Resumo: O presente trabalho consiste em um estudo acerca da atuação do Poder Judiciário no controle de políticas públicas, os motivos que conduziram à sua intensificação, o seu respaldo constitucional, limites impostos pelo ordenamento jurídico, bem como medidas necessárias à garantia de maior eficácia das decisões judiciais nesse contexto. Partindo da concepção tradicional da tripartição dos poderes, traçada por Montesquieu, retrata as inovações trazidas pela ordem constitucional instaurada pela Constituição Brasileira de 1988, a qual estabelece, ao mesmo tempo, a inafastabilidade do Poder Judiciário e seus limites, os quais devem ser observados sob pena de se instaurar um arbitrário governo dos juízes.
Palavras-chave: Judicialização. Controle Judicial. Políticas Públicas. Separação dos Poderes. Limites. Direito Constitucional.
Abstract: The present study consists of a study about the Judiciary's performance in the control of public policies, the reasons that led to its intensification, its constitutional support, limits imposed by the legal system, as well as measures necessary to ensure greater effectiveness of judicial decisions in this context. From Montesquieu's traditional conception of the tripartition of powers, he portrays the innovations brought by the constitutional order established by the Brazilian Constitution of 1988, which establishes, at the same time, the inafasability of the Judiciary and its limits, which must be observed under an arbitrary government of judges.
Súmário: Introdução. 1. Os Poderes da República Federativa Brasileira. 2. Jurisdição – Princípios e Escopos Fundamentais. 3. A Constitucionalização do Direito Processual e Administrativo. 4. Controle Jurisdicional das Políticas Públicas. 5. O Exemplo da Judicialização da Saúde Pública. Conclusão. Referências Bibliográficas.
Introdução
O tema da judicialização das políticas públicas, também conhecido como controle jurisdicional da Administração Pública, chama atenção e ganha contornos cada vez mais relevantes, em virtude da escassez de recursos financeiros e orçamentários do Poder Público paralelamente à constante necessidade de prestações sociais demandadas pela população à Administração Pública.
Por envolver direitos humanos caros à sociedade em geral – como o direito à vida, à saúde, à educação – as questões que envolvem políticas públicas estão cada dia mais presentes nas demandas submetidas ao crivo do Poder Judiciário em todo o mundo, inclusive no Brasil, gerando preocupantes problemas relacionados à melhor forma de satisfação das pretensões veiculadas em juízo, à existência de recursos financeiros e orçamentários, no Poder Executivo, para o cumprimento das decisões judiciais, além da comum falta de conhecimento técnico dos membros do Poder Judiciário para adotar as medidas mais adequadas a cada caso concreto.
A presente questão deve ser analisada em um contexto de superação da concepção tradicional de “tripartição dos poderes” traçada por Montesquieu, diante da constitucionalização de inúmeras prestações de direitos fundamentais, com aplicabilidade imediata reconhecida na Constituição da República, da Inafastabilidade da Jurisdição erigida pelo Poder Constituinte pátrio como direito fundamental (art. 5º, XXXV), bem como da necessidade de auditamento da Administração Pública como forma de controlar os gastos públicos e a atuação dos governantes diante da escassez de recursos públicos e do pluralismo de interesses sociais.
Em virtude do princípio da ubiquidade (art. 5º, XXXV, CR/88), uma vez violado ou ameaçado um direito do indivíduo – inclusive um direito social, nem mesmo a lei pode excluir tal violação ou ameaça da apreciação pelo Poder Judiciário. Com isso, passaram a chegar ao crivo jurisdicional inúmeras questões antes exclusivas dos Poderes Legislativo e Executivo, sendo obrigatória a prolação de decisão pelo Judiciário diante da vedação ao non liquet.
Ocorre que a atuação do Poder Judiciário em tais questões deve se pautar pelos princípios constitucionais, dentre eles o da razoabilidade e proporcionalidade, sem ultrapassar os limites impostos também pelo Constituinte na atribuição das competências aos diversos órgãos integrantes da República Federativa do Brasil, limitando-se a agir apenas em situações visivelmente necessárias, em que se mostrem evidentes ações ou omissões inconstitucionais ou abusos dos demais Poderes.
O comportamento proativo do Poder Judiciário, proferindo ordens judiciais no sentido de condenar os entes políticos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) na prestação de serviços públicos, em que pese se mostrar necessário em muitas situações, diante da negativa injustificada do Poder Executivo e a premente necessidade comprovada pelo jurisdicionado, pode também, em muitos casos, ser substituído por outros mecanismos de cooperação entre o Poder Judiciário, o Poder Executivo, o Ministério Público, a Defensoria Pública e organizações da sociedade civil, que se mostrem mais eficazes na solução das demandas, com menor dispêndio de recursos públicos, em menor tempo e com melhores resultados, além de evitar desgastes físicos e emocionais aos jurisdicionados.
Uma das áreas de política pública em que mais se observa o controle jurisdicional consiste na área da saúde pública, sendo constante o ajuizamento de ações judiciais que visam ao fornecimento de medicamentos e/ou custeio de procedimentos médicos aos jurisdicionados pelos entes públicos.
Diante de tal cenário, tem se mostrado um dos principais desafios dos Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo a criação de mecanismos e métodos que impeçam o predomínio da microjustiça em detrimento da macrojustiça, garantam os direitos fundamentais dos jurisdicionados sem comprometer o orçamento dos entes públicos e, ainda, sem violar a isonomia entre os indivíduos que se encontram em situações idênticas.
1. OS PODERES DA REPÚBLICA FEDERATIVA BRASILEIRA
A separação dos poderes consiste em um modelo teórico fundamental na história dos países do Ocidente, que transcende a ideia de “tripartição dos poderes” traçada por Montesquieu, estabelecido como forma de evitar o despotismo e o arbítrio decorrente da concentração do poder e das decisões públicas nas mãos de um único órgão ou gestor. Assim, busca-se a fragmentação das funções do Estado entre diferentes órgãos, os quais são especializados em determinadas atividades públicas, e independentes para a tomada das decisões a eles atribuídas pela Constituição e pelas leis, devendo, contudo, serem harmônicos entre si.
Dispõe o art. 2º da Constituição da República Brasileira que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Em que pese haver uma aparente “separação dos Poderes” da República, na verdade, o que temos é uma separação e especialização das funções desempenhadas pela República Federativa do Brasil, sendo o poder uno e indivisível, atribuído ao povo.
As funções principais exercidas pela República Brasileira, quais sejam, as funções legislativa, executiva/administrativa e jurisdicional, foram atribuídas primordialmente a determinados órgãos, como forma de se especializarem e garantirem maior eficiência e melhores resultados.
Sobre o tema, convém nos socorrermos das lições de Marcelo Novelino (2014, p. 356), segundo o qual “a classificação das funções do Estado foi inicialmente esboçada por Aristóteles (384 a 322 a.C.) no texto intitulado “Política”. Nos tempos modernos, John Locke foi o primeiro autor a formular uma teoria da separação dos poderes do Estado, apesar de só tê-lo feito entre Legislativo e Executivo, não contemplando o Judiciário”.
Inspirado na obra de Locke, Montesquieu escreveu o clássico tratado L'Espirit des lois (1748), no qual constatou que todo aquele que é investido no poder tende a dele abusar até que encontre limites, razão pela qual a limitação a um poder, para Montesquieu, só é possível se houver um outro poder capaz de limitá-lo.
Ao Poder Judiciário, foi atribuída, como típica e prioritária, a função jurisdicional, assim como ao Poder Legislativo foi atribuída, como típica e prioritária, a função legislativa e ao Poder Executivo a função executiva/administrativa. Contudo, não se pode olvidar do fato de que há também o exercício de outras funções por esses “Poderes”, ainda que em caráter atípico e secundário.
Ocorre que verificou-se, também, a necessidade de que os Poderes exerçam uns sobre os outros um certo controle a fim de evitar abusos e ações e omissões inconstitucionais, razão pela qual foi instituído o denominado “sistema de freios e contrapesos” (checks and balances), de modo que não ultrapassem os limites estabelecidos pela Constituição.
Nesse contexto, em vista do princípio da ubiquidade ou da Inafastabilidade da Jurisdição (art. 5º, XXXV, CR/88), quando negada uma prestação positiva por parte dos Poderes Executivo e Legislativo, os administrados passaram a pleitear a concessão de tais prestações através do Poder Judiciário, principalmente em virtude da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais disposta no art. 1º, §1º da Constituição.
Com isso, muitas das “escolhas trágicas” até então atribuídas exclusivamente aos Poderes Executivo e Legislativo, isto é, as escolhas relativas a quais políticas públicas seriam formuladas e implementadas de acordo com a disponibilidade orçamentária e financeira do ente público, passaram a ser demandadas também do Poder Judiciário.
Nesse contexto, a separação rígida das funções exercidas pelos Poderes Públicos passou a ser flexibilizada, com maior intromissão do Poder Judiciário nas decisões relacionadas a políticas públicas, recebendo aplausos de alguns e fortes críticas de outros.
2. JURISDIÇÃO – PRINCÍPIOS E ESCOPOS FUNDAMENTAIS
De acordo com Fredie Didier Jr. (2014, p. 101), “a jurisdição é a função atribuída a terceiro imparcial de realizar o Direito de modo imperativo e criativo, reconhecendo/efetivando/protegendo situações jurídicas concretamente deduzidas, em decisão insuscetível de controle externo e com aptidão para tornar-se indiscutível”.
Usualmente, a jurisdição é definida como uma atuação estatal, sendo erigida por alguns como função exclusiva do Poder Judiciário. Contudo, em que pese o protagonismo estatal no exercício da jurisdição, atualmente, não se pode falar em exclusividade, vez que a arbitragem foi erigida também como modalidade de jurisdição, pois, também aplica o direito ao caso concreto com aptidão para tornar-se definitiva/indiscutível, sendo possível, tão somente, a anulação da sentença arbitral pelo Poder Judiciário, mas nunca a sua revisão ou reforma.
Também podemos identificar hipótese de exercício da função atípica jurisdicional pelo Poder Legislativo, quando este julga o Presidente da República nos crimes de responsabilidade (arts. 49, IX e 52, I, CR/88), e pelo Poder Executivo nas sindicâncias e processos administrativos (art. 41, § 1º, II, da CR/88).
Entretanto, a concepção mais comum de jurisdição, que realmente importa ao presente trabalho no tocante à judicialização das políticas públicas, representa, de fato, o poder estatal de interferir na esfera jurídica dos jurisdicionados, aplicando o direito objetivo ao caso concreto e resolvendo a crise jurídica a ele subjacente.
Com efeito, conforme expõe Daniel Amorim Assumpção Neves (2016, p. 162), “tradicionalmente a jurisdição(juris-dic-ção) era entendida como a atuação da vontade concreta do direito objetivo (Chiovenda), sendo que a doutrina se dividia entre aqueles que entendiam que essa atuação derivava da sentença fazer concreta a norma geral (Carnelutti) ou criar uma norma individual com base na regra geral (Kelsen)”.
Contudo, contemporaneamente, observou-se que a concepção de atividade jurisdicional como aquela que se limita a aplicar a norma ao caso concreto, através da subsunção, não mais atende às exigências de justiça do mundo atual, exigindo-se e, ao mesmo tempo, permitindo-se ao órgão jurisdicional uma atuação mais criadora.
Nesse sentido, afirma Daniel Assumpção (ob. cit., p. 162) que “autorizada doutrina passa a afirmar que a jurisdição deveria se ocupar da criação no caso concreto da norma jurídica, resultado da aplicação da norma legal à luz dos direitos fundamentais e dos princípios constitucionais de justiça”.
Deste modo, a função jurisdicional, na visão contemporânea do constitucionalismo (neoconstitucionalismo), tem ganhado novos contornos, notadamente em razão de diversos fatores, tais como aqueles indicados por Fredie Didier Jr. (ob. cit., p. 101):
“i) a redistribuição das funções do Estado, com a criação de agências reguladoras (entes administrativos, com funções executiva, legislativa e judicante) e executivas; ii) a valorização e o reconhecimento da força normativa da Constituição, principalmente das normas-princípio, que exigem do órgão jurisdicional uma postura mais ativa e criativa para a solução dos problemas; iii) o desenvolvimento da teoria dos direitos fundamentais, que impõe a aplicação direta das normas que os consagram, independentemente de intermediação legislativa; iv) a criação de instrumentos processuais como o mandado de injunção, que atribui ao Poder Judiciário a função de suprir, para o caso concreto, a omissão legislativa; v) a alteração da técnica legislativa: o legislador contemporâneo tem-se valido da técnica das cláusulas gerais, deixando o sistema normativo mais aberto e transferindo expressamente ao órgão jurisdicional a tarefa de completar a criação da norma jurídica do caso concreto; vi) a evolução do controle de constitucionalidade difuso, que, dentre outras consequências, produziu entre nós a possibilidade de enunciado vinculante da súmula do STF em matéria constitucional, texto normativo de caráter geral, a despeito de produzido pelo Poder Judiciário.”
Ademais, a jurisdição é balizada pelos princípios da investidura, da imparcialidade, da independência, da aderência da jurisdição ao território, da indelegabilidade, da indeclinabilidade, da inércia, do juiz natural, do devido processo legal, dentre outros diversos princípios.
Com efeito, a jurisdição deve ser exercida por quem dela tiver sido legal, legítima e oficialmente investido, de forma imparcial, isto é, sem interesse no resultado da demanda, e com independência funcional e jurídica, de acordo com seu convencimento motivado.
Não obstante, a jurisdição deve ser exercida dentro de limites territoriais estabelecidos especificamente pela lei (competência territorial), sendo indelegável a terceiros e indeclinável por aquele que foi devidamente investido pelo Poder Judiciário e provocado pelo jurisdicionado (princípio da inércia). Outrossim, devem ser observadas normas de distribuição processual previamente estabelecidas, vedando-se o tribunal de exceção, bem como obedecidas as normas procedimentais positivadas, inclusive aquelas atinentes ao exercício da ampla defesa e contraditório.
Tais princípios servirão de balizas e indicadores para que se atinjam os escopos fundamentais da jurisdição, são eles: jurídico, social, político e educacional. Nota-se, portanto, que a jurisdição, na concepção contemporânea, além da finalidade de aplicação concreta da vontade do direito, resolvendo-se a chamada “lide jurídica” (por meio da criação da norma jurídica para o caso concreto), também possui escopos social, político e educacional.
Ora, não pode a jurisdição pretender tão somente resolver a lide que lhe foi apresentada, mas também proporcionar às partes nela envolvidas a pacificação social, ou nas palavras de Daniel Assumpção, “resolver a lide sociológica”. Não é suficiente a resolução do conflito no aspecto jurídico, sendo necessária, também, a resolução no aspecto fático, isto é, as partes envolvidas devem ficar satisfeitas com a solução de modo que o conflito seja extinto também no plano fático.
O escopo educacional da jurisdição é de grande importância não apenas para o caso concreto julgado pelo Poder Judiciário, mas também para futuros conflitos com potencial de serem submetidos ao crivo jurisdicional, vez que o exercício da função jurisdicional também ensina aos jurisdicionados – e não somente às partes – os seus direitos e deveres.
Sobre o escopo político da jurisdição, por sua importância ao estudo do tema da judicialização das políticas públicas, podemos nos valer das palavras de Daniel Assumpção (2014, p. 246) que o analisa sob três diferentes vertentes:
“i) se presta a fortalecer o Estado: É claro que, funcionando a contento a jurisdição, o Estado aumenta a sua credibilidade perante seus cidadãos, fortalecendo-se junto a eles. Politicamente, portanto, é importante uma jurisdição em pleno e eficaz funcionamento como forma de afirmar o poder estatal;
ii) a jurisdição é o último recurso em termos de proteção às liberdades públicas e aos direitos fundamentais: valores essencialmente políticos de nossa sociedade. Na realidade, o Estado, como um todo, deve se preocupar com tais valores, mas, quando ocorre a concreta agressão ou ameaça, mesmo provenientes do próprio Estado, é a jurisdição que garante o respeito a tais valores;
(iii) incentivar a participação democrática por meio do processo, de forma que o autor de uma demanda judicial, ou ainda o titular do direito debatido, mesmo que não seja o autor (por exemplo, os direitos transindividuais), possa participar, por meio do processo, dos destinos da nação e do Estado. O exemplo mais claro do que se afirma é a ação popular, por meio da qual qualquer cidadão pode desfazer ato administrativo lesivo ao Erário Público, bem como condenar os responsáveis ao ressarcimento. É o cidadão, por meio do processo, interferindo na administração pública. Por outro lado, nas ações coletivas, em especial nas que tutelam direitos difusos, determina-se a espécie de sociedade em que estaremos vivendo.”
Observa-se, portanto, os escopos da jurisdição contemporânea transcendem a finalidade jurídica de solução do conflito que lhe é apresentado, havendo nítido escopo político, social e educacional, sendo, inclusive, um mecanismo de concretização da democracia e de participação social na determinação da sociedade em que vivemos.
3. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PROCESSUAL E DO DIREITO ADMINISTRATIVO
Outro aspecto relevante do neoconstitucionalismo, que decorre do próprio reconhecimento da força normativa da Constituição, traduz-se na constitucionalização do Direito, inclusive do Direito Processual e do Direito Administrativo.
Atualmente, mostra-se inviável o estudo e a aplicação das regras processuais e administrativas sem que se atente às normas constitucionais, principalmente aquelas erigidas pelo Constituinte como normas fundamentais para a concretização do Estado Democrático de Direito brasileiro, a exemplo dos fundamentos e dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (arts. 1º e 3º, CR/88), bem como dos direitos e garantias fundamentais (arts. 5º a 17, CR/88).
Portanto, ao se interpretar uma norma processual ou de natureza administrativa, deve ser aferida a sua compatibilidade com a dignidade da pessoa humana, com a soberania, cidadania, pluralismo político e os valores sociais do trabalho e da iniciativa privada, além dos objetivos fundamentais a serem perseguidos pelo Poder Público brasileiro.
Nesse contexto, possuem relevância alguns conceitos desenvolvidos pela doutrina e pela jurisprudência estrangeira, a exemplo da “vedação ao retrocesso social”, a “reserva do possível” e o “mínimo existencial”, estes dois últimos desenvolvidos primitivamente pelo Tribunal Constitucional Alemão.
A ideia de “vedação ao retrocesso social” advém da concepção de que a sociedade deve sempre buscar a evolução dos direitos sociais, a melhoria das condições de vida humana, não se permitindo a redução do grau de satisfação e concretização de tais direitos. Esta ideia é objeto de acaloradas discussões em contextos de crise econômica, como a que vivenciamos nos últimos tempos, havendo quem defenda a sua relativização nessas situações.
A reserva do possível, por sua vez, foi mencionada pelo Tribunal Constitucional Alemão no sentido de que o Estado somente pode ser obrigado a oferecer e garantir prestações que razoavelmente podem ser dele esperadas em determinadas condições econômicas, sociais e culturais, considerando sua disponibilidade jurídica, financeira e orçamentária.
Muito invocada pelo Poder Público quando demandado em Juízo por alguma prestação positiva, a reserva do possível, em que pese sirva como importante limite ao Poder Judiciário quando da condenação dos entes públicos a determinadas prestações positivas, não pode servir como óbice intransponível à satisfação dos direitos fundamentais dos cidadãos.
Nesse sentido, também deve ser considerado o denominado “mínimo existencial”, conceito também desenvolvido pelo Tribunal Constitucional Alemão, em certa complementação à ideia da reserva do possível, para indicar a necessidade de o Estado garantir aos seus indivíduos prestações mínimas que lhes assegurem condições de vida digna.
O conteúdo do “mínimo existencial” é fluido e subjetivo, de modo que seus contornos dependem do momento histórico, do grau de concretização dos direitos individuais e sociais em dada sociedade, das condições financeiras do Estado, dos níveis de educação e saúde da população, dentre outros fatores.
Quanto ao tema, Eduardo Cambi (2011, p. 392) elucida que o conceito de dignidade da pessoa humana e de mínimo existencial não resta definido na Constituição pátria, sendo objeto de interpretação pelos Poderes constituídos e pela doutrina, consistindo, ainda, em conceito indeterminado que deve ser objeto de verificação num dado momento histórico, social e econômico do Estado. O autor propõe, ainda, a adoção do utilitarismo negativo para a definição das condições mínimas necessárias para a definição de uma vida digna, considerando que a acepção de felicidade é eminentemente subjetiva.
Logo, a concepção contemporânea do direito processual e administrativo exige a sua total conformação com os princípios, direitos e garantias fundamentais elencados na Constituição da República, os quais devem necessariamente determinar a interpretação conferida a cada dispositivo legal ou normativo, sob pena de controle jurisdicional de constitucionalidade.
4. CONTROLE JURISDICIONAL DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
O controle jurisdicional das políticas públicas se apresenta como consequência do reconhecimento da força normativa da Constituição, da constitucionalização do Direito, da eleição do princípio da ubiquidade como direito fundamental, e da ampliação do acesso à justiça, que permitem aos administrados inconformados com a negativa ou omissão do Poder Executivo e/ou Legislativo a buscarem a tutela junto ao Poder Judiciário.
A atuação do Poder Judiciário em questões que envolvem políticas públicas contrapõe a concretização dos direitos fundamentais dos jurisdicionados e o auditamento/controle da Administração Pública aos limites orçamentários e financeiros dos entes públicos, bem como à competência primária do Poder Executivo para a gestão das políticas e dos recursos públicos, gerando controvérsias.
Inicialmente, entendo ser impossível proibir-se todo e qualquer tipo de controle jurisdicional da execução das políticas públicas, vez que em um Estado Democrático de Direito, como o Estado Brasileiro, não se pode cogitar a imunidade do Estado ao alcance de suas próprias leis e do poder imperativo do Poder Judiciário.
Aliás, o modelo de separação dos poderes foi desenhado em conjunto com o modelo de “checks and balances”, sendo totalmente possível e desejável que os poderes exerçam controle recíproco, a fim de evitar abusos, excessos e atos inconstitucionais. Outrossim, devem haver mecanismos eficazes de controle dos gastos públicos e da atuação dos governantes diante da escassez de recursos públicos e do pluralismo de interesses sociais. Tal controle é corriqueiramente exercido pelo Poder Legislativo, com o auxílio dos Tribunais de Contas, mas nada obsta que seja praticado pelo Poder Judiciário quando provocado.
Entretanto, a atuação do Poder Judiciário no controle de políticas públicas deve observar limites e, acima de tudo, os limites impostos pela Constituição Federal e pelo ordenamento jurídico pátrio, não podendo, em hipótese alguma, o Poder Judiciário substituir o legislador ou o administrador público nas decisões a eles atribuídas pelo Constituinte.
Com efeito, a atuação ilimitada e desmedida do Poder Judiciário em questões que evolvam políticas públicas podem resultar em graves problemas, tais como a politização da justiça e o descrédito do Poder Judiciário; a falta de competência institucional técnica dos juízes para a prolação de decisões sobre políticas públicas; além do problema contramajoritário em virtude da ausência de legitimidade democrática do Poder Judiciário, gerando forte tensão entre democracia, participação social e constitucionalismo.
O fenômeno da politização da justiça constitui-se na situação em que há a transferência da responsabilidade social de implementação das políticas públicas dos gestores públicos para o Poder Judiciário, desonerando aqueles de suas obrigações impostas pela Constituição e pela lei pátria. Tal fenômeno pode resultar na responsabilização social do Judiciário por decisões políticas que não lhe são próprias, o que ocasionaria o descrédito da população em relação ao Poder Judiciário.
Além disso, é notória a ausência de conhecimento técnico dos juízes no tocante aos temas que permeiam as políticas públicas, tais como saúde pública, educação, engenharia, administração, esporte, dentre outros. Sobre este tema, importa destacar a questão da judicialização da saúde pública, como nas ações em que são pleiteados medicamentos e procedimentos cirúrgicos, nas quais o Poder Judiciário se mostra incapaz tecnicamente para aferir sobre a real necessidade do medicamento pleiteado, ou eventual existência de medicamento similar de menor custo, ou adoção de alguma outra medida que traria maior eficácia no tratamento de determinada doença.
Não obstante, tendo em vista que os juízes não são eleitos pelo povo, mas investidos de jurisdição após concurso público, há ainda o problema contramajoritário de ausência de legitimidade democrática do Poder Judiciário para decidir tais questões.
Diante disso, a atuação do Poder Judiciário em demandas que discutam a formulação ou implementação de políticas públicas deve se pautar em critérios objetivos, visando tão somente impedir evidentes violações à Constituição Federal, mas com bastante cautela, devendo se limitar a situações de ação ou omissão inconstitucional, violadoras de Direitos Fundamentais, norteada pelo Princípio da Subsidiariedade.
Outrossim, deve o Poder Judiciário se valer de mecanismos e métodos que lhe garantam maior legitimidade, conhecimento técnico e clareza na tomada de suas decisões, a fim de garantir maior eficácia à tutela jurisdicional e evitar a denominada microjustiça, isto é, efetivar a justiça a partir da análise apenas de casos específicos individuais em detrimento de inúmeras pessoas que se encontram em situações semelhantes e que não serão beneficiadas por tal decisão, podendo inclusive serem prejudicadas em razão da escassez dos recursos públicos.
5. O EXEMPLO DA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE PÚBLICA
O comportamento proativo do Poder Judiciário, proferindo ordens judiciais no sentido de condenar os entes políticos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) na prestação de serviços públicos de saúde ou no fornecimento de certos medicamentos a determinada(s) pessoa(s), em que pese se mostrar necessário em muitas situações, diante da negativa injustificada do Poder Executivo em promover o atendimento pelo Sistema Único de Saúde e a premente necessidade comprovada pelo jurisdicionado, pode, em muitos casos, ser substituído por outros mecanismos de cooperação entre o Poder Judiciário, o Poder Executivo, o Ministério Público, a Defensoria Pública e organizações da sociedade civil, que se mostram mais eficazes na solução das demandas, com menor dispêndio de recursos públicos, em menor tempo e com melhores resultados.
Foi desenvolvida uma pesquisa pelo professor Daniel Wei Liang Wang (2009), durante seu curso de Mestrado em Direito do Estado junto à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP, na qual são analisados os impactos da judicialização da saúde nas finanças públicas e apresentadas diversas críticas a este fenômeno, apontando como principais as seguintes: “(1) as injustiças distributivas geradas por essas ações; (2) a ilegitimidade do Poder Judiciário para determinar gastos públicos em matéria de políticas públicas e (3) sua falta de informações e conhecimento para realizar esta tarefa”.
Contudo, Daniel Wang alerta em seu trabalho que, conquanto tenda a concordar com grande parte das críticas por ele analisadas e expostas e, inclusive, com sua relevância para o estudo do tema da judicialização da saúde, entende que não são argumentos determinantes, capazes de justificar uma postura totalmente refratária do Poder Judiciário frente a demandas envolvendo o direito à saúde.
O trabalho de Wang também se mostra relevante ao tratar da importância da participação democrática nas políticas públicas, inclusive, por meio do próprio Poder Judiciário, com medidas participativas e integrativas.
Outrossim, deve ainda ser reconhecido o importante papel do médico e demais profisisonais da área da saúde em demandas que envolvam prestações de saúde pública, ainda que mediante prova pericial, a fim de se verificar, no caso concreto, a real necessidade do medicamento ou tratamento pleiteado, ou sua possível substituição por outro de menor custo.
César Caúla (2010, p. 135 a 138) adverte para os efeitos das decisões judiciais que concedem medicamentos de alto custo, em demandas individuais, quanto à política macro de saúde, resultando na denominada “microjustiça”, que deixa de conceber a saúde pública como um todo e as ações prioritárias traçadas pelo gestor público com capacidade para beneficiar maior número de pessoas são prejudicadas em prol de tutelar que beneficiam uma única pessoa, violando, inclusive, o princípio da isonomia.
Portanto, as decisões judiciais em demandas que envolvam políticas públicas de saúde, assim como políticas públicas de outras naturezas, devem obedecer aos limites constitucionais e legais, evitando-se substituir o administrador público e o legislador, atuando apenas em caráter subsidiário em casos de evidente violação de direitos e princípios fundamentais. E, mesmo nesses casos, deve o Poder Judiciário buscar mecanismos que lhe garantam maior legitimidade e conhecimento sobre o tema, evitando-se o comprometimento das demais políticas públicas a cargo do Poder Executivo.
CONCLUSÃO
Verifica-se que o tema da judicialização das políticas públicas é polêmico e fomenta grandes divergências tanto na doutrina brasileira como na jurisprudência de nossos tribunais.
De um lado, a Constituição da República reconhece a separação dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, inclusive como cláusula pétrea (art. 60, § 4º, da CR/88), atribuindo-lhes as funções típicas de legislar, administrar e julgar, respectivamente, contudo, por outro lado, reconhece a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, dentre eles os direitos sociais (de índole eminentemente prestacional).
Em virtude da escassez dos recursos públicos, é necessário que o administrador público faça as denominadas “escolhas trágicas”, elencando as políticas públicas que serão implementadas com os recursos disponíveis, e deixando de atender outras demandas sociais da população consideradas menos importantes naquele momento.
Diante disso, e em razão do princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, CR/88), erigido pelo Constituinte como direito fundamental, os titulares de direitos não satisfeitos pelos Poderes Executivo e Legislativo têm provocado, paulatinamente, o Poder Judiciário em busca de tutela jurisdicional que condene e force os Poderes Executivo e Legislativo a formular e executar determinadas prestações.
Ocorre que, em que pese a grande importância da atuação do Poder Judiciário na concretização dos direitos fundamentais e a garantia de sua aplicabilidade imediata (art. 5º, § 1º, CR/88), a atuação do Poder Judiciário esbarra no problema contramajoritário (ausência de legitimidade democrática do Judiciário que não possui membros eleitos pelo povo) e na falta de conhecimento técnico dos juízes para decidir sobre temas que não lhes são próprios (ex: saúde, educação, engenharia e etc.), razão pela qual deve observar limites impostos pela ordem constitucional e legal pátria, evitando-se a politização da justiça, a microjustiça, a prolação de decisões falhas e o consequente descrédito do Poder Judiciário.
Ademais, a atuação do Poder Judiciário em questões próprias dos demais poderes somente se justifica em casos de ação ou omissão inconstitucional, violadoras de direitos fundamentais, observando-se necessariamente o princípio da subsidiariedade como norteador da atividade judicante.
Informações Sobre o Autor
Rayssa Sousa Kuhn
Analista Processual do Ministério Público do Trabalho. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Goiás Campus Goiânia. Pós-Graduada em Direito Constitucional Aplicado pela Faculdade Damásio de Jesus. Pós-Graduada em Direito Notarial e Registral pela UNIDERP – Universidade Anhanguera