O ativismo tardio e a legitimidade democrática da defesa judicial das minorias e do processo democrático

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Resumo: No Século XXI, após a promulgação da Constituição de 1988 e a consolidação da democracia e dos direitos fundamentais, no Brasil, o Poder Judiciário passou a criar direitos e normas que não encontram fundamento expresso no texto constitucional. Assim, o STF declarou a existência de direitos não escritos na Constituição, legalizou a união civil entre pessoas do mesmo gênero e permitiu a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos; o CNJ criou o casamento entre pessoas do mesmo gênero e o TSE estabeleceu a verticalização das coligações partidárias, instituiu a hipótese de perda de mandato por infidelidade partidária e alterou a representação das unidades da Federação no Parlamento. Esse ativismo judiciário que cria direitos e normas jurídicas que não constam expressamente do texto da Constituição tem dividido opiniões entre os juristas. O presente estudo analisa a legitimidade de um posicionamento mais forte do Judiciário na defesa do procedimento democrático e das minorias, sob o fundamento teórico de John Hart Ely.

Palavras-chave: Constituição – ativismo judicial – hermenêutica jurídica.    

Abstract: In the XXI century, after the promulgation of the 1988 Constitution and the consolidation of democracy and the fundamental rights, in Brazil, the Judiciary Power started to create rights and rules which do not find fundament expressed by the constitutional text. Thus, the STF declared the existence of rights not written in the Constitution, it legalized the civil union between people of the same gender and permitted the interruption of pregnancy of anencephalic fetuses. The CNJ created the marriage between people of the same gender and the TSE established the verticalization of coalitions between political parties, it instituted the possibility of mandate loss for unfaithfulness to political parties and altered the representation of Federation units in Parliament. This Judiciary activism, which creates rights and rules that are not expressly in the Constitutional text, has divided opinions between jurists. The present study analyzes the issue of the legitimacy of a stronger position of the judiciary in defense of the democratic procedure and of minorities, under John Hart Ely’s theoretical fundament.

Key words: Constitution – judicial activism – juridical hermeneutics.

Sumário: Introdução; 1. A legitimidade democrática e o ativismo do Poder Judiciário; 2. Os juízes devem interpretar ou criar o texto da Constituição?; 3. John Hart Ely e a legitimidade do ativismo judicial na defesa do procedimento democrático e das minorias; 4. O momento histórico do ativismo judicial no Brasil; Conclusão.

Introdução

Após a consolidação da democracia brasileira, com a promulgação da Constituição de 1988, o Poder Judiciário passou a tomar decisões que não têm o seu fundamento claramente expresso no texto da Constituição de 1988. Por meio dessa atitude ativista do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal declarou a existência de direitos não escritos na Constituição, legalizou a união civil entre pessoas do mesmo gênero e permitiu a interrupção de gravidez no caso de anencefalia; o Conselho Nacional de Justiça criou o casamento entre pessoas do mesmo gênero e o Tribunal Superior Eleitoral estabeleceu a verticalização das coligações, instituiu hipótese de perda de mandato por infidelidade partidária e alterou a representação dos Estados e do Distrito Federal na Câmara dos Deputados.

O presente artigo analisa a legitimidade democrática dessas decisões que podem não ter o seu fundamento encontrado claramente com base na análise do texto expresso da Constituição de 1988.

Para cumprir o proposto, primeiro se verificará o ativismo judicial[1] do STF, bem como se analisarão os argumentos favoráveis e contrários expostos pela doutrina especializada.  Em seguida, será exposta especificamente a teoria de John Hart Ely sobre a legitimidade do ativismo judicial na defesa do procedimento democrático e das minorias.  Por fim, analisar-se-á o momento histórico no qual o Poder Judiciário tornou-se ativista, bem como serão apresentadas breves conclusões sobre a legitimidade democrática de uma atitude mais forte do Poder Judiciário na defesa do procedimento democrático e das minorias.

1. A legitimidade democrática e o ativismo do Poder Judiciário

A legitimidade democrática do Poder Judiciário, composto exclusivamente por juízes não-eleitos, para declarar nula uma norma elaborada pelos representantes eleitos pelo povo brasileiro, que ocupam cargos no Poder Legislativo (deputados e senadores) e no Poder Executivo (presidente), decorre da Constituição democraticamente aprovada pelo Poder Constituinte em 1988. Assim, ao realizar o controle de constitucionalidade, os juízes somente fazem prevalecer a vontade democrática do Poder Constituinte, escrita na Constituição de 1988, sobre a vontade democrática dos poderes constituídos, escritas nas normas infraconstitucionais.

Segundo Hamilton:

“a Constituição deve prevalecer sobre a lei ordinária, a lei do povo sobre a de seus agentes. Todavia, esta conclusão não deve significar uma superioridade do Judiciário sobre o Legislativo. Somente supõe que o poder do povo é superior a ambos; e que, sempre que a vontade do Legislativo, traduzida em suas leis, se opuser a do povo, declarada na Constituição, os juízes devem obedecer a esta, não àquela, pautando suas decisões pela lei básica, não pelas ordinárias” (HAMILTON, 2005, p. 470).

Esse argumento, defendido por Hamilton (2005) e por Sieyès (2001), no Século XVIII, implantado por John Marshall (1994), no Século XIX, tem sido repetido, por mais de dois séculos, por diversos outros defensores do controle de constitucionalidade, como Hans Kelsen (2003), no Século XX, ou Luis Roberto Barroso (2009), no Século XXI.

Contudo, da mesma forma que fez a Suprema Corte norte-americana anteriormente[2], o Supremo Tribunal Federal, o Tribunal Superior Eleitoral e o Conselho Nacional de Justiça passaram a criar direitos e a tomar decisões que não podem ser encontradas explicitamente no texto da Constituição de 1988 ou nas demais normas do ordenamento jurídico brasileiro.

No Século XXI, sem ter um fundamento claro no texto expresso da Constituição, o Poder Judiciário criou a verticalização das coligações, hipótese de perda de mandato por infidelidade partidária, direitos não-escritos na Constituição, união civil entre pessoas do mesmo gênero, hipótese legal de interrupção de gravidez no caso de anencefalia, alterou representação dos Estados e do Distrito Federal na Câmara dos Deputados e criou o casamento entre pessoas do mesmo gênero.

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por meio da Resolução 20.121/98 e da Resolução 20.993/2002[3], sem que houvesse nenhuma norma expressa na Constituição nesse sentido, criou a obrigatoriedade de que houvesse compatibilidade entre coligações partidárias para as eleições estaduais com as coligações partidárias para a candidatura para Presidente da República. Em resposta ao ativismo judicial do TSE, o Congresso Nacional, por meio da Emenda Constitucional 52/2006, alterou o texto do § 1º do art. 17 da Constituição de 1988, a fim de garantir a autonomia partidária para adotar coligações sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal. Dessa forma, derrubou a verticalização das coligações criada pela jurisprudência do TSE.

Em 2007, o Tribunal Superior Eleitoral criou uma hipótese de perda de mandado eletivo por infidelidade partidária não prevista na Constituição de 1988 ou em alguma lei eleitoral. O TSE criou a hipótese de perda de mandato no julgamento da resposta à Consulta n. 1398, do Partido da Frente Liberal (atual DEM), em 27 de março de 2007. No referido julgamento, o TSE decidiu que os mandatos obtidos nas eleições, pelo sistema proporcional (deputados estaduais, federais e vereadores), pertencem aos partidos políticos ou às coligações e não aos candidatos eleitos. No mesmo ano, a Resolução do TSE n. 22.610/2007, declarada constitucional pelo STF nos acórdãos das ADIs n. 3999 e n. 4086, criou o procedimento que disciplina a perda de cargo eletivo e o processo de desfiliação partidária.

Em 2011, o Supremo Tribunal Federal criou jurisprudencialmente o “direito à preferência sexual”, o “direito à autoestima” e o “direito à busca da felicidade”[4], que não estavam escritos na Constituição ou em alguma norma do direito brasileiro. Com fundamento nos referidos direitos não escritos e de outras normas do direito brasileiro, “criou” a união civil entre pessoas do mesmo sexo, no Acórdão que decidiu a ADI 4.277-DF e a Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 132-RJ[5].   

Em 2012, o STF criou uma hipótese de interrupção legal de gravidez ao estabelecer que é inconstitucional a interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo seria conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal, no julgamento da ADPF n. 54.

Em 2013, a Resolução do TSE n. 23.389 alterou a representação dos Estados e do Distrito Federal na Câmara dos Deputados para as eleições de 2014. Em resposta, o Congresso Nacional estabeleceu o Decreto Legislativo n. 424/2013, que sustou um ato normativo emanado do Poder Judiciário. No julgamento da ADI n. 4.965/DF e da ADI n. 4.963/DF, o STF, por sete votos a três, declarou a inconstitucionalidade do Decreto Legislativo n. 424/2013.

No mesmo ano de 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), sem que houvesse nenhuma norma explícita na Constituição de 1988, criou o casamento entre pessoas do mesmo gênero, por meio da Resolução 175, bem como vedou a recusa da realização da habilitação, da celebração de casamento civil ou da conversão de união estável pelas autoridades competentes.

Com esses e outros exemplos, o Poder Judiciário, composto por membros não-eleitos, tem imposto uma parcela substancial das regras que disciplinam a democracia e os direitos fundamentais dos brasileiros.

Por um lado, essa atitude é defendida por alguns juristas. Por exemplo, o Ministro do STF, Luis Roberto Barroso (2009, p.8), afirma que o ativismo judicial normalmente se instala em situações de retração do Poder Legislativo, decorrente de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, que impediria que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva. Esse descolamento acarretaria “uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes” (Ibid., p.8).

Para Barroso (2008), nos últimos anos, uma persistente crise de representatividade, de legitimidade e de funcionalidade no âmbito do Legislativo tem alimentado a expansão do Judiciário nessa direção, em nome da Constituição, com a prolação de decisões que suprem omissões e, por vezes, inovam na ordem jurídica, com caráter normativo geral.

O fenômeno, segundo Barroso (2009), tem sua face positiva: o Judiciário está atendendo às demandas da sociedade que não puderam ser satisfeitas pelo Parlamento.

Por outro lado, o ativismo judicial sofre críticas. Ao analisar a possibilidade da regulação da união homoafetiva por decisão judicial, Streck, Barreto e Oliveira (2009, p. 81) afirmaram que, em uma democracia, não se quer saber o que o juiz pensa sobre determinado fenômeno e, definitivamente, o direito não é – e não pode ser – aquilo que o judiciário “diz que é”!

 Segundo Streck, Barreto e Oliveira (2009, p.81), não cabe ao Poder Judiciário “colmatar lacunas” do constituinte. Ao permitir decisões ativistas, de acordo com esses juristas, estar-se-á incentivando que o Judiciário “crie” uma Constituição “paralela” (uma verdadeira “Constituição do B”), estabelecendo, a partir da subjetividade dos juízes, aquilo que “indevidamente” – a critério do intérprete – não constou no pacto constituinte. Segundo os referidos autores, há limites hermenêuticos para que o Judiciário se transforme em legislador (Ibid.).

2. Os juízes devem interpretar ou criar o texto da Constituição?

No debate polifônico sobre se cabe aos juízes ou ao Parlamento criar o direito, ocorreu uma bipolarização fundamental entre as posições chamadas “interpretativistas” e as posições denominadas de “não-interpretativistas”[6] Para os primeiros, em termos gerais, os juízes, ao realizarem o controle de constitucionalidade deveriam limitar-se a aplicar as normas escritas na Constituição ou claramente implícitas nela. A segunda posição, por sua vez, defende que a Justiça Constitucional não deveria restringir-se a esses termos, ao contrário, deveria ir mais além e aplicar normas que podem ser descobertas fora do corpo do documento (ELY, 1980).

Enquanto as correntes “não interpretativistas” procuram fundamentos legítimos para a realização do controle de constitucionalidade (GREY, 1975) nos valores do juiz, no direito natural, nos princípios neutrais[7], na razão, na tradição, no consenso e no predecting progress[8], os “interpretativistas”, ao contrário, afirmam que qualquer fundamento para o controle de constitucionalidade das leis que não esteja na Constituição (ou implícito nela) é antidemocrático e, portanto, ilegítimo. A dicotomia entre “interpretativismo” e “não interpretativismo” remete, em linhas gerais, à antiga distinção que abrange todo o direito entre direito positivo e direito natural. Nesse sentido, o “interpretativismo” seria análogo ao positivismo e as correntes jusnaturalistas seriam similares às correntes “não-interpretativistas” (ELY, 1980).

Segundo Bork (1990, p. 6-7):

“[os defensores do ativismo judicial] desenvolveram uma filosofia […] de acordo com a qual os juízes devem criar direitos individuais que ponham de lado decisões democráticas. Estes direitos, por maior que seja a extensão dada as palavras do documento ou aos materiais históricos, não são encontrados na Constituição, mas apesar disso, devem ser estabelecidos como uma ordem constitucional. É evidente, então, que o debate […] é um debate sobre até onde a vida – até onde a moralidade, os arranjos sociais e econômicos […] – deve ser governada pelos juízes e até onde deve ser governada pelo povo, atuando através das instituições da democracia.”

Os “interpretativistas” postulam que a única fonte de legitimação do Poder Judiciário é a própria Constituição. Essa, na qualidade de norma suprema do Estado, constitui os poderes políticos do Estado como limitados e estabelece que o poder político democrático é o seu valor fundamental. Portanto, a realização do controle de constitucionalidade, além de ser um mecanismo excepcional, somente é admissível e possível se tiver como fundamento a própria Lei Fundamental. Mesmo que admitam em geral que não seja possível encontrar a resposta completa e acabada de todas as questões que envolvem o controle de constitucionalidade na Constituição (ELY, 1980)[9], diferenciam-se dos “não interpretativistas” pela defesa de que um ato do poder público somente pode ser declarado inconstitucional de acordo com uma interpretação cujo ponto de partida possa, pelo menos, ser descoberto com claridade na Constituição. Caso não seja possível fundamentar o controle de constitucionalidade no texto da Lei Maior, a competência decisória para a questão pertence aos órgãos democraticamente eleitos e democraticamente substituídos pelo voto popular.

Esse limite ao controle da constitucionalidade dos atos dos órgãos eleitos é posto pelo princípio democrático. Sem ter por fundamento o texto claro da Constituição, a decisão judicial não pode substituir a decisão política legislativa da maioria democrática por lhes faltar legitimidade democrática. De acordo com o entendimento “interpretativista”, fazer isso seria transformar o Estado de Direito na “Lei dos Juízes”. Segundo os seguidores das teorias “interpretativistas”, fora das garantias especificadas no texto da Constituição, são as instituições democráticas que governam o Estado (BORK, 1990).

Em linhas gerais, os “interpretativistas” admitem que as limitações ao governo da maioria são necessárias, mas enquanto os “não interpretativistas” defendem que juízes não eleitos e livres de qualquer responsabilidade política devem selecionar e definir aqueles valores que devem ser protegidos da vontade da maioria, os “intepretativistas” insistem que essas limitações somente podem ser feitas pela própria Constituição. Dessa maneira, não seriam os juízes que controlariam o povo, mas, sim, a Constituição, esta seria o instrumento pelo qual o povo controla a si mesmo.

Nesse sentido, o respeito pelo texto funcionaria como um substituto de uma responsabilidade política que os juízes não possuem e fixaria o limite adequado entre o poder da maioria e os direitos da minoria. Enquanto os juízes respeitarem esse limite estariam a agir de forma legitimada. Se, ao contrário, os juízes procurarem estabelecer direitos (QUEIROZ, 2000) por intermédio de uma filosofia ou de um raciocínio filosófico, produzirão direitos contra o raciocínio majoritário da população, que repousarão em nada mais firme do que as predileções de uma maioria de juízes que por acaso esteja no cargo em um determinado momento (BORK, 1990).

3. John Hart Ely e a legitimidade do ativismo judicial na defesa do procedimento democrático e das minorias.

Para justificar o ativismo judicial, Barroso (2009) fundamenta-se no argumento de que a Constituição desempenha dois grandes papéis: um é estabelecer as regras do jogo democrático e o outro é proteger valores e direitos fundamentais, mesmo que contra a vontade circunstancial de quem tem mais votos. Como o intérprete final da Constituição é o Supremo Tribunal Federal, seu papel é velar pelas regras do jogo democrático e pelos direitos fundamentais.

Portanto, de acordo com o Ministro do STF, a jurisdição constitucional é mais uma garantia para a democracia do que um risco (BARROSO, 2009). Segundo Barroso (Ibid.), o STF deve ser deferente para com as deliberações do Congresso. Com exceção do que seja essencial para preservar a democracia e os direitos fundamentais, em relação a tudo mais, os protagonistas da vida política devem ser os que têm votos.

O argumento apresentado pelo Ministro do STF foi proposto por John Hart Ely, no seu livro Democracy and Distrust, de 1980. No referido livro, Ely demonstra a impossibilidade de um “interpretativismo” vinculado ao texto, a ilegitimidade democrática do “não interpretativismo” e propõe estabelecer uma síntese entre as duas correntes. Para Ely, uma visão “interpretavista” – ao menos a que considera a Constituição como uma unidade fechada – é incapaz de manter-se perante o manifesto de algumas de suas próprias disposições. Da mesma forma, diz o autor que, se buscamos uma fonte externa com a qual preencher a textura aberta da Constituição – uma fonte que não termine por simplesmente em constituir a Suprema Corte em uma Câmara de revisão legislativa – buscamos em vão (ELY, 1980).

Segundo Ely (1980), apenas uma teoria que enxergue o controle de constitucionalidade como um reforço da democracia – e não como um guardião superior que arbitra quais resultados devem e quais não devem ser admitidos – será compatível com a própria democracia.

Desvinculando-se, assim, tanto das teorias “interpretativistas”, quanto das “não interpretativistas”, Ely (1980) não se propõe a criar uma nova teoria, mas, sim, a interpretar a jurisprudência da Corte Warren[10]. Essa Corte, diz ele, foi a primeira a atuar na defesa do adequado funcionamento do processo democrático (Ibid.).

Durante a Corte Warren, a Justiça Constitucional americana assegurou respeito aos direitos dos acusados, a liberdade de expressão e de associação política, combateu as restrições ao sufrágio, especialmente quando pretendiam subestimar os votos dos negros ou de setores marginais da população, e defendeu o trato igual para os desiguais da sociedade, em especial as minorias raciais, os estrangeiros ilegais e os pobres (ELY, 1980).

Com essa jurisprudência, segundo Ely (1980), a Justiça Constitucional procurou proteger o processo político, mantendo-o aberto a todos. Os objetivos foram, por um lado, limpar os canais de câmbio político e, por outro, corrigir certos tipos de discriminação política contra minorias.

Esses são valores participativos cuja imposição não é incompatível com o sistema de democracia participativa; ao contrário, é condicionante desse sistema. Os tribunais, por serem independentes do processo político, encontram-se em condições excepcionais para “defendê-los” (ELY, 1980, p. 75).

O enfoque adotado pela Corte Warren, afirma Ely (1980), foi antecipado pela nota de rodapé n. 4 do voto proferido por Harlan Stone no caso United States vs. Carolene Products Co, julgado em 1938, pela Suprema Corte. Essa nota de rodapé aponta um procedimento a ser utilizado na avaliação da validade de uma lei. Primeiro, afirma que os juízes devem se ater o máximo possível ao texto; mas ressalva que em determinadas situações o texto não é suficiente e que, portanto, os juízes devem avaliar se os canais de participação e de comunicação política estavam abertos e verificar se a norma em questão discrimina ou prejudica grupos minoritários.

Do exposto, pode-se concluir que a Justiça Constitucional deve, a princípio, exercer uma função de garantidora do texto da Constituição se entender que o ato não discriminou minorias e que não houve impedimento dos canais de comunicação política. Contudo, caso os juízes constitucionais concluam que não houve livre participação dos cidadãos nas decisões governamentais e/ou que os atos do poder público discriminam ou violam os direitos das minorias, a atuação da Justiça Constitucional deve ser mais abrangente e incisiva, deixando de lado a política da autocontenção judicial e adotando o ativismo judicial.

Para Ely (1980), os direitos de participação política e os direitos das minorias derivam do princípio democrático em virtude de condicionarem a eficácia desse princípio. A Justiça Constitucional, ao defendê-los dos abusos aos quais estão expostos, não lesa; mas, antes, reforça o próprio princípio democrático.

Assim, com base no pensamento de John Hart Ely, as decisões ativistas do Poder Judiciário brasileiro relativas ao procedimento democrático (verticalização das coligações; perda de mandato por infidelidade partidária; alteração da representação dos Estados) e em defesa de minorias, com fundamento no princípio da isonomia, para garantir que os direitos que à maioria se concede sejam garantidos às minorias (instituição da união civil e do casamento entre pessoas do mesmo gênero; estabelecimento de direitos não escritos na Constituição; permissão da interrupção de gravidez do feto anencefálico) seriam legítimas por defender o processo democrático e as minorias das violações a que estão sujeitos pela maioria no Parlamento. As referidas decisões em defesa do procedimento democrático e das minorias reforçariam, em vez de violar o princípio democrático.

4. O momento histórico do ativismo judicial no Brasil.

Paradoxalmente, no Brasil, o ativismo judicial em defesa das minorias e do processo democrático surge no Século XXI, após o retorno à democracia, em 1985, bem como após a Constituição de 1988 enumerar e garantir os direitos fundamentais de todos, inclusive das minorias.

Não houve ativismo judicial, em defesa do procedimento democrático e das minorias, durante a Ditadura do Estado Novo (1937-1945), quando o Parlamento foi fechado por tempo indeterminado e os dissidentes políticos foram presos e torturados.

Também não houve ativismo judicial durante a Ditadura Militar (1964-1985), quando o Parlamento foi fechado algumas vezes por tempo indeterminado[11] e os opositores políticos também foram presos e torturados.

Somente após a democracia estar consolidada e após ter se estabelecido a plena vigência dos direitos fundamentais, no Brasil, que o Poder Judiciário tornou-se ativista e criou normas jurisprudencialmente para proteger a democracia e os direitos fundamentais. Durante os períodos ditatoriais e durante os períodos em que o Congresso Nacional permaneceu fechado, o Poder Judiciário não foi ativista. Ao contrário, o Supremo Tribunal Federal permaneceu aberto e aplicou as normas dos ditadores, o que demonstra que o Poder Judiciário consolidou-se como guardião da democracia e das minorias após o restabelecimento do regime democrático e dos direitos fundamentais. O ativismo judicial no Brasil, nesse sentido, é tardio.

Conclusão

No Século XXI, o Poder Judiciário brasileiro tornou-se ativista na defesa do procedimento democrático e dos direitos fundamentais. Para alguns autores, o ativismo judicial é antidemocrático. Contudo, com base no pensamento de John Hart Ely, é possível defender a legitimidade democrática das decisões do Poder Judiciário, em defesa do procedimento democrático e dos direitos das minorias, com base no princípio da isonomia, para garantir que os direitos que à maioria se concede também sejam garantidos a todas as minorias. A Constituição é a sua principal fonte de legitimidade.

Contudo, deve-se considerar que, quando de fato a democracia foi usurpada no Brasil, o Poder Judiciário respeitou as normas editadas pela Ditadura Vargas (1937-1945) e pela Ditadura Militar (1964-1985). Assim, atualmente, ainda que o Parlamento venha passando por uma crise de legitimidade representativa no Brasil, a atuação do Judiciário deve ser moderada a fim de respeitar as normas elaboradas pela votação majoritária dos representantes do povo brasileiro reunidos no Congresso Nacional, atuando de forma ativista somente em casos excepcionais.

Como a garantia das regras e princípios constitucionais, principalmente as normas que regulam o “jogo democrático” e protegem as minorias, com base no princípio da isonomia, são condicionantes e essenciais ao bom funcionamento da democracia, é legítima uma atuação mais ativa do Poder Judiciário. Assim, quando Poder Judiciário toma decisões mais fortes para proteger minorias (com base no princípio da isonomia) e o procedimento democrático, em tese, sua intervenção se dá a favor, e não contra a democracia.

 

Referências
BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo e legitimidade democrática. Atualidades Jurídicas, n 4. 2009. Disponível em: http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf Acesso em 18 jun. 2015.
BORK, Robert H. O que pretendiam os pais fundadores. Revista de Direito Público, n. 93, 1990.
ELY, John Hart. Democracy and Distrust. Cambridge and London: Harvard Universit Press, 1980.
GREY, Thomas C. Do we have un Unwriten Constitution? Stanford Law Review, n. 27, 1975.
HAMILTON, Alexander. Federalista. In: HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. O federalista. 2.ed. Campinas: Russel Editores, 2005.
KELSEN, Hans. A garantia jurisdicional da Constituição. In: A jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MARSHALL, John. Sentença do caso Marbury vs. Madison. Sub judice. n. 7/9. 1994.
QUEIROZ, Cristina. Interpretação Constitucional e Poder Judicial. Sobre a epistemologia da construção constitucional. Coimbra: Coimbra, 2000.
SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A Constituinte burguesa: o que é o terceiro estado? 4.ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001.
STRECK, Lênio Luiz; BARRETO, Vicente de Paulo. OLIVEIRA, Rafael Tomaz. Ulisses e o canto das sereias: sobre ativismos judiciais e os perigos da instauração de um “terceiro turno da constituinte”. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito. 2009.
WECHSLER. Hebert. Toward Neutral Principles in Constitutional Law. Harward Law Review, n. 73, 1959
 
Notas:
[1] Para Luis Roberto Barroso, “a ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas.” (Cf. BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo e legitimidade democrática. Atualidades Jurídicas, n. 4. 2009. Disponível em: http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf Acesso em: 18 jun. 2013.)

[2] Como, por exemplo, em Griswold vs. Connecticut (1965), na qual a Suprema Corte declarou que a lei que bania o uso de contraceptivos, ao ser aplicada a casais casados, configurava uma inadmissível invasão da privacidade familiar (right to marital privacy), direito não enumerado na Constituição de 1787; como, por exemplo, em Loving vs.Virginia (1967), na qual a Suprema Corte decidiu que a Lei do Estado da Virgínia que proibia casamentos inter-raciais era inconstitucional, como, por exemplo, no caso Eisenstadt vs. Baird (1972), quando foi estendida aos casais não casados a decisão do caso Griswold vs. Connecticut e, finalmente, como no caso Roe vs. Wade na qual se estendeu esses precedentes para proteger o direito das mulheres quanto ao direito de realizar o aborto, com fundamento no direito não enumerado à privacidade.

[3] O § 1º do art. 4º da Resolução determinava que: “os partidos políticos que lançarem, isoladamente ou em coligação, candidato/a à eleição de presidente da República não poderão formar coligações para eleição de governador/a de Estado ou do Distrito Federal, senador/a, deputado/a federal e deputado/a estadual ou distrital com partido político que tenha, isoladamente ou em aliança diversa, lançado candidato/a à eleição presidencial.”

[4] O Acórdão da ADI 4.277-DF e da ADPF nº 132-RJ criou direitos não escritos na Constituição de 1988 com o seguinte argumento: “Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da “dignidade da pessoa humana”: direito a auto-estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula pétrea.” O STF justificou a criação dos referidos direitos da seguinte maneira: “Aplicabilidade do §2º do art. 5º da Constituição Federal, a evidenciar que outros direitos e garantias, não expressamente listados na Constituição, emergem “do regime e dos princípios por ela adotados”, verbis: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635. Acesso em 18 de junho de 2013.

[5] O Acórdão declarou que o art. 1.723 do Código Civil devia ser interpretado em conformidade com o disposto na Constituição de 1988, de maneira a excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família, apesar da própria do § 3º do art. 226 da Constituição da República afirmar que “é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar”.

[6] A origem da distinção entre interpretativismo e não-interpretativismo origina-se no artigo de GREY, Thomas C. Do we have un Unwriten Constitution? in: Vários autores. Stanford Law Review, n.º 27, 1975. pp. 703 e ss.

[7] Hebert Wechsler propos em 1959 que a Suprema Corte tomar suas decisões com fundamento em princípios que transcenderiam o caso em questão e que permitiriam tratar de igual maneira casos similares. (Cf. WECHSLER. Hebert. Toward Neutral Principles in Constitutional Law. In: Vários autores. Harward Law Review n. 73, 1959).

[8] Teoria segundo a qual, os juízes devem utilizar os valores do futuro para realizar o controle de constitucionalidade, predizendo o progresso dos valores. Nesse sentido, o poder judicial enunciaria princípios que parecem ir contra a vontade da maioria, mas que alcançariam no futuro o apoio da maioria. (Cf. ELY, John Hart. Democracy and Distrust. Cambridge and London: Harvard Universit Press, 1980. p. 69)

[9]No mesmo sentido, Robert H. Bork afirma que a Constituição possui áreas usuais de incerteza, mas com tolerável definição. (Cf. BORK, 1990, p. 7.)

[10] Após o fim da Segunda Guerra Mundial, com o caso Brown vs. Board of Education, a Suprema Corte dos Estados Unidos inaugurou um novo período de sua história, no qual se transformou a sociedade americana. Nesse período, sob o comando de Earl Warren, (presidente entre 1953 e 1969) e Warren Burguer (presidente entre 1969 e 1986), essa Corte, utilizando-se de métodos de interpretação construtivos, lançou mão, em larga escala, de princípios retirados da “moralidade política”. Assim, por meio de uma interpretação extensiva da XIV Emenda à Constituição norte-americana, estendeu a toda sociedade princípios jusfundamentais como os do due process e da equal protection clause. A Suprema Corte, assim, algumas vezes com fundamento em direitos que não estão no texto claro da Constituição (em Griswold vs. Connecticut, de 1965, a Suprema Corte criou o direito à privacidade), dessegregou as escolas (Brown vs. Board Education); baniu a oração das escolas públicas (Engel vs. Vitale); transformou todo o sistema de processo penal dos Estados membros, ao garantir os direitos dos acusados (Miranda vs. Arizona); redesenhou o mapa político ao fazer os Estados conformarem-se ao princípio do “um homem, um voto” (Baker vs. Carr); impôs aos Estados o respeito pela vida privada das pessoas e anulou todas as leis dos Estados que proibiam o aborto nas primeiras semanas da gravidez (Roe vs. Wade).

[11] O Congresso Nacional foi fechado por tempo indeterminado, pelas Forças Armadas, em 1889, 1930, 1937, 1968, pelo Ato Complementar nº 38, e em 1977, pelo Ato Complementar nº 102. Em 1966, o Ato Complementar nº 23, fechou o Congresso de 20 de outubro a 22 de novembro. Em 1823, o Parlamento foi fechado por Dom Pedro I.


Informações Sobre os Autores

Pablo Viana Pacheco

Graduado em Direito pela UNIFENAS. Especialista e mestre em Ciências Jurídico-políticas pela Universidade de Coimbra. Doutorando em Direito Constitucional pela PUC-SP. Professor das Faculdades de Direito da UNIFENAS e FUMESC. Bolsista da CAPES. Advogado

Tatiana Cardoso Teixeira Viana

Doutoranda e Mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP. Especialista em Direito Público pela FDSM. Professora Adjunta da Universidade Federal de Alfenas. Bolsista da CAPES


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