Lei da Anistia: sua legalidade frente à Constituição Federal de 1988

Resumo: O presente artigo tem como objetivo estudar acerca da Lei da Anistia concedida aos militares das forças armadas, no tocante aos crimes cometidos entre 1961 a 1979, trazendo conceitos, bem como sua aplicabilidade frente ao ordenamento jurídico brasileiro, especificamente no que tange a Constituição Cidadã de 1988 e a Lei que discorre sobre a Tortura. Busca-se também explanar sobre a Comissão da Verdade criada em 2011, cujo objetivo seria examinar e esclarecer as violações de direitos humanos que ocorreram durante o período militar. O tema é significante devido as inúmeras críticas a Lei da anistia, considerada por muitos como uma norma ilegal e injusta que só trouxe benefícios aos agentes políticos daquela época.

Palavras-chaves: Lei da Anistia. Militares. Constituição Cidadã. Tortura. Comissão da Verdade.

Abstract: This article aims to study about the Amnesty Law granted the military the armed forces, with respect to crimes committed between 1961-1979, bringing concepts and their applicability against the Brazilian legal system, specifically with respect to Constitution citizen of 1988 and the Law that elaborates on Torture. The aim is to also explain about the Truth Commission created in 2011, whose purpose would be to examine and clarify the human rights violations that occurred during the military period. The issue is significant because of the numerous criticisms of the amnesty law, considered by many as an illegal and unfair rules that only brought benefits to the politicians of that time.

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Keywords: Amnesty Law. Military. Citizen Constitution. Torture. Truth Commission.

Sumário: Introdução. 1. Ditadura Militar no Brasil. 2. A lei nº 6.683/79 e suas implicações. 3. Interpretação judicial da lei de anistia. 3.1 A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 153. 3.2 A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 320. Considerações Finais. Referências.

Introdução

O presente artigo visa explorar acerca da Lei da Anistia concedida aos militares, bem como sua legalidade frente a Constituição Federal (CF) de 1988, os efeitos da Comissão da Verdade criada para esclarecer “possíveis” violações de direitos humanos praticados na época da ditadura militar no Brasil, bem como qual o posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre a temática.

Ao estudar a história do Brasil, vê-se que ela está marcada por um período de exceção, que teve início no ano de 1964, onde através de um golpe de estado (considerado revolução para os militares), se instalou um regime ditatorial que se estendeu até o ano de 1984. Este período foi marcado por todos os tipos de violações, desde a prisões, torturas a desaparecimentos e mortes.

Contudo, próximo ao fim da ditadura, objetivando perdoar todos os que tinham cometido crimes políticos e conexos, criou-se a lei da Anistia, que segundo Van Zyl era na verdade “[…] o esforço para a construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em massa ou violação sistemática dos direitos humanos” (2011, p.47).

A temática é significante, uma vez que apesar da Lei da Anistia ter surgido na década de 70, ainda nos dias hodiernos há quem defenda a sua inconstitucionalidade frente à Constituição Federal Brasileira de 1988, pugnando pela punição de todos os militares que cometeram crimes durante aquela época.

A abordagem do tema proposto teve como base metodológica uma pesquisa bibliográfica em leis, artigos, doutrina, bem como jurisprudência pátria.

1 Ditadura Militar no Brasil

Sabe-se que em 31 de março de 1964 o governo legalmente constituído de João Goulart foi deposto por um golpe civil-militar[1], iniciando-se, a partir de então, uma ditadura militar que se manteria no poder por mais de vinte anos (CASTRO, 2009).

Uma vez no poder, a Junta Militar[2] constituída através do golpe instituiu o Ato Institucional[3] nº 1 (AI-I), que decretava, entre outras medidas, a realização de eleições indiretas para presidente da República; fortalecimento dos poderes do presidente, que poderia apresentar emendas constitucionais ao Congresso e aprová-las por maioria simples, além de poder suspender temporariamente os direitos políticos de quaisquer cidadãos por dez anos, em nome do “interesse nacional” (CASTRO, 2009).

Sobre as diversas medidas abusivas cometidas para dar suporte ao golpe, Araújo, Silva e Santos (2013, p. 17) destacam:

“A montagem de uma estrutura de vigilância e repressão, para recolher informações e afastar do território nacional os considerados “subversivos” dentro da ótica do regime, e a decretação de Atos Institucionais arbitrários estiveram presentes desde os primeiros meses de governo. […] O ato institucional decretado no dia 9 de abril de 1964 (posteriormente conhecido como AI-I) iniciava a temporada de cassações de mandatos de parlamentares e a suspensão dos direitos políticos dos “inimigos da revolução”.

A ditadura militar no Brasil ocasionou a prisão, ao todo, de 50.000 mil pessoas; a abertura de inquérito policial para investigação de 10.035, culminando no indiciamento de 7.367. Foram abertos, na Justiça Militar, 707 processos por crimes contra a segurança nacional, sendo 4.862 pessoas cassadas; 130 banidas e, ao menos, 426 mortos e desaparecidos (ARAÚJO, SILVA E SANTOS, 2013).

Contudo, em relação aos crimes praticados nesta época, surgiu, na década de 70 a Lei n. 6.683/79 – Lei da Anistia, um “acordo político”, que concedeu o perdão aos militares que cometeram delitos entre 1961/1979.

2 A lei nº 6.683/79 e suas implicações

A campanha pela anistia[4] no Brasil teve início a partir de 1975, com o lançamento do Manifesto da Mulher Brasileira pelo Movimento Feminino (MFPA) pela Anistia. (COMISSÃO DE ANISTIA, 2011[5]).

Sobre o assunto Abraão (2011, p. 123) afirma que:

“O lema da anistia “ampla, geral e irrestrita” para os perseguidos políticos, clamada pela sociedade organizada e negada pelo regime, passou a ser lido como uma anistia “ampla, geral e irrestrita” para os dois lados, demonstrando a força de controle do regime, capaz de apropriar-se do bordão social para convertê-lo em fiador público de um suposto “acordo político” entre subversivos e regime, a fim de iniciar a abertura democrática”.

     Assim, o Presidente do Brasil, João Batista Figueredo, promulga a Lei n. 6.683/79 – Lei da Anistia (regulamentada pelo Decreto n. 84.143, de 31/10/1979)[6] que em seu artigo 1º, §1º discrimina a quem seria concedida a anistia. Confira-se[7]:

“Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.

§ 1º – Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.” Grifo nosso

Por outro lado, a lei supra, em seu § 2º, traz exceções ao perdão, quais sejam: “Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal.” Ademais, há uma extensão aos benefícios da anistia para dirigentes e representantes sindicais, bem como para os estudantes, conforme artigo 9º da Lei 683/79.

A crítica surge no sentido de que a Lei nº 6.683/79 se metamorfoseou em uma anistia “recíproca”, já que as expressões “crimes conexos” e “de qualquer natureza”, presentes em seu §1º do artigo 1º, acabaram por impedir a apuração da responsabilidade dos agentes da repressão por quaisquer crimes, inclusive pelas torturas, mortes e desaparecimentos. Ocorreu, então, o que diversos autores denominam “auto anistia” (LEMOS, 2002).

Sobre o tema, Araújo, Silva e Santos (2013, p.32) afirmam:

“A anistia no Brasil tem, portanto, um caráter complexo. Ela representou, por um lado, uma conquista parcial da sociedade e dos grupos que lutavam pela “anistia geral e irrestrita” mas, por outro lado, ela foi também uma vitória parcial dos militares e da classe dirigente que aprovou uma anistia limitada e se desobrigou da apuração das responsabilidades e dos crimes cometidos pelo regime”. Grifo nosso.

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A anistia ampla para os dois lados demonstrou apenas a capacidade do regime que, ainda forte, conseguiu de se apropriar do bordão social para convertê-lo em um suposto acordo político entre subversivos e regime, de forma a iniciar a abertura democrática (ABRÃO, 2011).

Entretanto, quando da aprovação da Lei nº 6.683/79, aqueles que haviam enfrentado o regime já haviam respondido por seus atos junto aos tribunais civis e militares, sendo que grande parte dos opositores tinham sido presos, torturados, exilados sem o mínimo respeito aos seus direitos constitucionais ou a obediência a qualquer processo legal (KLEMT, 2010).

Destarte, ainda que anistiados, aqueles que se opuseram ao regime foram punidos, enquanto os agentes do estado, agindo ou não sob o manto deste, não sofreram quaisquer consequências, não sendo, sequer, investigados (KLEMT, 2010).

Coadunando com esta ideia foi o que constou no relatório final da Comissão Nacional da Verdade – CNV, que foi criada através da Lei n. 12.528//2011[8], cujo objetivo era examinar e esclarecer violações de direitos humanos ocorridas no período de exceção (Art.1º). Porém sem caráter jurisdicional ou persecutória (art. 3º, § 4º). 

     A CNV, em seu relatório final, aduz que considera a Lei da Anistia uma “autoanistia” promovida pelo regime ditatorial brasileiro, sendo esta ilegal diante da legislação internacional (LIMA, 2014).

Lima (2014, p. 1) aduz que para CNV:

“[…] não poderia incluir agentes públicos que realizaram crimes como “detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres”, pois tais ilícitos são “incompatíveis com o direito brasileiro e a ordem jurídica internacional”, uma vez que se tratam de crimes contra a humanidade, “imprescritíveis e não passíveis de anistia”. A CNV afirma que a jurisprudência internacional endossa “a total impossibilidade de lei interna”, como é a da anistia, “afastar a obrigação jurídica do Estado de investigar, processar, punir e reparar tais crimes”.

Discordando dessa ideia, Borges (2010, p. 1) aduz que:

“A anistia é plena, ampla, irrevogável, se ser democrático é ser justo, vivamos ao lado daqueles que um dia nos molestou, pois fomos nós mesmos quem lhes outorgamos a vergonha de caminharem ao nosso lado, de remoerem em suas entranhas nossa liberdade, mas à eles não nos igualemos, vamos apurar a verdade, façamos justiça, mas não nos utilizemos desta como argumento de vinditas, pois a lei que hoje nos serve, amanhã pode nos assolar.”

     Não obstante, faz-se necessário uma análise de acordo com o Judiciário brasileiro, o que já foi decidido e o que falta decidir acerca dos efeitos da Lei da Anistia.

3 Interpretação judicial da lei de anistia

Conforme já explanado, foram construídos diversos entendimentos acerca da legalidade da Anistia concedida na década de 70.

Para Salatiel (2009, p. 1) a grande divergência doutrinária se refere a interpretação:

“Ao artigo primeiro da lei, que diz: "É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes (…)".

     Isso por que, do ponto de vista de quem pugna pela punição dos militares, a anistia se refere apenas aos delitos políticos cometidos por pessoas que foram vítimas de perseguições do governo militar. Por outra vertente, há aqueles que coadunam com a ideia de que houve perdão tanto para quem praticou crimes políticos, quanto aqueles que agiam com pórtico na obediência hierárquica, sendo que a tortura seria um delito conexo aos políticos (SALATIEL, 2009).

Nesse contexto, Silva (2009, p. 1) traz a baila que:

Muitos ex-presos políticos na ditadura, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ministério da Justiça e Casa Civil refletiram seus posicionamentos: eles argumentam que a lei não pode se estender “a crimes comuns praticados por agentes da repressão contra opositores políticos durante o Regime Militar”.

Já o Ministério da Defesa, que comanda o Exército, a Advocacia Geral da União (AGU) e o Ministério das Relações Exteriores dizem que a anistia não pode ser revogada, porque ela é anterior aos efeitos da Constituição de 1988, que não permite ceder anistia a torturadores”. Grifo nosso.

Assim, devido às interpretações divergentes do artigo 1º, §1º da Lei da Anistia, em 21/10/2008 o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – CFOAB ajuizou no Supremo Tribunal Federal – STF, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF[9] nº 153 (CFOAB, 2008).

3.1 A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 153.

Acerca da ADPF n. 153, Meyer (2012, p. 14) afirma que:

“Haveria controvérsia constitucional sobre se o referido dispositivo anistiou também os crimes praticados por agentes públicos durante o regime ditatorial de 1964-1985, incluindo, entre outros, crimes como os de homicídio, desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro e atentado violento ao pudor. Tais crimes foram praticados de modo institucionalizado pelo regime militar contra os seus opositores.”

O primeiro argumento trazido na ADPF n. 153 é o de que o artigo 1º, §1º, da anistia fora redigido, intencionalmente, “de forma obscura”, e que a conexão não se aplicaria, uma vez que esta requer “uma identidade ou comunhão de propósitos ou objetivo, nos vários crimes praticados” (MEYER, 2012).

Aprofundando-se no argumento, o CFOAB (2008, p. 09) afirma ser indubitável que os agentes policiais e militares não cometeram crimes políticos, pois:

“Sob qualquer ângulo que se examine a questão da presente demanda é irrefutável que não podia haver e não houve conexão entre os crimes políticos, cometidos pelos opositores do regime militar, e os crimes comuns contra eles praticados pelos agentes da repressão e seus mandantes no governo. A conexão só pode ser reconhecida, nas hipóteses de crimes políticos e crimes comuns praticados pela mesma pessoa (concurso material ou formal), ou por várias pessoas em coautoria. No caso, portanto, a anistia só abrange os autores de crimes políticos ou contra a segurança nacional, e, eventualmente, de crimes comuns a eles ligados pela comunhão de objetivos”. Grifo nosso.

Assim, tendo em vista que no período abrangido pela anistia, 02/09/1961 e 15/08/1979, os diplomas legais que definiam crimes contra a segurança nacional e a ordem política e social foram o DL nº 314/67, DL nº 898/69 e a Lei nº 6.620/78 e que os crimes cometidos pelos agentes do estado não estão aí elencados, já que eles não praticaram crimes políticos contra a segurança nacional e sim crimes comuns contra aqueles que se opunham ao regime, descabe falar em conexão entre eles (CFOAB, 2008).

Meyer (2012, p. 25) salienta ainda que, para o CFOAB:

“Não há qualquer elemento que possa identificar os atos praticados por opositores do regime com os crimes praticados pelos agentes públicos da ditadura, não havendo que se falar em conexão nem da perspectiva do Direito Penal e nem da perspectiva do Direito Material. Os agentes públicos não cometeram crimes políticos, mas sim crimes comuns”. Grifo nosso.

Portanto, em um regime democrático e republicano, não seria cabível que o estado anistiasse criminalmente seus próprios agentes, pois seria, na verdade, legislar em causa própria, o que é impensável no pós-1988 (MEYER, 2012).

Destarte, o pedido do CFOAB foi de que a Suprema Corte interpretasse a Lei nº 6.683/79 conforme à Constituição de 1988, de forma que se declarasse que a anistia concedida pela referida lei aos crimes políticos ou conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes do estado contra opositores políticos durante o regime militar (MEYER,2012).

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Pois bem, o STF decidiu a demanda em 29 de abril de 2010. Decidiu, por maioria, em plenário, pela improcedência da arguição entendendo que a ADPF fora interposta baseando-se em uma interpretação histórica, haja vista que o pedido seria a revisão de um acordo historicamente consolidado. Ratificou o STF que a anistia, em tela, fora concedida antes da CF de 1988 e da Lei n. 9.455, de 7/04/1997 (lei de tortura), logo seus efeitos são anteriores aos efeitos destas. De igual modo afastou a utilização da legislação internacional – Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (adotada pela Assembleia Geral em 10/12/1984, vigorando desde 26/06/1987), visto que a anistia também tem efeitos anteriores em relação a elas. Vide ementa (STF, 2010)[10]:

“EMENTA: LEI N. 6.683/79, A CHAMADA "LEI DE ANISTIA". ARTIGO 5º, CAPUT, III E XXXIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL; PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO E PRINCÍPIO REPUBLICANO: NÃO VIOLAÇÃO. CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICAS. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E TIRANIA DOS VALORES. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO E DISTINÇÃO ENTRE TEXTO NORMATIVO E NORMA JURÍDICA. CRIMES CONEXOS DEFINIDOS PELA LEI N. 6.683/79. CARÁTER BILATERAL DA ANISTIA, AMPLA E GERAL. JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA SUCESSÃO DAS FREQUENTES ANISTIAS CONCEDIDAS, NO BRASIL, DESDE A REPÚBLICA. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO E LEIS-MEDIDA. CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA A TORTURA E OUTROS TRATAMENTOS OU PENAS CRUÉIS, DESUMANOS OU DEGRADANTES E LEI N. 9.455, DE 7 DE ABRIL DE 1997, QUE DEFINE O CRIME DE TORTURA. ARTIGO 5º, XLIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. INTERPRETAÇÃO E REVISÃO DA LEI DA ANISTIA. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 26, DE 27 DE NOVEMBRO DE 1985, PODER CONSTITUINTE E "AUTO-ANISTIA". INTEGRAÇÃO DA ANISTIA DA LEI DE 1979 NA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL. ACESSO A DOCUMENTOS HISTÓRICOS COMO FORMA DE EXERCÍCIO DO DIREITO FUNDAMENTAL À VERDADE. 1. […] 2. O argumento descolado da dignidade da pessoa humana para afirmar a invalidade da conexão criminal que aproveitaria aos agentes políticos que praticaram crimes comuns contra opositores políticos, presos ou não, durante o regime militar, não prospera. 3. […] A expressão crimes conexos a crimes políticos conota sentido a ser sindicado no momento histórico da sanção da lei. A chamada Lei de anistia diz com uma conexão sui generis, própria ao momento histórico da transição para a democracia. Ignora, no contexto da Lei n. 6.683/79, o sentido ou os sentidos correntes, na doutrina, da chamada conexão criminal; refere o que "se procurou", segundo a inicial, vale dizer, estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado encarregados da repressão. 4. A lei estendeu a conexão aos crimes praticados pelos agentes do Estado contra os que lutavam contra o Estado de exceção; daí o caráter bilateral da anistia, ampla e geral, que somente não foi irrestrita porque não abrangia os já condenados — e com sentença transitada em julgado, qual o Supremo assentou — pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal. 5. […] No caso das leis-medida interpreta-se, em conjunto com o seu texto, a realidade no e do momento histórico no qual ela foi editada, não a realidade atual. É a realidade histórico-social da migração da ditadura para a democracia política, da transição conciliada de 1979, que há de ser ponderada para que possamos discernir o significado da expressão crimes conexos na Lei n. 6.683. É da anistia de então que estamos a cogitar, não da anistia tal e qual uns e outros hoje a concebem, senão qual foi na época conquistada. Exatamente aquela na qual, como afirma inicial, "se procurou" [sic] estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado encarregados da repressão. A chamada Lei da anistia veicula uma decisão política assumida naquele momento — o momento da transição conciliada de 1979. A Lei n. 6.683 é uma lei-medida, não uma regra para o futuro, dotada de abstração e generalidade. Há de ser interpretada a partir da realidade no momento em que foi conquistada. 6. A Lei n. 6.683/79 precede a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes — adotada pela Assembléia Geral em 10 de dezembro de 1984, vigorando desde 26 de junho de 1987 — e a Lei n. 9.455, de 7 de abril de 1997, que define o crime de tortura; e o preceito veiculado pelo artigo 5º, XLIII da Constituição — que declara insuscetíveis de graça e anistia a prática da tortura, entre outros crimes — não alcança, por impossibilidade lógica, anistias anteriormente a sua vigência consumadas. A Constituição não afeta leis-medida que a tenham precedido. 7. No Estado democrático de direito o Poder Judiciário não está autorizado a alterar, a dar outra redação, diversa da nele contemplada, a texto normativo. Pode, a partir dele, produzir distintas normas. Mas nem mesmo o Supremo Tribunal Federal está autorizado a rescrever leis de anistia. 8. Revisão de lei de anistia, se mudanças do tempo e da sociedade a impuserem, haverá — ou não — de ser feita pelo Poder Legislativo, não pelo Poder Judiciário. 9. A anistia da lei de 1979 foi reafirmada, no texto da EC 26/85, pelo Poder Constituinte da Constituição de 1988. Daí não ter sentido questionar-se se a anistia, tal como definida pela lei, foi ou não recebida pela Constituição de 1988; a nova Constituição a [re] instaurou em seu ato originário. A Emenda Constitucional n. 26/85 inaugura uma nova ordem constitucional, consubstanciando a ruptura da ordem constitucional que decaiu plenamente no advento da Constituição de 5 de outubro de 1988; consubstancia, nesse sentido, a revolução branca que a esta confere legitimidade. A reafirmação da anistia da lei de 1979 está integrada na nova ordem, compõe-se na origem da nova norma fundamental. De todo modo, se não tivermos o preceito da lei de 1979 como ab-rogado pela nova ordem constitucional, estará a coexistir com o § 1º do artigo 4º da EC 26/85, existirá a par dele [dicção do § 2º do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil]. O debate a esse respeito seria, todavia, despiciendo. […] Afirmada a integração da anistia de 1979 na nova ordem constitucional, sua adequação à Constituição de 1988 resulta inquestionável. A nova ordem compreende não apenas o texto da Constituição nova, mas também a norma-origem. No bojo dessa totalidade — totalidade que o novo sistema normativo é — tem-se que "[é] concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos" praticados no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Não se pode divisar antinomia de qualquer grandeza entre o preceito veiculado pelo § 1º do artigo 4º da EC 26/85 e a Constituição de 1988. 10. […]” (ADPF 153, Relator(a):  Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 29/04/2010, DJe-145 DIVULG 05-08-2010 PUBLIC 06-08-2010 EMENT VOL-02409-01 PP-00001 RTJ VOL-00216-01 PP-00011). Grifo nosso.

Ou seja, o STF decidiu que não cabia revisão da Lei da Anistia, asseverando que ela deveria ser analisada no seu momento histórico, na época em que ela se deu, não cabendo “juízo de valores” de acordo com os preceitos dos dias hodiernos.

A questão estaria resolvida se o CFOAB não tivesse interposto embargos de declaração alegando que houve omissão no julgado, pois não teria sido analisada a premissa de que os opositores políticos anistiados agiram contra o estado (ditador), enquanto os outros criminosos (agentes do estado) lutavam em nome do Estado para manter a ordem política que vigorava no período (AGÊNCIA BRASIL, 2013)[11]. Os embargos ainda esperam julgamento.

3.2 A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 320

Uma reviravolta na temática ocorreu quando o Partido Socialismo e Liberdade – PSOL protocolou na data 15/05/2014, a ADPF n. 320[12] onde requer que a Lei da Anistia (Lei 6.683/1979) não seja aplicada aos crimes de graves violações de direitos humanos cometidos por agentes públicos.

Tal pedido tem por base o fato de que o Brasil, em 24/11/2010, foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) no famoso caso “Gomes Lund e outros X Brasil (Mortos e desaparecidos na guerrilha do Araguaia)[13]. A CIDH afastou a aplicação da Lei da Anistia brasileira, salientando que dispositivos desta são incompatíveis com a Convenção Americana, bem como não podem ser utilizados como um óbice para investigação, identificação e responsabilização de todos que praticaram violações de direitos humanos (STF, 2014)[14].

Destarte, a CIDH considerou o Brasil (STF, 2014, p.1):

“[…] responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal das pessoas indicadas na decisão. A corte determinou, assim, que o Brasil deve conduzir a investigação penal dos fatos, determinar o paradeiro das vítimas e entregar seus restos mortais às famílias, realizar ato público de responsabilidade pelos fatos e indenizar as vítimas ou suas famílias, entre outras disposições”.

     Com pórtico nesse julgamento o PSOL sustenta na ADPF 320 que (STF, 2014. p.1):

“[…] passados três anos e meio, a sentença ainda não foi cumprida. “Não padece a menor dúvida de que a inexecução, pelo Estado Brasileiro, da sentença condenatória proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos representa clara violação da ordem constitucional brasileira”, ressalta, acrescentando que o cumprimento dessa decisão internacional é um dever expresso na Convenção Americana sobre Direitos Humanos.”

Pois bem. Até a presente data não houve julgamento dos embargos de declaração interpostos pela CFOAB na ADPF 153, nem da ADPF 320, que, na data de 05/06/2014 foi apensada a 153 para único julgamento. Salienta-se que ambas ADPFs se encontram “conclusos ao Relator”, a n. 320 desde 03/08/2015, e a outra, 21/03/2016[15].

Considerações Finais

Diante de tudo que foi exposto, vê-se que a lei da Anistia foi proveniente de um “acordo político” criado em 1979, objetivando oferecer o perdão aos militares que cometeram crime durante a ditadura militar. Não só os militares, mas também estudantes e sindicalistas.

Vê-se que o grande problema está na interpretação do art. 1, § 1º da Lei da Anistia. O STF em 05/08/2010 decidiu na ADPF n. 153 que aquela norma foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, porém o CFOAB interpôs embargos de declaração que até hoje ainda não foram julgados.

A CNV em relatório final, entregue em 10/12/2014, pediu a revisão/revogação da Lei da Anistia por considerar, que ela tenha gerado impunidade a crimes cometidos que lesaram toda uma sociedade. Por fim ratifica ainda que a norma retrocitada vai de encontro a CIDH que em dezembro de 2010, afastou os dispositivos da lei n. 683/79, condenando o Brasil no caso da Guerrilha do Araguaia.

Usando isso como fundamento, objetivando a não aplicabilidade do perdão concedido na década de 70 nos crimes contra os direitos humanos, o PSOL protocolou em 15/05/2014 a ADPF n. 320, que foi apensada a n. 153, mas até o momento esperam julgamento da Suprema Corte.

Ou seja, enquanto não houver trânsito em julgado na ADPF 153 e 320, haverá dúvida acerca da aplicabilidade ou não da Lei da Anistia nos crimes que violaram direitos humanos no período ditatorial.  

 

Referências
AGÊNCIA BRASIL. Comissão da verdade da OAB vai pedir que STF julgue embargos da ação sobre extensão da Lei de Anistia. Disponível em http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/agenciabrasil/noticia/2013-08-01/comissao-da-verdade-da-oab-vai-pedir-que-stf-julgue-embargos-da-acao-sobre-extensao-da-lei-de-anistia. Acesso em 01/02/2016.
ABRÃO, Paulo. A Lei de Anistia no Brasil: as alternativas para a verdade e a justiça. Revista Acervo. Rio de Janeiro, 24, fev. 2011. Disponível em
<http://www.revistaacervo.an.gov.br/seer/index.php/info/article/view/466.>
Acesso em 06/05/2015.
ARAÚJO, Maria Paula; SILVA, Izabel Pimentel da; SANTOS, Desirree dos Reis (Org.). Ditadura militar e democracia no Brasil: história, imagem e testemunho. 1. ed. – Rio de Janeiro: Ponteio, 2013. 48p.
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Notas
[1] Civil porque teve o apoio de setores da sociedade como do empresariado, da imprensa, dos proprietários rurais, da Igreja Católica, amplos setores da classe média e de alguns governadores de Estados importantes da federação (Carlos Lacerda, Guanabara; Magalhães Pinto, Minas Gerais; Ademar Barros, São Paulo e etc).

[2] Era denominada “Comando Supremo da Revolução”, foi composta por três membros: o brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo (Aeronáutica), o vice-almirante Augusto Rademaker (Marinha) e o General Artur da Costa e Silva (Exército). Tal junta permaneceria no poder por duas semanas, tendo em vista que no dia 3 de Abril de 1964 o general Humberto de Alencar Castello Branco já era o Presidente do Brasil.

[3] Atos Institucionais foram normas elaboradas no período de 1964 a 1969, durante o regime militar, sendo editadas pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica ou pelo Presidente da República, com o respaldo do Conselho de Segurança Nacional..

[4] Ato de soberania estatal, concedida de forma irrestrita, possui caráter genérico e prevê o esquecimento do crime. Aplica-se, em regra, a crimes políticos, tendo por objetivo apaziguar sentimentos coletivos que possam perturbar a paz social.

[7] Disponível em  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm. Acesso em 27/01/2016.

[9] A ADPF está prevista no art. 102, §1º, da CF, que assim prevê: art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal a guarda da Constituição, cabendo-lhe: […]  §1º A arguição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal na forma da lei. Tal artigo é regulamentado pela Lei nº 9.882/99, que dispõe sobre o processo e julgamento da ADPF.

[11] AGÊNCIA BRASIL. Comissão da verdade da OAB vai pedir que STF julgue embargos da ação sobre extensão da Lei de Anistia. Disponível em http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/agenciabrasil/noticia/2013-08-01/comissao-da-verdade-da-oab-vai-pedir-que-stf-julgue-embargos-da-acao-sobre-extensao-da-lei-de-anistia. Acesso em 01/02/2016.

[13] AGÊNCIA BRASIL, 2013, p. 1: A Guerrilha do Araguaia foi um movimento político no começo da década de 1970, que surgiu para enfrentar a ditadura militar. Ela ocorreu na divisa dos estados do Pará, Maranhão e Tocantins (na época Goiás) e foi combatida pelas Forças Armadas entre 1972 e 1974 em quatro operações. Até hoje, dezenas de militantes que participaram da guerrilha estão desaparecidos.

[14]BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em  http://m.stf.jus.br/portal/noticia/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=267078. Acesso em 01/10/2016


Informações Sobre o Autor

Karina Ferreira da Rocha

Analista Judiciário do Tribunal Estadual de Mato Grosso do Sul. Advogou na área cível e criminal de novembro de 2014 a outubro de 2015. Graduada em Direito na Universidade Estadual da Bahia – UNEB. Pós graduada em Direito Penal pela Uniasselvi, em Direito Eleitoral pela Faveni. Pós graduanda em Direito da Criança, Juventude e Idoso, Direito Militar e Direito Previdenciário pela Faveni


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