Resumo: O presente artigo analisa o conteúdo e significado dos institutos jurídicos da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais, tendo em vista a crescente utilização e importância deles no atual estágio do Estado Democrático de Direito. Por meio deste estudo, objetiva-se contribuir para a correta aplicação desses princípios no âmbito de um caso concreto, evitando-se a banalização das referidas normas, que é um risco já considerado por alguns estudiosos do direito. Foi abordado, também, de maneira sintética, o fenômeno conhecido como eficácia horizontal dos direitos fundamentais, que contribuiu, direta ou indiretamente, para fomentar o interesse dos operadores do direito em sustentar as prerrogativas dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana. Trata-se de um trabalho teórico-documental, por fazer uma revisão de literatura sobre o assunto. Ao final do trabalho, a título de conclusões, foi destacada a conexão entre ambos institutos.
Palavras-chave: direito constitucional; dignidade da pessoa humana; direitos fundamentais; conexão; papel do estado democrático de direito.
Resumen: El presente estudio desea analizar el contenido y significado de los institutos jurídicos de la dignidad de la persona humana y de los derechos fundamentales, teniéndose en cuenta la gran utilización e importancia de ellos en el actual momento del Estado Democrático de Derecho. A través de este trabajo, se ha intentado contribuir para la exacta aplicación de esos principios en el ámbito de un caso concreto, evitándose la simplificación de las referidas normas, que es un riesgo ya pensado por estudiosos del derecho. Se ha presentado, también, de modo resumido, el fenómeno conocido como eficacia horizontal de los derechos fundamentales y de la dignidad de la persona humana. Se trata de un trabajo teórico-documental, ya que hace una revisión de literatura sobre el asunto. En el final, a título de conclusiones, ha sido destacada la conexión entre ambos institutos.
Palabras-clave: derecho constitucional; dignidad de la persona humana; derechos fundamentales; conexión; función del estado democrático de derecho.
Abstract: This article studies the content and meaning of legal institutions of human dignity and fundamental rights, considering the increasing use and importance of the current stage of the Democratic State of Law. This study aims to contribute to the correct application of these principles in a particular case, avoiding the misuse of those institutes, which is a risk already considered by some academics of law. It will also be addressed in a summary way, the phenomenon known as horizontal effectiveness of fundamental rights, which contributed, directly or indirectly, to further stimulate the interest of legal operators in maintaining the prerogatives of the fundamental rights and human dignity. The end of work will highlight the connection between them.
Keywords: constitutional law; human dignity; fundamental rights; connection; role of the democratic state of law.
Sumário: 1. Introdução – 2. Os direitos fundamentais – 3. Uma breve consideração sobre a aplicação dos direitos fundamentais nas relações horizontais – 4. A dignidade da pessoa humana – 5. Relação entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais – 6. Considerações finais – 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A dignidade da pessoa humana assume, a cada dia, papel mais importante no contexto do Estado Democrático de Direito. No passado, a humanidade sofreu com as malvadezas provocadas pelo Estado. Superada aquela infeliz fase da história mundial, com o advento da Declaração Universal da ONU, de 1948, foram impostos limites aos poderes estatais, que permitiram aos indivíduos conviver em um cenário de maior segurança, paz e dignidade em suas vidas, nos termos da lição de Moraes (2003).
Com o passar do tempo, observou-se que o Estado não era o único que poderia lesar os direitos dos indivíduos, mas também os particulares causariam, eventualmente, ameaças a tais direitos. Surgiu, como se verá mais adiante, inicialmente na Alemanha, uma corrente teórica que entendia serem aplicáveis os direitos fundamentais[1] não só nas relações verticais, entre Estado e indivíduo, mas também nas relações horizontais existentes entre os particulares.
Hodiernamente, é sabido que os grupos privados são detentores de poderes ideológicos, econômicos e políticos. Sarmento (2004), analisando o contexto do Estado pós-social, ensina que:
“(…) se no Estado Social o público avançara sobre o privado, agora ocorre o fenômeno inverso, com a privatização do público. Público e privado cada vez mais se confundem e interpenetram, tornando-se categorias de difícil apreensão neste cenário de enorme complexidade. Numa sociedade desigual como a brasileira, com baixo nível de mobilização política, onde o Estado sempre esteve privatizado, eis que instrumentalizado em prol dos interesses privados das elites, o processo descrito encerra graves riscos. Teme-se que o Estado se torne flexível para alguns, mas que continue muito duro com os outros; que a administração seja consensual para os que têm algum poder, mas imperativa e fria para os que não têm poder nenhum”[2].
Infere-se do cenário colacionado acima que, atualmente, foram maximizadas as situações em que particulares geram pressões a outros indivíduos, ocasionando, com isso, maiores chances de se desrespeitar os direitos fundamentais nas relações horizontais.
Destarte, como será explicado em momento oportuno, desenvolveram-se diversas teorias para justificar a aplicação e os efeitos dessas pretensões essenciais nas relações inter-privadas, posto que possuem, essas últimas, a peculiaridade em que ambas as partes são detentoras daqueles direitos. Nesse cenário, faz-se importante contra-balancear a vigência dessas pretensões e o princípio da autonomia da vontade.
Contudo, não se pode olvidar que o princípio da dignidade da pessoa humana possui conexões com os direitos fundamentais e que os operadores do direito tentam ou tentarão fazer uso, cada vez mais, dessas pretensões constitucionais. Todavia, a utilização incorreta desses institutos poderá causar banalização e descrédito dos mesmos. Como bem destacou Sarmento (2004):
“Os direitos fundamentais, que constituem, ao lado da democracia, a espinha dorsal do constitucionalismo contemporâneo, não são entidades etéreas, metafísicas, que sobrepairam ao mundo real. Pelo contrário, são realidades históricas, que resultam de lutas e batalhas travadas no tempo, em prol da afirmação da dignidade humana”[3].
O presente artigo abordará os âmbitos e limites conceituais da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais. O cerne é contribuir para uma interpretação correta e sintonizada com o atual estágio do Estado Democrático de Direito, em observação à relevância desses institutos.
2. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Dimoulis e Martins (2007) entendem que, para se falar em direitos fundamentais, há que se estar presente três elementos: Estado, indivíduo e texto normativo regulador da relação entre Estado e indivíduos[4]. Assim, “essas condições apresentaram-se reunidas somente na segunda metade do século XVIII”[5]. Ainda sustentam que, sem a existência do Estado, esses direitos não poderiam ser garantidos e cumpridos.
Apesar de que o elemento indivíduo necessite existir para se conceber a idéia de pretensões constitucionais, tais autores (2007) salientam que, “no passado, as pessoas eram consideradas membros de grandes ou pequenos coletivos (família, clã, aldeia, feudo, reino), sendo subordinadas a tais coletivos e privadas de direitos próprios”[6]. Posteriormente, nas constituições modernas, o indivíduo passou a ser considerado um ser moral, independente e autônomo, o que possibilitou o reconhecimento de direitos individuais, tais como a liberdade, a igualdade e a propriedade.
Por sua vez, o terceiro requisito é o texto normativo regulador da relação entre Estado e indivíduos que, conforme os aludidos autores (2007), é exercido pela Constituição, que declara e, ao mesmo tempo, garante determinados direitos fundamentais.
Sandoval Alves da Silva (2007) enfatiza que:
“as teorias dos direitos fundamentais foram formuladas de acordo com a organização do Estado em cada época histórica, em função da relação entre o Estado e os súditos, uma vez que nessa relação se estabelecem os direitos, as garantias e as liberdades dos cidadãos”[7].
É bastante utilizada a expressão gerações dos direitos fundamentais, o que gera uma idéia de gradação.
As pretensões essenciais de primeira geração referem-se aos direitos individuais e políticos, cuja finalidade era limitar o poder opressor do Estado a favor dos indivíduos. Nessa época, vivia-se sob as batutas do Estado liberal, que se posicionava distante das relações privadas. Esses direitos tiveram origem nas doutrinas iluminista e jus naturalista, dos séculos XVII e XVIII, englobando a vida, liberdade, propriedade, igualdade formal, as liberdades de expressão coletiva, os direitos de participação política e, ainda, algumas garantias processuais individuais.
Com o declínio do Estado Liberal, surge o chamado Welfare State (Estado Social), cujo objetivo primordial era minimizar a injustiça e permitir aos cidadãos uma melhoria na qualidade de vida. Tem-se, nesse momento, um Estado intervencionista e assistencial, que adotava práticas no campo social. Daí serem de segunda geração tais direitos, chamados de sociais.
Já os direitos de terceira geração relacionam-se aos direitos coletivos e difusos, vez que transcendem o homem-indivíduo. Como exemplos citam-se o direito ao meio ambiente sadio, o direito do consumidor, o direito ao desenvolvimento econômico sustentável e a conservação do patrimônio cultural.
Os direitos de quarta geração referem-se à universalização dos direitos humanos, ao cosmopolitismo, à democracia universal e aos direitos de solidariedade. Eles representam a quebra das fronteiras estatais. Seus defensores sustentem a idéia de que as pretensões constitucionais têm que acompanhar a globalização e, portanto, há que se por um fim às fronteiras geográficas entre os países.
Salienta-se que, atualmente, tem-se falado em direitos fundamentais de quinta geração, sendo aqueles relacionados à realidade virtual, em razão do grande desenvolvimento da internet. Bonavides (2008), de outro turno, refere-se a quinta geração dessas pretensões sob outra ótica, dizendo que eles se relacionam ao direito à paz.
Faz-se mister atentar-se ao fato de que a terminologia gerações sugere, a princípio, uma equivocada idéia de que cada nova geração substitui a anterior, o que não é verdade. Tal fato pode ser comprovado através da análise da própria Constituição da República de 1988 (CR/88), que engloba em seu corpo normativo direitos de todas as gerações.
Na CR/88, referências às pretensões essenciais são encontradas em diversas partes do texto constitucional, destacando-se o título II: “Dos direitos e garantias fundamentais”, que regulamenta direitos individuais, coletivos, sociais e políticos.
Dimoulis e Martins (2007) criticam a utilização do termo geração que, para eles, não é cronologicamente exato, pois, ao se considerar os aspectos históricos, “(…) pode-se indicar que já havia direitos sociais garantidos nas primeiras Constituições e Declarações do século XVIII e de inícios do século XIX”[8]. Por essa razão, de acordo com aqueles autores (2007), uma parte da doutrina prefere se referir às categorias dos direitos fundamentais utilizando o termo “dimensões”.
Hernández Martínez (1995) leciona que “os direitos fundamentais são representantes de um sistema de valores concreto, de um sistema cultural que deve orientar o sentido de uma vida estatal contida em uma Constituição (…)”[9].
A tarefa de estabelecer um conceito uníssono e preciso das mencionadas pretensões é árdua. A origem da expressão “direitos fundamentais” é tedesca e, de acordo com Sandoval Alves da Silva (2007), “representa os direitos positivados nos documentos constitucionais”[10].
Consoante ao dito alhures, no passado, mais precisamente durante o constitucionalismo liberal clássico, as pretensões essenciais serviam de proteção ao indivíduo contra as ofensas do Estado, ao fixar, a ele, limites jurídicos e políticos. Nessa linha de raciocínio, Dimoulis e Martins (2007) exprimem que:
“direitos fundamentais são direito público-subjetivos de pessoas (física ou jurídicas), contidos em dispositivos constitucionais e, portanto, que encerram caráter normativo supremo dentro do Estado, tendo como finalidade limitar o exercício do poder estatal em face da liberdade individual”[11].
A conceituação acima não é a melhor para ser adotada nos dias atuais. Considera-se que o Estado e a sociedade evoluíram e, como conseqüência, houve o desenvolvimento dos direitos e das garantias fundamentais. Atualmente, o campo de abrangência dessas pretensões públicas subjetivas cresceu, já que, além de defender a pessoa contra os entes estatais, também constitui instrumento de defesa contra outros particulares.
Sem o desejo de exaurir o conceito de direitos fundamentais, Coelho (2009) exprime que eles “são componentes de um regime democrático livre, sendo sua principal função possibilitar a existência e proteger a permanência deste regime”[12].
A seu turno, Sarlet (2007b), mais concatenado com o desenvolvimento da sociedade, enfatiza que:
“Os direitos fundamentais exprimem determinados valores que o Estado não apenas deve respeitar, mas também promover e proteger, valores esses que, de outra parte, alcançam uma irradiação por todo o ordenamento jurídico – público e privado – razão pela qual de há muito os direitos fundamentais deixaram de poder ser conceituados como sendo direitos subjetivos públicos, isto é, direitos oponíveis pelos seus titulares (particulares) apenas em relação ao Estado”[13].
Nesse mesmo diapasão encontra-se o conceito abaixo:
“Os direitos fundamentais são concebidos como princípios supremos do ordenamento jurídico, não só na relação do indivíduo com o poder público, atuando em forma imperativa. Afetam, também, a relação recíproca dos atores jurídicos particulares e limitam sua autonomia privada, regendo-se, então, como normas de defesa da liberdade e, ao mesmo tempo, como mandados de atualização e deveres de proteção para o Estado”[14].
Biagi (2005) lembra que pretensões constitucionais e democracia são indissociáveis, porque o “ideal democrático se realiza, sobretudo, pelo compromisso na efetivação dos direitos fundamentais”[15]. Essa doutrinadora (2005) aduz que “os direitos fundamentais constituem os pressupostos sobre os quais deve-se edificar qualquer sociedade democrática”[16].
Adverte-se que, as pretensões em exame, por estarem umbilicalmente ligadas a realidade social, sujeitam-se a uma mudança de significado, acompanhando a natural evolução da sociedade.
A concepção dos direitos fundamentais revela uma dupla dimensão, considerada como direitos subjetivos e objetivos. Na primeira perspectiva, as pretensões constitucionais afiguram-se como garantia concedida aos indivíduos e tutelam a liberdade, a autonomia e a segurança da pessoa humana frente ao Estado e aos demais membros do corpo social. Na segunda dimensão, tais direitos atuam como fundamento da ordem político-jurídica do Estado, que se propõem a emanar uma ordem dirigida ao Ente Público, no sentido de que a ele incumbe a obrigação permanente de concretização e realização de tais pretensões essenciais.
Destarte, os direitos fundamentais que no início objetivavam proteger o indivíduo do Estado, atualmente, também visam à proteção contra outros particulares e, além disso, por meio do conteúdo dessas pretensões, surge a possibilidade de o indivíduo receber alguma prestação do Estado. Esses direitos relacionam-se com cada momento histórico, em posições jurídicas essenciais que concretizam as exigências da liberdade, igualdade e dignidade entre os seres humanos. Desse modo, são elementos essenciais da ordem democrática. Sarlet (2007a) entende que os:
“Direitos fundamentais são, portanto, todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas que, do ponto de vista do direito constitucional positivo, foram, por seu conteúdo e importância (fundamentalidade em sentido material), integradas ao texto da Constituição e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos (fundamentalidade formal), bem como as que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se à Constituição material, tendo, ou não, assento na Constituição formal”[17].
Nesse ínterim, de acordo com Sarlet (2007a), as pretensões públicas subjetivas podem ser encontradas em várias partes da CR/88, bem como em tratados internacionais, inclusive passíveis de constituir direitos não escritos decorrentes do regime e dos princípios adotados pela mesma CR/88. Segundo Cattoni de Oliveira (2002):
“O direito deverá englobar os princípios aos quais os indivíduos devem estar submetidos, quando pretendem orientar a vida social através do direito. Deverá, portanto, englobar os princípios que tornem possível o processo de legitimação de direitos. Tais princípios serão os chamados direitos fundamentais. Os direitos fundamentais exprimem as condições de possibilidade de um consenso racional acerca da institucionalização das normas do agir”[18].
Silva (2008), ao discorrer sobre a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, enfatiza que, dentro de um caso concreto, é plenamente possível que exista a possibilidade de renúncia ou negociação dessas pretensões. Com isso, o citado autor (2008) quebra aquela concepção tradicional, ensinada na maioria dos manuais de direito constitucional, em que os direitos dessa natureza possuem as características de inalienabilidade, imprescritibilidade, irrenunciabilidade e inegociabilidade. Essas características podem ser vistas em sua totalidade apenas nas relações verticais entre o Estado e indivíduos, pois nas relações horizontais há a possibilidade de, por exemplo, as partes negociarem suas pretensões essenciais.
3. UMA BREVE CONSIDERAÇÃO SOBRE A APLICAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES HORIZONTAIS
Barroso (2008) explana que, no direito brasileiro, a partir de 1988, a CR/88 passou a desfrutar de uma supremacia material (axiológica), além da supremacia formal. Ensina que, hodiernamente, a CR/88 figura no centro do sistema jurídico, como parâmetro de validade aplicado à ordem infraconstitucional e como vetor de interpretação de todas as normas do ordenamento.
As normas constitucionais passaram a ter efeito expansivo. Na lição de Barroso (2008), “os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional”[19].
A denominada constitucionalização do direito civil é conseqüência do Estado Social que, no Brasil, foi consagrado pelo art. 3º da CR/88 ao traçar como objetivos principais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, erradicando a pobreza, a marginalização, e reduzindo as desigualdades sociais e regionais.
Observa Lobo (2008) que “a ordem jurídica infraconstitucional deve concretizar a organização social e econômica eleita pela Constituição, não podendo os juristas desconsiderá-la, como se os fundamentos do direito civil permanecessem ancorados no modelo liberal do século XIX”[20]. Em sentido equivalente, Russo Júnior (2006) ao dizer que:
“A leitura do direito civil também passa pela ótica constitucional, a qual lhe atribui novos fundamentos e ilumina os novos contornos da liberdade contratual, de tal sorte que a autonomia da vontade deve sempre estar apoiada em uma axiologia responsável, em favor da possibilidade da circulação da riqueza, do progresso, da justiça social, sem depreciação à dignidade do homem”[21].
Nesse contexto, em conformidade com Barroso (2008), acontece a virada axiológica do direito civil, tanto pela inserção de normas com conteúdo material civil na CR/88, como pela utilização da CR/88 na interpretação civilista do direito, impondo um novo conjunto de valores e princípios. Dentre eles destacam-se a função social da propriedade e do contrato, a proteção do consumidor, a igualdade entre os cônjuges, a igualdade entre os filhos, a boa-fé objetiva e o equilíbrio contratual. Passa-se a valorizar o princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, que impõe limites e atuações positivas ao Estado. Promove, ainda, uma restrição patrimonial e uma nova personalização do direito civil, ensejando a aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas.
Silva (2008) entende que, os principais efeitos da constitucionalização são: 1) as normas constitucionais tornam-se, progressivamente, o fundamento comum dos diversos ramos do direito; 2) a CR/88 passa a ser vista como norma de referência, isto é, eixo essencial da ordem jurídica; e, 3) a distinção entre direito público e direito privado é relativizada.
Paralelamente ao cenário acima, surge a chamada eficácia horizontal das pretensões essenciais, que não deixa de ser uma das facetas da constitucionalização do direito. A eficácia horizontal dos direitos fundamentais tem sua gênese na sociedade alemã, sob a denominação de Drittwirkung der Grundrechte, em meados do século passado, conforme Steinmetz (2004) e Silva (2008).
O estudo da aplicação das pretensões constitucionais nas relações horizontais ou entre particulares compreende, principalmente, a análise da vinculação das pessoas físicas ou jurídicas aos direitos fundamentais e seus efeitos sobre a autonomia da vontade. Sobre esse novo cenário, Canotilho (2003) lança um questionamento importante, qual seja: as regras constitucionais criadoras de direitos, liberdades e garantias (e pretensões análogas) devem ou não ser necessariamente observadas e respeitadas pelas pessoas privadas, quando ensejam relações jurídicas com diversos sujeitos jurídicos de mesma natureza?
Algumas teorias tentam explicar melhor a questão, na esteira dos ensinamentos de Sarlet (2007b).
Primeiramente, destaca-se a teoria da eficácia direta ou imediata. Os seguidores dessa corrente, expõem que os direitos fundamentais assumiriam a condição de direitos subjetivos constitucionais, para vincularem diretamente os particulares em suas relações jurídicas privadas, inclusive para condicionar e restringir o exercício da autonomia da vontade. Para essa linha teórica, não há necessidade de mediação estatal, tanto legislativa, como judicial, para que as pretensões constitucionais possam ter aplicação nas relações jurídicas travadas entre os particulares. De acordo com Sarlet (2007b), essa teoria entende que:
“A concepção de uma vinculação direta dos particulares aos direitos fundamentais encontra respaldo no argumento segundo o qual, em virtude de os direitos fundamentais constituírem norma expressando valores aplicáveis para toda a ordem jurídica, como decorrência do princípio da unidade da ordem jurídica, bem como em virtude do postulado da força normativa da Constituição, não se poderia aceitar que o Direito Privado viesse a formar uma espécie de gueto à margem da Constituição, não havendo como admitir uma vinculação exclusivamente do Poder Público aos direitos fundamentais”[22].
Sarlet (2007b) lembra que Nipperdey – um dos seguidores dessa teoria – chegava a afirmar que “uma negativa da vinculação direta dos particulares acabaria atribuindo às normas de direitos fundamentais cunho meramente declaratório”[23].
Surgiram muitas críticas sobre essa corrente, mormente porque no ordenamento jurídico brasileiro não há um preceito constitucional que vincule expressamente os particulares às normas fundamentais. A CR/88 limitou-se, no art. 5º, § 1º, a declarar que tais normas teriam aplicabilidade imediata. Não restou positivado na CR/88, de forma expressa, quem seria o destinatário das obrigações decorrentes das normas jus fundamentais.
Como bem ressaltado por Martins (2009), as críticas direcionadas a teoria da eficácia direta ou imediata se embasaram no perigo de supressão da autonomia privada; na interferência dos direitos fundamentais no campo do direito privado, ameaçando a identidade dele; e, nos riscos provocados aos princípios da segurança jurídica, democracia e separação de poderes. Martins (2009) ainda salienta o entendimento que apregoa a instauração de um cenário de insegurança jurídica para os particulares, em razão da aplicabilidade direta e imediata dos direitos fundamentais, por serem eles imprecisos e fluídos.
Existe uma outra teoria, chamada de teoria da eficácia indireta ou mediata, que tem como precursor Durig, mencionado por Sarlet (2007b), que assevera que “o reconhecimento de uma eficácia direta no âmbito das relações entre particulares acabaria por gerar uma estatização do direito privado e um virtual esvaziamento da autonomia privada”[24]. Essa corrente ganhou destaque quando foi adotada pelo Tribunal Constitucional alemão, em 1958, no caso Luth. A decisão tomada pelo Tribunal teve grande importância, uma vez que os direitos fundamentais começaram a ser aplicados no âmbito do direito privado. De acordo com Sarlet (2007b):
“Em 1950, Erich Luth, diretor do Clube de Imprensa de Hamburgo, sustentou boicote público contra o filme Amada Imortal, dirigido pelo cineasta Veit Harlan, que havia produzido filme de cunho notoriamente anti-semita, durante a ditadura nazista. Harlan obteve decisão do Tribunal de Justiça de Hamburgo no sentido de que Luth se abstivesse de boicotar o filme (…). Contra essa decisão, Luth ingressou com reclamação constitucional perante a Corte Constitucional, argumentando que a decisão do Tribunal de Hamburgo violou sua liberdade de expressão (…). O Tribunal Constitucional, por sua vez, acolheu o recurso, argumentando que os tribunais civis podem lesar o direito fundamental de livre manifestação de opinião, aplicando regras de direito privado. Entendeu a Corte que o Tribunal Estadual desconsiderou o significado do direito fundamental de Luth (liberdade de expressão e informação) também no âmbito das relações jurídico-privadas, quando ele se contrapõe a interesses de outros particulares”[25].
Corrobora esse raciocínio, demonstrado alhures, aquele segundo o qual competiria ao legislador proceder a regulamentação normativa das pretensões constitucionais e, ao Poder Judiciário, ao se valer das cláusulas gerais e conceitos indeterminados, aplicá-los por meio da hermenêutica e integração. Dessa forma, as cláusulas genéricas seriam a porta de entrada dos direitos fundamentais no campo do direito privado.
Essa corrente teórica também não é perfeita. Dentre as críticas que lhe são dirigidas destaca-se a que aponta a insuficiência de cláusulas gerais para abarcar todas as relações entre particulares, posto que a omissão legislativa é uma verdade, logo, não pode ser desconsiderada. Além disso, o preenchimento valorativo feito a partir de cláusulas gerais e conceitos indeterminados também não são garantidores de uma segurança jurídica, já que partem de enunciados com elevado grau de indeterminação, sendo, portanto, vagos e imprecisos.
Finalmente, há também que se destacar as teorias da imputabilidade e da equiparação ao Estado, que são modelos que negam a relevância da discussão travada em torno das teorias da eficácia direta e indireta. Para Sarlet (2007b), elas sustentam que “a atuação dos particulares no exercício da autonomia privada é sempre produto de uma autorização estatal, sendo as ofensas aos direitos fundamentais sempre oriundas do Estado (…)”[26]. Para essas correntes alternativas ou “se realiza a equiparação dos atos privados aos atos estatais, ou se imputa ao Estado a responsabilidade por atos privados”[27].
Na preleção de Silva (2008), essas correntes teóricas não passam de artifícios para, na prática, se obter produto idêntico àquele que transcorreria da utilização da teoria da eficácia imediata dos direitos fundamentais.
A partir de 1970, na Alemanha, Schwabe, citado por Steinmetz (2004)[28], passou a expor que toda lesão às pretensões constitucionais ocorridas no âmbito das relações jurídicas entre particulares deveria ser imputada ao Estado, haja vista que pressupõe que todo prejuízo resultaria de uma permissão ou de uma não proibição estatal. Ele sustentava que a atuação dos particulares no exercício da autonomia privada era produto de uma autorização estatal. Assim, as ofensas aos direitos públicos subjetivos constitucionais eram sempre oriundas do Estado. Com isso, sua teoria da imputação foi criticada, porque serviria de incentivo para que os particulares não tivessem responsabilidade sobre suas relações privadas.
Em conformidade com Martins (2009), nos Estados Unidos da América, surgiu a doutrina do state action, cuja concepção de cunho liberal propagava que os direitos fundamentais somente seriam aplicáveis nas relações em que o Poder Público também participava. Conseqüentemente, apenas haveria violação a tais pretensões por meio de uma ação estatal. Sem embargo, o raciocínio da teoria do state action poderia se estender, na medida em que, em algumas situações, a jurisprudência procurava equiparar uma ação privada a uma pública, para, com isso, nas relações entre particulares coibir o ato violador desses direitos. Dessa maneira, segundo Silva (2008), “o raciocínio dessa teoria foi considerado bastante artificial e apenas encobre o que de fato acontece”[29].
Portanto, as teorias expostas acima tentam explicar a aplicação dos direitos fundamentais nas relações jurídicas estabelecidas entre particulares e os seus efeitos.
4. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A raiz etimológica da palavra dignidade provém do latim dignus, que é aquele que merece estima e honra. Segundo Rosenvald (2005):
“A dignidade da pessoa humana seria um juízo analítico revelado a priori pelo conhecimento. O predicado (dignidade) que atribuo ao sujeito (pessoa humana) integra a natureza do sujeito e um processo de análise o extrai do próprio sujeito. Sendo a pessoa um fim em si – jamais um meio para se alcançar outros desideratos – , devemos ser conduzidos pelo valor supremo da dignidade”[30].
Como é sabido, a filosofia kantiana já consagrava essa idéia em que o homem, como ser racional, existe como fim em si, ou seja, como algo que não pode ser empregado simplesmente como meio, devendo ser respeitado.
“Dworkin ao tratar do conteúdo da dignidade da pessoa humana, acaba reportando-se direta e expressamente à doutrina de Kant, ao relembrar que o ser humano não poderá jamais ser tratado como objeto, isto é, como mero instrumento para realização dos fins alheios, destacando, todavia, que tal postulado não exige que nunca se coloque alguém em situação de desvantagem em prol de outrem, mas sim, que as pessoas nunca poderão ser tratadas de tal forma que se venha a negar a importância distintiva de suas próprias vidas”[31].
Na atualidade, a tendência dos ordenamentos jurídicos é possibilitar ao ser humano o exercício de suas atividades cotidianas com dignidade. De um modo geral, a atual sociedade desaprova atos que atentem contra o ser humano.
Rosenvald (2005), cita Flórez Valdés (1990), para lembrar que “a dignidade da pessoa humana é a razão de ser do direito e fundamento da ordem política e paz social. Todo direito é constituído para servir ao homem (…). A dignidade situa o ser humano no epicentro de todo o ordenamento jurídico (…)”[32].
No sistema normativo brasileiro, após mais de duas décadas sob o regime militar, o constituinte de 1988 destacou que o Estado Democrático de Direito possui, como um de seus fundamentos, a dignidade da pessoa humana, consagrando-a como um alicerce da ordem jurídica democrática e justa. José Afonso da Silva (2007) expõe que “se é fundamento é porque se constitui num valor supremo, num valor fundante da república, da federação, do país, da democracia e do direito”[33]. Impende registrar que:
“após o término da segunda grande guerra, em reação às atrocidades cometidas pelo nazi-facismo, a Declaração Universal dos Direitos humanos, proclamada pelas Nações Unidas em 1948, enunciava em seu artigo 1°: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. A Constituição italiana de 1947, entre os princípios fundamentais, também já havia proclamado “que todos os cidadãos têm a mesma dignidade e são iguais perante a lei”. Não obstante, costuma-se apontar a Lei Fundamental de Bonn, de maio de 1949, como o primeiro documento legislativo a consagrar o princípio em termos mais incisivos: “Art. 1.1 – A dignidade do homem é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todos os poderes estatais”[34].
Assim, percebe-se que a positivação constitucional da dignidade da pessoa humana surgiu como uma resposta à prática de horrorosos crimes perpetrados contra os seres humanos, durante o período nazi-facismo.
Registra-se que a dignidade humana não é uma criação constitucional, mas sim algo que preexiste a CR/88. A expressão dignidade da pessoa humana possui forte carga de abstração. Com isso, extrai-se um conceito, por vezes, considerado fluido, impreciso e vago e, segundo Nobre Júnior (2000), comporta múltiplas opiniões entre os doutrinadores.
Consoante Moraes (2003), saber em que consiste a dignidade humana:
“é uma questão que, ao longo da história, tem atormentado filósofos, teólogos, sociólogos de todos os matizes, das mais diversas perspectivas, ideológicas e metodológicas. A temática tornou-se, a partir de sua inserção nas longas Constituições, merecedora da atenção privilegiada do jurista que tem, também ele, grande dificuldade em dar substância a um conceito que, por sua polissemia e o atual uso indiscriminado, tem um conteúdo ainda mais controvertido do que no passado”[35].
De acordo com Durig, citado por Sarlet (2009), a dignidade da pessoa humana consiste no fato de que “cada ser humano é humano por força de seu espírito, que o distingue da natureza impessoal e que o capacita para, com base em sua própria decisão, tornar-se consciente de si mesmo, de autodeterminar sua conduta, bem como de formatar a sua existência e o meio que o circunda”[36].
Nobre Júnior (2000) faz referência a diversos doutrinadores, citando, em um primeiro momento, Larenz (1978), para destacar que ele: “reconhece na dignidade pessoal a prerrogativa de todo ser humano em ser respeitado como pessoa, de não ser prejudicado em sua existência (a vida, o corpo e a saúde) e de fruir de um âmbito existencial próprio”[37].
Benda (1996) entende que a dignidade da pessoa humana possui:
“como parâmetro valorativo (…), o condão de impedir a degradação do homem, em decorrência de sua conversão em mero objeto de ação estatal. Mas não é só. Igualmente, esgrime a afirmativa, de aceitação geral, de competir ao Estado a procura em propiciar ao indivíduo a garantia de sua existência material mínima”[38].
Moraes (2003) explica melhor esse ponto ao dizer que “se a humanidade das pessoas reside no fato de serem elas racionais, dotadas de livre arbítrio (…), será desumano, isto é, contrário à dignidade humana, tudo aquilo que puder reduzir a pessoa à condição de objeto”[39].
Por fim, Flórez Valdés (1990) enfatiza que a dignidade da pessoa humana possui quatro aspectos importantes, são eles:
“a) igualdade de direitos entre os homens, uma vez integrarem a sociedade como pessoas e não como cidadãos; b) garantia de independência e autonomia do ser humano, de forma a obstar toda coação externa ao desenvolvimento de sua personalidade, bem como toda atuação que implique na sua degradação; c) não admissibilidade da negativa dos meios fundamentais para o desenvolvimento de alguém como pessoa ou a imposição de condições subumanas de vida”[40].
É de salutar importância analisar, de forma mais acurada, os pontos acima destacados, a começar pela igualdade entre os homens. Destaca Nobre Júnior (2000) que “a igualdade entre os homens representa obrigação imposta aos poderes públicos, tanto no que concerne à elaboração da regra de direito (igualdade na lei) quanto em relação à sua aplicação (igualdade perante a lei)”[41].
O mesmo autor (2000) lembra que o tratamento isonômico não significa dizer que não possa existir hipóteses de discriminação; contudo, o que não se admite é que ela seja injustificada e sem qualquer razão.
Quanto à impossibilidade de degradação do ser humano, ela se liga a proteção outorgada ao homem para que ele não seja reduzido à condição de mero objeto do Estado e de terceiros. Nos ensinamentos de Nobre Júnior (2000), essa abordagem “passa pela consideração de tríplice cenário, concernente às prerrogativas de direito e processo penal, à limitação da autonomia da vontade e à veneração dos direitos da personalidade”[42].
Com relação às prerrogativas de direito e processo penal, o dito doutrinador (2000) pretende enfatizar que o Estado, ao exercer o jus puniendi, encarcerando aqueles reputados criminosos, não poderá olvidar que o acusado da prática de crime também é um ser humano e que deve ter sua dignidade preservada. Ademais, admitir que o Estado desconsidere a dignidade de alguém pode ser perigoso, tendo em vista a possibilidade de ser criar precedentes para outras atrocidades.
A CR/88 trouxe dispositivos para a salvaguarda dessas situações em que o Estado está a exercer sua função punitiva. A título de ilustração, cita-se a vedação em submeter qualquer pessoa a tratamento desumano ou degradante, observância do devido processo legal com todos os seus consectários, proibição de prisão perpétua e, entre outras garantias fundamentais, a vedação de penas cruéis.
No tocante aos limites da autonomia da vontade, tem-se que as prestações capazes de implicar prejuízos para a vida, saúde ou integridade física do obrigado, devem ser repudiadas pelo direito. Os arts. 104 e 166 do Código Civil brasileiro, de 10 de janeiro de 2002 (CC/02), que tratam da licitude do objeto do negócio jurídico, e o art. 113 do mesmo codex, procuram não validar atos negociais que contrariem a ordem pública e aos bons costumes.
Deve-se evitar levar a cabo situações degradantes. Essa precaução deve ser um norte para impor limites à autonomia da vontade. A guisa de exemplo, menciona-se o famoso caso de arremesso de anão ocorrido em Paris, ao final do ano de 1991, em que a platéia, para se divertir, arremessava anões como se eles fossem uma coisa qualquer. Ao se proibir o entretenimento de arremesso dos anões, visualiza-se uma situação de limitação da autonomia da vontade, pois se deseja preservar a integridade física, a saúde e o respeito a tais seres humanos, cujos direitos (no caso bens indisponíveis) são considerados mais importantes dentro do caso concreto. A atividade de arremesso foi proibida, posto que essa prática feria o princípio da dignidade da pessoa humana, que constitui bem jurídico excluído do comércio e, por isso, é irrenunciável.
No que tange ao enfoque dos direitos da personalidade, assevera Nobre Júnior (2000) que o indivíduo deve ser protegido de “qualquer sorte de menosprezo, quer pelo Estado, ou pelos demais indivíduos”[43]. Ele (2000) ressalta, ainda, que “a consagração constitucional da dignidade da pessoa humana resulta na obrigação do Estado em garantir à pessoa humana um patamar mínimo de recursos, capaz de prover-lhe a subsistência”[44].
Nesse sentido, Benda (1996) argumenta que:
“Na Alemanha passou-se a entender (…) que o art. 1.1 da Lei Fundamental de 1949 impunha, além da perspectiva do indivíduo não ser arbitrariamente tratado, um respeito cada vez maior pela sua sobrevivência. Assim, de acordo com tal preceito, afigura-se inadmissível que o administrado seja despojado de seus recursos indispensáveis à sua existência digna, de sorte que a intervenção estatal na propriedade, pela via fiscal ou não, não deverá alcançar patamares capazes de privá-lo dos meios mais elementares de subsistência. De modo igual, o citado art. 1.1 traduz, em detrimento dos poderes públicos, a obrigação adicional de prover ao cidadão um mínimo existencial”[45].
Frisa-se, ademais, que o direito à existência digna não é referendado apenas por uma obrigação de abstenção do Estado em afetar, de modo desproporcional e desarrazoado, a esfera patrimonial das pessoas sob a sua autoridade. Ao Poder Público incumbe, também, condutas positivas no sentido de assegurar o princípio da dignidade da pessoa humana. Como exemplos dessas condutas positivas, existem o sistema previdenciário, de seguridade social, a proteção à família, à maternidade, à infância, ao adolescente e ao idoso.
Nessa linha de pensamento, Sarlet (2009) ensina “que a dignidade possui uma dimensão dúplice, que se manifesta enquanto simultaneamente expressão da autonomia da pessoa humana, bem como da necessidade de sua proteção (…)”[46].
Moraes (2003) explica que o substrato material da dignidade pode ser de desdobrado em quatro postulados:
“i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência dos outros como sujeitos iguais a ele, ii) merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular; iii) é dotado de vontade livre, de autodeterminação; iv) é parte do grupo social, em relação ao qual tem a garantia de não vir a ser marginalizado”[47].
Essa autora (2003) destaca que “são conseqüências desta elaboração os princípios da igualdade, da integridade física e moral – psicofísica –, da liberdade e da solidariedade”[48]. Ela (2003) entende que “em todas as relações privadas nas quais venha a ocorrer um conflito entre uma situação jurídica subjetiva existencial e uma situação jurídica patrimonial, a primeira deverá prevalecer”[49]. Ainda expõe que:
“Mais importante, todavia, parece ser o destaque de que não há, neste caso, um número aprioristicamente determinado de situações jurídicas subjetivas tuteladas, porque o que se visa proteger é o valor da personalidade humana, sem limitações de qualquer gênero, ressalvadas aquelas postas no interesse de outras pessoas, dotadas de igual dignidade. A elasticidade torna-se o instrumento para realizar formas de proteção também atípicas (…)”[50].
Posteriormente, frisa que:
“A tutela da pessoa humana não pode ser fracionada em isoladas hipóteses, microssistemas, (…), mas dever ser apresentada como um problema unitário, dado o seu fundamento, representado pela unidade do valor da pessoa. Esse fundamento não pode ser dividido em tantos interesses, em tantos bens, como é feito nas teorias atomísticas. (…) Desse modo, não há um número fechado de hipóteses tuteladas: tutelado é o valor da pessoa, sem limites, salvo aqueles postos no seu interesse e no interesse de outras pessoas humanas. Nenhuma previsão especial pode ser exaustiva, porque deixaria de fora, necessariamente, novas manifestações e exigências da pessoa, que, com o progredir da sociedade, passam a exigir uma consideração positiva”[51].
Infere-se que o significado de dignidade da pessoa humana está intimamente ligado ao respeito inerente a todo o ser humano. Além disso, seu ideário relaciona-se com a contingência histórica e cultural, sujeitando-se à evolução do processo civilizatório, em cada tempo e lugar, razão pela qual não se acha determinada em dimensão absoluta. Por isso, é um conceito em permanente processo de construção e desenvolvimento. No entanto, em conformidade com o entendimento esposado por Sarlet (2009), “alcançar uma definição precisa do seu âmbito de proteção ou de incidência não parece ser possível, o que, por sua vez, não significa que não se possa e não se deva buscar uma definição (…)”[52].
Com relação ao conceito de dignidade da pessoa humana, Sarlet (2009) entende que “a busca de uma definição necessariamente aberta mas minimamente objetiva impõe-se justamente em face da exigência de um certo grau de segurança maior e estabilidade jurídica”[53]. Ele (2009) comunga do entendimento segundo o qual o melhor conceito jurídico de dignidade da pessoa humana deve abranger (mas não se restringir) a vedação da coisificação e destacar a dupla perspectiva ontológica e instrumental, compreendendo a sua dimensão negativa (defensiva) e a positiva (prestacional). Assim, tem-se por dignidade da pessoa humana:
“a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”[54].
Destarte, em um Estado Democrático de Direito que tem como objetivos erradicar a pobreza e construir uma sociedade livre, justa e solidária, a dignidade da pessoa humana deverá ocupar posição de destaque no ordenamento jurídico, sendo um norte para todos os ramos do direito, seja ele público ou privado.
Para que se preste a observância da dignidade da pessoa humana, não basta apenas existir a previsão legislativa, é necessário que o Estado desenvolva políticas públicas ativas e efetivas para o seu verdadeiro cumprimento.
5. RELAÇÃO ENTRE A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Miranda (2000) observou que “a constituição confere uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais, que, por sua vez, repousa na dignidade da pessoa humana, isto é, na concepção que faz da pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado”[55].
O princípio da dignidade da pessoa humana é de suma importância para as pretensões públicas subjetivas constitucionais. Coelho (2009) enuncia que “não há dúvida que os direitos fundamentais (…) são influenciados e tocados pelo primado da dignidade da pessoa humana”[56].
Na preleção de José Afonso da Silva (2007) “a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida”[57].
Para Sarlet (2004), uma vez que os direitos e garantias fundamentais encontram seu fundamento direto e imediato:
“na dignidade da pessoa humana, do qual seriam concretizações, constata-se que os direitos e garantias fundamentais podem ser reconduzidos de alguma forma à noção de dignidade da pessoa humana, já que todos remontam à idéia de proteção e desenvolvimento das pessoas”[58].
Andrade (2006) sustenta que o princípio da dignidade da pessoa humana radica na base de todas as pretensões essenciais. O grau de vinculação dos diversos direitos àquele princípio poderá ser diferenciado, de tal sorte que existem direitos que constituem explicitações em primeiro grau da idéia de dignidade e outros que dele são decorrentes[59].
Dessa maneira, em conformidade com Sarlet (2004), o princípio da dignidade da pessoa humana atua como elemento fundante e informador dos direitos e garantias fundamentais e, ainda, serve de parâmetro para aplicação, interpretação e integração, não apenas de tais pretensões constitucionais, mas de todo o ordenamento jurídico.
Como observou Haberle (2009), na Alemanha, o Tribunal Constitucional Federal tem feito do art. 1°, inciso I, da Lei Fundamental própria, o ponto de partida dos direitos fundamentais, concebendo a dignidade humana como raiz de tais pretensões essenciais.
Portanto, os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana apresentam, como traço comum, o fato de que ambos “atuam no centro do discurso jurídico constitucional, como um DNA, como um código genético, convivendo, de forma indissociável”[60].
Verifica-se ser inseparável a inter-relação entre a dignidade da pessoa e as pretensões constitucionais, mesmo em ordens normativas nas quais a dignidade ainda não mereceu referencia expressa, porque os direitos fundamentais são inerentes à pessoa humana.
Conforme Biagi (2005), tais direitos “são os pressupostos elementares de uma vida humana livre e digna, tanto para o indivíduo como para a comunidade: o indivíduo só é livre e digno numa comunidade livre; a comunidade só é livre se for composta por homens livre e dignos”[61].
Consoante já salientado, Moraes (2003) pensa que o substrato material da dignidade da pessoa humana compreende quatro princípios jurídicos, nomeadamente os da igualdade, liberdade, integridade física/moral (psicofísica) e solidariedade que, segundo Sarlet (2009), “encontram-se vinculados a todo um conjunto de direitos fundamentais”[62].
Ainda para Sarlet (2004), essas pretensões essenciais constituem explicitações da dignidade da pessoa humana. Nesse ínterim, em cada direito fundamental se faz presente um conteúdo ou, pelo menos, alguma projeção da dignidade da pessoa. Essa dignidade, na condição de valor fundamental, atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais de qualquer dimensão (ou geração). Como conseqüência, “sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhe são inerentes, em verdade estar-se-á negando-lhe a própria dignidade”[63].
Por sua vez, esse doutrinador (2004) coloca de manifesto que, para além das conexões já citadas, nesse âmbito situa-se o reconhecimento e a proteção da identidade pessoal, respeito pela privacidade, intimidade, honra, imagem e todas essas dimensões vinculadas à dignidade humana. Não restam dúvidas de que a dignidade engloba respeito à proteção da integridade física e emocional (psíquica) da pessoa.
Na esteira da lição de Sarlet (2004), até mesmo o direito de propriedade constitui uma dimensão relativa à dignidade da pessoa, ao se considerar que a ausência de moradia decente acaba comprometendo a existência de uma vida com dignidade. Para esse autor (2004), é possível se deduzir direitos fundamentais autônomos a partir do princípio da dignidade da pessoa humana, pois essas pretensões constitucionais são, ao menos em regra, exigências e concretizações, em maior ou menor grau, de dignidade da pessoa humana. Desse modo, “os direitos fundamentais constituem garantias específicas da dignidade da pessoa humana, da qual são mero desdobramento”[64].
O princípio em tela, em relação às pretensões essenciais, pode assumir, mas apenas em certo sentido, a feição de lex generalis, até mesmo porque uma agressão a determinado direito fundamental, simultaneamente, poderá constituir ofensa ao seu conteúdo em dignidade.
Finalmente, a relação entre a dignidade da pessoa humana e as demais normas de direitos fundamentais não pode ser qualificada como de cunho subsidiário. A relação entre a dignidade e as pretensões constitucionais públicas subjetivas é sui generis, visto que a primeira assume, simultaneamente, a função de elemento e medida das segundas. Uma violação de um direito fundamental ofenderá, necessariamente, a dignidade dos seres humanos[65].
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Estado Democrático de Direito exige a garantia dos direitos fundamentais e, para tanto, deve estar centrado na dignidade da pessoa humana, já que os direitos são postos a serviço da realização do homem como pessoa. Nessa perspectiva, a dignidade da pessoa humana deve figurar como valor jurídico supremo, pois ela é a base das pretensões essenciais e o fundamento de uma constituição operante.
É certo que o desrespeito à vida, à integridade física e moral do ser humano, às condições mínimas a uma existência digna, ao reconhecimento e aplicação dos direitos fundamentais, somente contribuirão para a “desmoralização” da dignidade da pessoa humana e, nesse contexto, o indivíduo estará fadado a abusos e injustiças sociais.
Infelizmente, o Brasil ainda não aprendeu a exercer satisfatoriamente a dignidade da pessoa humana e, freqüentemente, as pretensões subjetivas constitucionais não são concretizadas na prática.
O entendimento simplista de que o conceito de dignidade da pessoa humana é algo perdido e vazio deve ser rechaçado, pois tal pensamento servirá apenas para menosprezar a real importância do instituto, além de contribuir para o voluntarismo hermenêutico arbitrário a ser perpetrado pelo Poder Judiciário.
Os juristas não devem invocar a dignidade da pessoa humana de modo inflacionário, porque isso acarreta a sua desvalorização. Os operadores do direito devem conhecer o conteúdo e o alcance da dignidade da pessoa humana e os seus pontos de contato com os direitos fundamentais.
Tais objetivos também poderão contribuir na tarefa de se interpretar, em um caso concreto, o princípio da dignidade da pessoa humana, dada a conexão entre os institutos, principalmente a premissa de que os direitos fundamentais são concretizações da dignidade da pessoa humana.
É fato que, atualmente, tem-se elevado o valor jurídico e o grau de importância atribuído à dignidade da pessoa humana e às pretensões constitucionais, isso, conseqüentemente, faz com que se torne cada vez mais triviais a alegação desses institutos no mundo jurídico.
Percebe-se que, a cada dia, o estudo aprofundado, a compreensão, o desenvolvimento e a aplicação da dignidade da pessoa humana tornam-se mais essenciais para toda a sociedade.
Face ao exposto, é de suma importância que a dignidade da pessoa humana não seja tratada pelos operadores do direito com arbitrariedade, com interpretações e aplicações infundadas, pois isso contribuirá para a sua banalização e perda do seu real significado, além de gerar um cenário de insegurança jurídica, o que é totalmente contrário ao seu propósito.
/art5.htm>. Acesso em: 17 mar. 2010.
Informações Sobre os Autores
Magno Federici Gomes
Pós-doutor em Direito Público e Educação pela Universidade Nova de Lisboa-Portugal. Pós-doutor em Direito Civil e Processual Civil, Doutor em Direito e Mestre em Direito Processual, pela Universidad de Deusto-Espanha. Mestre em Educação pela PUC Minas. Professor Adjunto da PUC Minas. Coordenador do NADIP da Faculdade Padre Arnaldo Janssen. Advogado Sócio do Escritório Raffaele & Federici Advocacia Associada
Frederico Oliveira Freitas
Mestre em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos Pós-Graduado em Direito Público pela Associação Nacional dos Magistrados Estaduais Pós-Graduado em Docência e Gestão do Ensino Superior pela PUC/MG Professor das Faculdades de Direito Arnaldo Janssen Professor do curso de Pós-Graduação da Escola Superior de Advocacia da OAB/MG. Advogado