Criminalização primária: Seleção pelo legislador dos bens relevantes para a sociedade e a consequente figura do delinquente

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Resumo: O artigo se propõe a analisar a conotação subjetiva na produção das normas penais incriminadoras, que culmina na marginalização daqueles que não compactuam com os valores selecionados, os quais, por conseguinte, terão uma maior probabilidade de infringir a norma posta. [1]

Palavras-chave: democracia. legislativo. bens jurídicos protegidos.

Abstract: The article aims to analyze the subjective connotation in the production of incriminating criminal law, culminating in the marginalization of those who do not compactuam with the selected values​​, which therefore have a higher probability of violating the rule laid.

Keywords: democracy. legislature. legal rights protected.

Sumário: Introdução. 1. Criminalização Primária. Considerações Finais. Referências.

Introdução

Propomo-nos a analisar o fenômeno de criminalização primária, caracterizado pelo desequilíbrio na composição da função legislativa. Destacaremos que para que todas as classes fossem efetivamente representadas no âmbito desta função, precisaríamos de uma democracia plena. No entanto, no que se refere ao Brasil, nossa democracia ainda é muito formal, e, portanto, não impede que a classe dominante componha, quase que em sua totalidade, as cadeiras do congresso, de sorte a adquirir o poder para legislar.   

Nesse sentido, frisaremos que toda produção tem um cunho subjetivo, sendo assim, a classe dominante elaborara as leis a partir de seus interesses, consubstanciados em seus valores, de modo a marginalizar todos que não compactuam com os valores dos bens protegidos.

1. Criminalização Primária

Adverte Silva (2002, p. 119) que “A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária, em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos; participativa, porque envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos de governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de ideia, culturas e etnias e pressupõe assim um diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses diferentes da sociedade”.

O art. 1º da nossa Constituição da República de 1988 institui de forma expressa a determinação da República Federativa do Brasil como um Estado Democrático de Direito[2], entretanto, muito longe dos ideais democráticos e republicanos, a história revela que no nosso país[3], o interesse privado é entrelaçado ao público, e não raro aquele prepondera sobre este.

Essa situação é agravada porque a maioria do povo brasileiro não é colocada em condições reais de decisão, na medida em que desconhece a importância dos princípios e fundamentos democráticos (voto secreto e o sufrágio universal), determinantes para a expressão de seus interesses. Além do que, desconhece a importância da função legislativa.

Desta maneira, por não ser colocado em condição suficiente para expressar seus desejos e necessidades, máxime pela miséria do nosso povo, este não se utiliza da sua soberania para eleger aqueles que deveriam defender seus interesses, abrindo oportunidade para representantes que não têm sensibilidade e compromisso suficiente para decidir em harmonia com a vontade daqueles que eles representam (GUIMARÃES, 2010, p. 107).

Toda essa situação faz com que a classe dominante, se aproveitando da ignorância do povo, componha o poder legislativo, de sorte a adquirir, por conseguinte, um poder legitimado para elaborar as leis que regulamentarão a sociedade em múltiplas questões.

Em outros termos, o legislativo não trabalha em proveito do povo, buscando o bem comum (coletividade), mas ao contrário, movimenta-se para proteger os interesses de uma classe dominante, os quais são transformados, através de ideologias, em interesses gerais.

Sobre o tema Sabadell (2008, p. 175) afirma que “Estes grupos apresentam a proteção de seus interesses particulares como uma reação legítima de “toda a sociedade” contra o “mal” encarnado na figura do criminoso. Em outras palavras, os referidos grupos possuem o poder de definição dos comportamentos desviantes e conseguem, também, controlar a aplicação das normas jurídicas. Assim sendo, o direito penal protege os interesses dos mais fortes, que são apresentados, ideologicamente, como interesses gerais.

É indiscutível que em uma sociedade plural existam grupos que estão mais próximos das decisões, e que, por isso, utilizam o Estado para o seu sustento. Assim, esse poder de definição, sobretudo no âmbito penal, é imprescindível para que a classe dominante mantenha sua hegemonia na estrutura do poder, uma vez que direciona as instituições de controle social para uma criminalização e neutralização dos comportamentos típicos dos grupos mais afastados (ZAFFARONI E PIERANGELI, 2004, p. 76).

Posto isso, sendo o direito penal o instrumento normativo mais violento para a regulamentação da sociedade, em nosso Estado Democrático de Direito, esse instrumento é limitado por vários princípios que garantem a proteção do cidadão frente ao jus puniendi do Estado, todavia, por oportuno, ressaltaremos apenas o princípio da intervenção mínima, o qual preceitua que o direito penal deverá proteger somente em ultima ratio os interesses mais importantes para a sociedade contra eventuais ataques que os coloquem em perigo. De forma que, a criminalização de uma conduta só poderá ser legitima, se for a única forma possível para a proteção de um determinado bem jurídico, isto é, se outras formas de sansões ou outros meios de controle social forem suficientes para a tutela deste, afasta-se a necessidade de uma atuação penal, vez que pelo princípio da intervenção mínima o direito penal assume um caráter subsidiário (BITENCOURT, 2005, p. 32).

Dito de outro modo, nem todas as ações indesejáveis e imorais serão eleitas como fato típico, e, portanto, como consequência, abrirão a possibilidade de uma solução penal, basta lembrarmos dos conflitos resolvidos na esfera civil e trabalhista. Nesse sentido é importante destacar que a eleição para a tipificação de uma ou outra conduta é norteada pelos valores vigentes no contexto social à época da escolha.

O certo é que em um Estado Democrático de Direito os interesses selecionados pelos legisladores e consubstanciados na norma penal, devem respeitar a pluralidade da sociedade.

Todavia, em que pese “no Brasil assistirmos ao cumprimento de todas as formalidades democráticas atinentes ao processo eleitoral, como voto secreto e o sufrágio universal” (GUIMARÃES, 2010, p. 118), essas garantias “não impedem às elites oligárquicas de recorrerem aos meios de manipulação – abuso de poder econômico, uso abusivo dos meios de comunicação de massa, entre outros – para obtenção do necessário consenso mínimo que as eleve ao poder” (GUIMARÃES, 2010, p. 118).

Em sendo assim, aqueles que têm o poder para legislar, em regra, são da classe dominante, e, portanto, criam as normas incriminalizadoras partindo dos interesses inerentes a sua classe, estampados em seus valores.

Assim se posiciona Baratta (1999, p. 176), “No que se refere ao direito penal abstrato (isto é, à criminalização primária), (…). O sistema de valores que nele se exprime reflete, predominantemente, o universo moral próprio de uma cultura burguesa-individualista, dando a máxima ênfase à proteção do patrimônio privado e orientando-se, predominantemente, para atingir as formas de desvio típicas dos grupos socialmente mais débeis e marginalizados. Basta pensar na enorme incidência de delitos contra o patrimônio (…) e a espécie de conexão que eles determinam com o mecanismo das agravantes e das atenuantes (é difícil, como se sabe, que se realize um furto não “agravado”)”.

No ordenamento penal brasileiro é claramente perceptível à ênfase legislativa na proteção do patrimônio, ora, basta lembrarmos que se, por exemplo, um determinado sujeito subtrair uma coisa alheia móvel, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência, comete o crime de roubo, tipificado no art. 157[4] do Código Penal Brasileiro, já se realizar a mesma ação sem a violência, porém com destruição ou rompimento de obstáculo restará caracterizado um furto qualificado (art. 155[5] § 4º I do CPB).

Por fim, se, ainda na mesma ação, não houver emprego de violência, tampouco a coisa seja subtraída com destruição ou rompimento de obstáculo; abuso de confiança, mediante fraude ou escalada; com emprego de chave falsa ou mediante concurso de pessoas, o furto se qualificará simplesmente pela destreza do sujeito ativo, isto é, pelo fato dele subtrair a coisa usada pela vítima, sem que ela perceba (art. 155 § 4º II do CPB). De sorte a que é quase impossível praticar um crime lesando o patrimônio da classe dominante sem uma circunstância que o qualifique, aumente ou majore sua pena.

Tais leis, por óbvio, tornam marginalizados todos que não compactuam dos valores selecionados para proteção, portanto, é imperioso concluir que os marginalizados serão mais vulneráveis a infringir à norma posta, uma vez que não raro, sua educação familiar não comporta ditos valores, e que inúmeras normas são até contra suas necessidades. De tal modo que a utilização do Estado e do direito pela classe dominante, cria a figura do delinquente[6].

Nesse sentido, não é demais constatar que a seleção dos bens protegidos, dos comportamentos lesivos e o “caráter fragmentário” do direito penal perde a ingênua justificação baseada sobre a natureza das coisas ou sobre a idoneidade técnica de certas matérias, e não de outras, para ser objeto de controle penal, vez que esse processo de criminalização se direciona aos comportamentos típicos dos indivíduos das classes subalternas (BARATTA,1999, p. 165).

Para um melhor entendimento dos valores da classe dominante na sociedade globalizada, que serão colocados na criminalização primária (norma abstrata), é necessário nos reportarmos à atual doutrina econômica neoliberal, uma vez que essa doutrina tem como objetivo a expansão do mercado consumidor, e, consequentemente, transforma os cidadãos em consumidores, excluindo todos que não ostentarem esta condição.

Essa sociedade de consumo tende a criar em países como o Brasil um grupo que “não responde à dialética explorador/explorado, senão a uma relação de excluído e incluído. O explorado contava, era tido em conta e estava dentro do sistema; o excluído não conta, está sobrando, é um descartável que não serve, só atrapalha” (ZAFFARONI, 2003, p. 35-36).

Em sendo assim todos aqueles que não puderem consumir segundo as leis do mercado, serão marginalizados e deverão ser contidos, a fim de não atrapalhar o “poder” de consumo dos demais membros privilegiados da sociedade. Afinal, os “não consumidores” serão impulsionados para tal comportamento, ora, quem não deseja andar segundo as leis do mercado?

É o que bem observa Elbert (2000, p. 68-69), “Existe um modelo de classe média alta, com várias casas e carros, em que a fartura é a palavra de ordem, ao luxo e ao desperdiço, se somam a esnobação e a opulência, se contrapõe uma classe de miseráveis em que o mínimo para sobrevivência não existe, imperando, sim, a fome, a doença e o desespero. Como conceber que em tal sociedade possa haver disciplina social, segundo a qual as massas famintas adotem bons modos e não molestem aqueles cujos modos de vida se traduzem, via de regra, em excessos”.

É notória a extrema valorização do patrimônio na sociedade atual, porém, lembramos que o Brasil nasceu desigual, sendo um dos nossos maiores problemas sociais a falta de distribuição de renda, máxime porque nunca na história do país tivemos políticas públicas sérias que incluíssem aqueles historicamente excluídos.

Considerações finais

É indiscutível que em uma sociedade plural existam grupos que estão mais próximos das decisões, e que, por isso, utilizam o Estado para o seu sustento. Assim, esse poder de definição, sobretudo no âmbito penal, é imprescindível para que a classe dominante mantenha sua hegemonia na estrutura do poder, uma vez que direciona as normas incriminadoras para os comportamentos típicos dos grupos mais afastados.

É mister que se estabeleça a diferença entre o discurso dogmático ensinado nas universidades e a realidade, principalmente no âmbito punitivo, vez que, no Brasil o discurso de defesa social e de manutenção da paz, não passam de ideologias para a perpetuação da desigualdade social, o que atenta, de plano, ao Estado Democrático de Direito.

Não temos uma sociedade com interesses uniformes, mais ao contrário, uma diversidade de interesses, todavia, a classe dominante através da utilização do Estado e do direito, estabelece seus valores, por meio de ideologias, como se fossem anseios de todos, e por consequência cria a figura do delinquente, através da criminalização primária.

 

Referências
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: Introdução à sociologia do direito penal; tradução Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Lições de direito penal: Parte geral. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 15-50.
GUIMARÃES, Claudio Alberto Gabriel. Constituição, ministério público e direito penal: A defesa do Estado Democrático no âmbito punitivo. Rio de Janeiro: Revan, 2010.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SABADELL, Ana Lucia. Manual de sociologia jurídica: Introdução a uma leitura externa do direito. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. Uma análise histórica da imposição do medo do direito penal aos setores subalternos da população brasileira. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol.90. p. 373-399. São Paulo: Ed. RT, maio-junho, 2011.
ZAFFARONI, Eugenio Rául. Direito Penal brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
_____________________; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

Notas:
[1] Trabalho orientado elo Prof. Dr. Claúdio Alberto Gabriel Guimarães, Doutorado em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (2004) e Doutorado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2006). Professor da Universidade Federal do Maranhão e da Universidade Ceuma e Promotor de Justiça do Estado do Maranhão.
[2] Art. 1º da CF/1988: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito (…).
[3] Maiores detalhes em Holanda (1995).
[4] Art.157 – Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, e multa.
[5] Art. 155 – Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
§ 4º – A pena é de reclusão de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa, se o crime é cometido:
I – com destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa;
II – com Abuso de confiança, ou mediante fraude, escalada ou destreza;
III – com emprego de chave falsa;
IV – mediante concurso de duas ou mais pessoas.
[6] Esse fenômeno não é recente no Brasil, basta lembrarmos a criminalização trazida pelo código penal brasileiro de 1890 da vadiagem (art. 399) e da greve (art. 206), motivada pelas eventuais consequências da abolição da escravatura (WERMUTH, 2011, p. 381).


Informações Sobre o Autor

Kenneson Lima Ferreira

Acadêmico do Curso de Direito da Universidade Ceuma – UNICEUMA


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