Resumo: O presente trabalho estuda a discute a relevância do direito à vida em conflito com o direito à sexualidade e o direito à liberdade da mulher de dispor do próprio corpo. A pesquisa se mostra de extrema relevância por ser um tema frequentemente discutido na seara penal e que divide opiniões, ademais, o presente trabalho explana também o posicionamento do Supremo Tribunal Federal em relação às práticas abortivas. A metodologia utilizada para a realização desse trabalho foi a bibliográfica exploratória, utilizando-se de pesquisa na internet e artigos científicos, bem como obras de autores renomados como Alexandre de Moraes (2003), Fernando Silva (2001) e Rouland (2003) e jurisprudência atual. O objetivo da pesquisa fundamenta-se na análise da violação do direito constitucional à vida quando se possibilita as práticas abortivas sob argumentos a favor do direito à liberdade da mulher.
Palavras-chave: Aborto; Descriminalização; Direito à vida.
Abstract: The present study discusses the relevance of the right to life in conflict with the right to sexuality and the right to freedom of women to dispose of their own bodies. The research is extremely relevant because it is a topic frequently discussed in the criminal court and that divides opinions, in addition, the present work also explains the position of the Federal Supreme Court in relation to abortive practices. The methodology used to carry out this work was the exploratory bibliography, using Internet research and scientific articles, as well as works by renowned authors such as Alexandre de Moraes (2003), Fernando Silva (2001) and Rouland (2003) and jurisprudence current. The objective of the research is based on the analysis of the violation of the constitutional right to life when abortive practices are allowed under arguments in favor of the right to freedom of women.
Keywords: Abortion; Decriminalization; Right to life.
Sumário: Introdução. 1. O aborto e o direito à vida. 1.1 Do direito à vida e a Constituição brasileira de 1988. 2. A criminalização do aborto e o conflito de direitos constitucionais. 2.1 Argumentos contra a descriminalização do aborto: in dubio pro vita. 2.2 argumentos a favor da descriminalização do aborto. 3. O STF e a recente posição sobre a descriminalização do aborto. 4. Considerações Finais. Referências.
Introdução
O trabalho questiona a possibilidade de flexibilização do direito à vida frente a descriminalização do aborto quando se discute principalmente o direito ao exercício da sexualidade e o direito da mulher de dispor do próprio corpo.
O objetivo da pesquisa fundamenta-se na análise da possível violação do direito constitucional à vida quando se permite as práticas abortivas sob argumentos a favor do direito à liberdade da mulher.
Quanto à justificativa do trabalho, ele se mostra de extrema relevância diante das grandes discussões acerca da flexibilização de direitos constitucionais em conflito no que tange a legalização do aborto e os recentes julgados do Supremo Tribunal Federal que possibilitaram a práticas abortivas além das que já eram previstas em lei.
A vida é o bem jurídico mais relevante do ser humano, pois sem ela não é possível o exercício dos demais direitos. Biologicamente, a vida se inicia da fecundação e, com a vida surge a possibilidade de exercício do direito primário, o próprio direito à vida. O Supremo Tribunal Federal vem flexibilizando o direito à vida e enaltecendo o direito à liberdade da mulher acerca do direito de dispor do próprio corpo. Neste diapasão, o trabalho questiona a violação do direito à vida em conflito com outros direitos fundamentais na celeuma da legalização do aborto.
A metodologia utilizada para a realização desse trabalho foi a bibliográfica exploratória, utilizando-se de pesquisa na internet e artigos científicos, bem como obras de autores renomados como Alexandre de Moraes, José Afonso da Silva e Norbert Rouland.
1. O aborto e o direito à vida
Quando se fala em aborto, inevitavelmente se discute o direito à vida. O assunto é demasiadamente delicado por tratar de colisão de direitos, pois, como se verá adiante, ao se discutir o direito à vida do nascituro outros podem colidir com este.
O ordenamento jurídico brasileiro prevê no Código Penal, Decreto-Lei n. 2.848 de 07 de dezembro de 1940, do artigo 124 ao 128, as condutas típicas do crime de aborto que estão localizados na Parte Especial do código, no Capítulo que aborda sobre os Crimes Contra a Vida (BRASIL, 1940).
O trabalho aborda o aborte e direito à vida no que tange às práticas ilegais do aborto, pois o legislador pátrio resolveu tipificar como crime a conduta da mulher que pratica o próprio abortou ou o aborto praticado por terceiro, seja o ato praticado com ou sem o consentimento da gestante. O código Penal também previu expressamente dois casos em que a conduta abortiva é legalmente permitida.
1.1 Do direito à vida e a Constituição brasileira de 1988
A Constituição Brasileira de 1988, prevê no “caput” do seu artigo 5º o direito à vida a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil. A carta magna consagra a inviolabilidade do direito à vida e, onde todo aquele que reside no país, tem o direito resguardado quando já considerado um ser com vida.
“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (BRASIL, 1988).”
A vida é o direito mais relevante do ser humano, sem o qual não subsiste qualquer outro direito. Russo (2009) ensina que o direito à vida é o bem mais relevante do homem e que a dignidade da pessoa humana é um fundamento da República Federativa do Brasileira, o primeiro se sobrepõe ao segundo por ser impossível haver dignidade sem vida.
Por sua vez, Branco (2010, p.441) diz que:
“A existência humana é o pressuposto elementar de todos os demais direitos e liberdades disposto na Constituição e que esses direitos têm nos marcos da vida de cada indivíduo os limites máximos de sua extensão concreta. O direito à vida é a premissa dos direitos proclamados pelo constituinte; não faria sentido declarar qualquer outro se, antes, não fosse assegurado o próprio direito estar vivo para usufruí-lo. O seu peso abstrato, inerente à sua capital relevância, é superior a todo outro interesse.”
O direito à vida em ter todos os direitos é o mais fundamental por ser pré-requisito de existência e do exercício de todos os outros direitos. Coadunando o entendimento Tavares (2010, p. 559) explica o direito à vida “é o mais básico de todos os direitos, no sentido de que surge como verdadeiro pré-requisito da existência dos demais direitos consagrados constitucionalmente. É, por isto, o direito humano mais sagrado”.
Além da Constituição, o Código da Criança e do Adolescente traz expressamente em seu artigo 7º que “a criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência” (BRASIL, 1990, on-line).
Tavares ainda acrescenta, que o que torna o dispositivo legal ainda mais relevante é a determinação de políticas que propiciem um nascimento sadio e harmonioso.
“A criança e o adolescente, como qualquer outro ser humano, gozam da proteção à vida é receito constitucional explícito. Contudo, o que torna o dispositivo de interesse para meditação mais ampla é a imposição de políticas “que permitam o nascimento” sadio e harmonioso. Aqui, o objeto da tutela jurídica é, pois, o próprio ser em concepção (TAVARES, 2010, p. 571).”
Sobre o conceito de vida, é interessante o posicionamento de Silva (1991, p. 20) ao escrever sobre o direito à vida em sua obra, "não intentaremos dar uma definição disto que se chama vida, porque é aqui que se corre o risco de ingressar no campo da metafísica suprarreal, que não nos levará a nada".
Por sua vez, buscando o significado da terminologia “vida” (grifo nosso), o filólogo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, trouxe a seguinte definição
“Conjunto de propriedades e qualidades graças às quais animais e plantas, ao contrário dos organismos mortos ou da matéria bruta, se mantêm em contínua atividade, manifestada em funções orgânicas tais como o metabolismo, o crescimento, a reação a estímulos, a adaptação ao meio, a reprodução , e outras; existência; o estado ou condição dos organismos que se mantêm nessa atividade desde o nascimento até a morte; o espaço de tempo que decorre desde o nascimento até a morte (FERREIRA, 1994, p. 280).”
Como já mencionado, o direito à vida é pressuposto básico de todos os outros direitos do homem. Após a breve análise constitucional e conceitual da vida para proporcionar clareza ao assunto, há, entretanto, de se dissertar acerca do momento em que existe a vida e a partir dela a garantia de inviolabilidade.
De forma geral, que o início da vida é uma questão biológica que deve ser explicado pelos estudiosos da área. Contudo, várias teorias buscam explicar o início da vida humana, dentre elas a teoria da concepção, da nidação, dos sinais eletro encefálicos e da implementação do sistema nervoso, por exemplo.
A teoria da concepção ou fecundação defende que há vida desde o momento da concepção, ou seja, no momento em que ocorre a fecundação. Já a teoria da nidação defende que para haver vida é necessário que haja a implantação do óvulo no útero da mulher. Na teoria da implementação do sistema nervoso se defende que só existe vida com o surgimento de ao menos rudimentos do se transformará em sistema nervoso, não sendo suficiente apenas a individualização genética, mas também a apresentação de alguma característica humana no feto (ANDRADE, 2012).
Ainda, para alguns autores, é imprescindível a verificação da atividade cerebral para que haja vida, que se inicia após oito semanas de gestação com a atividade elétrica do cérebro. Finalmente, há quem defenda que apenas com o nascimento haverá a incidência do direito à vida (ANDRADE, 2012).
Ainda sobre o início da vida, a biologia e a medicina garantem que a vida se inicia com a fecundação, que seria a fusão do espermatozoide e óvulo. Para a teoria da concepção ou fecundação no momento em que o óvulo é fertilizado a vida passa a existir. Essa é a teoria também defendida pela igreja católica (DORIGATTI, 2016).
Adepto da teoria da fecundação, o professor Brandão, especialista em Ginecologia e membro emérito da Academia Fluminense de Medicina, citado por Andrade (2008, on-line) diz que:
“A ciência demonstra insofismavelmente – com os recursos mais modernos – que o ser humano, recém-fecundado, tem já o seu próprio patrimônio genético e o seu próprio sistema imunológico diferente da mãe. É o mesmo ser humano – e não outro – que depois se converterá em bebê, criança, jovem, adulto e ancião. O processo vai-se desenvolvendo suavemente, sem saltos, sem nenhuma mudança qualitativa. Não é cientificamente admissível que o produto da fecundação seja nos primeiros momentos somente uma matéria germinante. Aceitar, portanto, que depois da fecundação existe um novo ser humano, independente, não é uma hipótese metafísica, mas uma evidência experimental. Nunca se poderá falar de embrião como de uma pessoa em potencial que está em processo de personalização e que nas primeiras semanas pode ser abortada. Por quê? Poderíamos perguntar-nos: em que momento, em que dia, em que semana começa a ter a qualidade de um ser humano? Hoje não é, amanhã já é. Isto, obviamente, é cientificamente absurdo.”
Por sua vez, teoria da nidação afirma que a vida só começa a partir da nidação, que seria a fixação do óvulo na parede uterina, pois apenas depois da nidação o embrião passa a ter chances de se desenvolver realmente. A nidação ocorre aproximadamente na segunda semana após a concepção (DORIGATTI, 2016).
Há também uma polêmica corrente que defende só existir vida após a 24ª semana da gestação com a formação dos pulmões dando ao feto as condições de sobreviver fora da barriga da mãe. Entretanto, a teoria é polêmica, pois com base nela seria possível realizar um aborto até o sexto mês de gravidez (DORIGATTI, 2016).
Outra teoria relevante segue a lógica de que como a vida termina com o fim da atividade cerebral, a vida teria começaria com o início dessa atividade, ou seja, a definição da vida seria encontrada na morte, que é o seu reverso.
Até metade do século XX, para a medicina a morte ocorria quando a pessoa parava de respirar ou no momento em que o coração para de bater. Entretanto, os critérios para estabelecer a morte necessariamente foram modificados com a descoberta dos aparelhos de ventilação mecânica que possibilitaram manter vivas pessoas que não podiam respirar sozinhas. Na década de 60, com a descoberta dos transplantes de órgãos a necessidade de mudança dos parâmetros para identificar a morte se tornou mais evidente. A medicina desenvolveu o conceito de morte encefálica que é adotado atualmente, na qual a morte acontece quando o cérebro perde a sua atividade. Seguindo o conceito de morte encefálica, a morte pode ser identificada quando o coração ainda está batendo, sendo possível a retirada dos órgãos para realizar transplantes. Assim, se a vida acaba quando o cérebro perde a sua atividade, ela se inicia com a formação do cérebro. Esse entendimento é seguido por um expressivo número de especialistas em neurociência e de cientistas, para os quais a vida tem início junto com o desenvolvimento das primeiras terminações nervosas (DORIGATTI, 2010).
Para Moraes (2003, p.63) o começo da vida é uma questão biológica, cabendo ao biólogo definir o seu início e ao jurista dar-lhe o enquadramento legal. Em suas palavras:
“do ponto de vista biológico, não há dúvida de que a vida se inicia com a fecundação do óvulo pelo espermatozoide, resultando um ovo ou zigoto. Assim o demonstram os argumentos colhidos na Biologia. A vida viável começa, porém, com a nidação, quando se inicia a gravidez…e assegura, ninguém pode ser privado arbitrariamente de sua vida. Esse direito, que é o primeiro da pessoa humana, tem em sua concepção atual conflitos com a pena de morte, as práticas abortivas e a eutanásia como posteriormente analisados.”
Na mesma esteira Branco (2010, p. 445), diz que:
“O elemento decisivo para se reconhecer e se proteger o direito à vida é a verificação de que existe vida humana desde a concepção, quer ela ocorra naturalmente, que in vitro. O nascimento é um ser humano. Trata-se, indisputavelmente, de um ser vivo, distinto da mãe que o gerou, pertencente à espécie biológica do homo sapiens. Isso é bastante para que seja titular do direito à vida – apanágio de todo ser que surge do fenômeno da fecundação humana.”
Portanto, a vida é o princípio de maior importância existente na Carta Magna Brasileira, por ser imprescindível à existência e ao exercício dos demais direitos, havendo o direito à vida e à inviolabilidade deste desde a concepção, por ser o marco inicial da vida humana.
2. A criminalização do aborto e o conflito de direitos constitucionais
Muito se discute acerca da descriminalização do aborto. Diversos argumentos como o direito à vida do nascituro ou direito à liberdade e sexualidade da mulher são levantados por aqueles que são a favor e por aqueles que são contra a medida.
2.1 Argumentos contra a descriminalização do aborto: in dubio pro vita
Um dos argumentos suscitados por quem se opõe à liberação ao aborto se apoia no princípio in dubio pro vita, por haver dúvidas acerca de uma vida humana a ser protegida a partir da concepção, sendo tal dúvida critério suficiente para proibir a prática abortiva.
Rouland (2003) destaca que a grande questão não seria saber se há vida após a concepção, mas se essa vida já pode ser considerada uma vida humana, todavia, a dúvida deveria militar a favor da vida humana proibindo as práticas abortivas.
O autor defende que se deve estabelecer uma cautela em prol da vida humana que deve ser tutelada por meio da proibição do aborto. Existindo a dúvida acerca da humanidade do concepto, a possibilidade de lesão a uma vida humana não deve permitir a assunção do risco, de maneira que a transformação do aborto em direito subjetivo, sua possível banalização seria uma medida extrema lamentável. Ao direito subjetivo das gestantes de escolherem pela interrupção da gravidez opor-se-ia a finalidade de proteger a pessoa e o direito à vida (ROULAND, 2003).
Para Lemos (2017) quando se apresenta a questão da presença ou não de uma vida humana tutelável desde a concepção para em seguida afirmar-se que na dúvida deve-se optar pela vida, in dúbio pro vita, é preciso analisar criticamente tal tomada de posição, a fim de não permitir que seja desarticulada pela demonstração de que, longe de assimilar a dúvida e fazer dela um forte argumento de precaução quanto a uma possível lesão, trata-se de uma espécie de descaminho do pensamento que o faz retornar ao ponto de partida, qual seja a alegação inicial da presença da vida humana no concepto, o que produz apenas um andar em círculos entre os pensamentos antagônicos de que inicialmente se partia.
Para Cabette (2010) a questão sob análise deve ser direcionada, pois, para o concepto, enquanto um ser dotado de vida ou não. Para o autor, dizer simplesmente que, na dúvida, deveria se optar pela sua vida seria, amparar a premissa afirmativa em si mesma. Cabette (2010) afirma, ainda, que é necessário ir além disso em busca de encontrar argumentos que possam orientar em situações duvidosas. Além disso, volta as suas críticas à posição de Norbert Rouland de que existe, no caso do concepto, uma presunção que se estabelece em prol da vida, e que poderia ser interpretada de forma melhor, afirmando que a justificativa da dúvida não é razoável para justificar a proibição da interrupção gestacional.
Dessa forma, existiria uma presunção de vida em relação ao nascituro e tal presunção seria suficiente para a sociedade não assumir o risco de ofender o direito à vida de outrem e desenvolver cautela acerca desse direito indisponível por meio da proibição das práticas abortivas.
Os que defendem a criminalização do aborto ainda ressalvam a questão de responsabilidade individual. Sustentam que a liberdade de dispor do próprio corpo não pode ser absoluta a ponto de afetar direito à vida de outrem.
Nesse diapasão, a liberdade não é desagregada da responsabilidade, o que significa que o homem deve ser livre para cometer atos sendo responsável pelas consequências dos mesmos (LEMOS, 2017).
Dessa maneira, como para se chegar ao aborto deve-se percorrer um longo caminho com falhas sucessivas, que resultam da não utilização de métodos contraceptivos existentes, abortar seria como separar a responsabilidade das consequências que resultam dos atos praticados em liberdade. O direito à vida é a base de toda sociedade moral e deve ser superior ao direito à liberdade (CABETTE, 2010).
Sobre o assunto, Iorio (2012, p. 234) escreve, em seu artigo intitulado Os Valores de uma Sociedade Livre e Virtuosa, o seguinte entendimento:
“Nunca devemos nos esquecer de que liberdade e virtude são indissociáveis, o que significa, simplificando um pouco as coisas, que só faz sentido falarmos em liberdade se a essa liberdade estiver associada alguma obrigação, que é a de respeitar os direitos de terceiros. Um exemplo claro, cristalino, irrefutável é a polêmica em torno da legalização do aborto, defendida tradicionalmente tanto pela chamada "esquerda" como por alguns libertários radicais: é verdade que a mulher deve ter a liberdade para dispor do próprio corpo como lhe aprouver, isto é, de acordo com seus princípios morais ou com sua simples vontade, mas é também verdade que se ela matar o feto que se desenvolve em seu ventre estará agredindo um direito básico, que é o direito à vida desse futuro bebê, que não lhe pertence e que já é uma pessoa humana, embora em formação, dotada de vida e de dignidade; além disso, estará maculando também um direito de propriedade, ao dispor sobre a propriedade de outrem, já que o feto, por definição (e por mais que queiram negá-lo certos grupos defensores do aborto) é proprietário de seu próprio corpo, mesmo estando este ainda em formação.”
Se existe a liberdade de praticar o sexo a utilização de métodos contraceptivos que impedem a gravidez, as pessoas devem estar prontas para aceitar as consequências advindas destas práticas. Theodore Darlymple (2015) anotou que os que apreciam e almejam a liberdade abandonariam a mesma por segurança, caso precisassem lidar com as consequências daquela.
“Se a liberdade acarretar responsabilidade, muitos não querem nenhuma das duas. Felizes trocariam a liberdade por uma segurança modesta, ainda que ilusória. Mesmo aqueles que dizem apreciar a liberdade ficam muito pouco entusiasmados quando se trata de aceitar as consequências dos atos. O propósito oculto de milhões de pessoas é ser livre para fazer, sem mais nem menos, o que quiserem e ter alguém para assumir quando as coisas derem errado. (DALRYMPLE, 2015, p. 280).”
Para os defensores da criminalização do aborto, enfrentar a questão como um problema de saúde pública significaria cobrar impostos de pessoas que são contra às práticas abortivas e destinar a arrecadação para estas práticas seria suprir a liberdade destas e obriga-las custear algo que repudiam. Neste ponto, ainda haveria o conflito entre a liberdade da mulher e a liberdade das pessoas que não desejam financiar o serviço (CABETTE, 2010).
Os que militam contra o aborto ainda rebatem o argumento de que o aborto se trata de um fato social existente, aludindo que a falha do argumento incide que o mesmo pode ser aplicado à outras práticas criminosas, homicídio ou furto. Não se deve descriminalizar uma conduta por ela ser um fato social que não cessará ou porque quem a pratica poderá sofrer as consequências da prática em si, pois tal de argumentação poderia abrir precedentes para descriminalização de diversas condutas criminosas (LEMOS, 2017).
Outro ponto de discussão é a possibilidade de se estar ou não retirando a vida, inviolável e indisponível, de outrem. Pois, havendo atentado contra a vida, são insignificantes as consequências que o delinquente poderá sofrer em razão da conduta delituosa.
Sobre isto, John Locke (2014), ao discorrer acerca do poder legislativo, entende que leis não podem ser definidas de maneira arbitrária, pois devem ter como alvo o bem da sociedade, não podendo provocar resultados inesperados.
“Ninguém tem um poder arbitrário absoluto sobre si mesmo ou sobre qualquer outro para destruir sua própria vida ou privar um terceiro de sua vida ou de sua propriedade. Foi provado que um homem não pode se submeter ao poder arbitrário de outra pessoa; por outro lado, no estado de natureza, o poder que um homem pode exercer sobre a vida, a liberdade ou a posse de outro jamais é arbitrário, reduzindo-se àquele a ele investido pela lei da natureza, para a preservação de si próprio e do resto da humanidade; esta é a medida do poder que ele confia e que pode confiar à comunidade civil, e através dela ao poder legislativo, que portanto não pode ter um poder maior que esse (LOCKE, 2014, p. 176).”
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que levou em consideração os direitos naturais, pertinentes da natureza humana, abordou em seus artigos 4º e 5º sobre liberdade, e seguiu a mesma linha de raciocínio:
“Art. 4.º A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos (FRANÇA, 1789, on-line).”
Desta forma, é possível notar que a discussão acerca do momento do início da vida parece mais correta, pois esta seria um direito inviolável constitucionalmente previsto, não devendo o direito à liberdade de dispor do próprio corpo se sobrepor a ele, pois o corpo do nascituro não se trata do corpo da mulher mesmo que dependa deste.
2.2 argumentos a favor da descriminalização do aborto
Aqueles que defendem a legalização o aborto, levam à discussão a questão do conflito de normas constitucionais entre o direito à vida e direito da mulher grávida à intimidade, à privacidade, e à liberdade em dispor do corpo.
É defendido, ainda, que o nascituro não possui direito à vida por não ser um ser vivo independente do corpo da mãe. O que submerge na questão de que não existe vida ainda para ser removida, o que descaracterizaria o aborto, até determinado tempo da gestação, como um crime contra a vida (LEMOS, 2017).
O momento em que se forma a vida é o ponto mais discutido entre os que são a contra ou a favor da descriminalização do aborto. Para os que são a favor da liberação do aborto a vida humana apenas tem início com a formação do sistema nervoso. Os defensores da descriminalização da conduta também defendem que o número de mortes de mulheres em razão da prática do aborto em clínicas clandestinas é alto. O que faria da descriminalização um assunto de saúde pública. Menciona-se, ainda, que quando as mulheres engravidam de forma indesejada os homens tendem a deixa-las desamparadas. Ou, quando não, costumam apenas fornecer auxílio financeiro, sem ajudar na educação do filho ou dar afeto (CABETTE, 2010).
A ponderação de princípios seria então o ponto alto da discussão em busca da solução para a prevalência de princípios sobre outro, que seria o direito à vida inviolável, indisponível e até certo ponto absoluto, desde que seja detectada a existência da vida humana.
3. O STF e a recente posição sobre a descriminalização do aborto
A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal proferiu no ano de 2016 uma decisão que teve grande repercussão ao considerar atípica a conduta de aborto quando a gestação ainda estiver no seu primeiro trimestre.
Em 29 de novembro de 2016 o STF decidiu a favor da atipicidade do aborto até o primeiro trimestre da gravidez. Acompanhando o voto do ministro Luís Roberto Barroso, o órgão colegiado em decisão proferida nos autos do habeas corpus número 124.306/RJ entendeu por descriminalizar a conduta do aborto até o terceiro mês da gestação. O entendimento, no entanto, se aplica apenas para o caso concreto julgado pela turma. Entretanto, abre-se precedente para os próximos casos.
A decisão da Turma decidiu com base no voto do ministro Luís Roberto Barroso. Para ele, a criminalização do aborto no primeiro trimestre da gestação viola os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, o direito à autonomia de fazer suas escolhas, além do direito à integridade física e psíquica.
Ao proferir o voto, o ministro ressaltou que em países democráticos e desenvolvidos não se aplica a criminalização do aborto. Nas palavras de Barroso:
“Em verdade, a criminalização confere uma proteção deficiente aos direitos sexuais e reprodutivos, à autonomia, à integridade psíquica e física, e à saúde da mulher, com reflexos sobre a igualdade de gênero e impacto desproporcional sobre as mulheres mais pobres. Além disso, criminalizar a mulher que deseja abortar gera custos sociais e para o sistema de saúde, que decorrem da necessidade de a mulher se submeter a procedimentos inseguros, com aumento da morbidade e da letalidade (HABEAS CORPUS, nº 124.306/RJ, on-line).”
Em que pese o entendimento acima, a turma entendeu que a criminalização do aborto deve ser aplicada nos meses seguintes aos três primeiros, pois após esse período o feto já possui possibilidade de vida fora do útero materno. Acrescentou Barroso:
“A interrupção voluntária da gestação não deve ser criminalizada, pelo menos, durante o primeiro trimestre da gestação. Durante esse período, o córtex cerebral – que permite que o feto desenvolva sentimentos e racionalidade – ainda não foi formado, nem há qualquer potencialidade de vida fora do útero materno. Por tudo isso, é preciso conferir interpretação conforme a Constituição aos Artigos 124 e 126 do Código Penal, para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre (HABEAS CORPUS, nº 124.306/RJ, on-line).”
A ministra Rosa Waber acompanhou o voto de Barroso, explicitando que, apesar de consagrar a inviolabilidade do direito à vida, a Constituição Federal dispõe sobre exceção a ele quando permite a pena de morte em caso de guerra declarada, o que possibilitou a sua flexibilização.
“Por tais razões, entendo, compartilhando das premissas argumentativas defendidas pelo Ministro Luís Roberto Barroso, no tocante aos fundamentos jurídicos e juízo de proporcionalidade, que o aborto sob a perspectiva constitucional no Brasil exige regulamentação jurídica que seja, ao mesmo tempo, conforme com os direitos do nascituro e a proteção do direito à vida e dignidade da pessoa humana, bem como em harmonia com o direito à liberdade e autonomia individual das mulheres, as quais devem ter seus direitos à autonomia reprodutiva e sexual, a não discriminação indireta de gênero igualmente tutelados. Nossa ordem constitucional, incluída nossa jurisdição constitucional que tem por função precípua a definição da interpretação constitucional como deliberado e decidido nos casos da ADPF 54 e da ADI 3.510, entendeu pelo caráter não absoluto do direito à vida, afirmação esta que é referendada pela própria Constituição Federal, cujo artigo 5º, inciso XLVII, admite a pena de morte em caso de guerra declarada na forma do artigo 84, inciso XIX. Corrobora esse entendimento o fato de o Código Penal prever, como causa excludente de ilicitude ou antijuridicidade, o denominado aborto
ético ou humanitário – quando o feto, mesmo sadio, seja resultado de estupro. Ao sopesar os direitos do nascituro e os direitos da mulher violentada, o legislador houve por bem priorizar estes em detrimento daquele – previsão legislativa que não teve constitucionalidade questionada. A questão, portanto, é se essa escolha legislativa, com fundamento na proporcionalidade entre os direitos fundamentais, deve limitar-se à hipótese de interrupção da gravidez por motivos de saúde física ou psíquica (circunstância do estupro). Ou seja, se a escolha política majoritária em face do desenho institucional normativo de nossa Constituição Federal é legítima ou, se ao contrário, há necessidade de se
conferir interpretação conforme aos artigos 124 a 126 do Código Penal. Entendo, pelas razões expostas, bem como pela justificação decisória compartilhada do voto-vista do Min. Luís Roberto Barroso, que a proporcionalidade da escolha política é controversa em face da tutela dos direitos fundamentais da mulher, cabendo interpretação conforme a Constituição para excluir do âmbito de incidência dos artigos 124 a 126 a hipótese de interrupção voluntária da gravidez, por decisão da mulher, no primeiro trimestre. Ante o exposto, e com os argumentos adicionais trazidos, peço todas as vênias ao eminente Relator para acompanhar o voto-vista do Min. Luís Roberto Barroso, para conceder de ofício a ordem de habeas corpus, por ausência dos requisitos legais para a manutenção da prisão preventiva dos pacientes, estendendo-se aos corréus HABEAS CORPUS, nº 124.306/RJ, on-line).”
Dessa forma, entende-se que o posicionamento atual do Supremo Tribunal Federal segue a teoria que considera que apenas há vida após a formação do córtex cerebral e que o direito à vida, apesar de inviolável de acordo com a Constituição Federal de 1988, não se trata de um direito absoluto.
4. Considerações Finais
O Presente trabalho buscou discutir acerca do aborto e o direito à vida, buscou analisar a doutrina mais recente sobre o tema explanando e os argumentos a favor e contra a descriminalização do aborto.
Objetivo geral foi analisar a possibilidade da prática abortiva em detrimento do direito à vida, visto que muito se discute acerca da prevalência do direito à vida sobre o direito à liberdade da mulher.
Quanto aos objetivos específicos, foi possível constatar que o direito à vida constitucionalmente previsto como inviolável, pode sofrer flexibilização diante do conflito com outros direitos, como nos casos de abortos legalmente permitidos.
Ainda, constatou-se que a discussão acerca da descriminalização do aborto leva em conta diversos fatores, dentre eles o momento em que passa a existir a vida do concepto e, a partir dela, a proteção ao direito à vida em detrimento dos demais direitos ou não.
Conclui-se, portanto, que o direito à vida vem sendo flexibilizado nas cortes superiores para assegurar direitos como o direito à liberdade e sexualidade da mulher e que a inviolabilidade constitucionalmente prevista do direito à vida não é absoluta no direito pátrio.
Informações Sobre o Autor
Wagner Jardel Melo de Jesus Freire
Advogado Criminalista; Graduado em Bacharelado em Direito pela Faculdade de Tecnologia do Piauí FATEPI; Pós-graduado em Ciências Criminais pela Faculdade Adelmar Rosado FAR