1-
Introdução:
Discute-se
na doutrina e jurisprudência acerca da revogação do artigo 32 da Lei de
Contravenções Penais pelo Código de Trânsito Brasileiro, quanto à direção de
veículo automotor sem a habilitação legal, apenado, segundo preceito secundário
da referida norma penal incriminadora, somente com multa.
O
objetivo deste breve estudo não é discorrer sobre a polêmica quanto à
derrogação, mas sim quanto à aplicação da tese da revogação na execução fiscal,
logicamente da que cobra pena pecuniária imposta pela prática da contravenção
em testilha.
Sobre
a revogação do artigo 32 da LCP existem duas correntes: 1ª)posição: no sentido
da derrogação, face o advento do Código de Trânsito Brasileiro no qual há
previsão do delito de direção sem habilitação, no artigo 309, há vários
julgados do Tribunal de Alçada Criminal1 e alguns
recentíssimos Acórdãos do Superior Tribunal de Justiça2, bem como
a lição dos penalistas Dámasio
E. de Jesus e Luiz Flávio Gomes3; e 2º
posição: contra a revogação4, argumenta-se que há dois tipos penais distintos,
contravenção penal na direção sem habilitação com perigo abstrato, e o crime
previsto no artigo 309, da Lei 9503/97, quando há direção sem habilitação
gerando perigo concreto, que responsabilizam condutas penalmente reprováveis
diversas5.
Sem
embargo das respeitáveis opiniões em sentido contrário, adotamos a primeira
posição, mas nos limitaremos a abordar a questão da aplicação desta tese no
juízo da execução fiscal, que merece ser discutida.
2-
A execução da multa penal:
A
execução da pena pecuniária deverá obedecer o rito da
Lei nº 6.830/80, que disciplina a execução da dívida
ativa da Fazendas Públicas, nos termos da Lei n. 9.286/96, que alterou a
redação do artigo 51 do Código Penal.
Contudo,
o legislador não alterou o caráter penal6 da sanção
imposta, impondo-se a aplicação dos princípios e normas quanto à retroatividade
da lei penal mais benéfica, na execução da dívida ativa não-tributária. No caso
em testilha, a que visa cobrar multa penal imposta
pela prática do artigo 32 da Lei de Contravenções Penais.
3-
A retroatividade da lex mitior:
O
mandamento constitucional da aplicação retroativa da lei penal benéfica está
previsto no artigo 5º, XL, da Constituição Federal.
No
artigo 2º, do Código Penal, em seu parágrafo único, há disposição expressa que
a retroatividade benéfica aplica-se aos fatos anteriores à vigência da lei,
ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado
.
A
aplicação da lex mitior no processo de execução penal está prevista no
artigo 13 da Lei de Introdução ao Código de Processo Penal e no inciso I do
artigo 66, da Lei de Execução Penal ao dispor que compete ao juiz da execução
aplicar aos casos julgados a lei posterior que de qualquer modo favorecer o
condenado. O Pretório Excelso, na Súmula 6117, adota
este posicionamento.
Não
há no ordenamento jurídico qualquer obstáculo constitucional ou legal à
aplicação da abolitio criminis
na execução fiscal, proposta para que seja satisfeita a pretensão imposta
por decisão judicial, ante a prática da contravenção prevista no artigo 32 da
Lei de Contravenções Penais, por direção de veículo automotor sem a devida
habilitação, ante a sua revogação pelo Código de Trânsito Brasileiro.
Cumpre-nos
assinalar que o artigo 5º, inciso XL, da Magna Carta não impõe nenhuma
restrição à aplicação da retroatividade da lex
mitior aos processos com sentença transitada em
julgado, afigurando-se como inconstitucional, por incompatibilidade material,
qualquer entendimento em sentido contrário.
A
norma constitucional, segundo o magistério de Celso Ribeiro Bastos8 deve ser
interpretada num sentido que lhe atribua maior eficácia possível que, na feliz
síntese do precitado mestre, “se traduz na preservação da carga material que
cada norma possui, e que deve prevalecer, não sendo aceitável sua nulificação
nem que parcial”9 .
O
mestre Carlos Maximiliano leciona: “quando o texto dispõe de modo amplo, sem
limitações evidentes, é dever do intérprete aplicá-lo
a todos os casos particulares que se possam enquadrar na
hipótese geral prevista explicitamente”10.
No
dizer sempre expressivo de Luiz Vicente Cernicchiaro: “nenhuma lei penal,
escreva-se ainda mais favorável sofre qualquer restrição. Aplica-se
imediatamente”11, e
prossegue afirmando que “pouco importa, antes ou depois do trânsito em julgado
da sentença condenatória”. “A lex mitior é
de aplicação irrestrita”12.
Damásio
Evangelista de Jesus, ao interpretar o artigo 2º do Código Penal, ressalta que
“o princípio da retroatividade é incondicional, não se detendo
nem perante a coisa julgada”13.
A
Constituição Federal consagra o princípio da retroatividade da lei penal que
favorece o agente, sem impor nenhuma restrição a tal retroatividade, devendo o
magistrado aplicar de ofício a retroatividade no caso de abolitio
criminis, conforme a regra prevista no artigo 61,
“caput”, do Código de Processo Penal14.
Em
suma, como não há nenhum obstáculo constitucional à aplicação da abolitio criminis
na execução fiscal, esta deve ser aplicada, sob pena de prática de ato
inconstitucional.
4-
O remédio cabível para impugnar a decisão judicial que não adota a tese da
revogação, no processo de execução fiscal:
Alguma
dúvida poderá surgir quanto ao remédio cabível contra a decisão que indefere a
extinção da punibilidade no processo de execução fiscal, na qual esteja sendo
cobrada uma multa imposta em razão da prática da infração penal prevista no
artigo 32 da Lei de Contravenções Penais, logicamente pela direção de veículo
automotor.
Incabível
o ajuizamento de habeas corpus que não
poderá ser utilizado para a correção de qualquer ato que não implique coação ou
ameaça de coação à liberdade de ir e vir, como para questionar pena pecuniária;
eis que conforme já decidiu o Pretório Excelso15:
“Com
a nova redação do art. 51 do Código Penal, a pena de multa não mais pode ser
convertida em pena de detenção, passando a ser considerada dívida de valor e
executada como dívida ativa da Fazenda Pública; em conseqüência, não mais cabe
“habeas-corpus” quando o paciente é apenado, exclusivamente, com pena
de multa, eis que não há como surgir a hipótese
de constrição ilegal à sua liberdade de locomoção. “Habeas-corpus”
não conhecido”16.
Cabível
a interposição de Agravo de Instrumento com fundamento nos artigos 522 a 529 do Código de
Processo Civil. Incabível a impetração de Mandado de Segurança já que o artigo
5º inciso II, da Lei nº 1.533/91, veda a impetração
do mandamus quando há recurso previsto em lei
processual, passível de modificar a decisão judicial; nesse sentido é a Súmula
267 do Supremo Tribunal Federal.
5
– Conclusão
Ante
o exposto, entendemos que as execuções fiscais que cobram multa penal imposta
pela prática da revogada contravenção de falta de habilitação de veículo
automotor, devem ser extintas pela abolitio
criminis, perdendo objeto a execução que cobra a
multa imposta, uma vez que cessaram os efeitos da
sentença condenatória que impôs a pena, nos termos do artigo 2º, “caput”, do
Código Penal. Caso seja indeferida a extinção, caberá agravo de instrumento.
Notas:
1. Nesse
sentido: TACrim-SP: Ap. nº
1.091.61/8, 13º Câm., rel. Rui Stoco, j. 12.05.98, v.u., “Boletim IBCCrim
67/Jurisprudência”, junho/1998, p. 266; HC nº 320.770/5,
15º Câm., rel. Geraldo Lucena, j.
16.04.98, v.u., “Boletim da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, vol. 22,
junho/agosto 1998, p. 333; HC nº 320.776/6, São
Paulo, 1º Câm., rel. Pires Neto, j. 23.4.98,
v.u.; RSE nº 1.134.699/1, Osasco, 2º Cam., rel. juiz José Urban, j.
11/03/1999 , e Victor Eduardo Rios Gonçalves, Boletim IBCCrim
nº 65, de abril de 1998.
2. RHC nº 8.151-SP, da 6º Turma, Rel. Min.
Luiz Vicente Cernicchiaro, D.J.U. DE 15/03/1999, v.u.; e RHC nº 8.182, 6º Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, D.J.U.
22/03/1999, v.u.; e RHC nº 8660/SP, 6ª Turma, Rel.
Min. Hamilton Carvalhido, D.J.U. de 13/09/1999, v.u.;
RHC nº 8289/SP, 6º Turma, Rel. Min. Vicente Leal,
D.J.U. de 06/05/1999, v.u.
3.
Boletim IBCCRIM nº 78, de maio de 1999, p. 12.
4. STJ,
RHC nº 8.345/SP, 5º Turma, Rel. Min. Felix Fischer, j. 09/03/1999, v.u., D.J.U.
19/04/1999, p. 151.
5. STJ,
RHC nº 9687/SP, 5ª Turma, Rel.
Min. Edson Vidigal, D.J.U. de 18/10/1999, v.u.; e RHC 8563/SP, mesmo
Relator e Turma; e HC nº 9.685/SP, 5ª Turma,
Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. 30/06/1999, v.u., D.J.U. 23/09/1999, p.
138.
6.
Damásio Evangelista de Jesus, Novíssimas Questões Criminais, Editora Saraiva,
1998, p. 125; no mesmo sentido vide artigo de Rubens Rosseti Gonçalves, A multa penal e os Tribunais, Boletim nº 23 da Procuradoria Geral do Estado/SP, maio-junho de
1999, p. 321-2, acerca da pertinência subjetiva ativa para a execução da multa
penal, discorrendo sobre as correntes doutrinárias e jurisprudenciais
existentes.
7.
“Transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execuções a aplicação de lei mais benigna”; no mesmo sentido STF, HC
68.416, 2º Turma, D.J.U., 30 out. 1992, p. 19515.
8. Hermenêutica
e Interpretação Constitucional, Celso Bastos Editor, 1997, p. 104; no
mesmo sentido J. J. Gomes Canotilho, Direito
Constitucional, Coimbra, Almedina, 1991, e Alexandre
de Moraes, Direito Constitucional, 5ª Edição, Atlas, 1999, p.42.
9. Ob. Cit.,
p. 106.
10.
Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 7ª Edição, Ed.
Livraria Freitas Bastos, 1961, p. 306-7.
11. Luiz
Vicente Cernicchiaro, “Vacatio Legis”
Lei penal Insconstitucional, Boletim nº 35 do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais,
novembro de 1995, p. 16.
12. idem, Direito Penal na Constituição, 3ª Edição, RT, 1995, p.
66.
13.
Damásio Evangelista de Jesus, Direito Penal, 17ª Edição, Saraiva, 1993, volume
01, p. 78; nesse sentido: STF, ReCrim
102.702, D.J.U., 10 de maio de 1985, p.6855; TACrim-SP, Acrim
393.785, JTACrim-SP, 85:332.
14. Nesse
sentido vide a lição de Damásio Evangelista de Jesus, Direito Penal – Parte
Geral, ob. cit.,
69.
15. HC nº 74002-2/SP, 1ª Turma, Rel. Min.
Ilmar Galvão, Diário da Justiça, Seção I, 30
ago. 1996, p. 30.606.
16. STF,
2ª Turma, maioria, RHC nº 73758/SP, Rel. do Acórdão
Min. Maurício Corrêa, D.J.U. de 24/09/1999, p. 0026.
Informações Sobre o Autor
Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira
Procurador do Estado de São Paulo
Membro do Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da PGE/SP
Mestrando em Direito Constitucional na PUC/SP