A greve dos caminhoneiros em debate sob o olhar dos crimes contra a organização do trabalho

Christiane Heloisa Kalb

Resumo

O presente estudo tem como objetivo analisar em que medida a greve dos caminhoneiros iniciada em maio de 2018 poderia ser pautada dentro do que se chama de uma greve violenta ou locaute, apesar de todo o mérito envolvido nas questões sociais e políticas engendradas nesse levante. O método utilizado para tanto foi de revisão bibliográfica, através de análise de livros, artigos científicos e pesquisas acadêmicas que discutam sobre o assunto, bem como, houve pesquisa em arquivos jornalísticos tanto da imprensa nacional, como blogs e outros websites que tratam do assunto. Por ora, o que se conclui é que a greve dos caminhoneiros iniciada em maio de 2018 atingiu o intento buscado por seus percursores, porém durante o processo houveram outras demandas que não, necessariamente, tinham relação direta com o pedido inicial de redução de tributos e de pedágio. Essas demandas fizeram ressurgir algumas discussões sobre a forma como o trabalho [ ou força de trabalho] é posto no mercado, não somente sob a perspectiva da categoria dos caminhoneiros, mas de todos/as os/as trabalhadores/as que se submetem à força empresarial e política.

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Palavras-chave: Direito Penal, Crimes contra a organização do trabalho, greve dos caminhoneiros, Santa Catarina.

 

The truck drivers´strike in debate under the watchful eye of the organization of the work´s crimes

 

Abstract

The present study aims at analyzing the extent to which the truck drivers’ strike started in May 2018 could be based on what is called a violent strike or locution, despite all the merit involved in the social and political issues engendered in this uprising. The method used for this was a bibliographical review, through the analysis of books, scientific articles and academic researches that discuss the subject, as well as, there was research in journalistic archives of both the national press, blogs and other websites that deal with the subject. For the moment, it is concluded that the truckers’ strike that began in May 2018 reached the intent sought by its precursors, but during the process there were other demands that were not necessarily related directly to the initial request for reduction of taxes and toll road. These demands have revived some discussions about how work [or labor force] is put on the market, not only from the perspective of the truckers category, but from all workers who submit to the business force and politics.

Keywords: Criminal Law, Crimes against the organization of work, strike of the truck drivers, Santa Catarina.

 

Sumário. 1- Introdução. 2 – Dos crimes contra a organização do trabalho: constrangimento ilegal laboral e à associação, boicotagem. 3 – Acordos do JECrim aplicados aos crimes contra a organização do trabalho. 4 – Dos outros crimes contra a organização do trabalho: invasão, sabotagem, frustração de direito/lei trabalhista, aliciamento. 5 – Considerações. Referências.

 

1 – Introdução

A importância do trabalho, como fator primeiro na criação da riqueza, se faz sentir além da economia política, transparecendo em todas as ciências sociais. O estudo o fenômeno do trabalho é, pois, realizado pela economia, que lhe dá o conceito e a classificação; pela sociologia que o analisa em função de sua significação social, enquanto fato apenas; pela história que o descreve desde a pedra lascada à energia atômica utilizável, de nossos dias; pela religião que o preceitua como exteriorização da vontade de Deus; pela ética que o fundamenta como cerne do dever; pela política que o coordena “in totum”, com a finalidade de melhor dirigi-lo dentro do livre embate de interesses opostos o mundo ocidental ou dentro das planificações administrativas das civilizações marxistas. E finalmente, pelo direito, que o regulamenta para o bem comum (ALVES, 1958, p.370-1).

Para entendermos o porquê da normatização dos crimes contra a organização do trabalho, temos que partir de um ponto zero, em que era ausente da mente humana a ideia de crime. Antes mesmo dos estudos da Criminologia ou de outras Ciências Criminais. Nessa remotíssima época não se falava em crimes e muito menos de crimes tão específicos. Com o comunismo primitivo — início da sociedade humana — a aplicação da atividade humana à produção de bens e serviços recaía, como se sucedeu por muito tempo com os primitivos ‘atuais’, sobre mulheres, velhos e escravos (ALVES, 1958, p.372). Nesse período, caso ocorresse alguma desorganização no sistema de produção, ou então, no que se considerava o “trabalho” da época, necessariamente, se resolveria em morte. É o que se via nos sistemas escravagistas.

Com a chegada da Revolução Francesa e, consequentemente mais tarde, da Declaração dos Direitos do Homem, há o estabelecimento de direitos que perpetravam a igualdade entre as pessoas, sem quaisquer distinções (art 1º, 1948). [Princípio esse também consagrado em nossa Constituição brasileira]. No entanto, ainda não havia, naquele tempo, leis específicas que protegessem as relações trabalhistas no nível de penalizar infrações cometidas contra a organização do trabalho, propriamente. Afinal, tais normas foram criadas a partir de embates entre as lutas de classes e outros grupos rivalizantes, posteriormente ao surgimento de um novo “livre arbítrio”, com a ascensão do capitalismo em muitos Estados.

A questão é que, apesar dos trabalhadores possuírem a lei do seu lado, os protegendo hipoteticamente das diferenças estabelecidas por um sistema opressor, a exploração econômica continuava e assim, começaram a aparecer no cenário criminal ações delituosas que, pela peculiaridade de abranger relações trabalhistas, mereciam um tratamento adequado.

Um exemplo clássico é o direito à greve, pois apesar de regulado pela Lei 7783/89, no Brasil [tendo sido estabelecida pela 1ª vez em meados de 1917, chamada de Greve Geral] e objeto de conquista de um postulado democrático, afinal foi adicionado ao texto constitucional de 1988, usado em contraponto à opressão empresarial, ou patronal, como se chamava há algum tempo, não pode deixar de ser incriminável quando tal direito é abusado a partir do uso de violência às pessoas e às coisas.

Por conta disso, a greve violenta é uma das condutas que merecem destaque e atenção dos legisladores e estudiosos do Direito Penal, para que não se entre em contraposição ao Direito Constitucional protegido de haver cessação coletiva e voluntária do trabalho. Assim, como os outros delitos praticados contra a proteção legislativa da organização do trabalho, como o lockout, a invasão de estabelecimento, a sabotagem e a coação à liberdade contratual trabalhista, dentre outros, merecem também estudos.

Nesse sentido, o presente artigo tem a intenção de analisar em que medida a greve dos caminhoneiros iniciada em maio de 2018 poderia ser pautada dentro do que se chama de uma greve violenta ou locaute, apesar de todo o mérito envolvido nas questões sociais e políticas engendradas nesse levante. O método utilizado[1] para tanto é de revisão bibliográfica, através de análise de livros, artigos científicos e pesquisas acadêmicas que discutam sobre o assunto, bem como, houve pesquisa em arquivos jornalísticos tanto da imprensa nacional, como blogs e outros websites que tratam do assunto.

Por ora, o que se conclui é que a greve dos caminhoneiros iniciada em maio de 2018 atingiu o intento buscado por seus percursores, porém durante o processo houveram outras demandas que não, necessariamente, tinham relação direta com o pedido inicial de redução de tributos e pedágio. Nessa esteira, o artigo foi dividido em quatro itens. No primeiro discutimos os crimes contra a organização do trabalho, a saber: o constrangimento ilegal laboral, à possibilidade de associação sindical ou seu desligamento e a boicotagem. Num segundo momento, trabalhamos as possibilidades de aplicação de acordos dentro de ações penais engendradas em razão do cometimento de algum desses crimes acima mencionados. No item 4 analisamos outros crimes contra a organização do trabalho, como a invasão, a sabotagem, a frustração de direito/lei trabalhista e o aliciamento em suas duas modalidades. Após tal empreitada, abordamos o crime de greve / lockout contra atividades essenciais em face da greve dos caminhoneiros de maio de 2018 realizada em todo o território nacional. Finalizando o artigo com as considerações finais.

 

2 – Dos crimes contra a organização do trabalho: constrangimento ilegal laboral e à associação, boicotagem

Os crimes tipificados no Código Penal que vão contra a organização do trabalho estão descritos nos artigos 197 ao 207. Estes delitos não são descritos e previstos junto à Consolidação de Leis Trabalhistas- CLT, pois se tratam de atos tipificados como crime e, nesse sentido possuem lei própria os descrevendo.

Além disso, o Superior Tribunal Federal deferiu a medida cautelar da ADIN nº 3.684-0, com eficácia ex tunc, para atribuir interpretação conforme à Constituição da República ao seu artigo 114, incisos I, IV e IX, declarando que, no âmbito da jurisdição da Justiça do Trabalho, não entra competência para processar e julgar ações penais (STF, Pleno, ADIn 3.684-0/DF, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 03.08.2007). Apesar da Emenda Constitucional n. 45 de dezembro de 2004, ter alterado a competência da Justiça Federal comum ou da Justiça Estadual para processar e julgar as ações penais para apuração de crimes contra a organização do trabalho, ampliando a competência da Justiça do Trabalho para julgar todas as controvérsias decorrentes das relações de trabalho, prevalece o entendimento de que a Justiça do Trabalho, mesmo depois da Emenda Constitucional 45/2004, não tem competência criminal.

Antes de adentrar na especificação de cada ação delituosa, é importante apontar que caso qualquer dos atos aqui descritos for praticado de forma individual, atingindo um único trabalhador ou um grupo de trabalhadores, a competência para julgá-los será da Justiça Estadual. Porém, se a conduta for praticada por uma categoria profissional determinada ou atingir um interesse coletivo, a competência será da Justiça Federal. Tal premissa está prevista no artigo 109 da Constituição da República que compete ao Juízes Federais processar e julgar os crimes contra a organização do trabalho.

Art. 109 – Aos juízes federais compete processar e julgar:

VI – (…) os crimes contra a organização do trabalho (BRASIL, 1988).

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Tal entendimento comunga com a redação da Súmula 115 do extinto Tribunal Federal de Recursos que diz: “Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes contra a organização do trabalho, quando tenham por objeto a organização geral do trabalho ou direitos dos trabalhadores considerados coletivamente” (NORAT, 2012).

Entrando no debate dos tipos penais propriamente ditos, o primeiro e o segundo deles é o crime de constrangimento ilegal com intento de exercer ou deixar de exercer arte, ofício, profissão ou indústria ou ainda fazer tal conduta durante certo tempo. Assim, o art 197 do CP prevê:

Art. 197 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça:

I – a exercer ou não exercer arte, ofício, profissão ou indústria, ou a trabalhar ou não trabalhar durante certo período ou em determinados dias:

Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência;

II – a abrir ou fechar o seu estabelecimento de trabalho, ou a participar de parede ou paralisação de atividade econômica:

Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência. (BRASIL, 1940).

O objetivo desse tipo penal é proteger a livre escolha de trabalho, a liberdade laboral e, portanto, era necessário ao legislador criar uma norma penal específica, pois o delito puro de constrangimento ilegal, previsto no art. 146 do Código Penal não seria suficiente para punir o ato que priva a liberdade de contratar. Sendo importante lembrar que tanto a CLT como o CP são normas positivadas sob o governo de Getúlio Vargas, destarte, sob pressão de um regime ditatorial que tentava aproximar empregados e empregadores numa exaltação bizarra do nacionalismo trabalhista.

Além disso, o crime de constrangimento ilegal coloca como alternativo o pagamento de multa, enquanto aqui, o crime tipificado contra a organização do trabalho elenca a multa com o pagamento obrigatório. A forma de violência descrita no preceito secundário seria o cometimento do delito de lesão corporal, previsto no art. 129, contra a pessoa e o crime de dano, tipificado nos arts. 163 a 167 do CP, contra as coisas. Alves (1958, p. 377) ainda esclarece que a “ratio legis” no artigo 197-I é a tutela que se quer dar a uma liberdade específica, inconfundível e mesmo proeminente dentre as demais, qual seja a de aplicar ou não a própria atividade econômica à produção de bens ou serviços. No entanto, a “ratio legis” do artigo 146 é a salvaguarda de toda liberdade, menos a mencionada no artigo197-I.

O art. 197 pune quatro condutas, cometidas através de violência ou grave ameaça, que seriam obrigar a vítima a:

  1. Exercer ou não exercer arte, ofício profissão ou indústria;
  2. Trabalhar ou não trabalhar durante certo período ou em determinados dias;
  3. Abrir ou fechar o seu estabelecimento de trabalho; e
  4. Participar de parede, que quer dizer greve ou paralisação de atividade econômica.

As duas modalidades – c e d – são figuras do tipo penal qualificadas, vez que possuem pena maior. Caso haja a obrigação de exercer atividade ilícita, o ato configuraria o crime de tortura ou se o ato é feito de forma permanente (mesmo que uma atividade lícita), poderá configurar o crime de redução a condição análoga à de escravo (art. 149 CP) (GONÇALVES, 2018, p.551).

O sujeito ativo e passivo podem ser qualquer pessoa. A vítima deve ser forçada, obrigada ou coagida. “Não será tipificado neste artigo se o delito mencionado incorrer mediante narcótico, hipnotismo ou na simples promessa de rescisão contratual por ser conduta de direito do empregador” (MIRABETE, 2005, p. 384). Portanto, a preocupação do legislador em prever no preceito secundário do tipo penal a violência aplicada foi no sentido de buscar uma harmonia social entre as relações de trabalho. A violência praticada a partir de lesões corporais, a grave ameaça, a fraude, o dano; são todos instrumentos para que haja a realização do dolo genérico de diversos crimes previstos na lei. No entanto, eles também servem como recurso imprescindível para a objetivação de crimes contra a organização do trabalho a partir de um dolo específico.

O artigo subsequente – art 198 do CP – prevê a figura da Boicotagem violenta, que também se trata de uma forma de constrangimento ilegal, em que o agente ativo interfere na liberdade de comércio de mercadorias, boicotando o relacionamento entre fornecedor e consumidor. O art. 198 tipifica a seguinte ação:

Art. 198 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a celebrar contrato de trabalho, ou a não fornecer a outrem ou não adquirir de outrem matéria-prima ou produto industrial ou agrícola:

Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência. (BRASIL, 1940).

O primeiro ato prevê a conduta de assinar um contrato de trabalho que é celebrado contra a vontade, consequentemente trata-se de outra modalidade de constrangimento ilegal, praticado mediante violência ou grave ameaça, bem como a assinatura de contrato pelo sujeito passivo, conforme diz o dispositivo. “Refere-se a lei tanto a contrato individual como a coletivo, a escrito ou verbal, a renovação, modificação ou adição de contrato anterior” (MIRABETE, 2005, p. 386).

Na segunda conduta se pune a prática de violência ou ameaça que leva o sujeito passivo a não fornecer ou a não adquirir matéria-prima (material para a produção), produto industrial (resultante do trabalho manual ou mecânico) ou agrícola (resultante da agricultura, que abrange a pecuária, a silvicultura etc.). Mesmo sendo previstos no mesmo artigo, são dois crimes diferentes e a prática das duas ações será enquadrada dentro do concurso de crimes. Se houver violência será concurso material. (MIRABETE, 2005, p. 386-387). Em ambos os tipos penais, o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, empregado, empregador ou um terceiro, bem como, o sujeito passivo, que será a pessoa constrangida.

Não haverá crime, caso o agente convença alguém a não adquirir determinada mercadoria ou produto, porque seriam, por exemplo, prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente (GONÇALVES, 2018, p. 553).

O crime tipificado no artigo 199 do CP prevê a quebra de liberdade de associação profissional ou sindical. O direito à livre associação está previsto também no art. 5º XVII Constituição Federal (BRASIL, 1988). Assim dizem os artigos:

Art. 199 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a participar ou deixar de participar de determinado sindicato ou associação profissional:

Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência (BRASIL, 1940).

Art. 5º […]

Inciso XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar (BRASIL, 1988).

O tipo objetivo praticado nessa conduta é o constrangimento ilegal praticado com violência (física contra a pessoa) e grave ameaça, exercida para participar ou deixar de participar de sindicato ou associação profissional. O artigo 8º da Constituição Federal também dispõe que “é livre a associação profissional ou sindical…” (BRASIL, 1988).

O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa pertencente ou não a sindicato ou associação, e se caso for funcionário público pode incorrer ainda no artigo 3º, f., da Lei nº 4.898/1965. O sujeito passivo pode ou não ser sócio ou associado, mas deve ser obrigado a participar ou deixar de participar de determinado sindicato ou associação. Ainda há o constrangimento ilegal neste artigo, mas com o fim de compelir a liberdade de associação ou não à entidade em questão. Pode ocorrer a tentativa (MIRABETE, 2005, p. 387-388).

É importante que o ato de constrangimento ilegal obrigue a pessoa a tomar ou deixar de tomar parte de sindicato determinado (GONÇALVES, 2018, p.554), pois se a intenção for apenas a obrigação de associação de qualquer sindicato, o crime será de constrangimento ilegal, em sua modalidade simples.

Após analisados esses tipos penais, a seguir, sopesaremos as possibilidades de aplicação de acordos judiciais em sede de ações penais que tramitem junto ao Juizado Especial Criminal. É importante, antes mencionar que, o tipo penal greve violenta e lockout serão tratados em subitem mais à frente, quando analisaremos os tipos penais em correlação com os fatos sociais ocorridos recentemente na greve dos caminhoneiros.

 

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3 – Acordos do JECrim aplicados aos crimes contra a organização do trabalho

Em razão de todos os crimes, até então analisados, penalizarem suas condutas em menos de 2 anos, i.e., um ano de prisão (detenção), o art. 76 da Lei do JECRIM (BRASIL, 1995) possibilita a Transação Penal. A Transação Penal seria um acordo realizado entre o cidadão/delinquente que cometeu algum delito de menor potencial ofensivo e o promotor de justiça. Por esse acordo entabulado, a pessoa se compromete, como forma de se redimir pelo fato praticado, a ajudar uma entidade carente, com dinheiro ou presta serviços a certa comunidade. Por outro lado, o representante do Ministério Público se compromete a arquivar o processo, sem que haja julgamento do mérito, assim que a prestação for cumprida.

Existe também a possibilidade de aplicação nesses crimes (constrangimento ilegal trabalhista e boicotagem violenta) da Suspensão Condicional do Processo. Trata-se também de um acordo previsto no art. 89 da Lei JECRIM (BRASIL, 1995), em que o cidadão/delinquente, antes mesmo do oferecimento da denúncia pelo promotor de justiça, tendo cometido algum crime penalizado com prisão igual ou menor de um ano pode suspender o processo por dois a quatro anos.

Para obtenção desse benefício, o investigado terá que cumprir algumas condicionantes, como por exemplo: reparar do dano, quando possível, não frequentar determinados lugares, como casas de tolerância, ficar proibido de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do Juiz, realizar o comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades, podendo o juiz ainda especificar outras condições a que fica subordinada a suspensão, desde que adequadas ao fato e à situação pessoal do acusado (BRASIL, 1995).

A seguir, continuaremos a analisar os outros crimes tipificados que vão contra a organização do trabalho, mas que em razão da sua pena, não podem gerar acordos com base na Lei do JECrim.

 

4 – Dos outros crimes contra a organização do trabalho: invasão, sabotagem, frustração de direito/lei trabalhista, aliciamento

O crime de sabotagem, quando há invasão de estabelecimento industrial, comercial ou agrícola está previsto no artigo 202 da lei penal, conforme se vê a seguir:

Art. 202, do Código Penal

Invadir ou ocupar estabelecimento industrial, comercial ou agrícola, com o intuito de impedir ou embaraçar o curso normal do trabalho ou com o mesmo fim danificar o estabelecimento ou as coisas nele existentes ou delas dispor:

Pena – reclusão, de um a três anos, e multa (BRASIL, 1940).

Este artigo tutela a organização do trabalho, bem como o patrimônio da empresa ou pessoa física, conforme afirma Mirabete (2005, p. 391). O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, mesmo que tenha lá trabalhado ou não. Já o sujeito passivo pode ser tanto a coletividade quanto a pessoa física ou jurídica que mantenha estabelecimento industrial, comercial ou agrícola.

Os delitos podem ser de invasão ou ocupação e de sabotagem. A invasão configura a conduta de entrar indevidamente no local, sem qualquer autorização, a ocupação trata-se de tomar posse sem autorização e lá permanecer por tempo juridicamente relevante. Mesmo se a ocupação for parcial do estabelecimento, configura o delito em questão. Portanto, essa modalidade se trata de um crime permanente. É um crime também formal, dá-se a consumação quando há invasão ou ocupação. A sabotagem é a outra conduta típica do artigo mencionado, ou seja, danificar um estabelecimento ou as coisas que existem nele, assim como dispor dessas coisas. (MIRABETE, 2005, p. 390-391)

Só há punibilidade a título de dolo, pois a culpa seria considerada atípica. Quanto à intenção de atrapalhar de algum modo (impedir ou obstar) o curso normal de trabalho, é imprescindível que impeça ou embarace o curso de trabalho, pois trata-se de crime formal, ou seja, que não exige o resultado. Pune-se também a tentativa. (JESUS, 2007, p. 42-43). É importante ainda ressaltar que esse tipo penal nada tem a ver com o movimento grevista, pois a intenção do agente é agir em função, por exemplo de alguma vingança, ou para que cesse o barulho das máquinas ou por algum concorrente que queira atrapalhar as atividades do outro ou ainda ação de trabalhadores que tenham sido demitidos de uma empresa em razão da abertura de outra de grande porte que se quer fazer paralisar (GONÇALVES, 2018, p.557).

O delito de frustração de direito assegurado por Lei Trabalhista está descrito no art. 203, do Código Penal, senão vejamos:

Frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho:

Pena – detenção de um ano a dois anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

  • 1º Na mesma pena incorre quem:

I- obriga ou coage alguém a usar mercadorias de determinado estabelecimento, para impossibilitar o desligamento do serviço em virtude de dívida;

II- impede alguém de se desligar de serviços de qualquer natureza, mediante coação ou por meio da retenção de seus documentos pessoais ou contratuais.

  • 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental (BRASIL, 1940).

Este tipo penal assegura os direitos trabalhistas previstos na Constituição Federal, na CLT e em leis esparsas e de acordo com Mirabete, estão incluídos na proteção os direitos obtidos por meio das convenções e dissídios, uma vez que eles são previstos em lei (2005). Portanto, se trata de uma norma penal em branco. O sujeito ativo, portanto, é aquele que impede a realização do direito do trabalho, normalmente o empresário / patrão. O sujeito passivo é a pessoa lesada no direito trabalhista, normalmente o trabalhador. A violência a que descreve o artigo é a física, sendo descartada a ameaça, que configuraria o crime próprio de ameaça, previsto no art. 147 do CP. Pode ocorrer também por meio de fraude, ou seja, quando há indução ao erro ou simplesmente não observar tal direito trabalhista.

Nas mesmas penas incorrem quem coage alguém para compra de mercadorias. Essa conduta prevê a conduta da vítima que é obrigada a comprar mercadorias, por violência ou ameaça, ou até mesmo por contrato, devido a dívida contraída, tornando assim, um vínculo obrigatório. Esse ato delituoso possui lei própria prevista na norma n. 9.777/1998.

Já o inciso segundo trata na primeira parte de coação e segue no delito quando o sujeito ativo não entrega ou sonega os documentos pessoais, também fazendo parte o próprio contrato (MIRABETE, 2005, p. 392-394). Atualmente, as condutas de manter vigilância ostensiva no local de trabalho ou o apoderamento de documentos ou objetos do trabalhador com o fim de retê-lo no local de trabalho caracteriza o crime de redução a condição análoga de escravo, previsto no art. 149 §1, II CP (GONÇALVES, 2018, p.559).

O parágrafo segundo, também acrescentado pela Lei 9.777/1998, trata da causa de aumento de pena, caso a vítima for menor de 18 anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental. Capez menciona o posicionamento de Damásio a respeito da idade mínima em que se considera uma pessoa idosa, que diz “nem sempre a idade mínima da vítima representa, por si só, circunstância capaz de exasperar a pena. É possível que tenha mais de sessenta anos de idade e seja portadora de condições físicas normais (…)” (2003, p.563).

O art. 204 do Código Penal prevê o crime de frustração de lei sobre a nacionalização do trabalho. Assim o descrevendo:

Art. 204, do Código Penal

Frustrar, mediante fraude ou violência, obrigação legal relativa a nacionalização do trabalho:

Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência. (BRASIL, 1940)

O sujeito ativo do delito pode ser qualquer pessoa, tendo uma maior ocorrência para empregador, mas pode também ser atuado por empregado ou terceiros. Trata-se de um crime em que o sujeito obsta, priva, impede que seja obedecida a lei relativa à nacionalização do trabalho. Deve ser por meio de fraude ou violência física. A objetividade neste caso, é o dolo, a intenção de praticar os delitos descritos no artigo em questão. É um crime comum devido à realização por qualquer pessoa, simples, porque só há o dolo e material por sua ocorrência entre conduta e resultado para consumação (MIRABETE, 2005, p. 395).

Via de regra, para se considerar que uma empresa brasileira segue a regra da nacionalização trabalhista, é necessário que dois terços dos seus empregados sejam brasileiros, conforme artigos 352 a 354 da CLT.

É importante frisar conforme afirma Gonçalves (2018, p. 560) que, se o empregador simplesmente desrespeita essa proporcionalidade dada pela lei trabalhista, fazendo-o às claras, estará incurso somente em sanções administrativas. O ilícito penal consiste em empregar fraude ou violência para driblar a proporcionalidade e a sanção administrativa.

O delito de exercício de atividade com infração de decisão administrativa está assim previsto no art. 205, do Código Penal:

Exercer atividade, de que está impedido por decisão administrativa:

Pena – detenção, de três meses a dois anos, ou multa (BRASIL, 1940).

Tutela-se o interesse estatal nas funções de fiscalização exercidas por este. Sendo o Estado, então, o sujeito passivo. Exige-se aqui a repetição da atividade, trabalho ou profissão. Damásio de Jesus (2007) explica que se o impedimento administrativo estiver em vias de recurso depende do efeito suspensivo para tipificar o delito do art. 205, ou seja, se o recurso tiver efeito suspensivo não será tipificado e caso contrário, será tipificado o delito.

Caso o agente tenha sido suspenso ou privado do direito de exercer sua atividade por decisão judicial, o exercício da atividade configura crime específico previsto no art. 359 do CP (GONÇALVES, 2018, p. 562).

O dolo é sua única possibilidade, vez que não é possível o crime ser cometido a título culposo e também não é admitida a tentativa, vez que é considerado um crime habitual, necessitando de mais de uma ação para ser configurado. É considerado um delito próprio, pois, o ato só pode ser cometido pela pessoa que agir como o descrito no caput do artigo (JESUS, 2007, p. 53-55).

Os crimes de aliciamento para o fim de emigração e de trabalhadores de um local para outro do território nacional estão previstos nos artigos 206 e 207 do CP. Vejamos:

Art. 206, do Código Penal – Recrutar Trabalhadores, mediante fraude, com o fim de levá-los para território estrangeiro.

Pena – detenção, de um a três anos e multa.

Art. 207, do Código Penal – Aliciar trabalhadores, com o fim de leva-los de uma para outra localidade do território nacional:

Pena – detenção, de um a três anos e multa.

  • 1º Incorre na mesma pena quem recrutar trabalhadores fora da localidade de execução do trabalho, dentro do território nacional, mediante fraude ou cobrança de qualquer quantia do trabalhador, ou ainda, não assegurar condições do seu retorno ao local de origem.
  • 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental (BRASIL, 1940)

O objeto jurídico aqui tutelado é o aliciamento de trabalhadores, tanto no sentido de evitar que emigrem, sendo que todo estrangeiro tem o direito de trabalhar onde escolher, bem como, que se mantenha o equilíbrio populacional, pois as mudanças dos trabalhadores causam desajuste social e econômico. O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa e o sujeito passivo são os trabalhadores enganados, em no mínimo 3 e ainda o Estado. Diz Mirabete (2005) que não havendo aliciamento, não há crime e que mesmo que não ocorra a migração, só o aliciamento já tipifica o delito. A conduta deve ocorrer dentro do território nacional.

Recrutar, como diz o caput (art. 206), quer dizer atrair, aliciar, seduzir, portanto, não é suficiente a emigração, deve haver o aliciamento, a fraude, o sujeito passivo deve enganar o/os trabalhador/es para que saiam do Brasil para outro país. Quando ocorre o aliciamento dentro do país, mas de um local para outro, o delito não é tipificado neste artigo, aí seria o art 207 e nessa modalidade não há fraude, apenas o deslocamento das pessoas, o que normalmente se via e ainda se vê acontecer com pessoas humildes que moram no Norte ou Nordeste e são aliciadas para trabalhar no corte de cana-de-açúcar no interior de São Paulo. A Lei 9.777/1998 instituiu causas de aumento de pena no seu parágrafo segundo, para aliciamento e recrutamento de trabalhadores. (MIRABETE, 2005, p. 398-400)

Para caracterizar o crime, o sujeito ativo deve agir com dolo e exige também o aliciamento com a finalidade descrita no artigo. O crime é de tendência, pois tipifica de acordo com a intenção/dolo do agente, a vontade do sujeito passivo é que vai enquadrá-lo no artigo em questão (JESUS, 2007, p. 57-59).

Apesar da pacificação da competência para fins de julgamento de atos considerados crimes contra a organização do trabalho, se faz interessante colacionar o julgado abaixo, que estabelece a competência no caso de crime de aliciamento para fins de emigração, tendo atingido bens dos trabalhadores de forma individualizada.

QUESTÃO DE ORDEM. ALICIAMENTO PARA FINS DE EMIGRAÇÃO (ARTIGO 206 DO CÓDIGO PENAL). CRIME CONTRA A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM QUANDO ATINGIDOS BENS DOS TRABALHADORES INDIVIDUALMENTE CONSIDERADOS. – Se o crime não ofende o sistema de órgãos e instituições que preservam coletivamente os direitos dos trabalhadores, cabe à Justiça Estadual Comum o processo e julgamento do feito. Precedentes. – Declinação de competência para a Justiça Estadual. (QUOACR – QUESTÃO DE ORDEM NA APELAÇÃO CRIMINAL, Rel. Maria de Fátima Freitas Labarrere, 24/01/2006)

 

Nesse julgado, a competência foi decidida em favor da Justiça Comum para fins de julgamento do caso in concreto.

Após verificados e analisados os outros crimes contra a organização laboral, agora é a vez de debatermos sobre os crimes de greve violenta e locaute, além de tais atos praticados contra atividades consideradas essências e sua possível relação com a greve dos caminhoneiros ocorrida entre maio e junho de 2018.

 

4 – Do crime de greve / lockout contra atividades essenciais versus A greve dos caminhoneiros de maio de 2018

Antes mesmo de haver normas positivadas, no sentido de proibir ou permitir/proteger o direito de/à greve, vale ressaltar que para se justificar sua inclusão no nosso arcabouço jurídico, houveram causas, especialmente sociais para seu surgimento. No entanto, a perspectiva analítica deste artigo não adentrará nessa seara, vez que nosso intento é muito mais uma avaliação jurídica do que histórica-sociológica da questão em debate.

Hoje, a paralisação de trabalho, através de greve ou lockout, seguida de violência ou perturbação da ordem está descrita no art. 200 do Código Penal, conforme se vê a seguir:

Participar de suspensão ou abandono coletivo de trabalho, praticando violência contra pessoa ou contra coisa:

Pena: detenção de um mês a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência.

Parágrafo único – Para que se considere coletivo o abandono de trabalho é indispensável o concurso de, pelo menos, três empregados. (BRASIL, 1940)

Lockout é o abandono de trabalho pelos empregadores e greve é o abandono de trabalho pelos empregados (CAPEZ, 2003, p.556). O objeto jurídico tutelado é a liberdade de trabalho, tendo como sujeito ativo qualquer pessoa, desde que empregada ou patrão / empresário. Já a figura do sujeito passivo é enquadrada em qualquer pessoa, podendo até mesmo tal pessoa estar desempregada.

Nesse tipo penal está se descrevendo o ato de greve violenta dos empregados, quando ocorre o abandono coletivo de seus postos de trabalho ou o ato de lockout (locaute), onde há a suspensão do trabalho por parte do empregador, que é visto como um meio de autodefesa dos empresários em vanguarda ao direito de greve. Gonçalves (2018, p. 556) entende que há necessidade de haver um concurso de mais de um empresário para que se caracterize o crime de locaute.

Enquanto na greve há a faculdade dos trabalhadores em ir trabalhar ou não, no lockout é outorgado por parte do empregador para todos os empregados, nesse caso não precisa de concurso de pessoas, pode ser só um empregador. No caso da greve violenta se exige concurso de pessoas (mínimo 3, conforme se prevê no seu parágrafo único), e o crime se caracteriza pela violência (contra pessoa ou coisa), sendo penalizado apenas quem a pratica.

O ato de ameaça não se pune com este tipo penal, mas com o crime tipificado no art. 147 do CP (crime de ameaça), conforme jurisprudência RT 363/206. Nesse delito podem ocorrer lesões corporais, homicídio, etc. quando direcionada à pessoa ou dano, quando direcionada à coisa. Pode ocorrer a tentativa. (MIRABETE, 2005, p. 388-389). Para se caracterizar a violência é necessário a realização de perícia, vez que é através de análise pericial que se constatará a utilização de meios agressivos para a paralisação do trabalho. Caso nada se prove, a greve é legal e, portanto, a conduta atípica.

A conduta de paralisação de trabalho de interesse coletivo estava prevista no art. 201, do Código Penal, onde dizia:

Participar de suspensão ou abandono coletivo de trabalho, provocando a interrupção de obra pública ou serviço de interesse coletivo:

Pena – detenção, de seis meses a dois anos, e multa. (BRASIL, 1940)

Porém, tal dispositiva foi revogado pelo CF e pela Lei de Greve. Este artigo procurava proteger o interesse da coletividade, afinal, a Carta Magna em seu art. 9º, caput, assegura o direito de greve (também protegida na Lei n. 7783/1989) e em seu parágrafo 1º consta que “a lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento as necessidades inadiáveis da comunidade” (BRASIL, 1989), portanto, prevendo quais atividades tem interesse coletivo e não podem parar em razão de greve.

Dessa forma, nesse ínterim às diversas deduções doutrinárias, Celso Delmanto, diz que o artigo em questão restou inaplicável, já Mirabete sustenta que o art. 201 continua em vigor, não bastando tratar-se de obra pública, devendo caracterizar o serviço ou a atividade que coloca em perigo a população (CAPEZ, 2003, p. 558-559). A doutrina majoritária hoje entende que o artigo em questão foi revogado pela Lei de Greve; a corrente minoritária, por sua vez, diz que o dispositivo está em vigor, pois somente considera quando se tratar de um serviço ou atividade que ponha a sociedade em perigo.

O sujeito ativo desse tipo penal pode ser qualquer pessoa, desde que empregado, no caso de greve ou empregador, no caso de lockout. Já o sujeito passivo trata-se da coletividade atingida pela paralisação dos serviços essenciais. A tentativa se considera possível. O dolo, aqui, pode consistir na intenção de participar do próprio ato descrito no artigo e tendo consciência de que se trata de obra pública ou serviço de interesse coletivo (MIRABETE, 2005, p. 390).

É importante mencionar que antes da publicação do Código Penal, em 1940 e da CLT em 1943, nossa Constituição de 1937 previa em seu art. 139 que a greve e o lockout eram considerados “recursos antissociais nocivos ao trabalho e ao capital e incompatíveis com os superiores interesses da produção nacional” (BRASIL, 1937). Assim, ambas as normas trataram de impedir a ofensa à lei maior, trazendo punições a todos esses ‘recursos antissociais nocivos ao trabalho’, a greve e o lockout, que somente por meio da Constituição de 1946 [art. 158 e ampliada pela Carta de 1988] obtiveram alteração significativa, no sentido de tais manifestações serem autorizadas e até mesmo protegidas por norma constitucional.  Nesse sentido, apenas os ‘recursos’ violentos são hoje punidos pela lei criminal.

Com a notícia dos eventos relacionados à greve dos caminhoneiros, que se iniciou em final do mês de maio de 2018, o tema da greve e do locaute se explanou por todo o país. Falta de combustível, desespero exacerbado por conta de restrições a compra de quantidade de produtos em mercados, paralisação do serviço de transporte público, empresas decretando férias coletivas antecipadas a seus funcionários, escolas e faculdades suspendendo suas atividades e outros acontecimentos atrelados à greve, geraram uma crise social e política sem precedentes.

Sob reinvindicações para que suspenda o aumento indiscriminado dos tributos sobre o preço final do diesel [alíquotas da contribuição para PIS/PASEP e Cofins – e ainda a Contribuição de Intervenção no  Domínio Econômico (Cide)  sobre as operações com  óleo diesel, principal combustível dos caminhões] e solicitando a extinção da cobrança de pedágios para eixos erguidos / vazios, milhares de caminhoneiros e caminhoneiras pararam seus veículos à beira das estradas prometendo ‘pararem o Brasil’ até que o presidente da República, ou quem quer que tenha poder para tanto, baixe o valor das alíquotas cobradas e pare as cobranças de pedágio.

No quinto dia da greve dos caminhoneiros [25 de maio], logo após o anúncio da tentativa de o governo acordar com as categorias manifestantes, há um ‘novo’ movimento na população, no sentido de contar com a adesão de outras categorias no protesto, como taxistas, motoristas de aplicativos e motoboys. Por conta disso, a Polícia Federal iniciou investigações no sentido de averiguar um possível locaute dentro da greve dos caminhoneiros, vez que se cogitava que empresários de alguns setores estavam contribuindo, incentivando ou ainda orientando seus funcionários no sentido de paralisar o trabalho / prestação de serviço. Raul Jungmann, Ministro de Segurança do Governo do Presidente Michel Temer, afirmou em rede nacional que se estava investigando uma possível prática de locaute entre caminhoneiros autônomos, distribuidoras e transportadoras (Agência Brasil, 2018, web). Assim, muitas pessoas que contavam com essa alternativa de transporte, por estarem sem combustível em seus veículos particulares, tiveram que aderir ao serviço público. E assim, o funil aumentou. Consequentemente, o transporte público também começou a parar. A teoria da escassez se fez presente.

A instauração da greve pelo setor de transporte viário gerou uma quebra nos sistemas de produção de bens e serviços e na geração de renda. Se o transporte para, as mercadorias produzidas não chegam onde devem chegar, a população que consome não compra o que precisa consumir e nem vai ao trabalho, porque não tem meios de transporte próprio ou público, pela falta de combustível. Se a população não consome, ou consome de forma exagerada pelo desespero da possibilidade da falta, as empresas que comercializam os produtos sentem no bolso as consequências dessa crise, assim: aumentam o preço de forma absurda, tiram de circulação ou fecham suas portas por falta de mercadoria. Ao final, todos sofrem. E a greve que deveria vir para equilibrar alguma situação de instabilidade gerada por uma elite sedenta por mais e mais e pela ganância de políticos que vivem à margem do turbilhão social, acaba por desferir um violento golpe na expectativa de lucro e no cotidiano das pessoas alheias à greve.

Afinal, como menciona Souto Maior (2018) em seu blog, segundo a lei que regula a greve, a parada só pode ser deflagrada por entidade sindical, após deliberação em assembleia, atendendo, também, o requisito de uma comunicação prévia ao empregador, o que remete, ainda, à ideia de que só pode haver greve de reivindicação de direitos perante o empregador (art. 1º a 4º, Lei 7783/89). Nesse sentido, a greve dos caminhoneiros traz diversas dissemelhanças com outras greves até então ocorridas no Brasil.

A primeira diferença se vê no discurso. Alves, já aqui mencionado, ao dissertar sobre os crimes contra a organização do trabalho, deixa margem a utilizar sua fala, publicada em meados dos anos cinquenta, para a situação atual. “Por conseguinte, sob o pretexto de ‘paz social’, – que aqui apenas é a necessária tranquilidade para o capital se reproduzir – o poder dominante elabora normas jurídicas no intuito de impedir, atenuar ou dificultar a greve” (ALVES, 1958, p. 387). Fala tão real e verdadeira, que até mesmo se aplica a fatos perpetrados há 60 anos depois. Nesse sentido, Alves (1958, p. 387) afirma que as formas positivadas e autorizadas de se fazer greve estão condicionadas ao grau de intensidade da luta entre as partes [o autor ainda utiliza a expressa: luta entre as classes]. Assim, a partir do uso de violência ou manifestação inequívoca de injustiça, como um uso arbitrário das próprias razoes ou abuso de direito se estaria ferindo o direito concedido, devendo ser instaurado procedimento judicial e/ou administrativo para que se averigue as consequências daquele ato.

Além de uma suposta violência impetrada e da ausência de decisão perante uma assembleia, que informe “ao empresário” da greve de seus trabalhadores, esse movimento realizado pelos caminhoneiros não poderia se encaixar dentro de outros ditames legais previstos. Afinal, a “greve” [e aqui colocamos aspas pela provável indefinição de um termo melhor] dos caminhoneiros implementado em meados de maio de 2018 nada mais é do que um Cisne Negro, lógica proposta por Taleb (2009). Ou seja, um evento imprevisível, inesperado e com consequências inimagináveis.

Por ser imprevisível, inesperado e com consequências não planejadas, este movimento se assemelha a outros movimentos em busca de direitos e de seus reconhecimentos, como das mulheres, apesar de não tão organizado; do público LGBTQIA, dentre outros. O diferencial para outros movimentos de parada, conforme afirma Souto Maior (2018) é que:

Do ponto de vista jurídico, não se trata de locaute, pois este, nos termos da lei é “a paralisação das atividades, por iniciativa do empregador, com o objetivo de frustrar negociação ou dificultar o atendimento de reivindicações dos respectivos empregados”, sendo proibido (art. 17 da Lei n. 7.783/89). No caso concreto, ainda que se tenha elementos para afirmar que muitas empresas de transporte apoiaram e até impulsionaram a paralisação dos caminhoneiros, não se pode dizer que o fizeram para frustrar uma negociação com os respectivos empregados ou dificultar-lhes o atendimento de suas reivindicações. Muito pelo contrário, embora rara, haveria uma comunhão de interesses com relação ao objeto da paralisação, a redução dos custos de produção, razão pela qual, visto como ação de natureza política, parece-me legítimo o movimento, pois a política não está interditada para nenhum segmento social (SOUTO MAIOR, 2018, web).

No entanto, apesar da comunhão de interesses em prol da redução dos custos, o que torna o movimento legítimo [embora deslegitimado pela norma de 1989, pelos motivos acima expostos] houve uma enxurrada de decisões judiciais por todos os Estados da nação com o intuito de liberar o acesso às mediações de distribuidores de combustíveis, sendo garantido o auxílio de força policial, quando necessário [e até mesmo das forças do Exército em algumas regiões, como no Estado do Rio de Janeiro]; bem como, a liberação das estradas para a movimentação de veículos com produtos essenciais, como por exemplo, remédios e equipamentos hospitalares (CONSULTOR JURÍDICO, 2018, web) e ainda a aplicação de multas para motoristas de aplicativos que deixarem de atender, por conta da greve. O Judiciário tentou equilibrar a situação.

Em nossa realidade local, além de Lages, São Joaquim, Itajaí, Joinville, foi publicada em 28 de maio de 2018 pelo juízo da comarca de Biguaçu, Santa Catarina, decisão em sede de pedido de tutela de urgência, realizado pelo Sindicato do comércio varejista de combustíveis em face da Associação Brasileira dos Caminhoneiros pedindo a liberação das mediações da distribuidora da Petrobrás. Essa distribuidora dissemina o combustível por toda a grande Florianópolis. No requerimento, o Sindicato alega que está havendo o “colapso nos serviços públicos e serviços essenciais à população” (TJSC, 2018).

O uso do direito à greve não pode se tornar uma arma de guerra, em que toda a atitude se pareça bélica, violenta, para único intuito de obtenção de alguma coisa, algum ‘novo’ direito ou concessão, que seria a justificativa do juízo ter concedido a liminar. Pois, de acordo com tal decisão, os participantes da greve estariam interferindo até mesmo nos serviços essenciais, sem quaisquer modalidades alternativas de atendimento, o que configuraria o crime de greve violenta contra o atendimento de serviços e atividades essenciais prevista no art. 201 do CP.

Nesse sentido, a decisão mencionada (TJSC, 2018) fundamenta seu ponto de vista sob os auspícios da Constituição Federal, afirmando que o direito de greve é um direito previsto em seu art. 9º. Embora este movimento de parada é conduzido, em grande parte, por autônomos e não por trabalhadores com carteira assinada, o que usualmente se vê em atos como esse. Mais uma dissemelhança. Além disso, o magistrado alega que esta situação é distinta também por outro motivo, já que além da parada em si, tem havido obstrução de vias públicas, ameaças e agressões a motoristas que não querem aderir à greve e danos aos seus caminhões, além da obstrução causar possível perigo concreto aos usuários das estradas, já que muitos caminhões carregam líquidos altamente inflamáveis. Portanto, estaria no mínimo configurado os crimes de ameaça, constrangimento ilegal em sua modalidade simples, dano e crimes de perigo – todos tipificados no Código Penal.

É interessante mencionar que em nenhum momento o juízo desses autos (TJSC, 2018) questiona o mérito dos motivos que levaram essas pessoas a manifestar e aderir ao movimento de parada. No entanto, as condutas acima descritas configuram crime pela norma penal e não se pode ‘fechar os olhos’ para isso, sem que se quebre outras garantias constitucionais, como o simples direito de ir e vir das pessoas que não querem aderir à greve ou a mera possibilidade de parada dos serviços essenciais, conforme é proibido pelo art. 11 da lei 7783/89, vez que tal ação interfere não só no livre tráfego dos cidadãos e dos bens, mas também gera consequências à segurança, saúde e à vida das pessoas.

Todas essas peculiaridades diferenciadoras apresentadas pela greve dos caminhoneiros, em comparação com outras paradas laborais, trazem à baila o reconhecimento de direitos, ou ao menos, o seu debate. Por isso, apesar de interessante e possível, analisar a greve dos caminhoneiros sob o ponto de visto estritamente do Direito Penal é perigoso e míope. Afinal, deixamos de ampliar o olhar a um debate mais profundo, que seria dos direitos do trabalhador e de toda uma categoria específica de trabalhador: os transportadores do consumo.

 

5 – Considerações

Considerando a análise feita sobre os crimes contra a organização do trabalho, tanto os delitos ‘comuns’, como os crimes cometidos durante as paradas laborais, i.e. a greve violenta e o locaute; o que se percebe é que se perscrutada em analogia ao movimento realizado pelos caminhoneiros em maio de 2018, a relação pode ser conflituosa. Primeiro, porque apesar de todo o transtorno e os incômodos, que esta greve trouxe, essa parada nos levou a refletir sobre a forma como vivemos.

Souto Maior (2018, web) explora essa perspectiva alegando que é bastante oportuno questionar se a “normalidade” que foi quebrada, a rotina esfacelada era, de fato, normal, ou seja, fruto de uma situação natural, inexorável, ou o resultado de uma construção histórica e que, por diversas determinantes, criou a aparência de “natural” para relações sociais carregadas de opressões históricas e extremamente assimétricas, desiquilibradas. Ocorre que na concebida vida “normal”, as pessoas vivem em função das mercadorias que adquirem e dos serviços que contratam (produzidas para atenderem aos interesses do estômago ou do imaginário) e do trabalho que precisam realizar para ganhar o dinheiro que lhes permite ter acesso às mercadorias. Mas, no geral, no estágio da “normalidade” não paramos para pensar que, como já se disse, “as mercadorias não chegam sozinhas ao mercado”. Elas são produzidas por alguém em algum lugar e precisam ser transportadas até o local de consumo.

Por isso, a importância da categoria de trabalhadores/as caminhoneiros/as, que se submeteram a situações extremas durante a greve, isso deve ser pensada. Ainda conforme Souto, a quantidade de horas de trabalho, a baixa remuneração, a ausência de proteção social, o elevado número de acidentes de trabalho, a assunção pelos trabalhadores do custo da produção que seria próprio do capital e não deles próprios constituem a essência das dificuldades cotidianamente enfrentadas pelos caminhoneiros/as e nada disso está em pauta (2018).

Afinal, nenhuma dessas questões foram realmente levantadas ou debatidas. O foco era a redução de tributos e a isenção de pedágio. E isso, à princípio foi alcançado. Apesar de somente momentaneamente. Mas, o problema é muito mais profundo e complexo, seja pela difusão de discursos que a mídia difunde sem o devido cuidado e pesquisa, muitas vezes, dissimulando ou criando cenários e movimentos improváveis ou na própria reivindicação dos/as caminhoneiros/as, que nem sempre foi unânime, como foi o caso perpetrado com intenção de intervenção militar, ou ainda as ações com intuito de narrar fatos ou situações que favoreça a interesses outros [políticos, sociais, quiçá políticos-eleitorais] não revelados.

 

Referências

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CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte especial. v.2, 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

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GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito Penal Esquematizado: Parte Especial. 8.ed. coord. Pedro Lenza. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

JESUS, Damásio de. Direito Penal: parte especial: v. 3. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

MAIOR, Jorge Luiz Souto. Você realmente se preocupa com os caminhoneiros? In: Blog Jorge Luiz Souto Maior. 27 maio 2018. São Paulo. Disponível em: <https://www.jorgesoutomaior.com/blog/voce-realmente-se-preocupa-com-os-caminhoneiros> Acesso em: 29 maio 2018, 2018.

MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal. 23 ed. São Paulo: Atlas, 2005

NORAT, Markus Samuel Leite. Competência para o processo e julgamento dos crimes contra a organização do trabalho. Cognitio Juris, João Pessoa, Ano II, n. 5, ago 2012. Disponível em <http://www.cognitiojuris.com/artigos/05/12.html>. Acesso em: 28 de Maio de 2018.

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RODRIGUES, Alex. PF investiga se há prática criminosa em paralisação de caminhoneiros. Agência Brasil. Brasília. 25 maio 2018. Disponível em:< http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-05/pf-investiga-se-ha-pratica-criminosa-em-paralisacao-de-caminhoneiros> Acesso em: 02 jun 2018.

TALEB, Nassim. A lógica do Cisne Negro: o impacto do altamente improvável. Rio de Janeiro: Bestseller, 2009.

TJSC Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Comarca de Biguaçu. Vara Plantão Cível e Criminal. Autos n. 0301914-35.2018.8.24.0007. Decisão em sede de Tutela Antecipada Antecedente. Juiz de Direito: Yannick Caubet. Requerente: Sindopolis – Sindicato do Comércio Varejista de Comércio de Combustíveis Minerais de Florianópolis. Requerido: Associação Brasileira dos Caminhoneiros ABCAM e outro. Biguaçu. 28 maio 2018, 2018.

 

Legislação pesquisada:

BRASIL. Código Penal. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>.

_____. Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452.htm>  Acesso: 02 jun 2018.

_____. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso: 02 jun 2018.

_____. Lei 7.783, de 28 de junho de 1989. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7783.htm>. Acesso: 02 jun 2018.

_____. Lei 9.099 de 26 de setembro de 1995. Disponível em: < www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9099.htm> Acesso: 02 jun 2018.

_____. Lei 4.898 de 9 de dezembro de 1965. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l4898.htm > Acesso: 02 jun 2018.

_____. Lei 9.777 de 29 de dezembro de 1998  Disponível em: < https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/103285/lei-9777-98 > Acesso: 02 jun 2018.

_____. Medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade 3.684-0 distrito federal. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?doc TP=TP&docID=415904>. STF, Pleno, ADIn 3.684-0/DF, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 03.08.2007

 

[1] Este estudo surgiu dentro dos debates do Núcleo de Pesquisa em Direito Internacional da Faculdade CESUSC.

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