurança Pública. Tenta forçar a solução de um problema crônico no Brasil que é a produção de conhecimento com dados do crime e da criminalidade, hoje coletados pelos estados e muitas vezes não repassados ou repassados de forma precária para a análise da Secretaria Nacional de Segurança Pública. Nada é mais importante para a boa prestação de serviço de um profissional do que uma boa formação sobre o seu mister, a importância de um controle certificador da União para as instituições formadoras facilitará a efetivação de uma espécie de Sistema de controle de qualidade mínima para formar os operadores de segurança pública que irão atuar nas três esferas de Poder. Além de fomentar o surgimento do controle externo com mecanismos de participação social e promoção da transparência.
No inciso XXVII a proposta define que compete a União apoiar os Estados e municípios na provisão da Segurança Pública. A característica marcante dos incisos que compõem do Artigo 21 é de apresentar um protagonismo executório da União (ex: estabelecer, manter, declarar, explorar, etc.) nossa visão é que destoa do conjunto o verbo “apoiar”, esse apoio seria em que medida? O apoio moral também é apoio. Entendemos que seria mais efetivo se ao invés do dispositivo definir a União como “apoiadora do provimento”, propor um percentual obrigatório de repasse constitucional para a esfera da segurança pública a exemplo do que existe na Constituição para a saúde (art. 198, § 2°, CF e Lei Complementar n° 141/2012) e a educação (art. 212, CF).
A proposta apresenta duas inclusões de incisos no rol do artigo 24 da CF, ou seja, no rol da competência legislativa concorrente:
“Art. 24(…)
XVI – organização dos órgãos de segurança pública; e
XVII – garantias, direitos e deveres dos servidores da segurança pública.”
O inciso XVI incluído pela proposta, viabiliza como competência legislativa concorrente a “organização dos órgãos de segurança pública”, entre os Estados, Distrito Federal e a União. No espírito da mudança o dispositivo possibilitará que os estados legislem e criem suas novas organizações policiais com as diretrizes determinadas pela União, mas com a garantia da flexibilidade de utilizar as variáveis regionais nos modelos estaduais das novas instituições policiais. O espírito geral da proposta, ao que parece, é fazer com que os entes federados possam recriar seus sistemas de segurança pública de acordo com suas peculiaridades locais, como ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos da América. A proposta no art. 144-A, §4° abre a possibilidade dos municípios criarem suas polícias municipais, entretanto, no dispositivo do artigo 24 a exemplo do texto atual, novamente o município não é diretamente citado. A despeito do ensinamento do professor José Afonso da Silva:
“A Constituição não situou os Municípios na área de competência concorrente do art. 24, mas lhe outorgou a competência para suplementar a legislação federal e a estadual no que couber, o que vale possibilitar-lhes disporem especialmente sobre as matérias ali arroladas e aquelas a respeito das quais se reconheceu à União apenas a normatividade geral.” (Silva, 2011, pg. 504)
Entendemos, com a devida vênia, que traria uma maior segurança jurídica para as modificações vindouras se o município fosse incluído como ente expressamente citado com a competência concorrente dos dois incisos incluídos no rol do artigo 24. Ou então, que o espírito dos dois incisos fosse expressamente replicado no rol do artigo 30 da CF, que trata da competência dos municípios, não deixando margem alguma para interpretações que tolhessem o direito do município de operar a mudança de acordo com suas convicções e peculiaridades. Muitas cidades brasileiras possuem operadores municipais de segurança pública com as Guardas Municipais em atividade e as modificações e transformações que farão com o seu sistema de segurança pública exigirão a menor margem de dúvida possível para o legislador infraconstitucional.
O inciso seguinte retrata a salutar preocupação com as garantias, direitos e deveres dos servidores da segurança pública. Novamente nossa observação é no intuito de alertar aos legisladores sobre a necessidade do município ser inserido nessa competência legislativa, sob pena da nova ordem dificultar as modificações legislativas dos municípios para se adequarem ao novo modelo.
O professor Michel Temer ensina que a competência para legislar do município é referente a temas de administração própria, no que respeite ao seu interesse local. O grande problema da ordem atual é definir o que é interesse local. Revela o doutrinador: “Tudo quanto dissemos leva à conclusão de que a competência do Município em tema de interesse local será desvendada casuisticamente.” (Temer, 1995, pg 101) (grifo nosso) Nesse sentido é que entendemos que o município deve constar como titular da competência concorrente na matéria da segurança pública que ora surge.
A inclusão pela proposta do artigo 143-A, no nosso entendimento, impõe a inclusão de dois conceitos essenciais para evolução do sistema brasileiro, e como os operadores do sistema irão se enxergar doravante, senão vejamos:
No artigo 144 da CF vigente a definição de segurança pública ao dizer: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercido para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos.” Segundo Plácido e Silva segurança pública é:
“O afastamento, por meio de organizações próprias, de todo perigo ou de toda mal que possa afetar a ordem pública, em prejuízo da vida, da liberdade ou dos direitos de propriedade do cidadão. A segurança Pública, assim, limita a liberdade individual, estabelecendo que a liberdade de cada cidadão, mesmo em fazer aquilo que a lei não lhe veda, não pode turbar a liberdade assegurada aos demais, ofendendo-a.” (apud, Janczeski, 2010)
Conclui o autor que: “Fica, neste sentido, demonstrado que a segurança pública tem como objetivo a preservação da ordem pública.” (Janczeski, 2010, pg. 440) (grifo nosso). Alinhado a essa premissa, o professor José Afonso ensina: “ “Segurança Pública” é manutenção da ordem pública interna.” e conceitua ordem pública como: “Ordem Pública será uma situação de pacífica convivência social, isenta de ameaça de violência ou de sublevação que tenha produzido ou que supostamente possa produzir, a curto prazo, a pratica de crimes.” (Silva, 2011, pg. 778/779.)
Na prática, a sensação dos operadores de segurança pública, ao lerem de forma superficial a matéria, é que a legislação conduz os atores do sistema para a defesa do Estado e não do cidadão como premissa de atuação.
O artigo 143-A da proposta de forma clara e direta corrige esse possível equívoco de interpretação ao incluir as expressões “democrática e para a garantia dos direitos dos cidadãos”. O novo texto, em nosso modo de ver, não deixa dúvidas aos policiais de que sua principal premissa de atuação é em defesa dos direitos dos cidadãos e não em defesa do Estado.
O dispositivo elege cinco princípios norteadores da segurança pública:
“I – atuação isonômica em relação a todos os cidadãos, inclusive quanto à distribuição espacial da provisão de segurança pública.
II – valorização de estratégias de prevenção do crime e da violência;
III – valorização dos profissionais da segurança pública;
IV – garantia de funcionamento de mecanismos controle social e de promoção da transparência; e
V – prevenção e fiscalização efetivas de abusos e ilícitos cometidos por profissionais de segurança pública.”
Os princípios apresentam a igualdade de tratamento com o cidadão, a prevenção do crime como norte das ações, a transparência e o controle das polícias como essencial para o sistema e a prevenção e fiscalização de abusos e ilícitos praticados por operadores de segurança pública. O maior destaque para os policiais será a inclusão de sua valorização com princípio da nova ordem que se inaugura. As cobranças, fiscalizações e controles são salutares para o funcionamento adequado de qualquer sistema público e não deve ser diferente no caso da segurança pública, até porque com a autorização legal do uso da força que os seus operadores possuem, precisam reafirmar o compromisso com a legalidade diuturnamente.
O parágrafo único do artigo 143-A, reza:
“Parágrafo único. A fim de prover segurança pública, o Estado deverá organizar policias, órgãos de natureza civil, cuja função é garantir os direitos dos cidadãos, e que poderão recorrer ao uso comedido da força, segundo a proporcionalidade e a razoabilidade, devendo atuar ostensivamente e preventivamente, investigando e realizando a persecução criminal.”
A proposta apresenta as linhas mestras que definem as novas organizações policiais. A primeira definição é que os órgãos deverão ser de natureza civil, essa orientação é que conceituou a proposta na sua ementa como desmilitarização do modelo policial. A segunda definição apresenta ao órgão a função precípua de garantir os direitos dos cidadãos, deixando inequívoca a identificação dos “clientes” que o policial deve servir em suas atividades. A terceira definição autoriza o uso comedido da força segundo a proporcionalidade e razoabilidade. Essa definição que na proposta passa a ter status constitucional, já é praticada, em tese, no sistema atual por meio da Portaria Interministerial n° 4226 de 31 de dezembro de 2010, que estabelece diretrizes sobre o uso da força pelos Agentes de Segurança Pública, assinada pelos ministros de Estado da Justiça e o Ministro de Estado Chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
Outra grande mudança contemplada nesse dispositivo reflete diretamente no fluxo de justiça criminal brasileiro. Define as polícias como de “ciclo completo”, ou seja, deverão atuar ostensiva e preventivamente, investigando e realizando a persecução criminal. Com essa modificação está sentenciada a extinção do fracionamento da atividade policial que ocorre no modelo atual. O fluxo de justiça criminal passa a ter um só ator institucional na esfera policial (modelo atual: Polícia Militar – Polícia Civil; novo modelo: Polícia de ciclo completo). Essa estrutura apresentada pelo novo modelo, via de regra, é adotada nos países de origem anglo-saxônica com muita eficiência.
No escopo do artigo 144 da CF a proposta apresenta várias modificações substanciais, senão vejamos:
Ao criar os dispositivos do artigo 143-A retira do artigo 144 o tratamento as polícias estaduais e guardas municipais que vige atualmente. Na nova ordem jurídica o dispositivo define como órgão de segurança pública da União a Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Polícia Ferroviária Federal, todos mantidos pela União e estruturados em carreira única. Na esfera federal a proposta deixou de afirmar a premissa do ciclo completo para as polícias federais, como deixou claro para as estaduais no § 1° do artigo 144-A. Se é fato que ciclo completo de policia é uma das características basilares do novo modelo deve constar sua adoção nas esferas Federal, Estadual e Municipal das novas polícias.
O novo parágrafo 5° do artigo 144 define a remuneração de todas as polícias no país na forma do § 4° do artigo 39 da CF, ou seja, por meio de subsídios.
O parágrafo 6° do novo artigo 144 define a União como responsável por avaliar e autorizar o funcionamento e estabelecer parâmetros para as instituições de ensino que realizam a formação de profissionais de segurança pública. Entendemos que esse controle é essencial para o sucesso da implantação do modelo que será difícil e lento. Nossa visão é que o Ministério da Educação deveria ser o órgão responsável por certificar essas instituições de ensino com apoio das Universidades e técnicos do Ministério da Justiça, ou quiçá, técnicos de um futuro Ministério da Segurança Pública.
O artigo 144-A vem tratando da segurança pública no âmbito Estadual, do Distrito Federal e Municipal, definindo que suas atividades serão exercidas por meio de polícias e corpos de bombeiros.
O parágrafo 1° adota obrigatoriamente nessas esferas o ciclo completo de polícia cumulando as tarefas ostensivas, preventivas, investigativas e de persecução criminal. A obrigatoriedade da adoção de carreira única surge no parágrafo 2°.
Merece destaque o parágrafo 3° do mesmo artigo:
“§ 3° Os Estados e o Distrito Federal terão autonomia para estruturar seus órgãos de segurança pública, inclusive quanto à definição da responsabilidade do município, observando o disposto nesta Constituição, podendo organizar suas policiais a partir da definição de responsabilidades sobre territórios ou sobre infrações penais.”
O dispositivo inaugura a autonomia dos Estados e Distrito Federal para estruturar os seus sistemas de segurança pública e futuros atores institucionais do fluxo de justiça criminal. O Brasil no passado teve experiência próxima da proposta, quando da vigência do Código de Processo Criminal de 1832, com a promulgação da Lei N° 16 de 12 de agosto de 1834. Essa lei ficou conhecida como Ato Adicional e realizou uma reforma na estrutura do Estado privilegiando o poder provincial atribuindo diversas competências legislativas às Assembléias provinciais, inclusive com a matéria da segurança pública. (Magalhães Junior, 2007)
“Lei nº 16, de 12 de Agosto de 1834
Art. 9º Compete às Assembléias Legislativas provinciais propor, discutir e deliberar, na conformidade dos artigos 81, 83, 84, 85, 86, 87 e 88 da Constituição. (grifo nosso)
Art. 10. Compete às mesmas Assembléias legislar: (…)
4º)Sobre a polícia e economia municipal, precedendo propostas das Câmaras. (grifo nosso) (…)
9º) Sobre construção de casas de prisão, trabalho, correição e regime delas.
Art. 11. Também compete às Assembléias Legislativas provinciais:(…)
2º) Fixar sobre informação do Presidente da Província, a força policial respectiva; (grifo nosso)(…)
Palácio do Rio de Janeiro, aos 12 de agosto de 1834, 11º da Independência do Império.
FRANCISCO LIMA E SILVA.
Antônio Pinto Chichorro da Gama”.[7]
O dispositivo do parágrafo 3° do artigo 144-A, acrescenta que o Estado será o ente que definirá a responsabilidade do município quanto ao tema. Ao que parece, a interpretação do diploma deverá ser no sentido de que o Estado definirá qual a forma de definição das responsabilidades, se territorial ou sobre infrações penais, que as agências policiais do estado e dos municípios, que por ventura as criarem, irão atuar dentro dos seus limites territoriais. Não me parece, data venia, que na estrutura Constitucional do Brasil o Estado possa subordinar o Município quanto à criação ou não de uma polícia municipal. O texto pode causar a impressão de que para um município criar sua polícia municipal o estado deve em sua legislação adotar um sistema que contemple polícias municipais. Nossa visão é que o Estado deve definir a forma de responsabilidade das polícias e não se elas serão criadas ou não nos municípios, que são entes federativos autônomos e independentes. Aliás, como leciona Temer: “A autonomia municipal, no Brasil, é realidade natural anterior à própria autonomia política dos Estados federados.” (Temer, 1995, pg. 99) No caso do município, por meio do seu Poder Legislativo, decidir pela não criação de uma polícia municipal, a polícia estadual fará esse papel de segurança pública no seu território. Na verdade poucos são os municípios no país que terão capacidade financeira para estruturar uma polícia e quando essa hipótese ocorrer o sistema deverá ser próximo do que acontece no Canadá, onde os municípios e províncias podem criar polícias, mas quando não o fazem quem atua no território é a Royal Canadian Mounted Police – RCMP (Real Polícia Montada do Canadá), que é um órgão Federal. Portanto, na nova proposta entendemos que em municípios sem polícia municipal a polícia estadual acumulará as duas responsabilidades definidas para o estado e município.
O parágrafo 4° do mesmo artigo, define as autoridades políticas ao qual as policias serão subordinadas. O Chefe do Poder Executivo Municipal (Prefeito) na esfera municipal e o Chefe de Poder Executivo Estadual (Governador) na esfera estadual.
O parágrafo 5° trata dos Corpos de Bombeiros definindo a execução de atividades de defesa civil a esses órgãos. Temos algumas observações sobre a matéria. Primeiramente, segundo nossa visão, na proposta não fica definido se a desmilitarização atinge também os Corpos de Bombeiros, já que na prática, ora são tratados como parte do sistema de segurança pública, ora são considerados sui generis. Basta ver que possuem interlocução no Ministério da Justiça e na Secretaria Nacional de Defesa Civil do Ministério da Integração Nacional. A ementa da Proposta fala de desmilitarização do modelo policial. Contudo, os corpos de bombeiros estão considerados como parte desse modelo? Nosso entendimento é que essas instituições sem dúvida fazem parte do modelo de segurança pública do Brasil, mas não do modelo policial. Os integrantes dos corpos de bombeiros, com as raras exceções dos inquéritos policiais militares da corporação, não atuam institucionalmente no fluxo de justiça criminal brasileiro. O que não implica dizer que se o mote da proposta é a desmilitarização essas instituições poderiam ser incluídas no processo de forma mais clara.
A proposta traz no artigo 144-B o tema do controle externo da atividade policial com a criação de estruturas de Ouvidorias Externas no âmbito de cada órgão policial que atuarão em paralelo à competência de controle externo das polícias, exercida pelos Ministérios Públicos do Brasil.
“Art. 144-B O controle externo da atividade policial será exercido, paralelamente ao disposto no art. 129, VII, por meio de Ouvidoria Externa, constituída no âmbito de cada órgão policial previsto nos arts. 144 e 144-A, dotada de autonomia orçamentária e funcional, incumbida do controle da atuação do órgão policial e do cumprimento dos deveres funcionais de seus profissionais e das seguintes atribuições, alem daquelas previstas em lei: (grifo nosso)
I – requisitar esclarecimentos do órgão policial e dos demais órgãos de segurança publica;
II – avaliar a atuação do órgão policial propondo providencias administrativas ou medidas necessárias ao aperfeiçoamento de suas atividades;
III – zelar pela integração e compartilhamento de informações entre os órgãos de segurança publica e pela ênfase no caráter preventivo da atividade policial;
IV – suspender a pratica, pelo órgão policial, de procedimentos comprovadamente incompatíveis com uma atuação humanizada e democrática dos órgãos policiais;
V – receber e conhecer das reclamações contra profissionais integrantes do órgão policial, sem prejuízo da competência disciplinar e correcional das instancias internas, podendo aplicar sanções administrativas, inclusive a remoção, a disponibilidade ou a demissão do cargo, assegurada ampla defesa;
VI – representar ao Ministério Público, no caso de crime contra a administração publica ou de abuso de autoridade; e
VII – elaborar anualmente relatório sobre a situação da segurança publica em sua região, a atuação do órgão policial de sua competência e dos demais órgãos de segurança publica, bem como sobre as atividades que desenvolver, incluindo as denúncias recebidas e das decisões proferidas.
Parágrafo único. A Ouvidoria Externa será dirigida por Ouvidor-Geral, nomeado, entre cidadãos de reputação ilibada e notória atuação na área de segurança publica, não integrante de carreira policial, para mandato de 02 (dois) anos, vedada qualquer recondução, pelo Governador do Estado ou do Distrito Federal, ou pelo Prefeito do município, conforme o caso, a partir de consulta pública, garantida a participação da sociedade civil inclusive na apresentação de candidaturas, nos termos da lei.”
Nosso entendimento é no sentido de que com a descentralização da competência é salutar a criação de uma estrutura robusta de acompanhamento das atividades policiais, entretanto, esses órgãos (Ouvidoria Externa) deveriam ser órgãos superiores ligados diretamente ao Chefe do Poder Executivo da esfera considerada, e não como está previsto: no âmbito de cada órgão policial. A Ouvidoria Geral deve ser instituída no âmbito do Poder Executivo Federal, Estadual e Municipal subordinado, apenas administrativamente, ao chefe do Poder.
O artigo 5° da PEC 51 trata dos direitos adquiridos dos atuais integrantes do Sistema de Segurança Pública do país. Preservando todos os direitos remuneratórios e previdenciários desses atuais profissionais de policia.
“Art. 5° – Ficam preservados todos os direitos, inclusive aqueles de caráter remuneratório e previdenciário, dos profissionais de segurança publica, civis ou militares, integrantes dos órgãos de segurança pública objeto da presente Emenda à Constituição à época de sua promulgação”.
O artigo 6° da proposta é um dispositivo autorizativo que possibilita os municípios, que possuem guarda municipal, a converterem esses órgãos em polícias municipais, realizando ampla reestruturação e adequado processo de qualificação de seus profissionais, conforme parâmetros estabelecidos em lei.
“Art. 6° – O município poderá, observado o disposto no art. 144-A da Constituição, converter sua guarda municipal, constituída até a data de promulgação da presente Emenda à Constituição, em policia municipal, mediante ampla reestruturação e adequado processo de qualificação de seus profissionais, conforme parâmetros estabelecidos em lei”.
Com base nesse dispositivo é importante salientar que na legislação infraconstitucional deve ficar definido um mecanismo de controle e fiscalização da União dessas mudanças. Talvez a exemplo do previsto para as instituições de ensino policial criar uma certificação garantindo que durante a mudança foram respeitados os parâmetros mínimos do conceito de polícia municipal proposto pela nova ordem jurídica.
O artigo 7° apresenta no âmbito dos estados e do Distrito Federal as duas possibilidades de definição de responsabilidades dos novos órgãos policiais que serão parte do sistema nacional de segurança pública. A escolha poderá ser com base territorial – onde os órgãos policiais atuarão com todos os temas do crime e da criminalidade de forma concorrente com limites de circunscrição territorial, ou seja, a polícia municipal de uma cidade realizar no seu território todas as ações policiais (polícias generalistas)[8], idem com as polícias estaduais. A segunda hipótese da proposta prevista no artigo é a divisão de responsabilidade por tipos penais, ou seja, cada polícia atuará com um ou mais focos específicos de crime nas suas ações policiais. Nesse modelo é vedado a sobreposição de tipos penais no rol das duas polícias (municipal e estadual) (São as polícias especializadas)[9]. Comentando sobre a forma de implantação desse modelo de legislação o autor da proposta na sua justificativa reconhece que são várias as possibilidades de combinações inclusive mesclando as duas hipóteses.
“Art. 7° – O Estado ou Distrito Federal poderá, na estruturação de que trata o § 3° do art. 144-A da Constituição, definir a responsabilidade das policias:
I – sobre o território, considerando a divisão de atribuições pelo conjunto do Estado, regiões metropolitanas, outras regiões do Estado, municípios ou áreas submunicipais; e
II – sobre grupos de infração penal, tais como infrações de menor potencial ofensivo ou crimes praticados por organizações criminosas, sendo vedada a repetição de infrações penais entre as policias”.
No artigo 8° o tema é a possibilidade de mudança do regime antigo para o novo regime, mediante concurso interno de provas e títulos, pelos servidores integrantes dos órgãos que forem objeto da exigência de carreira única, ou seja, contemplará todos os integrantes das atuais polícias estaduais e federais. O dispositivo, ao que parece, cria o instituto da transposição de cargos. A transposição de cargos criada por lei estadual já foi matéria considerada pelo Supremo Tribunal Federal em Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 3857, como conflitante com o artigo 37, inciso II da CF, portanto, inconstitucional. Resta verificar se o novo dispositivo constitucional, no caso específico, poderá conviver harmonicamente no ordenamento constitucional com o que reza supracitado artigo.
O 9° artigo da PEC 51 apresenta um prazo máximo de seis anos para a União, Estados, Distrito Federal e os Municípios se adequarem a nova ordem jurídica, período que precisarão realizar as transformações legislativas e institucionais que o caso complexo requer.
Sem dúvida a proposta se aprovada modificará substancialmente as bases nacionais do Sistema de Segurança Pública e do Fluxo de Justiça Criminal.
Propostas debatidas anteriormente no Brasil.
O debate sobre o tema da Segurança Pública historicamente no Brasil surge com maior ou menor intensidade dependendo dos momentos relacionados a crimes de grande repercussão. Foi assim nos casos Daniela Perez, Suzane Richthofen, Dorothy Stang, Eliza Samudio e tantos outros.
Entretanto, o momento mais marcante de debates sobre o tema nos últimos 30 anos foi a partir do dia 01 de fevereiro de 1987, na cidade de Brasília, no Congresso Nacional quando foi instalada a Assembléia Nacional Constituinte, com Poder Constituinte Originário,[10] esse momento histórico discutiu o Brasil como Estado e todos os temas relacionados.
O professor Jorge da Silva possui um importante trabalho e relato sobre os debates que ocorreram naquela época, relacionados a possíveis mudanças do sistema de segurança pública e que rondavam a Assembléia Nacional Constituinte com a ação de todas as forças interessadas tentando influenciar o produto final que conhecemos hoje. Ao que parece, essa força de interesses irá agir novamente no caso da PEC51.
“O tempo era o da Assembléia Nacional Constituinte. A dicotomia “militar/civil” impregnara ideologicamente a discussão sobre o sistema de segurança pública, após anos de regime militar. Antes, as Policias Militares apareciam na Constituição por serem, na condição de “forças auxiliares e reserva do Exército”, corporações voltadas para a segurança interna e a manutenção da ordem pública em sentido estrito. Paralelamente, os pleitos dos diferentes setores e categorias convergiam para a Constituição. Todos queriam “entrar”na Carta Magna, o que, na área da segurança pública, acabou acontecendo. Sobre a segurança pública nos estados, multiplicavam-se as propostas de organização, algumas delas no sentido da desmilitarização das PPMM e BBMM, ao que se opunha o Exército. Outro ponto. No interesse das PPMM e dos BBMM, sobretudo dos oficiais, e do Exército, os integrantes daquelas corporações estaduais foram considerados “militares” (CF. art. 42). Acontece que, promulgada a Constituição em 1988, os lobbies corporativos não cessaram, o que inviabilizou a regulamentação do Artigo 144, prevista no seu § 7°, tornado letra morta. E continuaram as propostas: uma policia, duas polícias, fusão, desmilitarização etc. etc.” (DA SILVA, 1990)
O Professor Jorge da Silva utilizou na sua análise para mensurar as vantagens e desvantagens das propostas que surgiam os seguintes indicadores.
a) Aproveitamento das estruturas físicas existentes;
b) Racionalização dos meios materiais e humanos;
c) Economia de recursos financeiros;
d) Simplicidade na implantação;
e) Utilidade; e
f) Eliminação dos conflitos de competência.
Para a análise realizada o autor utilizou as alternativas definidas abaixo, independentemente de suas possíveis variações.
1. Alternativa A – Duas Polícias: Polícia Judiciária e Polícia Ostensiva;
2. Alternativa B – Duas Polícias: Polícia Judiciária Especializada e Força Policial;
3. Alternativa C – Duas Polícias Completas;
4. Alternativa D – Polícia Única: Polícia Estadual;
5. Alternativa E – Duas Polícias: Polícia Completa e Polícia de Intervenção.
Alternativa A: Segundo DA SILVA, “Em princípio, esta alternativa corresponderia a manter o modelo atual, desenhado pela Constituição de 1988.” A Polícia Civil – Policia Judiciária: apurações das infrações penais; Polícia Militar – Polícia Ostensiva – policiamento ostensivo ( e preservação da ordem.)” (DA SILVA, 1990)
Alternativa B: Segundo DA SILVA, “A polícia civil continuaria com as atuais incumbências, mas se concentraria na apuração dos crimes de autoria desconhecida e se especializaria no combate à criminalidade organizada, liberando-se de ter que manter estruturas para lavrar flagrantes de prisões efetuadas pela Polícia Militar, que seria autorizada a fazê-lo.” (DA SILVA, 1990)
Alternativa C: Duas polícias de ciclo completo. Segundo DA SILVA, “As competências seriam divididas por área geográfica: Polícia Civil (ou Polícia Militar) – Polícia Metropolitana e Policia Militar (ou Polícia Civil) – Polícia do Interior.” (DA SILVA, 1990) Essa alternativa seria muito próxima do modelo francês em vigor hoje.
Alternativa D: Segundo DA SILVA, “Fusão da Polícia Militar e da Polícia Civil numa única polícia estadual, completa, executando todas as fases da função policial.” (DA SILVA, 1990)
Alternativa E: Segundo DA SILVA, “Esta foi, em linhas gerais, a chamada de “solução Afonso Arinos”, ou seja, a absorção pela Polícia Civil dos serviços ( e grande parte dos efetivos) da Polícia Militar. Esta alternativa foi fortemente defendida pelos delegados de polícia durante os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, com a alegação de que com isso se instituiria uma polícia única e civil, e vigorosamente rejeitada pelos oficiais superiores das Polícias Militares. O esquema seria:
Polícia Civil: Polícia Completa – policiamento ostensivo; – investigação criminal; – polícia judiciária.
Polícia Militar: Polícia de Intervenção – polícia de choque.” (DA SILVA, 1990)
Ao final da análise o autor apresenta a seguinte tabela:
Na sua conclusão o autor finaliza informando que a melhor alternativa seria a Alternativa B: Duas Polícias: Polícia Judiciária Especializada e Força Policial, por apresentar o maior número de pontos positivos e o maior saldo de vantagens. Explica, “é medida relativamente simples, útil e, comparativamente, de fácil implementação; elimina os conflitos de competência e não é solução muito onerosa. Mas não racionaliza integralmente os meios humanos e materiais.” (DA SILVA, 1990)
O papel do município na nova ordem jurídica
Não restam dúvidas de que o Poder Municipal e os seus gestores são os mais próximos do cidadão. A implantação de políticas públicas para obter resultados integrados com a comunidade necessariamente precisa passar pelos administradores do município.
Não seria diferente com o tema da segurança pública, o Brasil atualmente possui várias cidades com guardas municipais estruturadas e realizando trabalhos interessantes de prevenção do crime e da criminalidade. Não é mais tão incomum verificarmos guardas municipais sendo chamados a depor na Justiça como condutores e testemunhas de prisões em flagrante. E a Justiça vem considerando possível a execução dessa prisão em flagrante pelo guarda municipal, vejamos a decisão do Superior Tribunal de Justiça – STJ:
“HC 129932 / SP
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. PRISÃO EM FLAGRANTE. GUARDA MUNICIPAL. NULIDADE DA AÇAO PENAL. INEXISTÊNCIA. ART. 301 DO CPP. ORDEM DENEGADA.
1. A prisão em flagrante efetuada pela Guarda Municipal, ainda que não esteja inserida no rol das suas atribuições constitucionais (art. 144, 8º, da CF), constitui ato legal, em proteção à segurança social.(grifo nosso)
2. Se a qualquer do povo é permitido prender quem quer que esteja em flagrante delito, não há falar em proibição ao guarda municipal de proceder à prisão.
3. Eventual irregularidade praticada na fase pré-processual não tem o condão de inquinar de nulidade a ação penal, se observadas as garantias do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, restando, portanto, legítima a sentença condenatória.
4. Ordem denegada.” (HC 129932/SP, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 15/12/2009, DJe 01/02/2010)
Os municípios precisam ficar atentos as necessidades de mudanças do sistema e se prepararem para a eventual aprovação da PEC51. Executar segurança pública como protagonista local requer, além de um esforço político e jurídico muito grande, um forte investimento financeiro, tanto na fase de adequação quanto na fase de execução propriamente dita.
Talvez os obstáculos financeiros sejam os mais difíceis de superar na esfera municipal para a implantação da nova ordem jurídica. O professor François de Bremaeker alerta no seu artigo sobre o Fundo de Participação dos Municípios que a situação financeira desses entes federativos está cada vez mais critica. “A penúria financeira dos Municípios se agrava não apenas com o aumento dos seus encargos, mas também pelo fato de que no atual mandato (2009 a 2012) o FPM sempre cresceu em valor abaixo dos reajustamentos do salário mínimo, sendo que o salário mínimo serve de base para a correção dos valores de mais de 75% das despesas municipais.” (DE BREMAEKER, 2012)
Independentemente dos desafios que os gestores municipais irão enfrentar para inserir seus municípios no escopo moderno da nova ordem jurídica apresentada pela PEC51 é importante ter a disposição política de executar as adaptações com equilíbrio e planejamento estratégico da mudança a fim de causas o menor transtorno possível aos seus servidores públicos e a população de sua cidade.
Conclusão
Baseados nos diversos estudos acadêmicos aqui citados, e na observação empírica da violência nas cidades brasileiras, podemos afirmar que o modelo atual de polícia adotado no país e sua forma de atuação com a partição do ciclo de polícia não está atendendo as necessidades do fluxo de justiça criminal e vem dificultando as ações de enfrentamento do crime e da criminalidade.
O professor Marcos Rolim em artigo escrito na coluna Opinião do Jornal Zero Hora define suas impressões sobre a proposta de mudança:
“…A proposta é avançada e pretende corrigir destacadamente duas distorções: a absurda partição do ciclo de policiamento e a inexistência de carreiras únicas em cada instituição policial.” (Rolim, 2013)
O Ex-Secretário de Segurança Pública de São Paulo, portanto, ex-gestor do maior sistema de segurança pública estadual do país, Ronaldo Marzagão, publicou em artigo, na coluna Opinião do Jornal Estadão a sua visão sobre o atual modelo e a necessidade da reformulação do Sistema:
“O modelo constitucional de funções partidas enseja a idéia de autonomia administrativa e operacional de cada uma das corporações policiais que integram a estrutura de segurança estadual. Propicia formações policiais distintas, originárias de órgãos de ensino diversos. Dificulta o relacionamento profissional e a atuação conjunta das duas corporações. Funciona como caldo de cultura para conflitos de atribuições, para a dispersão de meios e para a superposição de funções entre as polícias, resultando daí efeitos operacionais altamente negativos. Conduz a pesadas estruturas administrativas, operacionais e financeiras, incompatíveis com a eficiência de uma organização policial simples e ágil.” (MARZAGÃO, Ronaldo, 2013)
O Senado Federal instalou no dia 02 de outubro de 2013 a Comissão Especial de Segurança Pública, a Comissão terá 90 dias para analisar as propostas apresentadas sobre o tema dentre elas a PEC 51. Em entrevista a Agência Senado o relator da Comissão Senador pelo Estado do Mato Grosso, Pedro Taques afirmou: “- Vivemos um estado de guerra, com índices de criminalidade alarmantes, 51 mil homicídios por ano. (…)” (TAQUES, 2013). Ao abordar o problema de financiamento declarou: “- Teremos de pensar como a segurança pública será incluída no pacto federativo, o acordo para a divisão de responsabilidades e recursos entre a União, os estados e os municípios.” (TAQUES, 2013). E complementou dizendo: “- Apesar do trabalho importante que a polícia realiza, temos que reconhecer que algo está errado, porque o cidadão não está tendo o seu direito de locomoção, de paz atendido. Teremos de fazer uma transição, talvez de cinco a dez anos. Os direitos adquiridos dos policiais atualmente em atividade serão respeitados, e os novos integrantes terão de ser regidos por outras regras de ascensão baseadas no tempo de serviço e qualificação. Isso já foi testado em outros países e deu certo.” (TAQUES, 2013)
A segurança pública hoje é largamente utilizada como indicador de risco das grandes empresas, que atuam em todos os setores da economia, para definições de investimentos, expansão ou mesmo implantação de unidades. O Brasil precisa acordar para esse problema crônico e viabilizar mudanças estruturais e modernas no Sistema de Segurança Pública, e a PEC 51 é uma excelente visão de mudança que precisa ser considerada na construção e adoção do novo modelo. O debate do novo modelo necessariamente deverá incluir aspectos da nova sociedade brasileira, sem esquecer de visitar o estudo do passado, como bem notou o professor Guaracy Mingardi nas conclusões de sua obra ao tratar do tema, “..Não custa lembrar, porém, uma das mais conhecidas justificativas para o estudo do passado, a de que quem esquece a própria história corre o risco de repeti-la.” (MINGARDI, 1992, pg. 183) Nosso país precisa enfrentar o problema a fim de dar uma melhor resposta aos anseios da sociedade, ou terminará por ser eternamente o país do futuro, só que bem longínquo.
Informações Sobre o Autor
Luiz Carlos Magalhães
Agente de Polícia Federal, lotado na SR/DPF/DF – Especialista em Gestão da Segurança Pública e Defesa Social, Pesquisador integrante do Núcleo de Estudos em Defesa Segurança e Ordem Pública do Centro Universitário do Distrito Federal (UNIDF).