Delação premiada

1.
Introdução

Através do presente trabalho,
busca-se um conhecimento maior a respeito do instituto da Delação Premiada,
analisando suas origens e evolução, seus aspectos éticos e jurídicos, e sua
aceitação pela comunidade jurídica e social. Tal matéria é muito pouco
explorada pelos doutrinadores e possui jurisprudência ainda em formação, apesar
da grande relevância que possui para o Direito.

Delação premiada é o instituto pelo
qual um dos acusados de um crime colabora eficazmente com informações
importantes à elucidação do mesmo, permitindo a identificação dos co-autores e
a liberação das vítimas, se houverem, em troca da extinção ou diminuição da
pena.

Com o passar do tempo, as sociedades
evoluíram, se modernizaram, se estruturaram de maneira cada vez mais organizada,
permitindo o desenvolvimento de projetos e o alcance de metas até então
inalcançáveis, buscando saciar os anseios de uma população crescente e
paulatinamente mais complexa. Não obstante, os problemas cresceram na mesma
proporção do desenvolvimento das sociedades, chegando a ponto da criminalidade
se organizar, surgindo o crime organizado.

A partir da profissionalização da
atividade criminosa, com sua atuação hierárquica, sigilosa e a participação de
vários membros, em que necessariamente poucos conhecem o funcionamento e os
integrantes da cúpula da organização criminal, pessoas quase sempre bem
sucedidas e com grande poder em suas mãos, que raramente seriam descobertas
pelos métodos ordinários de investigação, é que se faz necessária a utilização
da Delação Premiada, como forma de estímulo à elucidação e punição de crimes
praticados em concurso de agentes (plurissubjetivos).

De acordo com o art. 5º da
Constituição Federal, que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos,
em seu inciso III, “ninguém será
submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”
. Dessa forma,
é praticamente impossível convencer um criminoso a entregar seus comparsas, o
que resultaria na ira dos demais praticantes do crime, bem como na produção de
provas contra o próprio acusado, sem, ao menos, oferecer-lhe algum benefício em
troca.

2.
Origens e evolução

A origem da Delação Premiada no
Direito brasileiro remonta às Ordenações Filipinas, compilação jurídica que
resultou da reforma do Código Manuelino, como conseqüência do domínio
castelhano (o rei da Espanha era rei de Portugal), permanecendo vigente mesmo
após a queda da Dinastia Filipina, com a ascensão de D. João IV como rei de
Portugal.

As Ordenações Filipinas vigoraram
desde 1603 até a entrada em vigor do Código Criminal de 1830. Em seu Livro V,
que trata da parte criminal, o Título CXVI tratava especificamente da Delação
Premiada, sob a rubrica “Como se perdoará
aos malfeitores, que derem outros à prisão”
, premiando, com o perdão, os
criminosos delatores.

Sempre combalida pelos doutrinadores
e legisladores pela sua inegável carga moral, ética e religiosa, a Delação
Premiada somente foi instituída pelo ordenamento jurídico pátrio através da Lei
nº 8.072/90 (Lei de Crimes Hediondos), que em seu art. 8º, parágrafo único,
dispõe: “O participante e o associado que
denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu
desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços”
.

É bem verdade que institutos dessa
natureza sempre foram rechaçados pela tradição jurídica brasileira. Não
obstante, a partir da década de 90, quando os estragos provocados por
quadrilhas organizadas, que contavam inclusive com a participação de
empresários, políticos e altos funcionários públicos, começaram a ser sentidos
pelo Poder Público e pela sociedade, a reprimenda teve de ser à altura. Dessa
forma, ressurgia a Delação Premiada no Brasil, considerada verdadeira traição
institucionalizada.

A inspiração para emergir tal
instituto no nosso país foi buscada nos Estados Unidos (plea bargain), país que
sempre se utilizou dessa prática durante o período que marcou o acirramento do
combate ao crime organizado, e na Itália (pattegiamento),
na famosa Operação Mãos Limpas, que resultou em um processo de investigação que
permitiu ao país identificar e punir pessoas ligadas a todo tipo de escândalos
envolvendo a Máfia italiana e importantes políticos.

3.
Aspectos éticos

O ponto de partida da Delação
Premiada provoca a mais atávica repulsa moral. Com efeito, a História abomina
traidores. Muito embora a finalidade deste trabalho não seja teológica,
impossível não citar o nome daquele que, até que se prove o contrário,
destaca-se como um dos maiores traidores de toda a história, Judas Iscariotes,
que entregou Jesus a Pilatos em troca de 30 moedas de prata. Quanto à nossa
história, os brasileiros associam a imagem de traidor a Joaquim Silvério dos
Reis, que denunciou os planos dos inconfidentes mineiros em troca do perdão de
sua dívida junto à Fazenda Real.

A importância da confiança
transcende a esfera das relações privadas e atinge todo o corpo social,
inserindo-se no âmbito do interesse público. Na nossa Constituição Federal, no
parágrafo único do seu art. 1º, temos o princípio representativo: “Todo o poder emana do povo, que o exerce
por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta
Constituição”
. Assim, inaceitável não acreditar, ainda que alguns
considerem utópico, na confiança depositada por cada eleitor em seus
representantes.

E não pára por aí, qualquer tipo de
apologia à traição é vista como uma agressão aos objetivos expostos no
preâmbulo de nossa própria Constituição, isto é, um atentado à construção de um
Estado Democrático de Direito e à própria dignidade da pessoa humana,
fundamento basilar da República Federativa do Brasil (art. 1º, III, da CF).

Indubitável a estreita ligação entre
a delação e o espírito antidemocrático, visto que na Alemanha nazista os
alemães recebiam de 2 a 3 mil delações por dia, destinadas a expor a origem
judaica de compatriotas e os hábitos subversivos de alguns indivíduos, bem como
no governo ditatorial do Brasil, marcado por inúmeras prisões efetuadas com
base em denúncias infundadas feitas ao Departamento de Ordem Política e Social
– DOPS.

4.
Aspectos jurídicos

Prescreve o art. 61, II, “c”, do
Código Penal: “São circunstâncias que
sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime: ter o
agente cometido o crime: à traição, de emboscada (…)”
.
Contraditoriamente, os diplomas legais brasileiros ora asseveram a traição,
como exposto acima, ora incentivam a traição, como é o caso da Delação
Premiada.

Sob o aspecto jurídico, a Delação
Premiada rompe com o princípio da proporcionalidade da pena, demonstrando sua
impropriedade quanto a essa feição, visto que se punirá com penas diferentes
pessoas envolvidas no mesmo fato e com idênticos graus de culpabilidade.

5.
Legislação

O instituto da Delação Premiada está
previsto atualmente nas Leis nº 7.492/86, alterada pela Lei nº 9.080/95 (Crimes
Contra o Sistema Financeiro Nacional), 8.072/90 (Lei de Crimes Hediondos),
8.137/90 (Lei de Crimes Contra a Ordem Tributária, Econômica e Contras as
Relações de Consumo), 9.034/95 (Lei do Crime Organizado), 9.613/98 (Lei de
Lavagem de Dinheiro), 9.807/99 (Lei de Proteção às Testemunhas), 10.409/02 (nova
Lei de Entorpecentes), bem como no próprio Código Penal, mais especificamente
no crime de extorsão mediante seqüestro (art. 159, § 4º).

A previsão do instituto em estudo
nas legislações supracitadas demonstra a grande preocupação do legislador em
punir todos aqueles que, valendo-se de sua condição financeira, de seu status social e político, camuflam suas
condutas através de seus subordinados, em que muitas das vezes estes são
punidos e aqueles não.

É de se ressaltar que as legislações
que tratam da Delação Premiada possuem como conditio
sine qua non
para sua concessão a eficácia das informações prestadas pelo
delator. Em termos práticos, não basta a mera delação para que o criminoso se
beneficie, deve resultar a delação na efetiva libertação do seqüestrado, na
hipótese de extorsão mediante seqüestro, na recuperação total ou parcial do
produto do crime ou, nos casos de quadrilha, associação criminosa ou concurso
de agentes, na prisão ou desmantelamento do grupo.

6.
Conclusão

Muito embora a adoção da Delação
Premiada já exponha o reconhecimento da incapacidade do Estado frente às mais
variadas formas de ações criminosas, e demonstre a aceitação de sua
ineficiência ao apurar ilícitos penais, notadamente os perpetrados por
associações criminosas, a intenção revelada é positiva.

É bem verdade que a priori ver o Estado patrocinar a
delação cause ojeriza, inobstante trata-se de verdadeiro “mal necessário”, na
medida em que nenhum direito é absoluto. Com suas vantagens e desvantagens, a
Delação Premiada vem sendo largamente utilizada, às vezes com pouco ou nenhum
critério técnico, mas com resultados satisfatórios.

A delação é uma expressão que
encontra muitos opositores, eis que adquiriu conotação pejorativa, tomando o
sentido de acusação feita a outrem, com traição da confiança recebida, em razão
de função ou amizade. Todavia, em benefício de um Direito Penal funcionalista,
utilitário, pragmático e menos idealista, vem ganhando a simpatia do legislador
pátrio, inspirado na ordem jurídica de outros países, como forma de fazer
frente ao crime organizado.

Certamente a Delação Premiada
continuará sendo amplamente utilizada, independentemente de sua fundamentação
ética, e provavelmente será vista como valiosa, dada a sua utilidade e o medo
que impera da criminalidade crescente. Não obstante, tem fragilizada a sua
aceitação, reconhecida a sua inidoneidade moral e a carência de adaptação do
seu conteúdo à evolução da consciência moral de uma sociedade que privilegia a
dignidade da pessoa humana e rejeita a traição.

Dessa forma, tendo em vista o teor
eticamente reprovável da Delação Premiada e a necessidade de se legitimar a
consecução dos fins individuais e preservar o restante de dignidade do
potencial delator, acreditamos que a aplicação do instituto deve ser relativizada
e restringida sempre que possível.


Informações Sobre o Autor

André Gonzalez Cruz

Assessor de Procurador de Justiça. Membro da Academia Maranhense de Letras Jurídicas. Mestre em Políticas Públicas e Doutorando em Direito


Delação premiada

Os últimos acontecimentos têm trazido à tona a necessidade de análise de alguns institutos jurídicos já existentes em nosso ordenamento jurídico, mas até agora, me parece, ainda muito pouco explorados. Um deles é a delação premiada.

É instituto que deve ser utilizado com cautela e critério para que não se transforme em “joguete” entre os próprios criminosos e em prejuízo da administração da justiça. Imagine-se o exemplo em que, em uma quadrilha de sete integrantes, um delata o outro, um de cada vez, e sucessivamente, até que o último, por eles eleito, não tendo quem “delatar”, acaba sendo o único punido… Não é exatamente o alcance que se pretende com o instituto. Enfim, há inúmeros questionamentos a serem enfrentados em torno do tema.

Ao que tudo indica, a delação premiada encontra a sua origem no  “Acordo” de vontade entre as partes, mas, sem ser “acordo” propriamente dito, revela sua característica e como tal opera efeitos. Não pode ser considerado acordo porque envolve a decisão por uma terceira parte – o Juiz, que não participa da “negociação”. A situação da revelação dos dados existe entre o acusado, diretamente ou por seu Advogado, com o Promotor de Justiça e, ainda que com a expressa concordância por parte deste, a decisão final caberá ao Juiz, por conceder ou não algum benefício como troca.

Instituto pouquíssimo utilizado na prática, mas de enorme eficiência para a justiça penal, sua natureza decorre, entendemos, do chamado “Princípio do Consenso”, que, variante do Princípio da Legalidade, permite que as partes entrem em consenso a respeito do destino da situação jurídica do acusado que, por qualquer razão,  concorda com a imputação. No Brasil, pelo teor da legislação, esta aplicação do Princípio do Consenso pode atingir aquele que colaborou eficazmente com a administração da justiça.

Há Leis diversas que prevêem a aplicação da delação premiada. Citamos como exemplos, a Lei nº  9.034/95, a Lei nº  9.613/98 e a Lei nº  9.807/99. Dentre as questões que advém da vigência de todas elas, estão a forma de aplicação e o seu alcance, mas quer nos parecer que a principal será definir eventual existência de conflito entre as normas. Apresentaremos nossas opiniões nas colunas das próximas semanas, para as quais remetemos o leitor. Já tivemos oportunidade de realizar superficial análise desse tema em colunas anteriores, às quais remetemos o leitor interessado no tema.

Interpretamos, desde logo, que cada uma destas Leis tem sede própria de aplicação, com âmbito definido. Só assim torna-se possível a coexistência de todas, cada uma para determinadas situações, conforme o alcance e o espírito da própria Lei.

Assim, a Lei nº  9.034/95, que "Dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas" deve ser aplicada nas situações em que o acusado, através de sua colaboração espontânea, leve as autoridades ao esclarecimento de infrações penais e sua autoria, de fatos criminosos que não sejam aqueles pelos quais se encontra investigado ou processado – mas por outros fatos que tenham sido praticados por organização criminosa qualquer, inclusive eventualmente a que participe.

A Lei nº  9.613/98, que "Dispõe sobre os crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para o ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, e dá outras providências", torna-se aplicável exclusivamente para os casos em que se investigue a prática de crime de lavagem de dinheiro. Com relação aos crimes associados a lavagem, previstos nos incisos do artigo primeiro da Lei, através dessa interpretação sistemática, deverá ser aplicada, se couber, a Lei nº  9.034/95.

Já a Lei nº  9.807/99, que "Estabelece normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, institui o Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas e dispõe sobre a proteção de acusados ou condenados que tenha voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial e ao processo criminal", ao contrário do que ocorre com a aplicação do instituto na Lei nº  9.034/95, tem âmbito de aplicação em relação aos mesmos fatos, objetos da investigação ou processo criminal, e, diferentemente daquela Lei, podem ser aplicáveis ainda que inexistente organização criminosa.

Há outros casos, como o da Lei n° 7.492/86 (crimes contra o sistema financeiro nacional).

O fato é que a delação premiada deve ser utilizada como instrumento eficiente para o combate ao crime, especialmente organizado, mas com os critérios de forma e momento adequados, no âmbito do processo penal. Carecemos de regulamentação da matéria, ficando a interpretação mais uma vez ao encargo do aplicador da lei.

De toda sorte, tanto melhor que a sua previsão já esteja contemplada nas legislações, que, todavia, sinceramente, necessitam urgentemente de aprimoramento.


Informações Sobre o Autor

Marcelo Batlouni Mendroni

Promotor de Justiça/SP – GEDEC, Doutor em Processo Penal pela Universidad de Madrid, Pós-Doutorado na Università di Bologna/Italia


Delação Premiada

1. Introdução

O instituto da delação premiada, de evidente notoriedade nos dias atuais, não é produto de criação recente no ordenamento jurídico brasileiro, mesmo assim demorou até que o legislador pátrio se embrenhasse na regulamentação normativa, e quando assim passou a proceder, novamente se descuidou de certas cautelas das quais não poderia olvidar.

Embora a legislação esteja sujeita a críticas variadas, a intenção revelada é positiva, não obstante a só adoção da delação premiada já exponha o reconhecimento da incapacidade do Estado frente as mais variadas formas de ações criminosas, e demonstre a aceitação de sua ineficiência ao apurar ilícitos penais, notadamente os perpetrados por associações criminosas, grupos, organizações criminosas, quadrilha ou bando, alicerçados em complexidade organizacional não alcançada pelo próprio Estado.

Em si mesma, premiada ou não, a delação dá mostras de ausência de freios éticos; pode apresentar-se como verdadeira traição em busca de benefícios que satisfaçam necessidades próprias em detrimento do(s) delatado(s), conduta nada recomendável tampouco digna de aplausos.

Em relação à delação premiada, o que se vê é seu surgimento quando há desajuste entre os envolvidos; quando um se sente prejudicado pela persecução penal (em sentido amplo) e desamparado pelo(s) comparsa(s). O desespero, a simples intenção de beneficiar-se, ou ambos, constitui o mote da delação. Não há qualquer interesse primário em colaborar com a Justiça; não há qualquer conversão do espírito e do caráter para o bem; não há preocupação com o que é realmente justo e verdadeiro; não há, enfim, motivo de relevante valor moral para a conduta egoísta. Porém, dela se vale o Estado na busca da verdade real; dela se utiliza a Justiça na busca de sua finalidade mediata: a paz social.

Além das questões éticas, outros problemas podem ser identificados, e dentre eles podemos citar, por exemplo, a possibilidade do instituto gerar a “acomodação”, a apatia da autoridade incumbida da apuração, pois, passando a contar com a possibilidade de delação não poderá deixar de dedicar-se com mais afinco na realização de seu ofício; é possível que a delação proporcione de forma proposital o desvio no rumo das investigações, ainda que temporário, porém, com reflexos negativos à apuração da verdade etc.

Com suas vantagens e desvantagens, a delação premiada vem sendo usada largamente, e muitas vezes com pouco ou nenhum critério técnico, tanto que se tem notícia de vários casos em que houve delação premiada, porém, nada ficou documentado visando a “segurança do delator”, e exatamente por isso nada foi comunicado nos autos do processo criminal a que se vê submetido, apesar do êxito das investigações realizadas a partir da delação. Em conseqüência, muitos delatores acabam colaborando com as investigações e depois não recebem os benefícios inicialmente apresentados na barganha que envolve a pretensão punitiva, a revelar, mais uma vez, condenável violação ética patrocinada pelo Estado; verdadeiro estelionato. De tal situação também decorre a necessidade de se pensar sobre a incidência dos efeitos da delação em sede de execução penal.

É necessário destacar ainda o espetáculo midiático absolutamente reprovável que já se proporcionou com a exposição de personalidades políticas envolvidas em delação premiada, com inegável streptus, quando a cautela recomendava caminho diverso até mesmo em razão do disposto no art. 20 do CPP, a determinar que o inquérito policial é sigiloso.

A propósito do tema é interessante frisar ainda que muitos dos envolvidos em investigações que passam por delitos extremamente graves, se dizendo inocentes, postulam a delação premiada, situação que está por impor profunda reflexão.

2. Hipóteses reguladas

Não há uma única lei regulando as hipóteses de delação premiada, e não há padronização no tratamento do instituto, do que decorrem inúmeros questionamentos, os quais obviamente não podem ser enfrentados neste trabalho de contornos reduzidos, daí limitarmos as rápidas reflexões a apenas alguns pontos escolhidos, inclusive em razão do conhecimento geral que se presume quanto ao cerne da questão, a dispensar outras considerações além daquelas lançadas acima.

A Lei 8.072/90, denominada “Lei dos Crimes Hediondos”, foi quem abriu o caminho para a introdução da delação premiada no ordenamento brasileiro, e isso em razão do disposto no parágrafo único do seu art. 8º, que assim dispõe: “O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de 1 (um) a 2/3 (dois terços)”.

A hipótese regula causa especial de diminuição de pena, reclamando que algum integrante de quadrilha ou bando (art. 288 do CP), aceitando sua responsabilidade penal, apresente informações à autoridade (policial, judiciária, ou ao representante do Ministério Público), de forma a possibilitar seu desmantelamento (da quadrilha ou bando).

Há uma reflexão que se deve fazer em relação ao reclamado desmantelamento: não há necessidade de comprovação futura no sentido de que a quadrilha ou bando deixou de atuar, se desfez completamente.

Não seria razoável exigir que para a redução de pena o delator tivesse que contar com a comprovação de evento futuro e incerto, e sendo assim, para usufruir o benefício basta que as informações apresentadas sejam aptas à elucidação do emaranhado criminoso investigado, com resultado exitoso em termos de tornar possível a responsabilização penal.

Também a Lei 9.034/1995, conhecida como “Lei de combate ao crime organizado”,[1] assim como a Lei 9.613/1998, “Lei de lavagem de capitais”, e a Lei 9.807/1999, intitulada “Lei de proteção das vítimas e testemunhas”,[2] cuidaram de regular a matéria.

Por fim, mais recentemente, a Lei 10.409/2002, a “Nova Lei Antitóxicos”, também procurou tratar do assunto, o fazendo em seu art. 32, que segundo entendemos não têm eficácia jurídica.[3]

Conforme seu § 2º: “O sobrestamento do processo ou a redução da pena podem ainda decorrer de acordo entre o Ministério Público e o indiciado que, espontaneamente, revelar a existência de organização criminosa, permitindo a prisão de um ou mais dos seus integrantes, ou a apreensão do produto, da substância ou da droga ilícita, ou que, de qualquer modo, justificado no acordo, contribuir para os interesses da Justiça”.

Infere-se de sua complexa redação que, para a obtenção dos benefícios elencados não é necessário que o indiciado revele a existência de organização criminosa à qual pertença.

A revelação poderá referir-se a qualquer organização criminosa.

A conclusão decorre da análise comparativa que se deve fazer com as disposições contidas no § 3º do art. 32, que se refere à revelação, eficaz, “dos demais integrantes da quadrilha, grupo, organização ou bando…”.

Para os fins do disposto no § 2º, a revelação deve ser feita pelo indiciado antes do oferecimento da denúncia, pois, “se o oferecimento da denúncia tiver sido anterior à revelação”, a regra aplicável será a do § 3º.

No § 3º do mesmo art. 32 há outra hipótese de delação premiada. Segundo o texto legal: “Se o oferecimento da denúncia tiver sido anterior à revelação, eficaz, dos demais integrantes da quadrilha, grupo, organização ou bando, ou da localização do produto, substância ou droga ilícita, o juiz, por proposta do representante do Ministério Público, ao proferir a sentença, poderá deixar de aplicar a pena, ou reduzi-la, de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços), justificando a sua decisão”.

 Ao contrário do que dispõe o § 2º, o § 3º pressupõe que o destinatário dos benefícios elencados deve fazer parte da quadrilha, do grupo, da organização ou bando que delata (“dos demais integrantes”). Por outro lado, também para os fins do § 3º, fazendo-se uma interpretação gramatical de seu texto, não há necessidade de que os produtos, as substâncias ou drogas ilícitas sobre as quais venha a recair a apreensão causem dependência física e psíquica.

Verificados os requisitos legais (“revelação eficaz”), o juiz, por proposta do representante do Ministério Público, ao proferir a sentença, poderá deixar de aplicar a pena, ou reduzi-la de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços), justificando a sua decisão.[4]

3. Considerações finais

Observadas as variações no regramento, e por considerar a delação premiada um verdadeiro “mal necessário”, o que se espera é o aprimoramento das estruturas normativas, tanto quanto possível, buscando evitar resultados danosos à eficácia da justiça e proporcionar benefícios verdadeiros à sociedade.

Notas
[1] “Tendo os réus fornecido à polícia dados fundamentais relativos às pessoas que os haviam contratado para transportar a droga, como nomes, endereço e número de telefone, o que propiciou a identificação de alguns dos integrantes da quadrilha, resta caracterizada a chamada ‘delação premiada’, devendo os réus serem beneficiados com a causa especial de diminuição da pena, prevista na Lei n. 9.034/95” (TRF, 2ª Região, Ap. 98.02.43451-5-RJ, 2ª T., j. 23-11-1999, rel. Juiz Cruz Neto, DJU de 10-2-2000, RT 776/706).
[2] “O reconhecimento de réu colaborador, nos termos do art. 14 da Lei n. 9.807/99, somente se dará se o mesmo, efetivamente, colaborar na polícia ou em juízo, e não quando flagranteado à vista de informações coletadas pela autoridade policial” (TJAC, Ap. 02.000923-2, Câm. Crim., j. 2-8-2002, rel. Des. Eliezer Scherrer, v.u., RT 808/652). “O perdão judicial e a causa de diminuição da pena, previstos, respectivamente, nos arts. 13 e 14 da Lei n. 9.807/99, decorrem da delação contra os demais partícipes ou co-autores do crime, feita de maneira voluntária pelo co-réu, de modo a dispensar a espontaneidade, mas somente têm aplicação quando o crime é praticado por três ou mais agentes” (TJMG, Ap. 178.113-7/00, 1ª Câm., j. 22-8-2000, rel. Des. Zulman Galdino, DOMG de 18-10-2000, RT 786/699).
[3] Renato Marcão. Tóxicos – Lei 6.368/1976 e 10.409/2002 anotadas e interpretadas. 2ª ed., São Paulo, Saraiva, p. 589.
[4] Renato Marcão. Ob. Cit., p. 589.

Informações Sobre o Autor

Renato Flávio Marcão

Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes e em cursos de pós-graduação em diversas Escolas Superiores do Ministério Público e da Magistratura. Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP). Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP).


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