Brenda Morais Pessoa – Acadêmica de Direito na Universidade de Mogi das Cruzes.
Marcio Cursino dos Santos – Mestre em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professor na Universidade de Mogi das Cruzes (UMC).
RESUMO: O trabalho aborda a importância da qualificadora do feminicídio, apontando os motivos pelos quais foi necessária a tipificação de tal crime, tendo em vista a característica abusiva de tantos relacionamentos, o que torna a violência doméstica e o feminicídio cada vez mais frequentes. Foi utilizado o método de revisão da doutrina, jurisprudência e legislação referentes ao tema. Além de salientar as mudanças trazidas pelo ordenamento jurídico e os diferentes olhares que contemplam as doutrinas, o presente esclarece pontos importantes sobre o relacionamento abusivo, já que, como sugere o título do trabalho, grande parte dos feminicídios praticados no Brasil são o resultado final de intolerância e posse, situações vividas diariamente por tantas mulheres que se encontram num relacionamento abusivo. A reflexão sobre o tema e a exposição das características que o cercam pode ajudar na prevenção do feminicídio, alertando mulheres que se encontram nesse contexto e que ainda não se deram conta dos riscos que correm.
Palavras-chave: Violência Doméstica. Feminicídio. Relacionamento Abusivo.
ABSTRACT: The paper addresses the importance of the qualification of femicide, pointing to the reasons why it was necessary to typify such a crime, given the abusive characteristics of so many relationships, which makes domestic violence and femicide increasingly frequent. The method of revision of the doctrine, jurisprudence and legislation related to the theme was used. In addition to highlighting the changes brought about by the legal system and the different perspectives that contemplate the doctrines, the present clarifies important points about the abusive relationship, since, as the title suggests, most of the femicides practiced in Brazil are the final result of this. intolerance and possession, situations experienced daily by so many women who find themselves in an abusive relationship. Reflecting on the topic and explaining its characteristics can help prevent femicide, alerting women in this context who have not yet realized the risks they are facing.
Keywords: Domestic Violence. Femicide. Abusive Relationship.
Sumário: Introdução. 1. Relacionamento Abusivo. 1.1 Conceito. 1.2 Características. 1.2.1 Repressão, Humilhação, Manipulação. 1.2.2 Agressão Física. 2 Feminicídio. 2.1 Feminicídio no Relacionamento Abusivo. 2.2 Feminicídio no Ordenamento Jurídico Penal. 2.3 Natureza Jurídica. 2.4 Competência. 3. Importância da Qualificadora do Feminicídio. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho, tem como escopo principal salientar a importância da qualificadora do feminicídio no Brasil, tendo em vista a inclinação abusiva e despótica dos relacionamentos, desde os primórdios até os dias atuais.
Inaugura-se o presente trabalho com uma breve análise do relacionamento abusivo e a forma como afeta a vida de várias mulheres brasileiras, tendo, muitas vezes, como consequência, o feminicídio. É possível perceber, que esse tipo de relação, pode ser caracterizada por vários tipos de violência, não só a física.
É difícil, para alguém que se encontra inserido em um relacionamento abusivo, reconhecer que faz parte deste, justamente por ser, esse tema, explorado apenas no âmbito da violência física. Entretanto, os sinais dados pelo agressor num relacionamento desse caráter podem ser percebidos desde seu início, razão pela qual, são expostos durante esta leitura, alguns deles, de modo a fazer com que, pessoas nesse contexto possam se identificar e agir o quanto antes.
Em seguida, faremos o estudo do feminicídio, que, por muitas vezes de torna o resultado de todas essas agressões sofridas por uma mulher durante um relacionamento abusivo. A Lei 13.104/15 foi editada com a finalidade de estabelecer uma proteção mais abrangente aos direitos da mulher em meio a desigualdade que ainda assombra nosso país. Serão colocados em pauta, dados sobre a criação da lei e suas características no âmbito jurídico penal.
Por fim, será possível concluir que assim como a criação da Lei nº 11.340 /2006 – Lei Maria da Penha, coibindo atos de violência doméstica, a personalização do feminicídio no Brasil foi uma grande conquista na esfera judicial e social, já que não podemos ignorar o fato de que todas as mortes de mulheres, causadas pelos seus próprios companheiros, é reflexo de uma grande falha cultural e social no nosso país de desvalorização da figura feminina, e que nunca fora devidamente punida.
1. RELACIONAMENTO ABUSIVO
1.1 Conceito
O relacionamento abusivo é aquele em que predomina a coação de um parceiro sobre o outro. Há, nessas relações, um desejo frequente de posse e controle sobre a vida do consorte, de modo que, o coagido, em algum ponto, vive em função de satisfazer seu companheiro, fazendo apenas aquilo que lhe for autorizado, como descrito:
“O jogo de poder masculino advém dessas crenças de o homem possuir certos direitos e privilégios a mais do que as mulheres. Os ciúmes podem estar relacionados à possessividade: muitos homens tratam as mulheres como objeto de sua propriedade.” (Fonseca, D. H., Ribeiro, C. G., Leal, N. S. B. Violência doméstica contra a mulher: realidades e representações sociais, p. 312)
Existem, no entanto, casos em que, num relacionamento composto por homem e mulher, a mulher é quem se torna o sujeito ativo dos vários tipos de violência característicos dessa mesma linha de relacionamentos. Por tanto, não podemos dizer que o conceito de relacionamento abusivo consiste apenas em agressões unicamente sofridas por mulheres e cometidas por homens, entretanto assim se perpetuam em sua maioria.
1.2 Características
Uma das características mais evidentes desse tipo de relacionamento é a necessidade de domínio sobre a vida do companheiro. Esse domínio pode abranger qualquer aspecto relacionado ao “dominado”, como por exemplo, a escolha das vestimentas, o cumprimento dos cabelos, com o que se deve, ou não gastar, com quem manter contato, quais locais podem ser frequentados, entre muitas outras formas de “fiscalizar” e comandar tudo o que é realizado no dia a dia do consorte.
Apesar de estar, na maioria das vezes, relacionado apenas a violência física, o relacionamento abusivo, pode, também, estar atrelado a outros tipos de violência, como a psicológica e até mesmo a sexual. Podendo o convívio entre o casal incluir uma dessas agressões ou todas.
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, 1994) define a violência contra a mulher como:
“qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada:
a) ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer ao agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras formas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual;
b) ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local;
c) perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.” (CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR, PUNIR E ERRADICAR A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER, Belém do Pará, 1994)
É difícil caracterizar um relacionamento abusivo em seu início. Os traços que qualificam esse tipo de relação são sutis e se acentuam com o passar do tempo. Ao longo do convívio e após as primeiras experiências de caráter abusivo, é que se começa a refletir sobre uma mudança comportamental repentina. Em uma grande parte desses casos, essa reflexão se dá tardiamente, momento em que há ainda mais envolvimento entre o casal, o que é proporcional, na maioria das vezes, ao nível de subordinação.
Essa demora em relação a percepção do caráter abusivo do relacionamento, faz com que se torne mais difícil deixar o parceiro. Quando a relação tem como fruto um casamento, ou filhos, é que se torna ainda mais improvável partir, sabendo que, a decisão de deixar seu parceiro implica em consequências que vão além do relacionamento entre o casal, envolvendo também pessoas próximas.
A seguir são explanadas algumas, das várias características presentes no relacionamento abusivo, que podem ocorrer de forma isolada como também em conjunto:
1.2.1 Repressão, Humilhação, Manipulação
O relacionamento abusivo não é apenas um conjunto de ações. Sua composição pode ser formada por um, dois, ou diversos traços que o caracterizam. Dentre eles o mais evidente e mais frequente é a repressão, que consiste em, de certa forma, silenciar o outro, numa tentativa de não ter que lidar com seus anseios.
A forma de manter esse silêncio é através de punições, que vão de pequenas chantagens a agressões físicas, podendo chegar ao feminicídio. (causas feminicídio pesquisa)
Aquele que aceita cumprir com todas as obrigações impostas, está sujeito a perder amigos, familiares, seu estilo de vida, suas preferências. Passa a abrir mão de suas próprias vontades e sonhos, deixando até mesmo de expressá-los, afim de evitar conflitos.
Em algum momento da relação abusiva, a pessoa que sofre a repressão, evita até mesmo conhecer pessoas, passando a se isolar para que, em meio aos imprevistos do cotidiano, não seja forçada a trocar palavras com um estranho ou até mesmo um conhecido, já que para o opressor, nesse estágio do ciúmes, qualquer pessoa é suspeita.
O convívio com uma pessoa abusiva, é desgastante. Todas as atitudes tomadas tem de ser bem pensadas, já que todas elas, por mais simples que sejam, influenciam diretamente na forma como será tratado. Uma mensagem errada, uma palavra mal dita, um olhar. Tudo pode ser um motivo “plausível” para humilhações e discussões devastadoras.
As humilhações aumentam a medida em que são perdoadas. A primeira delas, é aquela em que o agressor geralmente se mostra arrependido e promete mudanças. Com o tempo, ao se sentir seguro em relação ao humilhado, sabendo que não será deixado, mesmo diante de tais atitudes, aquele, que já reprimia, passa a humilhar com cada vez mais frequencia, como forma de punição.
Para ser punido, não é necessário que se faça algo grande. O agressor pode usar como pretexto até mesmo seus próprios sonhos e desconfiança. A presença do medo na vida de pessoas que sofrem com relacionamentos desse cunho é predominante. Medo por necessitar abrir mão de coisas tão simples e ao mesmo tempo essenciais, por não agradarem seu parceiro. Medo, por não poder controlar as ações de pessoas em sua volta, pessoas que nem mesmo detém conhecimento da relação opressiva da qual faz parte. Medo por saber que qualquer atitude julgada como ruim, pelo agressor, se sobrepõe as boas atitudes, fazendo com que o coagido se sinta sempre errado, mesmo que não seja a realidade.
A manipulação é a forma como o agressor transforma as situações, fazendo com que em todos os casos, mesmo quando errado, ao expor, ou até mesmo impor, o seu ponto de vista, a culpa seja automaticamente transferida ao outro. O poder de convencimento pode ser tamanho, que até mesmo a “vitima” se sente culpada sem ao menos ter errado de fato.
Junto a culpa, vem o desejo de recompensar o parceiro pelos “erros” cometidos. Por esse motivo, é criado um ciclo em que a pessoa manipulada, não percebendo sua razão, se empenha cada vez mais a cumprir estritamente tudo aquilo que lhe fora imposto por seu companheiro, que nunca está satisfeito e cada vez mais aponta falhas que devem ser recompensadas, gerando mais erros, mais recompensas, seguindo sempre esse roteiro.
Ao possuir uma dependência emocional em relação ao agressor, mesmo diante de situações extremas, a mulher ainda vislumbra seu parceiro como “herói” e “protetor”, tendo sempre esperança de melhoras no relacionamento, sendo, este sentimento, precisamente descrito:
“A esperança de que o companheiro mude está representada como a principal expectativa das participantes. Outras, como realizações pessoais, sair do ciclo da violência e dedicação materna, também apareceram como significantes. “(Fonseca, D. H., Ribeiro, C. G., Leal, N. S. B. Violência doméstica contra a mulher: realidades e representações sociais, p. 313)
1.2.2 Agressão Física
As agressões físicas podem consistir em socos, tapas, chutes, empurrões, entre muitos outros. A dor de uma agressão vai muito além da questão física. A sensação de ser agredido por alguém tão próximo faz com que o acometido mude sua própria percepção sobre si mesmo e acaba falsamente concluindo que, por ter escolhido alguém capaz de realizar tais atos, se torna totalmente merecedor de todo esse sofrimento. Esse sentimento só aumenta à medida em que atos como estes são perdoados, sendo assim, conclui-se:
“As mulheres objetivam a violência sofrida como inexplicável, destruindo a harmonia do casal e a convivência familiar, além da frequência com que ocorre, estando associada a sentimentos como tristeza, medo, preocupação e sentimento de impotência.” (Fonseca, D. H., Ribeiro, C. G., Leal, N. S. B. Violência doméstica contra a mulher: realidades e representações sociais, p. 310)
A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), foi adotada com o propósito de punir, mais rigorosamente as agressões contra mulheres. Esse mecanismo, é de extrema importância, já que protege a mulher em vida, evitando que as agressões cheguem ao seu ponto máximo, que é o feminicídio.
Em um estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2015), para verificar a efetividade da Lei Maria da Penha, foi possível concluir que – “os números de homicídios contra as mulheres dentro dos lares foram confrontados com aqueles que acometeram os homens’-, para isso foram utilizados dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade do Sistema Únicos de Saúde (SUS). Com análise de tais dados foi constatado que a Criação da Lei Maria da Penha, foi responsável pela diminuição de 10% no índice de homicídios contra mulheres praticados em seu próprio lar.
2. FEMINICÍDIO
2.1 Feminicídio no Relacionamento Abusivo
A falsa ilusão de uma possível melhora no comportamento do parceiro, ou até mesmo o medo das consequências de deixa-lo, fazem com que as mulheres se calem ao passar por agressões.
O feminicídio é o ápice de todas as agressões sofridas ao longo de um relacionamento. A forma como a sociedade alimentou, por um longo espaço de tempo, a submissão do sexo feminino ao masculino, reflete nos espantosos números de mortes de mulheres no nosso país.
Segundo a juíza de Direito do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Marixa Fabiane Lopes Rodrigues, “A subjugação máxima da mulher por meio de seu extermínio tem raízes históricas na desigualdade de gênero e sempre foi invisibilizada e, por consequência, tolerada pela sociedade. A mulher sempre foi tratada como uma coisa que o homem podia usar, gozar e dispor.”
Conforme o “Mapa da Violência” publicado pela ONU em 2015, em relação as taxas de feminicídio no Brasil – “Entre 2003 e 2013, o número de vítimas do sexo feminino passou de 3.937 para 4.762, incremento de 21,0% na década. Essas 4.762 mortes em 2013 representam 13 homicídios femininos diários.” -, constatando a importância de uma Lei específica, que visasse a repressão desse crescente.
2.2 Feminicídio no Ordenamento Jurídico Penal
A qualificadora do feminicídio foi dada pela Lei nº 13.104/2015, em atendimento a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Belém do Pará, 1994), estabelecendo meios de repreender, de forma proporcional, a criminalidade que descrimina a mulher.
“LEI Nº 13.104, DE 9 DE MARÇO DE 2015.
Altera o art. 121 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos.”
Até 9 de março de 2015, o feminicídio era punido, de forma genérica, como sendo homicídio. Analisemos o §2º do Art. 121, que foi alterado pela Lei 13.104/15:
“Art. 121. Matar alguém
(…)
Homicídio qualificado
§2° Se o homicídio é cometido:
(…)
Feminicídio
VI – Contra a mulher por razões da condição do sexo feminino:
(…)
§2°-A considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:
I – Violência doméstica e familiar;
II – Menosprezo ou discriminação à condição de mulher.”
A pena prevista para o homicídio qualificado é de 12 a 30 anos de reclusão. Ainda, a Lei 13.104/2015 previu a causa de aumento de pena em seu parágrafo 7°:
“§7° A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado:
I – Durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto;
II – Contra pessoa menor de 14 (quatorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência;
III – na presença de descendente ou ascendente a vítima.”
Por fim, a Lei do Feminicídio, alterou o inciso I do art. 1° da Lei n. 8.072/1990 (Lei dos Crimes Hediondos), que passou a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 1°
I – Homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só a gente, e homicídio qualificado (art. 121, §2°, I, II, III, IV, V e VI)”
A criação da figura típica qualificada do feminicídio justifica-se por meio do entendimento de que se deve tratar com desigualdade os desiguais. Em análise ao § 2º-A do artigo 121 do Código Penal, constata-se que além de o crime de homicídio ser praticado contra uma mulher, deve decorrer de violência doméstica e familiar ou de menosprezo à condição de mulher.
Do ponto de vista de Cezar Roberto Bitencourt:
“Andou bem o legislador, por que conseguiu, adequadamente, ampliar a proteção da mulher vitimada pela violência de gênero, assegurando-lhe maior proteção sem incorrer em inconstitucionalidade por dedicar-lhe uma proteção excessiva e discriminatória, o que, a nosso juízo, poderia ocorrer se, em vez da qualificadora, fosse criado um novo tipo penal, isto é, uma nova figura penal paralela ao homicídio, com punição mais grave sempre que se tratasse de vítima do sexo feminino. Assim, a opção político-legislativa foi feliz e traduz a preocupação com a situação calamitosa sofrida por milhares de mulheres discriminadas por sua simples condição de mulher, permitindo, na prática, a execução e uma política criminal mais eficaz no combate a essa chaga que contamina toda a sociedade brasileira. “(BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado, 9. ed., São Paulo: Saraiva, 2015, p. 459.)
O Supremo Tribunal Federal em controle direto de constitucionalidade, constata que a distinção no tratamento jurídico penal entre homem e mulher como vítimas de crimes é harmônica com a Constituição Federal, sendo necessária maior proteção diante das particularidades físicas e morais da mulher e da sociedade patriarcal.
Sobre o tema:
“VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – LEI Nº 11.340/06 – GÊNEROS MASCULINO E FEMININO – TRATAMENTO DIFERENCIADO. O artigo 1º da Lei nº 11.340/06 surge, sob o ângulo do tratamento diferenciado entre os gêneros – mulher e homem –, harmônica com a Constituição Federal, no que necessária a proteção ante as peculiaridades física e moral da mulher e a cultura brasileira. COMPETÊNCIA – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – LEI Nº 11.340/06 – JUIZADOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. O artigo 33 da Lei nº 11.340/06, no que revela a conveniência de criação dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher, não implica usurpação da competência normativa dos estados quanto à própria organização judiciária. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER – REGÊNCIA – LEI Nº 9.099/95 – AFASTAMENTO. O artigo 41 da Lei nº 11.340/06, a afastar, nos crimes de violência doméstica contra a mulher, a Lei nº 9.099/95, mostra-se em consonância com o disposto no § 8º do artigo 226 da Carta da Republica, a prever a obrigatoriedade de o Estado adotar mecanismos que coíbam a violência no âmbito das relações familiares. STF, ADC 19/DF – DISTRITO FEDERAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE. Relator (a): Min. MARCO AURÉLIO Julgamento: 09/02/2012. Órgão Julgador: Tribunal Pleno”
O Superior Tribunal de Justiça também tem a mesma compreensão de que a mulher necessita da criação de mecanismos especiais para a sua proteção, face à evidente desigualdade ainda existente no Brasil entre os gêneros.
É necessário salientar que o fato de a vítima ter sofrido a violência doméstica, por si só, não caracteriza o feminicídio, se tal violência não for motivada pela condição de sexo feminino, conforme o §2º do Art. 121:
“§ 2º-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: (Incluído pela Lei nº 13.104, de 2015)
I – Violência doméstica e familiar; (Incluído pela Lei nº 13.104, de 2015)
II – Menosprezo ou discriminação à condição de mulher. (Incluído pela Lei nº 13.104, de 2015)”
Conforme o ponto de vista de Cleber Maçon.:
“(…) o reconhecimento da violência doméstica ou familiar contra a mulher não é suficiente para a configuração do feminicídio. O inciso Ido § 2.º-A deve ser interpretado com sintonia com o inciso VI cio § 2.º, ambos do art. 121 do Código Penal. Em outras palavras, o feminicídio reclama que a motivação do homicídio tenha sido as” razões da condição do sexo feminino”, e daí resulte a violência doméstica ou familiar.” (MASSON, Cleber, Direito Penal, vol. 2, Parte especial, ed. 9º, Editora Forense pg. 43)
2.3 Natureza Jurídica
Damásio de Jesus, em seus ensinamentos sobre o tema, explana o quanto segue:
“Circunstâncias são elementos acessórios (acidentais) que, agregados ao crime, têm função de aumentar ou diminuir a pena. Não interferem na qualidade do crime, mas sim afetam a sua gravidade (quantias delicti).
Podem ser:
a) objetivas (materiais ou reais);
b) subjetivas (ou pessoais).
Circunstâncias objetivas são as que se relacionam com os meios e modos de realização do crime, tempo, ocasião, lugar, objeto material e qualidades da vítima.
Circunstâncias subjetivas (de caráter pessoal) são as que só dizem respeito à pessoa do participante, sem qualquer relação com a materialidade do delito, como os motivos determinantes, suas condições ou qualidades pessoais e relações com a vítima ou com outros concorrentes.
Observando-se que a participação de cada concorrente adere à conduta e não à pessoa dos outros participantes, devem os estabelecer as seguintes regras quanto às circunstâncias do homicídio, aplicáveis à coautoria:
1ª) não se comunicam as circunstâncias de caráter pessoal (de natureza subjetiva);
2ª) a circunstância objetiva não pode ser considerada no fato do partícipe se não entrou na esfera de seu conhecimento”. (JESUS, Damásio E. d e, Direito Penal. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. v. 2., p. 59-60.)
Existem divergências entre as conclusões relacionadas a natureza jurídica do feminicídio.
Guilherme Nucci, por exemplo, acredita que esta seja de caráter objetivo, aduzindo:
“Trata-se de uma qualificadora objetiva, pois se liga ao gênero da vítima: ser mulher. Não aquiescemos à ideia de ser uma qualificadora subjetiva (como o motivo torpe ou fútil) somente porque se inseriu a expressão “por razões de condição de sexo feminino”. Não é essa a motivação do homicídio. O agente não mata a mulher porque ela é mulher, mas o faz por ódio, raiva, ciúme, disputa familiar, prazer, sadismo, enfim, motivos variados, que podem ser torpes ou fúteis; podem, inclusive, ser moralmente relevantes. Sendo objetiva, pode conviver com outras circunstâncias de cunho puramente subjetivo.” (Nucci, Guilherme de Souza Manual de direito penal – 12. ed. rev., atual. e ampla. – Rio de Janeiro: Forense, 2016, p.605).
Já Rogério Sanches da Cunha, defende a tese de que, devido ao motivo pelo qual se deu o homicídio, a natureza jurídica da qualificadora é subjetiva, vejamos:
“Ressaltamos, por fim, que a qualificadora do feminicídio é subjetiva, pressupondo motivação especial: o homicídio deve ser cometido contra a mulher por razão da condição de sexo feminino. Mesmo no caso do inciso Ido § 2º-A, o fato de a conceituação de violência doméstica e familiar ser um dado objetivo, extraído da lei, não afasta a subjetividade. Isso porque o § 2º-A é apenas explicativo; a qualificadora está verdadeiramente no inciso VI, que, ao estabelecer que o homicídio se qualifica quando cometido por razões da condição do sexo feminino, evidente que isso ocorre pela motivação, não pelos meios de execução.” (Rogério Sanches Cunha, Código Penal para Concursos, 10ª Ed., Editora Juspovim, pg. 347)
Por estar relacionada ao âmbito interno do agente, a teoria de que qualificadora do feminicídio é de natureza subjetiva é a que prevalece, principalmente ao analisar o contexto de que apenas sofre feminicídio a mulher que tem a sua condição de mulher menosprezada ou discriminada.
Para Alice Bianchini, a tipificação do feminicídio é nitidamente subjetiva, usando como exemplo uma situação em que o marido mata sua esposa pelo simples fato da mesma ter vestido uma minissaia:
“E mata-a por uma motivação aberrante, a de presumir que a mulher deve se submeter ao seu gosto ou apreciação moral, como se dela ele tivesse posse, retificando-a, anulando-lhe opções estéticas ou morais, supondo que à mulher não é possível contrariar as vontades do homem. Em motivações equivalentes a essa há uma ofensa à condição de sexo feminino. O sujeito mata em razão da condição do sexo feminino, ou do feminino exercendo, a seu gosto, um modo de ser feminino. Em razão disso, ou seja, em decorrência unicamente disso, (BIANCHINNI, Alice, R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19 (2016), p. 216)
Fato que caracteriza o feminicídio por se tratar da condição de mulher da vítima. Isto posto, conseguimos concluir que não se tratando da forma em que o crime foi executado e sim das razões que lhe motivaram, a qualificação é de natureza jurídica subjetiva.
2.4 Competência
Por se tratar de um crime doloso contra a vida, a competência para processamento e julgamento deste delito se dá pelo Tribunal do Júri, conforme afirma Rogério Sanches da Cunha:
“Não resta nenhuma dúvida de que a competência será a mesma do Tribunal do Júri em face da disposição constitucional que assegura a competência mínima desse tribunal para o julgamento dos crimes dolosos contra vida”(art. 5º XXXVIII, d)” CUNHA, Rogério Sanches da, Manual de Direito Penal, Parte Especial, Volume Único, 8ª ed., editos JusPodvim, pg. 66)
3. IMPORTÂNCIA DA QUALIFICADORA DO FEMINICÍDIO
A tipificação do feminicídio no ordenamento jurídico penal brasileiro foi essencial a preservação dos direitos das mulheres. Ao distinguir o feminicídio do homicídio, como um todo, o legislador pretendeu equilibrar as diferenças sofridas pelas mulheres desde sempre, promovendo a isonomia.
Ao olhar de José Afonso da Silva:
“Essa igualdade já se contém na norma geral da igualdade perante a lei. Já está também contemplada em todas as normas constitucionais que vedam discriminação de sexo (art. 3º, IV e 7º XXX). Mas não é sem consequência que o Constituinte decidiu destacar, em um inciso específico (art. 5º, I), que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição. Era dispensável acrescentar a cláusula final, porque, ao estabelecer a norma, por si, já estava dito que seria “nos termos desta Constituição”. Isso é de somenos importância. Importa mesmo é notar que é urna regra que resume décadas de lutas das mulheres contra discriminações. Mais relevante ainda é que não se trata aí de mera isonomia formal. Não é igualdade perante a lei, mas igualdade em direitos e obrigações. Significa que existem dois termos concretos de comparação: homens de um lado e mulheres de outro. Onde houver um homem e urna mulher, qualquer tratamento desigual entre eles, a propósito de situações pertinentes a ambos os sexos, constituirá uma infringência constitucional” (SILVA, José Afonso da, 2014, p. 219)
É de entendimento do Tribunal de Justiça de São Paulo, quando defendida tese de inconstitucionalidade:
Em atenção à necessidade de maior proteção à mulher, historicamente vítima de violência – perpetrada por diversas formas – por parte dos homens, o Brasil editou o Decreto n. 1.973, em 1º de agosto de 1996, promulgando a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará, em 09 de junho de 1994. Na toada da aludida Convenção e a fim de coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do artigo 226 d a Constituição Federal, foi publicada a Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006 – Lei Maria da Penha -, estabelecendo medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar e afirmando que a violência contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos. A fim de incrementar essa proteção assumida internacionalmente pelo Estado brasileiro, bem como intensificar a repressão e prevenção aos crimes de violência contra a mulher, violência de gênero, foi publicada a Lei n.13.104 de 09 de março de 2015, criando nova circunstância qualificadora para o delito de homicídio, quando cometido (TJ-SP – RSE: 00033867920158260368 SP 0003386-79.2015.8.26.0368, Relator: Augusto de Siqueira, Data de Julgamento: 01/09/2016, 13ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 20/09/2016) (TJ – SÃO PAULO, 2016).
É fato que a sociedade patriarcal tem seus reflexos nos números alarmantes de violência e morte de mulheres, que vêm aumentando. A herança machista trazida até o tempo presente está impregnada na sociedade.
Apesar de, infelizmente, a criação da Lei 13.104/15 não impedir que a violência ocorra, é possível perceber tamanho avanço do ordenamento jurídico, tendo em vista que no Brasil Colonial permitia-se que homens matassem suas esposas por motivos de traição, ou até mesmo por boatos de tal ato.
A lei foi inovadora no sentido de que o primeiro passo para resolução de um conflito é necessário reconhecê-lo, nomeá-lo. Até mesmo discussões impróprias como “a importância da vida da mulher é maior que a do homem?” dão margem a discussões e fazem com que esse assunto seja explorado de forma mais ampla.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim, é possível concluir que os relacionamentos abusivos não são apenas aqueles em que a mulher sofre agressões físicas, sendo aqui expostos alguns dos principais pontos que devem ser analisados durante uma relação para que o futuro do casal não regido pela violência física, podendo chegar ao feminicídio.
O feminicídio é o máximo que uma relação abusiva pode chegar, quando um dos componentes do casal perde sua vida, a mulher. Mesmo com o avanço da sociedade, não conseguimos deixar para trás a herança machista trazida desde os primórdios até hoje. Ainda existe um paradigma de que a mulher deve ser submissa ao homem, e quando esta percebe a gravidade dos atos ocorridos num relacionamento e opta por deixa-lo, o homem percebe a perda do controle, fase em que a maioria dos feminicídios ocorrem.
A criação da Lei 13.104, pune, de forma mais severa, àquele que mata a mulher, por razões de menosprezo a sua condição de mulher. É, segundo entendimento do Tribunal de Justiça de São Paulo, constitucional, e busca a isonomia perante a desigualdade entre homens e mulheres, sendo um grande avanço na esfera judicial e social.
Apesar de haverem correntes que divergem em relação a natureza jurídica, é possível concluir que, em razão de ser o motivo e não a forma como foi praticado, objeto que qualifica o crime concluímos que este possui natureza jurídica subjetiva, sendo a competência julgadora desse crime o Tribunal do Júri. Neste sentido:(…) a qualificadora do feminicídio é de ordem subjetiva, pois, antes de termos um aclaramento do tema pela Lei 11.304/2015, as três situações que hoje configuram o feminicídio no Brasil eram, quando trazidas ao processo criminal, enquadradas em qualificadoras de natureza subjetiva (motivo torpe ou motivo fútil). (BIANCHINNI, Alice, R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19 (2016), p. 218)
Por fim, conclui-se que se faz necessária a discussão acerca do feminicídio. Por meio de reflexões sobre o tema é que se torna mais fácil a resolução deste conflito que assombra a realidade de várias mulheres.
A importância do papel exercido pela mulher na sociedade e toda a evolução histórica dos direitos conquistados ao decorrer dos séculos deveria ser pauta em debates, palestras, e até mesmo em conversas casuais, com o intuito de ressaltar o peso que atitudes tomadas por mulheres antecessoras a nossa geração, tem em relação ao que hoje podemos de forma livre exercer, ficando assim, mais evidente que da mesma forma, podemos influenciar a vida das mulheres que virão no futuro e assim sucessivamente.
O assunto deveria, com a mesma frequência ser abordado em escolas, para que através da solidificação de uma base na educação, a população, desde cedo, compreenda a importância das leis no combate a crimes como este, que além de enfraquecer aqueles que lutam pela igualdade de gênero, mancha a história de perseverança traçada pelas mulheres desde os primórdios e que não pode retroceder.
REFERÊNCIAS
Livros
BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado, 9. ed., São Paulo: Saraiva, 2015.
CUNHA, Rogério Sanches, Manual de Direito Penal, Parte Especial, Volume Único, 8ª ed., JusPodvim, 2017.
CUNHA, Rogério Sanches Cunha, Código Penal para Concursos, 10ª Ed., Editora Juspovim, 2017.
GRECCO, Rogério, Curso de Direito Penal, Parte especial, vol. 2, 12ª ed., Editora Impetus, 2016.
JESUS, Damásio E. de, Direito Penal, Vol. 2, 22. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
MASSON, Cleber, Direito Penal, vol. 2, Parte especial, ed. 9º, Editora Forense, 2016.
NUCCI, Guilherme de Souza, Manual de Direito Penal, 11ª ed., editora Forense, 2016.
PAIVA, Carla; FIGUEIREDO, Bárbara. Abuso no contexto do relacionamento íntimo com o companheiro: definição, prevalência, causas e efeitos. Psic., Saúde & Doenças, Lisboa, v. 4, n. 2, p. 165-184, nov. 2003.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de derecho penal – Parte general, 1981.
Artigos
BIANCHINNI, Alice, R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19 (2016).
Fonseca, D. H., Ribeiro, C. G., Leal, N. S. B. Violência doméstica contra a mulher: realidades e representações sociais
Legislação e Jurisprudência
Projeto da lei nº 292/13: <http://legis.senado.leg.br/mwg-internal/de5fs23hu73ds/progress?id=z5AeHwC-mnza5kCYVQmdx-XM7rimcKsUaa…;
STF, ADC 19/DF – DISTRITO FEDERAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE. Relator (a): Min. MARCO AURÉLIO Julgamento: 09/02/2012. Órgão Julgador: Tribunal Pleno