Resumo: O ordenamento jurídico é composto por diversos dispositivos normativos, e entre eles, destacam-se os princípios jurídicos. Nesse sentido, o jurista italiano Ricardo Guastini trata das normas e princípios do sistema jurídico, abordando os critérios de distinção entre as diferentes formas normativas, as espécies de princípios, as diversas formas de utilização dos princípios, e a ponderação de princípios no caso de conflito. Após tratar dos princípios sob diferentes aspectos, o autor ressalta a força normativa dos princípios e seu papel de destaque no sistema jurídico.
Palavras-chave: Ordenamento jurídico. Direito positivo. Normas. Princípios.
Abstract: The legal system is composed of several regulatory provisions, and among them, stand out the legal principles. In this sense, the italian jurist Richard Guastini deals with rules and principles of the legal system, addressing the criteria for distinguishing between different forms normative kinds of principles, various forms of use of the principles, and consideration of principles in the event of conflict. After dealing with the principles in different ways, the author emphasizes the normative force of principles and their role in the legal system.
Keywords: Legal. Positive law. Standards. Principles.
Para Guastini, os diversos dispositivos do ordenamento jurídico sugerem – se não impõem –, distinguir entre normas e princípios, princípios gerais e fundamentais, princípios expressos e implícitos.
De modo que a distinção entre normas e princípios pode ser entendida, ao menos, de duas formas. Em primeiro lugar, essa distinção pode ser entendida no sentido de oposição, em que os princípios são algo distinto das normas. Essa tese, todavia, não é convincente, pois não fica claro o que significa o vocábulo norma nesse contexto. Parece óbvio que, ao menos em um sentido, os princípios também são normas, se por norma se entende, conforme o uso comum, qualquer enunciado dirigido a guiar o comportamento.
Em segundo lugar, a distinção entre normas e princípios pode ser entendida em um sentido menos substancial: os princípios são uma espécie, dentro do gênero das normas. Essa tese também é problemática, já que a noção de princípio é controvertida: não é fácil identificar com precisão seus elementos característicos.
Se por norma se entende qualquer enunciado dirigido a guiar o comportamento, parece óbvio que os princípios são uma espécie do gênero normas. A questão é estabelecer os traços característicos das normas de princípio que os distinguem das chamadas normas de detalhe.
Alguns sustentam que os princípios são normas sui generis, que se caracterizam por sua formulação, sua estrutura lógica ou seu conteúdo; outros sustentam que se caracterizam pela posição que ocupam no ordenamento jurídico, ou pela função que cumprem nele. Em um caso, pode-se dizer que a distinção entre normas e princípios é interna: para identificar um princípio é necessário analisar o enunciado no qual se encontra sua formulação. No outro, a distinção é externa: para identificar um princípio não é necessário analisar o próprio princípio, senão seu contexto normativo.
Guastini apresenta 5 modos de distinguir princípios e normas (mesmo que alguns possam ser entendidos como formulações diversas de uma mesma tese):
i) Uma primeira tese caracteriza os princípios em função de sua formulação: as disposições que expressam princípios são formuladas em linguagem vaga, indeterminada. Mas a vagueza é um elemento comum a todo enunciado prescritivo (norma ou princípio). O que se pode dizer é que os princípios são formulados de um modo relativamente mais vago que as outras normas.
ii) Uma segunda tese pretende caracterizar os princípios em virtude de seu conteúdo normativo. Essa tese tem, ao menos, duas variantes. Às vezes, se sustenta que os princípios se distinguem por sua amplitude de seu campo de aplicação. Outras vezes, se pensa que os princípios, diferentemente das normas, não dirigem os comportamentos, mas as atitudes.
iii) Uma terceira tese caracteriza os princípios em virtude de sua estrutura lógica, já que os princípios são privados de um fato condicionante ou, pelo menos, apresentam um fato condicionante aberto. Essa tese pode ter duas interpretações: na primeira, os princípios são normas categóricas; na segunda, os princípios são normas privadas de um âmbito específico de aplicação (ou, talvez, privadas de qualquer âmbito de aplicação).
iv) Uma quarta tese distingue os princípios em razão da posição que ocupam no ordenamento jurídico. Também essa teoria tem duas variantes. Segundo alguns, os princípios são normas fundamentais, constituindo o fundamento, a justificativa axiológica de outras normas. Para outros, os princípios são normas que caracterizam a identidade material do ordenamento em seu conjunto, de modo que, trocando os princípios, se muda o ordenamento existente e se instaura um novo ordenamento.
v) Uma quinta teoria pretende caracterizar os princípios em virtude da forma como estes funcionam na interpretação ou no raciocínio jurídico. Especialmente que: os princípios não admitem uma interpretação literal; os princípios orientam a interpretação das outras normas do ordenamento; a aplicação dos princípios não pode assumir a forma da subsunção; os conflitos entre princípios se resolvem com a técnica da ponderação.
Guastini entende que nenhuma dessas teses é inteiramente persuasiva. Afirma que todas compartilham de um defeito: assumem que existe somente um tipo de princípio, ignorando a grande variedade tipológica dos princípios. Além disso, nenhuma das teses permite identificar os princípios com rigor. Em sua opinião, é conveniente renunciar a dirimir a controvérsia de forma clara e definitiva, e conformar-se com conjeturar de forma mais cuidadosa que, ao menos na maior parte dos casos, os princípios se distinguem por uma ou mais características.
Sobre a formulação dos princípios, é necessário dizer que, diferentemente de outras normas, alguns princípios estão privados de formulação. Não que não tenham uma formulação oficial ou standard (caso dos princípios implícitos); são habitualmente mencionados, mas não formulados. Caso em que têm nome, mas ninguém se atreve a oferecer uma formulação normativa sucinta. Trata-se em verdade, de doutrinas, um conjunto de enunciados, que obviamente, não podem ser reduzidas a um único enunciado normativo: qualquer formulação sucinta seria inadequada.
Se por prescrição se entende um enunciado que estabelece o que se deve fazer e em que circunstâncias, se pode dizer que muitos princípios são formulados habitualmente em uma linguagem não propriamente prescritiva, mas facultativa ou valorativa. Dessa forma, pode-se dizer que muitos princípios dirigem o comportamento de um modo indireto, proclamando um valor ou formulando uma proteção. Freqüentemente, a formulação dos princípios é categórica: proclamam uma finalidade ou um valor a perseguir, sem uma condição precisa, mas incondicionadamente.
Sobre seu conteúdo normativo, muitos princípios são normas teleológicas ou podem ser reformulados em forma teleológica (não prescrevem um comportamento preciso, mas encomendam a obtenção de um fim). O exemplo mais óbvio está constituído pelos numerosos princípios programáticos formulados na Constituição.
Muitos princípios não são normas de conduta comuns, mas normas sobre a aplicação do direito (metanormas), que se dirigem aos órgãos jurisdicionais e administrativos e se referem a outras normas. Às vezes, determinam o campo de aplicação de uma pluralidade de normas; em outras, indicam aos órgãos de aplicação critérios de solução dos conflitos entre normas ou de seleção das normas aplicáveis.
Sobre sua estrutura lógica, os princípios, diferentemente das normas, não impõem obrigações absolutas, mas obrigações que, prima facie, podem ser superadas ou derrogadas por outros princípios.
Quanto à sua posição no ordenamento jurídico, os princípios se caracterizam em relação às outras normas porque desempenham em seu conjunto e/ou em algum de seus setores, o papel de normas fundamentais. Isso ocorre em duplo sentido. Em primeiro lugar, os princípios são normas que servem de fundamento ou justificação de outras normas. Em segundo lugar, os princípios são normas que parecem não requerer fundamento ou justificação.
Do ponto de vista do autor, os princípios são normas que revestem uma especial importância, que aparecem como normas caracterizantes do ordenamento jurídico ou de uma de suas partes, essenciais para a sua identidade ou fisionomia. Por esta razão e neste sentido, é habitual acompanhar o substantivo “princípio” o adjetivo “fundamental”.
Para distinguir entre “princípios fundamentais”, “princípios gerais” e “princípios” sem especificações posteriores, os usos correntes parecem sugerir uma distinção que pode ser traçada do seguinte modo.
Denominam-se princípios fundamentais e gerais do ordenamento os valores ético-políticos que informam todo o ordenamento ou lhe dão fundamento ou justificação (v.g. o princípio da igualdade, o princípio da legalidade, etc.). Adjetivando tais princípios como “gerais” se subtrai sua extensão; adjetivando-os como “fundamentais”, se põe o acento sobre sua posição como centro do ordenamento.
Os princípios gerais de um setor da disciplina jurídica são aqueles que não informam todo o ordenamento, mas uma instituição particular (v.g. a propriedade) ou somente um setor da disciplina jurídica (v.g. o princípio da autonomia privada no direito civil).
Os princípios fundamentais de uma matéria determinada são aqueles cujo alcance está circunscrito, precisamente, a uma matéria (v.g. o urbanismo, a navegação fluvial, etc.). São exemplos deste tipo os princípios fixados nas leis estatais denominadas “de bases” sobre uma ou outra matéria de competência concorrente.
Quando se refere a princípios, sem especificações posteriores, se denomina a razão de ser, o objetivo subjacente a uma determinada lei ou incluído a uma determinada disposição normativa. Isto é, se supõe que toda a disposição normativa tem uma razão de ser, uma finalidade permanente, suscetível de ser conhecida através da interpretação.
Cumpre ainda distinguir entre princípios expressos e princípios implícitos. São princípios expressos aqueles que são explicitamente formulados em uma disposição constitucional ou legislativa, da qual se pode obter mediante a interpretação, como qualquer outra norma. Em contrapartida, são princípios implícitos aqueles que não estão explicitamente formulados em nenhuma disposição, mas que são elaborados ou “construídos” pelos intérpretes. Os princípios implícitos não são fruto da interpretação, mas da integração do direito pelos intérpretes. Esses princípios são derivados dos operadores jurídicos: por vezes a partir de normas concretas, outras a partir de conjuntos de normas, ou até de todo o ordenamento jurídico.
Sobre a fonte dos princípios, se pode falar em, ao menos, dois sentidos distintos, que dependem do significado que o vocábulo fonte pode assumir nesse contexto. Se por fonte se entende o sujeito de que a norma emana, então se deve traçar uma clara distinção entre princípios expressos e implícitos. A fonte de um princípio expresso é a autoridade normativa que ditou a disposição normativa de que o princípio constitui o significado. A fonte de um princípio implícito são os intérpretes, que elaboram e dão formulação aos princípios em questão.
Se por fonte se entende o texto normativo em que a norma encontra sua formulação, então se pode dizer que os princípios expressos têm fonte direta, enquanto que os princípios implícitos a têm de forma indireta, pois embora não estejam dispostos expressamente, podem ser construídos com oportunas técnicas argumentativas, a partir de dispositivos normativos.
Se todos os princípios têm uma fonte, pode-se perguntar, para cada princípio, de que fonte provém. São princípios de categoria constitucional aqueles expressamente formulados ou implícitos na constituição ou nas leis constitucionais. São princípios de categoria legislativa aqueles expressamente formulados ou implícitos nas leis ordinárias e em atos com força de lei.
Essa distinção, de pouca importância prática em um sistema flexível, reveste uma importância evidente em um sistema de constituição rígida. Isto é assim porque os princípios de categoria legislativa podem ser facilmente derrogados por leis ordinárias, enquanto que os princípios de categoria constitucional não podem ser modificados ou derrogados senão por leis constitucionais, além de serem idôneos para provocar a ilegitimidade constitucional e a conseqüente ineficácia de toda a fonte inferior que estiver em contradição com eles.
De qualquer forma, é preciso sublinhar que, no âmbito dos princípios constitucionais, há alguns que não podem ser modificados, derrogados ou subvertidos de nenhuma forma (legítima), estando sem mais subtraídos a revisão constitucional. São estes os princípios “supremos” do ordenamento.
Os princípios são utilizados na produção, interpretação e integração do direito.
Os princípios são empregados, principalmente, na produção do direito. A formulação de um princípio por parte de uma autoridade normativa cumpre, em geral, a função de circunscrever a competência normativa de uma fonte subordinada. Dado que a fonte está subordinada, não pode conter normas incompatíveis com aquele princípio, ou bem deve limitar-se a desenvolver as implicações daquele princípio, sob pena, em ambos os casos, de invalidade por vício substancial ou material. No primeiro caso é inválida toda a norma que seja contraditória com o princípio; no segundo, é inválida toda a norma que não seja deduzível do princípio. O princípio, em suma, funciona de parâmetro de legalidade ou legitimidade da fonte subordinada.
Os princípios também são utilizados na interpretação dos documentos normativos. Os princípios, especialmente os constitucionais expressos, em geral são empregados para justificar uma interpretação “conforme”. Denomina-se “conforme” aquela interpretação que, precisamente, adapta o significado de uma disposição ao de um princípio, previamente identificado.
Em geral, em sede de interpretação, argumentar mediante princípios consiste em apelar a uma norma, da que se assume sua superioridade em relação a disposição a interpretar, para adequar àquela o significado desta. E tratar uma norma como princípio significa precisamente assumir sua superioridade (ao menos axiológica) em relação à outra.
Os princípios têm uso, ainda, na integração das lacunas do direito. Nesses casos, o juiz está autorizado a recorrer aos princípios depois de haver tentado inutilmente o argumento analógico. Mas, em geral, os princípios não são idôneos para oferecer a solução de controvérsias específicas: pelo menos, como se costuma dizer, requerem “concretização”. Quando se usa uma norma implícita como premissa maior de um silogismo judicial, é necessário mostrar persuasivamente que essa norma é materialmente válida, apesar de não estar formulada, de estar “privada de disposição”. Pois bem, isso se pode fazer reconduzindo a norma em questão a um princípio que constitua seu fundamento.
Os conflitos entre princípios e, em particular, entre princípios constitucionais, não podem ser resolvidos com as mesmas técnicas que habitualmente se usam para resolver conflitos entre normas. As regras que determinam que a norma superior prevalece sobre a inferior, a mais recente prevalece sobre a mais antiga, e a mais específica constitui uma exceção a norma mais geral, não são idôneas para resolver os conflitos entre princípios constitucionais. Resultam não aplicáveis, já que se está falando de princípios que não tem entre si nenhuma relação hierárquica, colocando-se todos no nível constitucional, estabelecidos em um mesmo documento normativo, contemporâneos e hierarquicamente iguais.
Os conflitos entre princípios se resolvem mediante a ponderação dos próprios princípios, no caso concreto. Com isto se alude a uma operação intelectual que, sob uma análise lógica, parece apresentar 3 características sobressalientes. A primeira consiste em uma interpretação peculiar dos princípios de que se trate. A ponderação dos princípios pressupõe que os princípios envolvidos sejam interpretados no sentido de que as classes de suportes fáticos regulados por eles se sobreponham somente parcialmente. A segunda característica consiste no estabelecimento de uma hierarquia axiológica (relação valorativa estabelecida pelo intérprete, mediante um juízo de valor) entre os princípios de que se trate. Para resolver uma antinomia não há outra forma que outorgar a uma das duas normas em conflito um peso maior, isto é, uma maior “valor” que a outra. A norma adotada de maior valor prevalece, no sentido de que é aplicada; a norma axiologicamente inferior sucumbe, no sentido de que é deixada de lado. A terceira característica consiste que, para estabelecer a hierarquia axiológica, o juiz não valora os dois princípios em abstrato, sem que valore o possível impacto de sua aplicação ao caso concreto. Em outras palavras, a hierarquia estabelecida entre os dois princípios em conflito é uma hierarquia móvel, mutável: em um caso se atribui maior peso o valor a um princípio, em um caso distinto se atribuirá maior peso o valor a outro.
A ponderação dos princípios se funda, então, em uma peculiar interpretação dos princípios de que se trata e sobre um juízo subjetivo de valor (um juízo nos termos de justiça) do juiz. Atuando assim, o juiz superpõe sua própria valoração a valoração da autoridade normativa (constituinte). Ademais, o conflito não fica resolvido de forma estável, de uma vez por todas, fazendo prevalecer sem mais um dos princípios em conflito sobre o outro; toda solução do conflito vale somente para o caso concreto e, portanto, é imprevisível a solução do mesmo conflito em casos futuro.
Informações Sobre o Autor
Daniela Vasconcellos Gomes
Advogada. Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS); Especialista em Direito Civil Contemporâneo pela Universidade de Caxias do Sul (UCS); Professora de Direito Civil no Centro de Ensino Superior Cenecista de Farroupilha (CESF)