Ao elaborar este estudo tive por objetivo primordial
destacar as dores e os sofrimentos da
mulher: vítima histórica do poder
dos dogmas religiosos e da prepotência dos dogmas jurídicos. O médico
que detém de conhecimentos médicos, tecnológicos e científicos, capacitado,
portanto, para curar, minorar a dor e até
de salvar vidas humanas, não pode
ser punido na antecipação do parto de
feto anencefálico.
O feto ainda não existe, pois não está no
mundo. O seu único “mundo”, ou lugar, é o ventre materno. Os dogmáticos religiosos e os do direito posto consideram o feto
mais importante que a saúde física, mental e social da mulher. O feto tem
apenas a expectativa
de tornar-se pessoa e assim adquirir
personalidade jurídica se nascer com vida viável; isto é, a de iniciar a existência que se consubstancia no estar no-e-com o mundo.
Por outro lado, o feto anencefálico é
possuidor de deformação congênita irreversível, ou seja, inviável para a vida e
para a existência. A antecipação do
parto ainda não legalizado
constitui do momento
oportuno para o magistrado criar a norma
do caso concreto para fazer prevalecer o
Direito, porque não há
regra jurídica que obrigue a
mulher (preferencialmente a pobre) – permanente vítima de nossas leis obsoletas
– abrigar no ventre (a
monstruosidade de) um ser anencéfalo.
Magistrados sensíveis à realidade da
vida têm autorizados a
interrupção da gravidez,
quando confirmado por conclusivos laudos médicos, de enfermidade incurável
ou deformidade anatômica e estrutural de feto sem nenhuma possibilidade
de vida viável após o parto. Enquanto seres racionais, não podemos nunca duvidar da razão, mesmo quando se
constata o inusitado e a irracionalidade
de decisões morais e judiciais que dizem respeito à saúde
de todas a mulheres. Como já enfatizou Fabio Konder Comparato: “estamos todos nas
mãos dos nossos Juízes”. Portanto, para o bem ou
para o mal.
Por fim, o
presente trabalho representa tão-somente o meu ponto de vista à questão
do aborto terapêutico (antecipação do parto de feto anencéfalo) em que as
mulheres pobres estão entre
as principais e
indefesas vítimas do sistema legal com
suas interpretações divorciadas
da realidade e submetidas
também aos seculares dogmas religiosos. Contudo, os dogmas jurídicos
podem ser mutáveis
quando transformados em problemas,
pois o Direito é dinâmico!
A interpretação literal
do nosso arcaico
Código Penal no concernente
ao aborto mostra-se
insuficiente para compreender
a realidade e
a violência perpetrada
pelo Estado contra a única vítima
desta tirania exegética:
a mulher pobre.
Mãe da Humanidade,
a mulher pobre é punida covardemente pela inquisição dogmática dos operadores do Direito, condenando-a abrigar no ventre (a monstruosidade de) um ser anencéfalo. Ela
tem de ocupar um lugar ao sol, dispor de peso e voz na sociedade civil. Gerando a morte ao invés da vida, não há
consolo porque
a história da humanidade tem sido até o momento a
história do próprio sistema capitalista.
É sabido que neste sistema os
princípios são humanos, porém a realidade é chancelada nas diversas formas de violências e nas
diferentes modalidades de fraudes. A ordem capitalista tem mostrado que não é
uma fase transitória do processo histórico, mas a forma absoluta e definitiva da
produção social. O nosso sistema capitalista é tosco e brutal, pois não oferece
à maioria dos cidadãos um padrão de vida decente, um mínimo de segurança e de
igualdade perante a lei. O Direito posto e imposto à coletividade tem a sua
origem na produção econômica.
A maior vítima é, sem dúvida, a mulher pobre,
pois é mantida na ignorância e é
dominada pelo poder coercitivo de normas jurídicas caducas e injustas que não
buscam a pacificação social, mediante hermenêutica favorável à dor e ao intenso
sofrimento dela. Os seus apelos não são ouvidos nem fazem eco na consciência dos
privilegiados e dos poderosos.
A escolha, em se tratando de aborto em sentido
amplo, será sempre da competência exclusiva
da mulher, pois é dona do seu corpo e da
inalienável liberdade de agir, não obstante sofrer da interferência abusiva dos dogmas jurídicos e
religiosos, os
quais constituem em verdadeiro abuso de direito tal
invasão em sua intimidade e
estrita privacidade. Por outro lado, o sistema jurídico e os seus operadores ainda
não conseguiram superar os dogmas e as
contradições, cujas decisões judiciais são ainda muito prejudiciais à saúde
da mulher e em especial
a da mulher
pobre.
Assim se manifestou, sem rodeios, o
Jornalista e Articulista da Revista Veja, André Petry: “…. o
STF deu guarida ao autoritarismo
religioso pelo qual todos têm de viver sob os ditames da fé – queiram ou não,
sejam crentes, sejam ateus. Afinal, a liminar não obrigava mulher alguma a interromper a gravidez de um feto sem
cérebro. Apenas autorizava o aborto às mulheres que, torturadas pela dor
psicológica de gerar um filho que
morrerá ao nascer, quisessem fazê-lo. A idéia, generosamente humana, era
conceder a elas o direito de fugir do suplício de dar à luz um filho que, já em
sua primeira noite, em vez do berço, deita no caixão” (1)
Uma das vozes mais poderosas que impera no social é
a dos formadores de opiniões,
verdadeiros dominadores das
mentes e corações do público, em que a mulher
pobre aceita passivamente, talvez por estar em avançado estado de alienação, toda uma situação que lhe é tremendamente
prejudicial. Na realidade, o Direito é uma superestrutura erigida sobre a base
de relações econômicas e de poder que tem o Estado como instrumento de
dominação. Inexiste neutralidade
do Direito posto e imposto nas leis, pois as relações de produção são
regulamentadas sempre no interesse da classe dominante cujos detentores do poder utilizam da
ideologia jurídica como instrumento de persuasão. Atualmente, dada às
correlações de forças, é sabido que a mulher pobre
continuará sendo ainda a maior perdedora, no sentido
de exigir que a ideologia jurídica dominante seja interpretada de
maneira favorável à sua situação. É
preciso que
os operadores do Direito comprometidos
com a felicidade e a dignidade de todas as mulheres, e
em especial da indefesa
mulher pobre, encontrem
formas de enfrentar a prepotência
dos dogmas jurídicos.
Na ideologia do sistema capitalista
estão insculpidos
princípios humanísticos, explicitadas na nossa
Lei Maior: Constituição Federal. Porém, a
realidade brasileira é constituída basicamente de mulheres pobres com suas
crianças, cujo incipiente
sistema capitalista é
paradoxalmente infame e perverso,
tal como se nota na limitada
democracia. Até quando o Brasil continuará sendo o mais desigual entre os
desiguais? E também o mais injusto entre os
injustos?
Ponto de partida interessante para
começar a vencer barreiras
somente ocorrerá quando o poder dos
operadores do Direito estiver
comprometido na solução jurídica e judicial dos problemas brasileiros e
quiserem praticar a máxima do
progressista jusfilósofo Roberto Lyra Filho: Para um Direito sem Dogmas.
E sem esquecer
das análises e ensinamentos do
nosso maior cientista social do século XX: Florestan
Fernandes. Mestre dos mestres, foi considerado pelo
historiador Eric
J. Hobsbawm um dos cinco maiores cientistas sociais e
intérpretes de nossa época (2). Em suma,
o Direito é
então absorvido na própria lei. Vitória do positivismo jurídico que tem na
dogmática a sua razão de ser.
Asseverou Roberto Lyra Filho, com a
competência de profundo conhecedor desta
realidade, que “o
dogma, afinal, atravessa a história das idéias como uma verdade absoluta, que
se pretende erguer acima de qualquer debate; e, assim, captar a adesão, a
pretexto de que não cabe contestá-lo ou
a ele propor qualquer alternativa”
(3). Por outras palavras, é o dogma a
verdade absoluta, aceita às cegas e sem crítica, beneficiando sempre a classe dominante (do momento). As normas jurídicas estatais são exemplos
acabados do
dogmatismo ao defenderem o caduco, pois combatem
tudo que é
novo e de
essência progressista, sobretudo
na ilegalidade inútil do
aborto “lato sensu”, cujas
vítimas preferenciais são,
indubitavelmente, as mulheres pobres.
Na Religião Cristã sobressai o catolicismo
com os seus dogmas como extensão
da palavra de Deus, que é tão-somente uma idéia (Adendo: Ressaltou Camus que: “Se Deus existe, tudo depende dele e nós nada podemos fazer contra a sua vontade. Se não existe, tudo
depende de nós. Tanto para Kirilov como para Nietzsche matarmos Deus
(crime metafísico) é tornarmo-nos nós
próprios Deus; enfim é tornar-se
Deus – ou seja, é realizar nesta Terra
a vida eterna de que fala o Evangelho…” … Por outro lado, “O homem não fez mais que inventar Deus para não se matar. Assim se resume a história
universal até este momento” – O Mito de Sísifo, p. 122/123). A
teologia é feita sistematicamente sempre a partir das massas
oprimidas e nunca a partir das elites do poder.
As Religiões universais são insidiosas para com as
massas; buscam seres obedientes que
serão domesticados como fiéis e uma vez
acostumados a essa experiência repetida vezes
serão incapazes de renunciar a
abstração de um Deus todo poderoso.
Assim sendo, na certeza de que o feto
é anencéfalo
o teólogo e o positivista jurídico,
ambos presos na camisa-de-força
dos dogmas, procuram as fontes da vida
numa autópsia! Todos os anencéfalos,
se ainda vegetativamente vivos no ventre materno, morrem logo após o parto.
Não se vislumbra nos dogmas nenhuma
perspectiva libertadora nem indícios de transformarem-se pelo menos culturalmente, porque todo o Direito é
arbitrariamente reduzido à
norma jurídica formalizada e em
decisão fossilizada (injusta e retrógrada). Ou seja, para
o positivista o Direito é um saber dos dogmas, repetidos infinitamente à
exaustão. A não-autorização judicial da
antecipação do parto é
porque “alguns juízes são
absolutamente
incorruptíveis. Ninguém consegue induzi-los a fazer Justiça” (Bertolt
Brecht). É em nome da
segurança jurídica que se quer que o juiz proceda maquinalmente
como juiz obediente à literalidade da lei,
alheio aos valores do humanismo e
principalmente à circunstância da vida
e da existência
das mulheres pobres.
Todavia, a responsabilidade histórica será a do
juiz monocrático que vai obrar
a difícil missão de fazer progredir o Direito, adaptando a ordem jurídica posta à
evolução das circunstâncias protetoras
da indefesa mulher pobre. Se
a circunstância é autorizar a interrupção da gravidez em razão da mulher
carregar no ventre desde
já um natimorto, o magistrado que assim decidir
estará não só fazendo a justiça do caso concreto mas projetando na eqüidade a solução de que o Juiz
deve estar subordinado ao Direito (e não simplesmente ao texto da lei e de norma jurídica injusta e anacrônica)
e à realidade da vida social. Em ponderação
pertinente, o eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio
Mendes de Farias Mello
assim se manifestou sobre
o tema: “O Judiciário não pode se fechar em torno de si mesmo, omitindo-se,
furtando-se de participar dos destinos da sociedade… A sociedade quer, sim,
juízes, e não semideuses encastelados em torres de marfim… O juiz
tem de ser um cidadão atento ao cotidiano da comunidade em que vive, em vez de
robô repetidor de leis. Só assim será sensível para proferir decisões sábias”.
(4)
(“Tudo oscila
com o tempo” – Pascal; “ O meu campo é o tempo” – Goethe; “O inferno não
existe. Todos os demônios estão aqui” – Shakespeare)
Não basta apenas reconhecer o paradoxo; é preciso superá-lo. A mulher pobre, aprisionada no mundo concentracionário dos homens e
excluída do bem-estar social, é
submetida a mais esta violência: levar
desde já no ventre
um natimorto e por vários meses até o parto. Há magistrados que são déspotas; há
magistrados que
são indiferentes; há magistrados que são
análgicos. Ou
seja, desaprenderam
a pensar a dor e o sofrimento ínsitos na condição humana.
A mulher é a mãe da humanidade e é
por isso que o humanismo reverencia este ser humano, sabendo que há o
elo básico de interdependência
entre a mulher e o
feto. Após o diagnóstico da anencefalia, ela
tem a certeza de que não está gerando vida mas morte, para não dizer que é durante toda a gestação do anencéfalo um caixão ambulante. Assim, não ocorrerá o bem-estar físico, psicológico e social
dela, porque os
seus olhos e
todo o sentir
estão voltados para a morte. A vida inviável a deixou mentalmente ferida e com ela
o sentimento de que
não será mãe.
Os operadores do
Direito ainda presos aos dogmas religiosos costumam repetir com indisfarçável arrogância
que as mulheres estão condicionadas ao
sofrimento. Por quê? Nos primórdios da Religião e da Igreja havia o
consenso, depois transformado em dogma,
que os gritos angustiados das mulheres agradavam a Deus, um
prazer que não lhe devia ser tirado.
Durante muito
tempo a
Igreja proibiu remédios que aliviassem as dores do parto justificando que tal conduta contrariava a
vontade de Deus. Enfim, o sofrimento exclusivo que hodiernamente está submetida a mulher
pobre também não chega a causar compaixão nem dos Senhores
da Igreja nem da
maioria dos operadores do Direito que detêm do poder da função para concretamente utilizarem dos dogmas jurídicos em desfavor da
saúde da mulher: negando peremptoriamente o aborto terapêutico ou de
antecipação do parto de fetos portadores de anencefalia
ou de outras
síndromes incuráveis
etc.
É verdade banal que deve ser
repetida, pois na área da
saúde mental é deveras conhecido que uma gravidez indesejada imposta pode causar sofrimento em todos os níveis:
psicológico, social, econômico, intelectual e espiritual. Em resumo, forçar
a mulher, e principalmente a indefesa
mulher pobre, a carregar
no ventre um feto sem vida viável até o final da gravidez é uma das mais
profundas feridas que podem ser infligidas à sua mente e ao seu corpo. Não há como mudar o dogma religioso para
fazê-lo aceitar a realidade da vida privada e social das mulheres pobres e que
são as únicas a sofrerem desnecessariamente. O feto anencéfalo
não pode ser mais importante que a mãe!
Logo, o reino cristão não é deste mundo!
No entanto, resta o paradoxo: ou não
somos livres e Deus
todo-poderoso é responsável pelo mal, ou somos livres e
responsáveis mas Deus não é
todo-poderoso. Logo, a
circunstância cruel e desumana de levar adiante uma gravidez indesejada ultrapassa na
mulher pobre a sua experiência individual. A quem apelar se se trata de feto portador de doença incurável e
fatal? O Código Penal comodamente arrola as causas de excludente da
criminalidade (Artigo 128 e incisos), não punindo o médico nas hipóteses ali
descritas. Médicos e
magistrados não podem
ficar indiferentes ao destino
das indefesas mulheres
pobres. Médicos sensíveis e
humanizados tudo
farão para preservar a
saúde física e mental da mulher, isto é,
o seu bem-estar pessoal, familiar e social.
Magistrados não análgicos
nem dogmáticos autorizarão
(sem culpa nem remorso) a interrupção
da gestação de feto possuidor de malformações congênitas ou com enfermidade
incurável. Assim decidindo, não
fazem somente a justiça
inadiável que o caso concreto pede, mas também homenageiam as suas mães e as
mulheres despossuídas, alienadas,
exploradas e maltratadas por
todos os dogmas. O feto anencéfalo é
um ser desconhecido
que apenas sobrevive vegetativamente. Não tem consciência nem nunca terá; desconhece
o que é dor e sofrimento porque está totalmente amparado no útero, porém o seu
destino é a morte, ou dentro do
ventre, quando comprometerá a saúde da própria mulher
colocando-a em risco de morte, ou
logo após o parto. Afinal, os
paradoxos continuam vigentes: Se
Deus não existe, é impossível demonstrá-lo; mas se existe, é um disparate
querer demonstrá-lo.
A diferença entre Deus e o homem
reside no pecado. Infelizmente, é a fé religiosa que também costuma guiar a maioria dos
magistrados no mundo do Direito, misturando os dogmas religiosos com o
Direito feito de dogmas.
Neste mundo insensato de absurdos e de dogmas, cabe ao magistrado superar estes estados de
coisas mediante tomada de consciência
para que transforme todo dogma em
problema.
No fundo de
toda problemática jurídica está a terrível força histórica do capitalismo, indissoluvelmente unido
aos dogmas, quando
proclama o Deus-Dogma de sua
sobrevivência: o dogma do lucro, com o poder real e efetivo de derrogar toda e
qualquer lei conforme a sua necessidade.
É imperativo moral, ainda não amparado
no sistema jurídico, da autonomia
da mulher decidir se quer prosseguir, ou
não, na gestação até ao final, em se
tratando de fetos incuráveis e fatalmente doentes. Esta decisão está fundamentada no livre arbítrio
de querer ou não de cessar gravidez indesejada e de alto risco à sua
saúde. É, antes de tudo, decisão íntima
dela pela antecipação do parto. Extrair um ser inviável
para a vida e também para
a existência do seu ventre não pode constituir crime,
pois tal crime é impossível, por tratar-se justamente não de aborto
“strictu
sensu”
mas de antecipação do parto; por
isso o médico não pode
nem deve ser criminalizado.
Todos têm a capacidade de evoluir, inclusive os
operadores do Direito,
pautados nos avanços tecnológicos da medicina e
nos conceitos científicos. Como a
indefesa mulher pobre
poderá vencer a tragédia
proporcionada “inocentemente” pelos dogmas
jurídicos e religiosos que se
mostram como realidades imutáveis? Mutatis Mutandis
encontramos a explicação
na psicoterapia ao
asseverar que é difícil mudar qualquer realidade psicológica
enquanto ela permanecer
indefinidamente inconsciente. O inconsciente tem
a força de controlar os atos da pessoa (mulheres
pobres, magistrados e outros operadores do Direito) e
será somente na
tomada de consciência
que poderá haver luz
para a libertação.
Por exemplo, o
círculo vicioso da pobreza só será rompido quando os pobres chegarem
à conclusão de que só sairão da situação
de penúria e de miséria em que se encontram
ao planejarem o tamanho de suas
famílias.
A mensagem dita humanitária dos
religiosos é a de proibir o aborto, recusando-se dar às mulheres – mulheres pobres – o que precisam para
alimentar os filhos. É constatação universal que as mulheres e as crianças são as primeiras a
sofrer quando os recursos se tornam escassos. Não há nada mais cruel do que o sofrimento de uma criança! Por vivência e até intuitivamente todas as mulheres esclarecidas e responsáveis sabem
da inviabilidade de ter um filho que jamais será auto-suficiente. É uma
escolha íntima e privada.
As mulheres sempre exigiram o
direito de praticar
a anticoncepção e
o aborto. Por todo o mundo, a pobreza é uma realidade para as mulheres, especialmente para as mães. Se a mulher decidir interromper a
gravidez e fomos buscar as suas mais íntimas razões, estas estarão
assentadas na premissa de que é vergonhoso ter um filho que não poderá ser
cuidado adequadamente. Por conseguinte, o aborto propriamente dito é “essencialmente
uma questão de saúde pública. O aborto malfeito está entre as principais causas
de morte de mulheres no Brasil (mulheres pobres, é claro, que não tem dinheiro
para recorrer às boas casas do ramo)… O aborto não é um direito desejável, é
um direito necessário” (5)
É preciso reconhecer que a mulher pobre está cansada
– lassidão física, mental e
espiritual – das
vicissitudes do cotidiano, dos
dogmas legais que não compreende e
do absurdo de ter
de carregar no ventre um natimorto. Tudo, enfim, conspirando para agravar a sua dor
moral e o
sofrimento físico e mental. Sem entusiasmo nem esperança, resta-lhe
combater o desespero
que lhe toma o ser na força da solidariedade
emprestada de seres humanos generosos, a fim de superar o impasse criado pelos poderosos (insensíveis e
até inumanos) que a
mantém nesta situação de
extrema injustiça. Martinho
Lutero com palavras
terríveis assim se manifestou: “Se as mulheres ficam exaustas e morrem no
parto, nada há de errado nisso; deixem-nas morrer na hora de dar à luz, elas
foram criadas para isso”. O aborto é pecado (tipificado
dogmaticamente também como crime), mas a morte de milhões de mulheres por aborto
clandestino não é.
É imperioso deixar registrado as relevantes
reflexões pertinentes de Ginette Paris: “Para ter permissão para matar homens,
mulheres e crianças, cheios de vida e
plenamente cônscios do sofrimento, é necessário uma fórmula simples – uma
declaração de guerra… Quando as mulheres resolvem abortar, é em nome dos
mesmos princípios invocados pelos fabricantes de guerras: liberdade e
autodeterminação – questões de dignidade tão importantes quanto a
própria sobrevivência. Os seres
sacrificados em abortos não sofrem como as vítimas de guerras e
desastres ecológicos. A diferença de pensamento entre aquele que faz a
guerra e o que é contra o aborto pode ser explicada pela divisão de poder sobre a vida e a morte entre homens e
mulheres. Os homens têm o direito de
matar e destruir, e quando
o massacre é chamado de
guerra, eles são pagos para
fazê-lo e homenageados por suas
ações. A guerra é santificada, e até
abençoada por nossos líderes religiosos. Mas se a mulher decide abortar um feto, que nem tem aparelho neurológico para
registrar o sofrimento, as pessoas ficam chocadas. O
realmente chocante é que a mulher
tem o poder de fazer um
julgamento moral que envolve uma opção de vida ou de morte. Esse poder é
reservado aos homens… As mulheres dão a
vida, e os homens, como heróis de
guerra, são provedores de morte… A
necessidade de controlar o corpo e a
alma das mulheres está na raiz das
religiões patriarcais… Ao longo dos
séculos, os milhões de mulheres que morreram de aborto em
condições horrorosas foram na realidade
sacrificadas, vítimas do
dogma religioso” (6)
Por outro lado, a
mulher movida por conduta humana altamente altruísta, de exemplar abnegação e
generosidade, apesar de
saber, com a
mais absoluta certeza,
que está gerando no
útero feto anencefálico, poderá levar a
gravidez até o final para que os órgãos sejam doados. Repita-se: o feto anencéfalo somente
sobreviveu porque o corpo da mulher é dotado de todos os meios
naturais para a mantença da vida intra-uterina.
A vida
inviável extra-uterina do anencefálico irá
proporcionar vida à criança que receber o órgão dela cuja doação de órgãos possa dar um sentido humanitário e este triste acontecimento, aliviando o
sofrimento de outros doentes acometidos de doenças graves mas
recuperáveis. O recém-nascido anencefálico
não apresenta possibilidade alguma de recuperação, inclusive por motivos anatômicos, por não
possuir o córtex cerebral nem de ser dotado de estruturas anatômicas
próprias que presidem as funções
superiores. Na realidade
constata-se a ausência completa ou
parcial da calota craniana e dos tecidos que a
ela sobrepõem deixando parte do cérebro exposto.
Em conseqüência, o
feto anencefálico é
gravemente deficiente no plano
neurológico. Falta-lhe
as funções que dependem do córtex e, portanto, não somente os fenômenos da vida
psíquica mas também a sensibilidade, a mobilidade e a integração
de quase todas as funções
corpóreas. Em suma,
a anencefalia é uma condição letal e
normalmente nenhum neonato
sobrevive além dos três
dias.
É imperioso acentuar
que o feto anencefálico possui irreparável falência cerebral. Ele só
se mantém vivo, biologicamente falando, porque está
ligado ao corpo da mulher e é o seu
aparelho biológico que mantém
a “sobrevida” precária deste feto anômalo, condenado
à morte. Assim, a morte
encefálica do feto é certa
e que a
biológica ocorre durante
o parto ou
logo após “nascer”, isto é, a expulsão
de um ser
para o mundo. O feto
anencefálico
não é
pessoa e também não
pode ser comparado
a situação em que se encontra o recém-nascido que
teve posteriormente morte encefálica
não originária de
qualquer deformação intra-uterina, pois
neste caso é pessoa.
Em face do exposto, para adquirir o status de pessoa
precisa nascer com vida viável e com
saúde, quando inicia a personalidade civil (sujeito de direitos, deveres e
obrigações). Qualquer discussão doutrinária fora deste fato é inócua e
estéril. É falta de honestidade
intelectual dos operadores do Direito negarem os avanços da medicina tecnológica, assim
como não é possível negar a Ciência e a Razão, cuja interrupção da gestação
somente deverá ocorrer se a mulher assim decidir, sobretudo se o feto
possuir malformações congênitas ou enfermidade incurável.
Se comprovada, portanto, a
inviabilidade da vida extra-uterina do feto tornar-se-á necessário o aborto terapêutico. Por outro lado, os defensores do direito
dogma recusam a acompanhar a evolução tecnológica e da
precisão dos diagnósticos médicos, esquecendo-se da mulher
pobre –
é a que realmente sofre da indiferença e da insensibilidade dos
poderosos. O dogma jurídico recusa aceitar a
verdade contida nos fatos da vida; despreza o fato social e a razão nele
encerrado; nega os avanços tecnológicos dos aparelhos de
diagnósticos médicos; enfim, a própria
prova científica irrefutável que autoriza
a antecipação do parto ao afirmar que o feto não possui
qualquer condição de sobrevida por ser
portador de malformações graves e totalmente incompatíveis com a vida. O dogma
religioso também não respeita a existência
e a dignidade da mulher… da mulher pobre!
Finalmente, é preciso repetir à
exaustão que a anencefalia é para a
medicina uma anomalia fatal porque a vida está condicionada a atividade
cerebral. É, contudo, de uma perversidade ímpar obrigar a mulher
pobre, pois é a única a levar à exaustão este sofrimento
de quem está condenada a viver e a
sobreviver na pobreza, a
carregar no ventre um natimorto. É a
manifestação suprema do
poder dos dogmas jurídicos e religiosos
ao ignorar o Direito da Mulher
que está
consubstanciado no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Porém, há
magistrados comprometidos
com a
saúde da mulher pobre e
que são guiados no dia-a-dia para atender aos fins
sociais e às exigências do bem comum na aplicação do Direito têm autorizados a cirurgia para a retirada de
fetos anencefálicos ou possuidores de outras anomalias incompatíveis com a vida extra-uterina.
Para que prevaleça a concretude
dos fatos da vida é preciso humanizar o
(poderoso) operador do direito dogmático. O fato concreto não pode diluir na
abstração, pois o conteúdo é mais importante que a forma. A existência
da mulher é muito mais
importante que a expectativa de
vida de feto com vida extra-uterina
inviável. Portanto, a saúde
da mulher é bem mais importante
que a do feto, mormente se é portador de deformidade irreparável e fatal ou
está acometido de doença incurável. Por outro lado, é
direito da mulher decidir se
deseja prosseguir na gestação, ou não.
Não pedimos para nascer! E se estamos no mundo é porque somos
amados. Concluo este breve
estudo sobre tema que diz respeito a
todas as mulheres cônscias de
suas responsabilidades de mães, nas
acertadas e iluminadas ponderações de Ginette Paris: “Até
hoje o aborto tem sido julgado de acordo com o dogma cristão; é pecado porque é
proibido pela Igreja, e a
Igreja não pode mudar de posição, pois está escrito na Bíblia, e se
começarmos a mudar o dogma escrito a
realidade toda ruirá. As religiões
monoteístas baseadas num livro
(cristão, judeu, muçulmano)
funcionam de acordo com códigos escritos (dogma), que
divide o comportamento em
pecado e virtude,
de uma vez por todas. Mas, tão
logo adotemos uma perspectiva
mais global e menos
dogmática, podemos ver a loucura
que é sacrificar a mãe pelo bebê,
a estupidez dos procedimentos obstétricos que
só consideram o
conforto e a segurança do feto
(como se a mãe
e filho não fossem
interdependentes), e a loucura de
uma posição moral que
força as mulheres a ter filhos quando a primeira necessidade de
uma criança é ser querida”. ( 7)
Notas:
(1)
Revista VEJA de 27/10/2004
(2)
Florestan ou
Sentido das Coisas – Boitempo Editorial, 1998, p. 11
(3)
Para um Direito
Sem Dogmas – Sergio Antonio Fabris, 1980, p. 12
(4)
Artigo
publicado na
“Folha de S. Paulo” de 30/12/2001, sob o título:”Dias Melhores se Avizinham”
(5)
Revista VEJA
de 17/08/2005 – Articulista André Petry
(6)
O Sacramento
do Aborto – Editora Rosa dos Tempos, Rio de Janeiro, 1992, p. 36/37
(7) op. cit., Ginette Paris
Informações Sobre o Autor
Antonio de Assis Nogueira Júnior
Funcionário Público Federal do Quadro Permanente da Secretaria do E. Tribunal Regional do Trabalho da 2a. Região – São Paulo – no exercício do cargo de Analista judiciário. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU – São Paulo. PÓs-Graduação não concluída na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Licenciatura Plena do Curso de Estudos Sociais na Faculdade Ideal de Letras e Ciências Humanas de São Paulo