Sumário: 1. Introdução – 2. Algumas regras para um
Direito Penal de intervenção mínima – 3. Ligeiras reflexões sobre a realidade
do Direito Penal brasileiro – 4. Algumas cautelas necessárias – 5. Sobre a lei
9.099/95 – 6. Sobre a lei 9.714/98 – 7. E a prevenção penal? – 8. Conclusão.
1. Introdução
Muito se
tem discutido sobre a crise do Direito Penal, no Brasil e no mundo, e a
discussão sobre o tema centra suas idéias fundamentais na necessidade de se
rever o instituto da pena privativa de liberdade, as práticas punitivas em
sentido amplo; de se estabelecer mecanismos despenalizadores ou
descriminalizantes que passam pela intervenção mínima e pelos sistemas
consensuais de justiça penal; a criação de um Direito Penal administrativo, como espécie dissidente do Direito
Penal classicamente conhecido, que a partir de então poderia passar a ser
chamado de Direito Penal de justiça[1];
de acentuar a aplicação das
denominadas penas alternativas, ou substitutivos penais, como é da preferência
de vários estudiosos da matéria, chegando-se ao extremo da proposta
abolicionista, bem a gosto de Louk Hulsman.
Como a
dinâmica social, a dinâmica dos estudos com base filosófica e cunho científico
vem proporcionando várias reflexões, ao que tudo indica, mais na sociedade e
nos aplicadores do direito, do que na maioria das autoridades que integram os
Poderes Legislativo e Executivo, como provam as legislações mais recentes (pelo
menos da última década), marcadas pela ausência de rigor técnico, fontes
inesgotáveis de discussões jurídicas evitáveis e que só fazem tumultuar as
instâncias recursais, sem contar, é claro, o característico distanciamento que
se cria e sustenta diante dos anseios da sociedade e da comunidade jurídica, só
superado pelo descaso explícito com relação a falta de estrutura que envolve a
segurança pública lato sensu.
É
evidente que a legislação penal brasileira precisa ser revista, contudo, não
para se criar novas figuras penais, despenalizar condutas, aumentar ou reduzir
drasticamente as penas, sem qualquer critério conhecido e aceitável, como vem
ocorrendo. Por primeiro, destaca-se no panorama atual a necessidade de se rever
a prática legislativa, estabelecendo
rigor científico, sem descuidar da dogmática e dos princípios que informam a
ciência penal, e, num segundo momento, administrar
a segurança pública, ao menos aparelhando os mecanismos já existentes, de
forma a viabilizar sua efetivação. Conforme asseverou José Carlos G. Xavier de
Aquino[2],
é chegada a hora de enxergar o sistema de uma forma científica, com os pés no chão e os olhos na realidade.
A bem da
verdade, é passada a hora de se agir
da forma acima sugerida.
Assim, o
objetivo do presente trabalho é apenas estabelecer algumas considerações sobre
a influência das Leis 9.099/95 e 9.714/98 no Direito Penal brasileiro,
destacando alguns aspectos que distanciam o ideal normativo da realidade prática, tão evidentes e de
resultados deletérios.
2. Algumas
regras para um Direito Penal de intervenção mínima
No dizer
de Maurício Antonio Ribeiro Lopes[3],
“o princípio da intervenção mínima foi produzido por ocasião do grande
movimento social de ascenção da burguesia, reagindo contra o sistema penal do
absolutismo, que mantivera o espírito minuciosamente abrangente das legislações
medievais. Montesquieu tomava um episódio da história do direito romano para
assentar que “quando um povo é virtuoso, bastam poucas penas”;
Beccaria advertia que “proibir uma enorme quantidade de ações indiferentes
não é prevenir os crimes que delas possam resultar, mas criar outros
novos”; e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão prescrevia que
“a lei não estabelecesse senão penas estritas e evidentemente
necessárias” (art. VIII)”.
Conforme
assevera Claus Roxin[4],
o direito penal é de natureza subsidiária. “Ou seja: somente se podem punir
as lesões de bens jurídicos e as contravenções contra fins de assistência
social, se tal for indispensável para a vida em comum ordenada. Onde bastem os
meios do direito civil ou do direito público, o direito penal deve
retirar-se”.
Estabeleceu-se,
nessa ordem de idéias, que o direito penal deve ser considerado a ultima ratio da política social,
demonstrando a natureza fragmentária ou subsidiária da tutela penal. Só deve interessar ao direito penal e,
portanto, ingressar no âmbito de sua regulamentação, aquilo que não for
pertinente a outros ramos do direito.
Bem ao
contrário da política criminal e da recomendação doutrinária que ora se adota,
vemos no Brasil um direito penal absolutamente desproporcional aos limites de
seu âmbito científico, vale dizer, há muito no direito penal que não é, ou pelo
menos não deveria ser, de direito penal.
A denominada inflação legislativa no âmbito
do direito penal, desproporcional à realidade que a recebe, e desacompanhada de
qualquer estruturação administrativa para a aplicação efetiva das normas, gerou
o caos normativo e a desordem prática, de maneira que não se pode afirmar, com
segurança, qual o pensamento do legislador penal brasileiro; qual a finalidade do direito penal brasileiro, e de
conseqüência, qual a finalidade da pena no direito brasileiro.
É
preciso delimitar o âmbito de interesse do direito penal, e saber que o sucesso
da intervenção mínima pressupõe,
também, um mínimo de condições de
aplicabilidade das normas, o que reclama, no mínimo, uma legislação técnica e coerente, além da necessidade de
estruturação dos órgãos de jurisdição, e aparelhamento dos mecanismos de
execução das penas.
3.
Ligeiras reflexões sobre a realidade do direito penal brasileiro
Com
arguta visão e notável poder de síntese, Jorge Henrique Schaefer Martins[5]
assim descreve a realidade nacional: “…a criminalidade tem raízes muito
mais profundas que uma análise rápida pode expor: a problemática social, a
perspectiva de ascensão célere no meio marginal, impensável com o dispêndio de
trabalho honesto, a excessiva procura por drogas, a ganância, o desprezo pelas
gerações futuras, tudo produzindo o crescimento desordenado da marginalidade,
em contraposição às dificuldades do Estado em preservar a segurança dos
cidadãos, seja pelo não aparelhamento e pela má remuneração daqueles dela
encarregados, como pela visão míope do problema. Acresce-se a isso o fato de o
sistema carcerário brasileiro ser considerado como um dos piores do mundo,
devido à superlotação nas prisões e à violação dos direitos humanos”.
Por
isso, correta a afirmação de Marco Antonio de Barros[6]
no sentido de que “a dignidade do Direito Penal está seriamente abalada em
nosso País”.
Não são
poucas, evidentemente, as causas que concorrem para o descontrole dos índices
de criminalidade, que só fazem crescer.
A maior
razão da propalada crise de efetividade da jurisdição, e da pena, no direito
penal brasileiro, decorre da ausência de uma adequada visão do problema e da ausência de uma política criminal
acompanhada de legislação correspondente. Conforme advertência de Claus Roxin[7],
“o direito penal é muito mais a forma, através da qual as finalidades
político-criminais podem ser transferidas para o modo da vigência
jurídica”.
As
estatísticas revelam o aumento quantitativo da população, o baixo
aproveitamento em todos os graus de ensino, a ausência de capacitação
profissional da maioria, os índices de desemprego. A educação é falha e os
estímulos para uma boa formação moral são quase inexistentes, restam pequenos
oásis. A má formação das crianças e adolescentes, a desesperança, os exemplos
de impunidade, a ausência de punição severa em relação aos crimes graves, os
domínios do crime organizado, do crime globalizado e do narcotráfico, os
incontáveis problemas sociais, são só alguns fatores, que aliados ao descaso
para com a Justiça, contribuem de forma decisiva para a elevação dos índices de
criminalidade.
Em
contrapartida, sem que se perceba qualquer preocupação, e principalmente um
agir efetivo, no sentido de viabilizar a eficácia dos órgãos incumbidos da persecução penal em sentido amplo, e de
proporcionar a completa aplicação da Lei de Execução Penal[8],
que é de 11 de julho de 1984, o legislador se prodigaliza na criação de leis e
mais leis penais, para que não sejam cumpridas. Leis confusas,
pessimamente elaboradas, que só fazem
tumultuar as lides penais e as instâncias recursais, conforme acima afirmado,
difundindo insegurança e incerteza junto a população e aos profissionais
compromissados com a distribuição da justiça.
Como
marco inicial da última década, no tocante aos “equívocos”
legislativos que provocaram incontáveis discussões e recursos criminais
evitáveis, utilizo mais uma vez as palavras do Magistrado Jorge Henrique Schaefer Martins[9],
que assim se expressa: “Dentre inúmeros exemplos, destaca-se a redação do
Estatuto da Criança e do Adolescente que, buscando resguardar o objeto de suas
deliberações, criou parágrafos únicos aos arts. 213 (estupro) e 214 (atentado
violento ao pudor), nos quais estipulava formas qualificadas quando tais tipos
de delitos fossem praticados contra crianças. Ocorre que o ECA só passou a
viger seis meses após sua publicação e, nesse ínterim, entrou em vigor a Lei
dos Crimes Hediondos, que redesenhou as penas previstas pelo caput dos dois artigos do Código Penal
mencionados, tornando-as muito mais gravosas. Esqueceu-se o legislador, no
entanto, de mencionar expressamente a revogação dos parágrafos únicos, os
quais, de forma paradoxal, tratando de condutas qualificadas, continham penas
inferiores aos crimes praticados em sua forma simples. Isso provocou
manifestações doutrinárias divergentes, julgados díspares, por entenderem
alguns ter havido a derrogação da norma inserida pelo ECA, enquanto outros
diziam da imprescindibilidade da disposição expressa. A correção ocorreu
somente anos após”.
Mas não
é só. Num breve rol de imperfeições técnicas, inadmissíveis ao legislador sábio
e prudente, poderíamos citar[10]
a questão da aplicação, ou não, do artigo 9º
da Lei dos Crimes Hediondos; as inúmeras discussões que se estabeleceram
sobre regras dúbias de alguns institutos da Lei 9.099/95; a Lei 9.268/96, que
aniquilou a pena de multa e criou discussões as mais variadas quanto a
legitimação ativa para a execução, o juízo competente, a própria natureza
jurídica do instituto, etc.; a Lei 9.271/96, com a discussão que se instalou
sobre sua retroatividade total ou parcial, ou sua irretroatividade, a natureza
de suas regras (processuais, penais, ou mistas); a “Lei de Tortura”[11],
que permitiu a progressão de regime nos crimes que elenca, mesmo sendo
hediondos, quando há vedação na Lei dos Crimes Hediondos, estabelecendo
discussão também quanto a sua extensão, que não foi explicitada pelo
legislador, que nos parece ter agido de forma desatenta quando da permissão, na contramão do momento; as
impropriedades do Código de Trânsito brasileiro[12]
(até no nome); a “Lei dos Remédios” punindo a
adulteração/falsificação de cosméticos, na mesma intensidade que os remédios
propriamente ditos; e para não alongar demais o rol, a “Lei de Armas de
Fogo”[13], que apenas
em relação a data de sua entrada em vigor permitiu a formação de quatro
correntes jurisprudenciais. Poderíamos citar, ainda, e por fim, a Lei 9.714/98,
conhecida como a “Lei das Penas Alternativas”, cujo rol de
impropriedades e ausência de rigor técnico é maior do que a própria lei.
4.
Algumas medidas necessárias
Adotando-se
o direito penal de intervenção mínima para o modelo brasileiro, é inafastável a
necessidade de se proceder a um estudo profundo, por Doutores no assunto,
providenciando-se uma proposta em termos de codificação dos tipos penais e
processuais penais, e o necessário no âmbito político-legislativo para as
adequadas modificações, que não podem emergir do pântano atual sem muita
cautela.
Como já
advertia Cesare Beccaria[14]
“uma boa legislação não é mais do que a arte de propiciar aos homens a
maior soma de bem-estar possível e livrá-los de todos os pesares que se lhes
possam causar, conforme o cálculo dos bens e dos males desta existência”.
E arrematava o ilustre filósofo: “Desejais prevenir os crimes? Fazei leis simples e evidentes”.
Tais
mudanças reclamam uma exata compreensão dos limites e do alcance que se deve
dar ao direito penal, deixando para as demais áreas de atividades do Estado
aquilo que a cada uma couber com exclusividade.
À
cada ramo do direito o que lhe pertence, com as sanções correspondentes, onde
houver.
Não
basta, contudo, a mudança na prática
legislativa, que deve pautar por um melhor rigor técnico e científico, de
forma a reduzir o âmbito de atuação do direito penal aos limites de seu efetivo
interesse enquanto ciência, sem provocar aqueles indesejados e evitáveis
debates estéreis decorrentes da prática oposta.
Tais
mudanças, se desacompanhadas de uma necessária reflexão e tomada de postura
frente ao problema da falta de estrutura dos órgãos do Poder Judiciário e de
execução penal (que fazem muito pelas condições de que dispõem), de nada
adianta.
A título
de exemplo, dentro dessa ordem de idéias, calha mencionar que Rui Stoco[15]
apresenta o seguinte rol, que denominou causas supralegais de impunidade (voluntárias, involuntárias, naturais e
culturais): 1. Desaparelhamento do Poder Judiciário; 2. número insuficiente de
Juízes (o Poder Judiciário de São Paulo está com mais de 500 cargos vagos, de
forma crônica, pois não consegue preenchê-los); 3. insuficiência de recursos
para o Poder Judiciário; 4. lentidão da Justiça, provocando a prescrição
retroativa ou intercorrente, em razão dos prazos prescricionais curtos,
principalmente nos crimes não violentos, nos de natureza financeira, negocial,
empresarial e nos delitos decorrentes das relações de consumo; 5. pais que não
educam corretamente os filhos, deixando de corrigi-los adequadamente; 6.
ausência, por parte do professor, de orientação e transmissão aos alunos da
noção de valores sociais e sua preservação; 7. sistema prisional inadequado em
todo o país; 8. carência de penitenciárias, casas de detenção e institutos
penais. 9. desaparelhamento de pessoal e material nas polícias Civil e Militar;
10. falta de preparo e especialização da força policial.
As
advertências não são feitas por acaso, conforme procurarei demonstrar nas
reflexões que seguem.
5. Sobre
a lei 9.099/95
Conhecidas
as ponderações acima, quadro evidente da realidade, não se pode negar a propalada
crise do Direito Penal.
Com
efeito, do interior dessa crise, assevera Edison Miguel da Silva Jr.[16], das suas contradições, emerge a Lei 9.099/95
– parte criminal. Trata-se de algo tão diferente e tão outro que será absurdo
falar em continuidade ou avanço do sistema punitivo – é um novo sistema penal .
Admita-se.
Trata-se de um novo sistema penal, ou, como prefere Maurício Antonio Ribeiro
Lopes[17],
um microssistema de justiça penal,
que apesar de seu pretendido avanço, não está isento de críticas fundadas.
A Lei
9.099/95, dentre tantas inovações, abriga os princípios da oralidade,
informalidade, economia processual e celeridade, objetivando, sempre que
possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não
privativa de liberdade (art. 62). Estabelece a necessária tentativa de
composição civil, que se frutífera acarretará a extinção da punibilidade (art.
74); prevê a possibilidade de suspensão condicional do processo (art. 89), e,
ainda, insere a representação como condição de procedibilidade nas ações penais
por crimes de lesões corporais dolosas leves e lesões culposas (art. 88).
No
tocante aos princípios a prática tem demonstrado que a oralidade continua sendo escrita; a informalidade se ajustou ao
cotidiano, e de certa forma, também a economia processual e a celeridade,
exceto no que tange a inafastável necessidade de expedição de cartas
precatórias nos casos em que a prática de determinados atos devem ocorrer fora
dos limites da comarca processante.
Entretanto, como decorrência da não instalação dos Juizados Especiais, como
determina a Lei, a celeridade fica mitigada, porquanto sujeita à acomodação da
pauta do Juízo Comum.
A
reparação dos danos tem se revelado de difícil alcance, não só em razão das
dificuldades que decorrem da apuração dos valores envolvidos, mas, sobretudo
pela falta de disposição das partes, ou pelo menos de uma delas, que
prefere(m), no mais das vezes, percorrer os caminhos da morosidade na
jurisdição civil.
Em torno
da suspensão condicional do processo as discussões jurisprudenciais e
doutrinárias não são poucas, mesmo assim, quer nos parecer que o instituto tem
alcançado seu objetivo, atendendo ao ideal normativo.
No
tocante a representação do ofendido, como já acentuei em outra ocasião[18],
importa destacar que segundo lição de José Frederico Marques,[19]
a ação penal pública condicionada pode depender de representação do ofendido,
nos casos taxativamente previstos em lei. Embora o crime atinja um bem
jurídico, cuja tutela penal interessa precipuamente ao Estado, figuras
delituosas existem em que a pretensão punitiva somente surge quando o sujeito
privado, que desse bem jurídico é titular, também tenha interesse na punição do
autor da infração penal, e isso por motivos vários, que vinculam a própria
tutela penal ao poder dispositivo do sujeito passivo do crime. Quando mais
acentuada essa subordinação, o Estado transfere ao titular do bem jurídico,
atingido ou ameaçado, o direito de ação e o direito de acusar: são os casos de
ação penal privada. Hipóteses existem, no entanto, em que o interesse público
na punição do crime fica menos subordinado à vontade do ofendido, e, por isso,
lhe não transfere o Estado o direito de acusar, mas tão-só condiciona à sua
provocação o início da persecutio
criminis: são as hipóteses de ação penal pública dependente de
representação.
Nos crimes de ação penal pública
condicionada à representação, esta deve ser o primeiro ato do processo penal em
sentido amplo, cuja primeira fase é o inquérito, de regra, porquanto não
imprescindível, e este não pode ser iniciado sem aquela.
No quadro dos direitos subjetivos, é ela de
natureza pública e se enquadra como notícia de crime, dentre os direitos
emanados do status activae civitatis
da classificação de Jellinek.
Mas a representação não é só notitia criminis,[20]
uma vez que contém indisfarçável sentido postulatório. Quem se apresenta ao
juiz, promotor ou autoridade policial não lhes está dando apenas conhecimento
de um delito, mas também pedindo a prática de atos persecutórios e a própria
propositura da ação penal. E esse pedido nada mais traduz, nos quadros dos
direitos públicos subjetivos, que o exercício de um direito cívico, isto é, de
um direito filiado ao status civitatis.
Esta, aliás, é a conceituação de Battaglini ao estudar o direito de querela.
Adotando os ensinamentos de Tourinho Filho,[21]
cumpre ponderar que, na doutrina, inúmeros juristas têm profunda aversão em
reconhecer a influência da vontade particular quanto à aplicação da lei penal.
Binding, no seu Handbuch, n. 1.706,
apresentou sete inconvenientes e que são conhecidos como o “ato de
acusação de Binding”. Ei-los: 1º. prejuízo do Estado, como titular do jus puniendi e do poder de indultar; 2º.
prejuízo do ofendido, a quem não foi possível apresentar a tempo a
representação, ou que teve um representante inativo; 3º. lesão ao princípio de
justiça de que toda a culpa deve ter sua retribuição; 4º. abandono da
autoridade do Estado ao arbítrio privado; 5º. condições favoráveis ao
criminoso, que, com freqüência, se subtrai à pena; 6º. condição favorável para
o ofendido, que, às vezes, comercia o seu direito e é impelido a extorsões; 7º.
facilidade do representante legal do ofendido para descuidar, sem consciência,
dos interesses do representado.
E segue o Ilustre Professor: “No mesmo
sentido, as objeções de Tolomei, Ottorino Vannini, Ricio, Florian, Ferri,
Maggiore e outros. Maggiore entende que
não se concebe permitir-se tal direito ao particular. Só o Estado é que deve
ser o árbitro sobre o direito de se proceder ou não”.
É certo e reclama destaque, por conseguinte,
que condicionar a ação penal à representação do ofendido restringe
demasiadamente a atividade persecutória do Estado, uma vez que se extingue a
punibilidade, por ocorrer a decadência,[22]
se o ofendido, ou seu representante legal, em sendo o caso, não a apresentar
dentro de seis meses, de regra contados do dia em que se tomou conhecimento de
quem foi o autor do ilícito.[23]
Comentava-se, não faz muito tempo, e as
estatísticas da época comprovaram, que grande parte dos processos criminais em
curso tratava de crimes de lesões corporais dolosas, de natureza leve, e
culposas, notadamente aquelas decorrentes de acidentes de trânsito.
Para resolver o problema do numeroso volume
de processos criminais, qual foi a solução adotada pelo legislador?
O procedimento célere, informal e econômico
da Lei 9.099/95?
Não só.
A solução encontrada e aplicada naquele
momento veio regulada notadamente pelos arts. 88 e 91 da lei que instituiu os
Juizados Especiais Criminais e que
condicionou as ações penais nos crimes de lesões corporais dolosas, de
natureza leve, e culposas, à representação do ofendido. De públicas
incondicionadas passaram a públicas condicionadas.
Foi o que bastou. O resultado da alteração é cediço.
A maior parte das vítimas não oferece
representação. A nosso sentir e experiência, não por opção, mas por falta de
cultura, orientação etc. Contribui para o quadro o fato dos Juizados Especiais
Criminais ainda não estarem instalados conforme estabelecidos em Lei e a
ausência de estrutura, que dificulta a aplicação eficaz das normas ditadas.
No
geral, não se trata de uma visão pessimista, pura e simplesmente. Trata-se da
realidade prática, à qual não corresponde o anunciado ideal normativo.
Com efeito. Também importa destacar que o
Código Penal estabelece em seu artigo 44 que as penas restritivas de direitos
são autônomas e substituem as privativas de liberdade, portanto, aquelas não
são aplicadas diretamente, apenas de forma substitutiva. Mesmo assim, nos
termos da Lei 9.099/95, não se permite, pela via da transação penal, a
aplicação de pena privativa de liberdade. Aplica-se, portanto, de forma direta,
pela via da transação homologada, penas restritivas de direitos ou multa.
E mais.
Sem ingressar na pertinente questão da culpa penal na lei 9.099/95, outros
problemas chamam a atenção quando se põe em prática a citada lei.
Exemplo
claro de inquietação refere-se às
conseqüências do não cumprimento da transação homologada, já que sobre o tema
não há consenso doutrinário e jurisprudencial.
Há quem
entenda que “homologada a transação penal realizada nos termos do art. 76
da Lei n.º 9.099/95, com efeito de coisa julgada, o não recolhimento da multa
imposta possibilita apenas a sua execução, e não o prosseguimento do
feito”[24]. “No
caso de não ser a multa recolhida pelo acusado, caberá ao Juízo promover-lhe a
execução, e não receber denúncia ofertada pelo Ministério Público, eis que, com
a transação homologada, fica exaurida a prestação jurisdicional”[25].
Por
outro lado, não são poucas as decisões no sentido de que “a homologação da
transação penal prevista no art. 76 da Lei n.º 9.099/95 gera, única e
exclusivamente, coisa julgada formal, em face do princípio rebus sic stantibus, e, sendo assim, a partir do momento em que o
autor da infração descumpre o acordo firmado com o Membro do Parquet, não se submetendo às regras de
conduta impostas pela decisão homologatória, o que foi transacionado perde sua
eficácia e surge para o Ministério Público o dever de promover a Ação Penal,
tornando-se insubsistente a transação que não foi honrada”[26].
Quanto a
possibilidade de conversão da transação pecuniária não cumprida, já se decidiu
que “em nosso atual sistema penal não existe mais a possibilidade de a
multa ser convertida em detenção, uma
vez que revogados os arts. 51 e parágrafos, do CP e 182 da LEP, com o advento da Lei n.º 9.268/96, devendo, pois, a
execução da pena pecuniária ocorrer nos termos da nova redação do art. 51 do
CP, c.c. art. 164 da Lei n.º 7.210/84”[27],
e que “é inadmissível a conversão
de pena pecuniária em restritiva de direito a réu condenado ao pagamento de
multa, resultante de transação prevista no art. 72 da Lei 9.099/95, por
ausência de critério legal, devendo tal
dívida ser inscrita para cobrança judicial”[28],
pois, “no sistema do nosso Código Penal jamais houve previsão para
admitir-se a pretendida conversão da
multa em pena restritiva de direitos. Nesse Código, as penas restritivas de
direito só são admitidas como penas substitutivas da pena corporal, não
existindo a possibilidade legal de substituírem a sanção pecuniária. É o que se
infere do que vem disposto no art. 44, caput,
do Código Penal: “As penas restritivas de direitos são autônomas e
substituem as privativas de liberdade…”[29].
Mas
também tem se decidido que “a falta de recolhimento da pena de multa,
acordada na audiência preliminar, enseja a aplicação do art. 85 da Lei dos Juizados Especiais Criminais, i.e.:
será feita a conversão em pena
privativa de liberdade, ou restritiva de direitos, nos termos previstos em lei“[30].
e também que “o art. 51 do
Cód. Penal, com a nova redação que lhe
deu a lei n.º 9.268/96, não impede a conversão da multa em pena restritiva de
direitos; defesa é unicamente sua conversão em pena privativa de
liberdade. Pelo que, se o autor do
fato, havendo aceito a proposta de transação, recusa-se a recolher a multa,
cabe substituí-la por pena restritiva de direitos, v.g.: prestação de serviços à comunidade”[31].
E as
penas restritivas de direitos, decorrentes de transação homologada e não
cumprida? Conversão? Em que? É
constitucional convertê-las em prisão?
Obrigar
o apenado à prestação forçada é
impossível.
E a
estrutura dos Juizados Especiais Criminais, até hoje inexistente?
O ideal
normativo corresponde à realidade prática? Quais as razões?
É
forçoso concluir que a excessiva falta de rigor técnico na elaboração de nossas leis penais tem
levado o aplicador do Direito à preocupações e discussões em todas as instâncias recursais, absolutamente
evitáveis.
Avoluma-se
o rol de inquietações com a ausência de recursos e de estrutura para a
aplicação eficaz da Lei, ainda que nos termos em que se encontra.
6. Sobre
a lei 9.714/98
Quanto
as penas alternativas, outras inquietações surgem.
Nos
termos da antiga redação do art. 44 do Código Penal, antes da Lei 9.714/98, era
possível a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de
direitos, desde que, entre outros requisitos, fosse ela inferior a 01 (um) ano.
O Anteprojeto de Código Penal, que visa
apresentar proposta de mudança na parte
especial do código em vigor, de forma excepcional passou a cuidar das
denominadas penas alternativas, e propunha a possibilidade de conversão das
privativas de liberdade aplicadas, entre outros requisitos, quando não fossem
superior a 02 (dois) anos.
A Lei
9.714/98 passou a permitir a substituição da pena privativa de liberdade não
superior a 04 (quatro) anos, em se tratando de crime doloso[32],
por “penas alternativas”, desde que presentes nos demais requisitos
que elenca.
Impropriedades técnicas contidas na referida
lei permitiram, mais uma vez, discussões as mais variadas, também evitáveis.
Dentre
tantas, destacam-se: a falta de
indicação quanto a natureza da violência a que se refere o art. 44, inc. I, se
real ou presumida, com implicações no tocante aos crimes de estupro e atentado violento ao pudor
tentados, com violência presumida; a questão relacionada aos crimes
dos arts. 129, caput, 146 e 147, do Código Penal, infrações de pequeno potencial
ofensivo que poderiam estar fora do âmbito de alcance das penas alternativas, o
que não deixaria de ser um contra-senso, ou ainda a questão do crime de roubo
próprio, sem violência ou grave ameaça, praticado “…depois de haver reduzido a vítima à
impossibilidade de resistência por qualquer meio”, hipótese que Damásio E.
de Jesus chama de violência imprópria.
A
questão de não se permitir a substituição nas hipóteses em que o réu seja
reincidente em crime doloso, quando o art. 44, § 3º, admite que o juiz poderá
aplicar a substituição, desde que, em face de condenação anterior, a medida
seja socialmente recomendável e a reincidência não se tenha operado em virtude
da prática do mesmo crime.
De
relevância, ainda, mencionar a polêmica que se estabeleceu em torno da
possibilidade de aplicação, ou não, aos condenados por crime de tráfico de entorpecentes, pois não foram poucas as
decisões no sentido de que “a simples alegação de ser o crime hediondo não
obsta a substituição da pena. Se o legislador não fez qualquer restrição nesse
sentido, não cabe ao intérprete fazê-la. Preenchidos os requisitos legais
objetivos e subjetivos, previstos no art. 44 do CP, com as alterações da Lei
n.º 9.714/98, nenhum impedimento existe para que a pena privativa de liberdade,
no caso de crime de tráfico, seja substituída por restritiva de direitos”[33], muito embora tenha prevalecido o
entendimento oposto, segundo o qual “a Lei de Tóxicos por ser especial,
não se submete aos ditames da Lei 9.714/98, pois o crime de tráfico de
entorpecentes revela uma gravidade peculiar, ferindo o equilíbrio social e desestabilizando
a sociedade, tanto assim que, por força de norma constitucional, é assemelhado
aos crimes hediondos, cuja pena deve ser cumprida integralmente em regime
fechado, determinação esta que se mostra incompatível com a substituição de
pena privativa de liberdade por restritiva de direitos”[34].
Comporta
menção, por fim, a duvidosa constitucionalidade da regra contida na parte final
do § 4º do art. 44, quando cuida da conversão da pena restritiva de direitos em
privativa de liberdade em razão do descumprimento injustificado da restrição
imposta, determinando que no cálculo da pena privativa de liberdade a executar
será deduzido o tempo cumprido da pena restritiva de direitos, respeitado o saldo mínimo de trinta dias de
detenção ou reclusão.
7. E a
prevenção penal?
Grande parte das penas decorrentes de transação penal, conforme regula a Lei
9.099/95, não são efetivamente cumpridas.
As razões são por todos conhecidas.
Aceita-se
a transação com aplicação de pena exclusivamente pecuniária. A multa
transacionada não é paga, e como tem prevalecido o entendimento de que resta a
possibilidade de execução da avença, passa-se à dolorosa fase, que nos termos da Lei 9.268/96 remete o credor aos
percalços de uma singela dívida de valor.
Novas
discussões surgem, e para não alongar sobre o tema, basta citar dois aspectos
ainda controvertidos.
Alguns
julgados indicam que parte legítima para a execução da multa é o Ministério
Público, pois “a redação dada pela Lei n.º 9.268/96 ao art. 51 do CP não
autoriza concluir que a reprimenda
pecuniária foi transformada em simples débito monetário, perdendo a sua
natureza sancionatória, tendo sido o termo “dívida de valor” empregado para que
se entenda que a multa terá o mesmo tratamento do crédito fiscal, sendo,
portanto, obrigatória a sua atualização monetária. A Lei n.º 9.268/96, visando
dar mais eficiência, celeridade e força executória à ação de cobrança, aplicou
à ação de execução da pena pecuniária o mesmo regime processual da execução
fiscal, sem, no entanto, revogar o art. 164 da LEP, que confere legitimidade ao
Ministério Público para promover a cobrança do valor da multa”[35].
Outros,
entretanto, sustentam que “desde o advento da Lei 9.268/96, compete ao
Estado, através de seus Procuradores, cobrar dívida correspondente à pena de multa,
imposta em processo criminal (CP, art. 51). O Ministério Público carece de
legitimidade para tal cobrança”[36].
No
tocante à competência jurisdicional, ora decide-se que “a Lei n.º 9.268/96, ao dar nova
redação ao art. 51 do CP, não alterou a competência para a cobrança executória
da pena de multa, que continua sendo do juízo das Execuções Criminais,
regido o processo pelos arts. 164/169
da LEP, e legitimado o Ministério Público para a sua promoção e acompanhamento”[37],
e que, portanto, “o curso da execução deve ter início no juízo das
Execuções Criminais[38],
mesmo porque, se ocorrer algum incidente na execução, o Juízo fazendário não
tem competência para solucioná-lo, a teor do art. 118, § 1º, da LEP” [39].
Ora
decide-se que “a pena de multa, após a modificação trazida pela Lei n.º
9.268/96, deve ser executada pela
Fazenda Pública, sendo o Juízo competente para esta execução o da Vara das
Execuções Fiscais, pois a nova Lei não retirou o caráter penal da sanção pecuniária,
mas apenas passou a considerá-la como dívida ativa para fins de execução, de
tal forma que, para outras finalidades, continua com o mesmo caráter
punitivo”[40].
Sem
contar a existência de decisão no sentido de que “no que concerne à
execução dessa dívida de valor, a qual se conferiu característica de
crédito fiscal, destina-se ao Fundo
Penitenciário Nacional – FUNPEN, matéria essa, de competência legislativa da
União. Diante dessas observações resulta evidente que a competência para
execução da dívida ativa da União, decorrente de multas penais, incumbe à
Fazenda Nacional. Este entendimento já foi esposado por esta Colenda Quarta
Câmara Criminal, na Carta Testemunhável n.º 231.068-3/0. Outrossim, também é de
se concluir que o Ministério Público Estadual também não é órgão fiscal
competente para promover a execução da dívida ativa, motivo pelo qual determina-se a remessa dos autos à uma das
varas da Justiça Federal”[41].
Superadas
as controvérsias, ultrapassados os incontáveis recursos que irão discutir desde
a legitimidade, a competência, índices de atualização, necessidade ou não de
inscrição do valor na dívida ativa, etc, chega-se a um outro problema. Quase
sempre o devedor não tem condições de
pagar. Procura-se bens para a penhora e
tais não são encontrados. Quando penhorados, não surgem interessados na arrematação. Isso para não dizer dos
parcelamentos requeridos, deferidos, impagos, e as incontáveis vistas,
conclusões, intimações, estas, quase sempre desatendidas, e, por fim, o
processo irá aguardar no arquivo, nos termos do artigo 40, da Lei 6.830/80, e
posteriormente ocorrerá a extinção da punibilidade.
Até no momento extremo abre-se nova
discussão, agora no tocante à prescrição, que para muitos regula-se pelo prazo
da dívida ativa, e para outros tantos pelo prazo da prescrição penal. Existem
julgados em ambos os sentidos.
E então
surgem novas indagações. A litigiosidade social-penal foi resolvida
efetivamente? A Lei atende à prevenção especial ou à prevenção geral? Há uma finalidade correcionalista, ou mesmo
ressocializadora? É possível falar em
Defesa Social?
Que não
se queira cogitar a hipótese de retribuição, expiação, nos termos da teoria
absoluta da pena.
Impera, sob a égide da Lei 9.099/95, a mais clara
impunidade.
Este
novo sistema penal, ou microssistema de justiça penal, na forma como se
encontra, da maneira como vem sendo praticado, representa um pré-abolicionismo,
pois, conforme lembra Maurício Martínes Sánchez[42],
os abolicionistas vêem no sistema civil
um modelo que pode substituir o atual sistema penal.
Vale
mencionar que, certa feita, após uma audiência onde ocorreu transação penal,
com aplicação de pena exclusivamente pecuniária, ouvi o autor do fato dizer ao
seu defensor, tranqüilamente: “Se eu soubesse que só pagaria isso por ter
batido nessa mulher que me atormenta a
tanto tempo, já teria batido antes e outras vezes”.
O
resultado final do procedimento sobre o qual fora feito tal comentário não é
menos desalentador. A multa transacionada não foi paga; foi pedido o
parcelamento, que também não foi cumprido, mesmo após inúmeras intimações; não
foram encontrados bens penhoráveis, e a execução aguarda no arquivo o pagamento
espontâneo do débito ou a extinção, como preconiza a Lei 6.830/80.
Dizer,
indistintamente, que a Lei 9.099/95 trouxe um avanço positivo no Direito Penal
brasileiro é algo que necessita ser repensado.
Uma
coisa é a análise do ideal normativo, outra, bem distante, é a constatação dos
efeitos práticos, verdadeiramente deletérios.
Não se
deve esquecer, ainda, que o autor do fato pode aceitar uma proposta de transação
em uma comarca, e na vizinha comarca aceitar uma outra, inobstante a proibição
legal que encerra o disposto no § 4º do art. 76, pois, como é cediço, não há
qualquer controle cadastral sobre os Termos Circunstanciados, de molde a
impedir tal realidade que é de fácil constatação.
A
litigiosidade social não diminuiu com a edição da Lei 9.099/95, ao contrário,
só faz aumentar, não em razão dela evidentemente. Por outro lado, importa
indagar se sua finalidade tem sido alcançada.
Tem se
revelado eficaz o microssistema de justiça penal em apreço? Ou o resultado
prático não importa?
A
resposta é clara: Hoje, não se pode falar que ele é eficaz nem mesmo para
reduzir o número volumoso de feitos criminais.
É bem
verdade que a prestação jurisdicional nos delitos de menor potencial ofensivo
se tornou um pouco mais célere do que
nos processos que não se encaixam nos Juizados Especiais Criminais, todavia, o
resultado tem se revelado muito mais danoso.
Não se
pode deixar de mencionar, também no plano prático, que em muitas comarcas têm
sido realizadas transações penais em casos que jamais sustentariam o
ajuizamento de ação penal. Verdadeiras situações
penais temerárias.
Por onde
se queira ver, o quadro não é alentador.
A
intenção pode ter sido boa, das melhores acredito, contudo, sem as correções
normativas e a necessária estruturação para a efetiva instalação e
funcionamento dos Juizados, a tendência é que se continue a realizar transações
e mais transações, apenas com a finalidade de “encerrar o caso e não ser preciso
voltar mais ao Fórum”, e de reduzir o número de feitos nas estatísticas
das serventias judiciais, sem qualquer preocupação com o direito penal e sua verdadeira finalidade social.
Na lei
9.714/98, mais grave que suas impropriedades técnicas só a realidade no tocante
a execução das penas que encerra.
Faltam
estabelecimentos com disponibilidade para receber os apenados. Não há controle
efetivo do cumprimento das penas, a fiscalização é nenhuma.
Falar
mais é superfetação.
8.
Conclusão
Segundo
Eduardo C. B. Bittar[43],
“o Poder Legislativo é mesmo o coração do Estado, para Rousseau, enquanto
que o Poder Executivo é-lhe o cérebro; se o cérebro se paralisa e o coração
funciona, ainda assim há vida, mas se o coração cessa suas funções, não há mais
vida”.
No
Estado brasileiro o coração funciona muito mal. O cérebro não funciona.
O sopro
de vida restante decorre, sem dúvida, do descomedido esforço da grande maioria
dos aplicadores do direito, em sentido amplo, que de certa maneira ainda
procuram estabelecer alguma ligação entre o ideal normativo e a já insuportável
realidade prática.
Conforme
Cesare Beccaria[44], “em
um povo forte e valoroso, a incerteza das leis é constrangida finalmente a
substituir-se por uma legislação exata”.
Notas:
[1] Lopes, Maurício Antonio Ribeiro.
“Alternativas para o direito penal e o princípio da intervenção mínima”. RT 757/408.
[2] “O cárcere e
o juiz criminal”. Execução penal – Visão
do TACrimSP. São Paulo : Oliveira Mendes, 1998. p. 132.
[3]
“Alternativas para o direito penal e o princípio da intervenção mínima”. RT
757/402.
[4] Problemas fundamentais de direito penal.
Lisboa : Vega, 1986. p. 28.
[5] “Direito
penal no futuro: paradoxos e projeções”. RT
773/476.
[6] “Abalos à
dignidade do direito penal”. RT
747/485.
[7] Política criminal e sistema jurídico-penal.
Trad. de Luís Greco. Rio de Janeiro-São Paulo : Renovar, 2000. p. 82.
[8] Lei 7.210,
de 11.07.1984.
[9] Artigo
citado, RT 773/477.
[10] Sem
preocupação com a ordem cronológica.
[11] Lei
9.455/97.
[12] Lei
9.503/97.
[13] Lei
9.437/97.
[14] Dos delitos e das penas. Trad. Torrieri
Guimarães. São Paulo : Hemus, 1983. p.
92.
[15] “Impunidade – Razões e formas”. RT 742/471.
[16] “Sistema
penal consensual não punitivo – Lei 9.099/95”. RT 762/510.
[17] Princípio da insignificância no direito
penal. São Paulo : Ed. RT, 2000. p. 187.
[18] “Anotações
sobre o crime de furto e sua redação no Anteprojeto de Código Penal”. RT 767/474.
[19] Elementos de direito processual penal. Campinas : Bookseller, 1997. v. I,
p. 316.
[20] Marques, José Frederico. Estudos de direito processual penal. Rio de Janeiro : Forense, 1960. p. 111.
[21] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Processo
penal. 20. ed. São Paulo : Saraiva, 1998. v. 1, p. 334-335.
[22] Art. 38 do CPP.
[23] Marques, José Frederico. Op. cit., p. 317.
[24] TACrimSP, Ap 1.090.985/1, 5.ª Câm.,
rel. Juiz Claudio Caldeira, j. em 09.06.1998, v.u., RJTACrimSP 41/216.
[25] TACrimSP,
RSE 1.102.207/3, 15.ª Câm., rel. Juiz Décio Barretti, j. em 04.06.1998, v.u.
[26] TACrimSP, Ap 1.108.763/8, 2.ª Câm.,
rel. Juiz Osni de Souza, j. em 13.08.1998, v.u., RJTACrimSP 41/92.
[27] TACrimSP,
Ag em Execução 995.713/3, 1.ª Câm., rel. Juiz Pires Neto, j. em 11.04.1996,
v.u., RJTACrimSP 32/78.
[28] STF, HC 78.200-8-SP, 1.ª T., rel. Min.
Octavio Gallotti, j. em 09.03.1999, DJU
de 27.08.1999, RT 771/521.
[29] TACrimSP,
Ag em Execução 1.082.993/3, 1.ª Câm., rel. Juiz Pires Neto, j. em 15.01.1998,
v.u.
[30] TACrimSP, Ap 1.036.129/7, 13.ª
Câm., rel. Juiz Abreu Oliveira,
j. em 10.12.1996, v.u.
[31] TACrimSP,
AE 1.054.295/4, 2.ª Câm., rel. Juiz Silvério Ribeiro, j. em 24.04.1997, v.u.
[32] Se o crime
for culposo não há restrição quanto ao limite da pena.
[33] TJMG, Ap
148.427-8, 1.ª Câm. Crim., rel. Des. Zulman Galdino, j. em 29.06.1999, v.u.
[34]
TJSP, Ap 269.115-3/9-00, 3.ª Câm., rel. Des. Segurado Braz, j. em
25.05.1999, v.u., RT 768/561.
[35] TACrimSP,
Ag em Execução 1.039.721/8, 14.ª Câm., rel. Juiz Renê Ricupero, j. em 28.01.1997, v.u., RJTACrimSP 35/61.
[36] STJ, REsp 184.906-SP, 1.ª T., rel. Min.
Humberto Gomes de Barros, j. em 25.05.1999,
DJU de 1.º.07.1999, RT 768/539.
[37] TJSP, Ag 227.174-3/0, rel. Des.
Gonçalves Nogueira, j. em 17.06.1997, v.u.
[38] TACrimSP,
Ag em Execução n.º 1.045.965-1, 11.ª Câm., rel. Juiz Renato Nalini, j. em
31.07.1997, v.u.
[39] TACrimSP,
Ag em Execução 1.045.375, 15.ª Câm., rel. Juiz Geraldo Lucena.
[40] TACrimSP,
Ag em Execução 1.045.381/7, 4.ª Câm., rel. Juiz Péricles Piza, j. em 18.02.1997, v.u., RJTACrimSP 35/63.
[41] TJSP, Ag
em Execução 267.336-3/2-00, 4.ª Câm.,
rel. Des. Mattos Faria, j. em 02.03.1999, v.u.
[42] La abolición del sistema penal. Bogotá
: Temis, 1995. p. 90.
[43] Teorias sobre a justiça. São Paulo :
Juarez de Oliveira, 2000. p. 175.
[44] Ob. cit., p. 93.
Informações Sobre os Autores
Renato Flávio Marcão
Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes e em cursos de pós-graduação em diversas Escolas Superiores do Ministério Público e da Magistratura. Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP). Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP).
Bruno Marcon