Duração da medida de segurança: entre a intervenção penal e a saúde pública

Resumo: O presente artigo tem por escopo analisar a conflitiva questão versada em torno do limite máximo de duração da medida de segurança. Consoante esculpido no §1º, do art. 97 do Código Penal, a medida de segurança possui duração indeterminada, persistindo até que se comprove, por meio de laudo médico, a cessação da periculosidade do indivíduo. Outrossim, infere-se que, enquanto não sobrestada a periculosidade do paciente, o internamento em hospital psiquiátrico judiciário deve ser mantido. Por outro lado, a Carta Magna, em seu art. 5º, inciso XLVII, alínea “b”, veda expressamente a pena perpétua. Há ainda que se observar o art. 75 do Código Penal, o qual limita o cumprimento da pena em 30 anos. Nesta toada, resta claro a problemática quanto à indefinição do limite máximo de duração da medida de segurança imposta ao indivíduo. Destarte, verificado a natureza patológica da loucura, vislumbrado as correntes doutrinárias jurídicas e médico/psicológicas acerca da matéria, formou-se o entendimento de que a medida de internamento dos inimputáveis há de ter sim uma baliza executória máxima, seja em virtude do tempo máximo de 30 anos, seja em razão do limite máximo da pena abstratamente cominada ao delito praticado.

Palavras-chave: Medida de segurança. Inimputabilidade. Duração. Pena perpétua. Saúde pública.

Abstract: The purpose of this article is to analyze the controversial issue around the maximum duration of the security measure. As sculpted in §1, of art. 97 of the Penal Code, the security measure has an indefinite duration, persisting until a medical report confirms the cessation of the dangerousness of the individual. In addition, it is inferred that, while the patient's perilousness is not undermined, the internment in a psychiatric psychiatric hospital must be maintained. On the other hand, the Magna Carta, in its art. 5, item XLVII, letter "b" expressly prohibits the perpetual sentence. We also have to observe the art. 75 of the Penal Code, which limits compliance with the sentence in 30 years. In this regard, the problem regarding the lack of definition of the maximum limit of the duration of the security measure imposed on the individual remains clear. In order to verify the pathological nature of madness, in view of the juridical and medical / psychological doctrinal currents of the matter, an understanding was formed that the measure of internment of the inimitable ones should have a maximum enforceable mark, either because of the maximum time of 30 years, or because of the maximum limit of the penalty abstractly comined to the crime practiced.

Keywords: Securtiy measure. Incomputability. Duration. Perpetual penalty. Public health.

Sumário: Introdução. Breves comentários sobre a evolução da natureza da loucura e suas medidas preventivas. As medidas de segurança no ordenamento jurídico brasileiro. Natureza jurídica, finalidade, pressupostos de aplicação e outras características. Início da execução da medida de segurança e seu prazo mínimo de cumprimento. Ausência de limite máximo ao cumprimento da medida de segurança. Caso “Zefinha” e as políticas antimanicomiais. Conclusão.

INTRODUÇÃO

O Direito surge como uma necessidade de resolução de conflitos decorrentes das relações sociais. Desde o início do convívio humano em sociedade há punição para aqueles que se comportem em desconformidade com as regras estabelecidas. Assim, a sanção penal surge como resposta para os que violam as normas impostas pelo Estado.

O Poder Público no exercício do jus puniendi possui o poder-dever de aplicar sanção a todo aquele que transgredir norma jurídica. Logo, quando um indivíduo age em desconformidade com o ordenamento jurídico-penal o Estado impõe uma pena, seja para reeducar ou evitar a reincidência do indivíduo, seja para punir. Da mesma forma ocorre com o agente que cometeu delito e é acometido por alguma patologia psíquica. A bem do princípio da isonomia, o Estado trata de forma distinta os indivíduos acometidos por alguma doença mental dos ditos “normais”.

Com a evolução do conceito da loucura, passando-se a vê-la como uma doença que exigia tratamento médico, observou-se que o inimputável[1] deveria receber uma resposta penal distinta daquela aplicada ao imputável. Dessa forma, criou-se a medida de segurança, que entrou no ordenamento jurídico brasileiro em 1940, a fim de dar um tratamento diferenciado ao indivíduo acometido por doença mental que cometeu injusto penal[2].

A medida de segurança trata-se de sanção penal que visa o tratamento médico do paciente para que o mesmo tenha condições de retornar ao convívio social sem oferecer perigo a outrem.

Consoante disposto no §1º, do art. 97 do Código Penal, a medida de segurança perdura por tempo indeterminado até que se comprove, mediante laudo médico, a cessação da periculosidade do agente. Com isso, enquanto não sobrestada a periculosidade o recolhimento do sujeito no chamado manicômio judiciário deve ser mantido.

Com o caos que vive o sistema prisional brasileiro, não é difícil encontrar, diante da falta de tratamento médico adequado, pacientes que ainda não tiveram a periculosidade cessada e por isso não estão preparados para a ressocialização. Inúmeros indivíduos estão internados há anos em hospitais judiciários psiquiátricos, tratando-se, portanto, de uma verdadeira pena perpétua.

Como é que o Código Penal determina que a medida de segurança será por tempo indeterminado se a Constituição Federal, norma suprema do ordenamento jurídico brasileiro, veda taxativamente a pena de caráter perpétuo?

O presente artigo busca uma alternativa a essa indeterminação, demonstrando que o problema não deve ser objeto das ciências jurídicas e sim da saúde pública.

1. BREVES COMENTÁRIOS SOBRE A EVOLUÇÃO DA NATUREZA DA LOUCURA E SUAS MEDIDAS PREVENTIVAS

O conceito de loucura, visto que varia conforme momento histórico, passou pelo caráter místico, demoníaco, até chegar enfim a uma explicação médica científica. Da mesma forma ocorreu com as respectivas medidas impostas aos insanos: foram escorraçados das cidades, embarcados em navios sem destino previamente conhecido, chicoteados e queimados em praça pública, internados nos antigos leprosários e, posteriormente, em casas de internamento. Todas essas medidas eram tomadas com um único intuito: proteger a sociedade do mal da loucura.

Independentemente da natureza da loucura, sempre existiu a preocupação com o potencial ofensivo de determinados indivíduos que, por apresentarem padrões mentais anormais, acabavam por oferecer risco ao convívio social. Durante o decorrer dos séculos, evidenciam-se inúmeras tentativas de entendimento e manejo da patogenia associada às manifestações de anormalidade mental, bem como se tornaram mais frequentes as ações de cunho preventivo que visavam impedir as condutas antissociais as quais violassem diferentes bens jurídicos por parte desses indivíduos afetados por estes tipos de transtornos.

Durante o evoluir desse processo se manteve a consciência, ainda que discreta, de que esses indivíduos mereciam tratamento específico. Assim, cada grupo social, ao seu tempo e seu modo, procurou instituir medidas preventivas de segurança e sistemas sancionatórios adequados a essa realidade, dentro do contexto dos seus costumes, crenças e sistemas político-jurídicos (RIBEIRO, 1998, p. 10).

A mais antiga interpretação das manifestações de doença mental possui caráter mágico místico. Os loucos, na antiguidade, eram considerados indivíduos possuídos por espíritos malignos, tanto que a mais antiga doença mental que se tem notícia recebeu a denominação de epilepsia (epi, o que está acima e lepsis, abater), isto porque se considerava que o mal vinha de cima e abatia o indivíduo (PALOMBA, 2003, p. 03).

Para a Igreja Católica os sinais de loucura eram interpretados como sintomáticos de possessões demoníacas, intimamente ligadas ao profano. Na Idade Média, essa instituição possuiu um poder imensurável. Segundo o historiador José Geraldo Vinci de Moraes, “foi durante os 10 séculos que se costuma chamar de Idade Média que o poder dessa instituição religiosa, juntamente com a fé cristã, cresceu e expandiu-se de maneira colossal (2009, p. 126)”. Assim, através da centralização de seus princípios e da formulação de uma estrutura hierárquica, a Igreja teve capacidade para alargar o seu campo de influência durante esse período, alcançando, inclusive, a loucura.

Com as Cruzadas houve a disseminação da lepra, doença que acometeu milhões de pessoas durante a era medieval. A partir da Alta Idade Média, e até o final das Cruzadas, os leprosários, estabelecimentos que abrigavam os doentes, tinham multiplicado em todo território Europeu.

O leproso era visto como um ser que já carregava consigo uma marca, um estereótipo, com inúmeras atitudes já predeterminadas pela população da época e, por isso, excluído desta. Segundo a Igreja, a existência dos leprosos eram uma manifestação de Deus, no sentido de que foi Este que os criou e os ordenou que viessem ao mundo. Michel Foucault, em sua obra “História da Loucura”, elucida que “se retiraram os leprosos do mundo e da comunidade visível da Igreja, sua existência, no entanto, é sempre uma manifestação de Deus, uma vez que, no conjunto, ela indica sua cólera e marca sua bondade (2002, p. 06)”. Assim, pregava-se que embora afastados da instituição católica e das outras pessoas, os leprosos não estariam afastados de Deus, pois, com paciência e obediência, alcançariam a salvação.

Com o fim da lepra, os leprosários permaneceram. Contudo, esses lugares seriam para sempre um local de exclusão, os quais outros excluídos (inclusive os loucos) seriam para ali encaminhados e esperariam a salvação prometida pela Igreja.

Os loucos eram vistos como manifestação do demônio, intimamente ligados ao profano. Foram submetidos a toda sorte de malefícios e crueldades para que se pudessem supostamente expiar seus pecados muitos deles tendo sido queimados nas fogueiras da Inquisição, por exemplo.

Nessa toada, observa-se que as pessoas acometidas de lepra, loucura e outras doenças, como as venéreas, representavam os excluídos da sociedade, que necessitavam desaparecer da visibilidade das pessoas e, que carregarão para sempre consigo a marca da discriminação.

Na contramão disso, alguns médicos tentaram afirmar a base orgânica da loucura, como o árabe Unhammand que estabeleceu uma classificação das doenças mentais no século IX. Outro nome de grande destaque foi Ali-Husayn Ibn Sina, o qual dedicou um capítulo do seu livro “Princípios da Medicina, a Mania e a Melancolia”. Estes tiveram papel importante na rejeição às questões de demonologia, porém, foi em 1963, com a obra “Da Ilusão dos Demônios” do médico Johann Weyyer que a crença na origem demoníaca da loucura começou a ser sistematicamente refutada (PALOMBA, 2003, p. 5).

A partir disso, a Igreja foi perdendo o seu poder de influência e a loucura tomando um aspecto distinto do que foi imposto pela instituição cristã. Aos poucos a insanidade vai se transformando em algo do interesse geral e, com isso, sendo vista sob outros aspectos.

Pois bem. Ao final da Idade Média, os loucos passam a ser vistos pelos olhos da burguesia emergente como um empecilho a vagar entre os muros das cidades. A preocupação em eliminá-los do convívio social e, consequentemente, aplacar os riscos que esses indivíduos supostamente representavam fazia com que eles fossem rotineiramente escorraçados de uma cidade para outra.

Ademais, em algumas cidades, como Nuremberg, os loucos eram alojados e mantidos ali, no entanto, não eram tratados e sim jogados na prisão (FOUCAULT, 2002, p. 10). Os insanos ficavam internados em hospitais e/ou prisões onde não havia nenhuma preocupação em tratá-los, pois a loucura ainda não era vista sob uma ótica médica, priorizava-se apenas a segregação desses indivíduos do convívio social.

Na segunda metade do século XV, com a peste e as guerras assolando as cidades, o tema da morte surge. O pensamento era que o que domina a existência humana é o fim dos tempos e que ninguém conseguirá escapar. Ocorre que, no final do século esta inquietude gira sobre si mesma: o desatino da loucura substitui a morte e a serenidade que a acompanha. Assim, a substituição do tema da morte pelo da loucura não marca uma ruptura, mas sim uma virada no interior da mesma inquietude. Nessa mesma linha Foucault explica que os elementos inverteram-se, “não é mais o fim dos tempos e do mundo que mostrará retrospectivamente que os homens eram loucos por não se preocuparem com isso; é a ascensão da loucura, sua surda invasão, que indica que o mundo está próximo de sua derradeira catástrofe; é a demência dos homens que a invoca e a torna necessária” (FOUCAULT, 2002, p. 17).

Posteriormente, a loucura torna-se uma das próprias formas da razão. Uma integra-se na outra, de forma que a loucura só tem sentido e valor no próprio campo da razão. A loucura levava à sabedoria e, a razão toma consciência da loucura. Foi então que no começo do século XVII o mundo passa a ser estranhamente hospitaleiro com a loucura.

Muitos dos antigos leprosários europeus, já praticamente sem internos desde o século XV, foram estruturados com o objetivo de abrigar os insanos. Aproveitando a antiga estrutura destinada aos leprosos e posteriormente e conjuntamente aos portadores de doenças venéreas, essas instituições atingiram seu ponto máximo de ocupação no século XVII, na chamada Era Clássica (FOUCAULT, 2002, p. 45).

Para a internação nessas unidades não era preciso nem mesmo a prática delituosa por parte do interno, pois a justificativa para o internamento encontrava respaldo no mau exemplo que a conduta dos loucos, mendigos e vagabundos representava diante da sociedade e a suposição de um risco potencial para a mesma, além de ser nociva aos interesses da burguesia (FERRARI, 2001, p. 16).

Assim, o século XVII foi o auge da criação de casas de internação. Essas casas recebiam não só loucos, mas qualquer pessoa que o Estado achasse que deveria ficar distante da sociedade, tomando, assim, medidas de prisão arbitrárias. Dessa forma, os pobres, os desempregados, os correcionários e os loucos tinham o mesmo tratamento (FOUCAULT, 2002, p. 48).

A medida de internamento funcionou, outrossim, como mecanismo social, abrangendo todos que a burguesia acreditava prejudicar o seu sonho de uma cidade onde deveria imperar a síntese autoritária da natureza e da virtude. O internamento seria uma forma de eliminação espontânea dos chamados por Foucault de “a-sociais”.

A internação ganhou proporção, obtendo caráter de medida econômica e precaução social. Entretanto, em relação ao louco ela indica um evento decisivo: o momento em que a loucura é apreendida no horizonte social da pobreza, da inaptidão para o labor e da impossibilidade de integrar-se no convívio social, é o momento em que começa a inserir-se no contexto dos problemas da cidade.

Já a partir do século XIX, a psiquiatria surge com a chamada fase da psiquiatria clínica, representada por Philippe Pinel e Jean Esquirol, ambos responsáveis pela caracterização da loucura e pela humanização no trato com os pacientes em regime de internação (FERNANDES, 2008).

Pinel tornou-se médico chefe do asilo para homens Bicêtre, em Paris, onde desenvolveu uma nova forma de tratamento aos pacientes doentes mentais. Primeiramente, ele mostrou que havia diferença entre doentes e não doentes, diferente do que se pensava antes, quando todos enclausurados tinham os mesmos adjetivos e eram aglomerados no mesmo espaço. Foucault afirma que “a função médica é claramente introduzida em Bicêtre: trata-se agora de rever todos os internamentos por demência que foram decretados no passado. E, pela primeira vez na história do Hospital Geral, é nomeado para as enfermarias de Bicêtre um homem que já adquiriu certa reputação no conhecimento das doenças do espírito; a designação de Pinel prova por si só que a presença de loucos em Bicêtre já é um problema médico.” (FOUCAULT, 2002, p. 464).

Assim, passou-se a tratar o louco como doente, podendo ser tratado e curado. A loucura passa então a ser objeto da ciência e é de fundamental importância conhecê-la. Pinel fez com que as casas de internação não fossem mais destinadas ao simples depósito humano, mas, a partir de então, vinculadas ao objetivo terapêutico.

Essa nova perspectiva de tratamento rompeu com a cadeia dos alienados, distinguindo vários tipos de psicose e a descrever as alucinações, bem como outros sintomas. Inclui nesse tratamento o contato próximo e amigável com o doente, a discussão de dificuldades pessoais e um programa de atividades dirigidas. A ideia inicial de Pinel sobre o isolamento do doente mental pode ser considerada como razoável, visto que separou os doentes dos demais e ofereceu-lhes tratamento médico, que para época foi satisfatório.

O problema do isolamento iniciou-se a partir do longo período que o doente passava internado, afastado da família e do convívio social. Este fato desencadeou um processo de exclusão e estigmatização do doente mental. Nesta fase, houve relevante avanço dos estudos psiquiátricos devido ao implemento das ciências da biologia aliadas às ciências clínicas, tendo Gustav Fechner como estudioso da psiquiatria experimental. Dentro deste contexto de experimentação e valorização das ciências, o estudo da criminologia também passa a ter papel fundamental dentro do âmbito do Direito Penal (FERNANDES, 2008).

A Escola Cientificista ganha força por defender que o caráter delinquente dos indivíduos é determinado por condições antropológicas, biológicas e sociais (FERRARI, 2001, p. 17). Esse determinismo sustentado pela visão dos positivistas italianos, especialmente, Lombroso, tem por escopo a ideia do criminoso nato. César Lombroso defende que o criminoso é um ser atávico, com fundo epiléptico e semelhante ao louco moral, que é aquela loucura a qual se manifesta com preservação da inteligência, porém com supressão do senso moral. Assim, Lombroso entende que o criminoso é um doente antes que um culpado e que, por isso, deve ser submetido a tratamento e não à punição (MIRABETE, 2007, p. 21).

Como se percebe, a ciência tentou entender o porquê de o indivíduo delinquir, especialmente o insano. Foi aí que houve a necessidade de tratar o doente que cometeu injusto penal de forma diversa e específica, aplicando uma sanção distinta da aplicada ao indivíduo dito são. Foi no século XIX que se percebeu que a pena não impedia o aumento da criminalidade, colocou-se em cheque sua existência naqueles moldes e passou-se a refletir sobre uma nova forma de resposta jurídico-penal.

Repensando o sistema até então aplicado, os estudiosos concluíram pela importância de aplicar métodos preventivos, representados pelo tratamento do delinquente e por sua segregação, como resposta jurídico-penal, em substituição as ideias retributivas aplicadas naquela época.

As discussões sobre a ineficácia da pena e a necessidade de uma resposta jurídico-penal que primasse pela defesa social implicaram no surgimento de correntes distintas: “os adeptos da primeira corrente sustentavam a ideia de que a criminalidade que se apresentava não justificava a criação de uma nova sanção penal. A pena deveria ser a única resposta jurídico-penal aplicada por vezes de forma desvirtuada. Por outro lado os adeptos da segunda corrente proclamavam que o caráter retributivo da pena deveria ser mantido, devendo ser elaborado uma resposta essencialmente preventiva.” (DANTAS NETO, 2012). Ambas as correntes tinham um ponto convergente ao estabelecerem que o Direito Penal não poderia se limitar tão somente a ponderação do crime isoladamente, sem considerar a condição pessoal do infrator e com a finalidade única de punição.

Assim, concluía-se que não havia mais lugar para as ideias retributivas da sanção penal, defendidas pela Escola Clássica e vigentes até então, pois estas não eram suficientes para coibir a criminalidade.

Primava-se agora pela prevenção da reincidência. A intimidação dos infratores e potenciais infratores por sua vez ganhava espaço, preferindo-se prevenir a prática de infrações penais em vez de castigar o infrator. A pena agora não mais visava punir e sim alcançar uma finalidade eficaz motivada na prevenção do crime. Esse novo sistema baseava-se, dessa forma, no caráter preventivo da sanção, tendo seu principal desígnio na prevenção especial, que é quando a sanção penal é dirigida ao delinquente a fim de que ele não volte a cometer crime, sem suprimir, porém a ideia de prevenção geral produzida pela intimidação genérica da coletividade. Assim, mais que a prevenção, traçou-se, ainda, a necessidade de conservação da paz social, justificando, deste modo, a internação do infrator detentor da condição pessoal de inimputabilidade penal.

Uma coisa era certa: o indivíduo acometido por doença mental que praticou injusto penal deveria receber tratamento médico, haja vista tratar-se de uma patologia psíquica, dispensando para isso, o caráter punitivo da sanção penal.

2. AS MEDIDAS DE SEGURANÇA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Como não poderia deixar de ser, os reflexos da evolução das medidas preventivas de segurança no mundo se fizeram sentir no Brasil, onde elas seguiram um rumo crescente de aperfeiçoamento desde a punição diferenciada de menores nas Ordenações Filipinas até a concretização de medidas de segurança propriamente ditas no Código Penal de 1940 e sua posterior retificação na reforma de 1984.

Com a promulgação do Código Penal de 1940, o instituto das Medidas de Segurança toma seu lugar na legislação pátria. Semelhante ao Código Italiano de 1930, o Código Brasileiro baseou-se em um sistema dualista, onde pena e medida de segurança concorrem. Dentro dessas duas possibilidades de sanção, não era possível aos imputáveis e aos semi-imputáveis considerados perigosos, a hipótese de não aplicação da pena, ideia esta fundada no dever de expiação pela culpa. As medidas de segurança poderiam, então, ser aplicadas conjuntamente com a pena, mas não alternativamente, caracterizando, assim, o chamado sistema duplo binário.

Importante para este artigo é mencionar o tempo de duração da medida de segurança no Código Penal de 1940. De acordo com o tempo mínimo de reclusão previsto como pena para cada crime, era definido o tempo de internação mínima que podia variar de seis meses a seis anos. Não havia previsão de tempo máximo de internação, sendo esta extinta apenas e tão somente com a recuperação total do paciente, o que poderia perpetuar. Outrossim, tal instituto penal não se prestava à recuperação do doente metal delinquente, mas tinha em sua constituição, o poder de escamotear a perpetuidade de uma sanção em um chamado benefício de tratamento (FERRARI, 2001, p. 34-35).

Com o passar do tempo, ficou evidente a ineficiência desse sistema de normas elencados no Código Penal de 1940 sob a ótica do duplo binário. O anteprojeto de Código de 1969, que nunca entrou em vigor, já implantava o sistema vicariante[3]. Somente com a reforma penal de 1984 foi que se concretizou esse sistema, além de trazer outras mudanças que visaram tornar a aplicação da medida de segurança mais viável e eficaz e, que serão abordadas no decorrer deste estudo.

3. NATUREZA JURÍDICA, FINALIDADE, PRESSUPOSTOS DE APLICAÇÃO E OUTRAS CARACTERÍSTICAS

Antes de tratar propriamente do limite temporal da medida de segurança, mister se faz analisar alguns tópicos igualmente importantes, a começar pelo conceito, bem como algumas breves noções sobre o instrumento penal em tela.

Por medida de segurança, entende-se o instrumento do Direito Penal que, por meio de tratamento adequado, objetiva impedir que o agente que cometeu injusto penal reincida visando assim à prevenção e, consequentemente, a cura, para que ele volte ao convívio social (FERRARI, 2001. p. 15). Na mesma linha, Guilherme de Souza Nucci ensina que “trata-se de uma forma de sanção penal, com caráter preventivo e curativo, visando a evitar que o autor de um fato havido como infração penal, inimputável ou semi-imputável, mostrando periculosidade, torne a cometer outro injusto e receba tratamento adequado” (NUCCI, 2010, p. 459).

Fernando de Almeida Pedroso define bem a medida de segurança, “Constitui a medida de segurança, destarte, resposta penal dada aos autores de fatos típicos ilícitos que apresentam distúrbio mental que afeta suas faculdades intelectivas ou volitivas, exsurgindo como sanção penal de conotação social protetora e eminentemente preventiva, pois visa, sobretudo, afastar o agente do ilícito típico do convívio social e obstar que ele, por insanidade mental, sem o domínio psicológico de seus atos e, portanto, sem peias ou freios inibitórios que o impeçam de delinquir, venha a reiterar e reproduzir condutas previstas como criminosas.” (grifos nossos) (CUNHA, 2013, p. 260).

Analisando pormenorizadamente a definição supratranscrita, podemos extrair alguns pontos relevantes para entender melhor a medida de segurança: é sanção penal, cabível para agentes que cometeram fato típico e ilícito, portadores de doença mental a qual prejudica o entendimento do caráter ilícito da conduta, bem como do indivíduo determinar-se de acordo com o ordenamento jurídico e que tem como função precípua tratar o sujeito para que ele não volte a delinquir.

A definição feita por Fenando Pedroso não é pacífica no que tange à natureza jurídica da medida de segurança. Inúmeras discussões surgiram em torno dessa matéria. Alguns autores as apontam não como medida penal, mas como medida administrativa, sustentando se tratarem de providências assecuratórias de caráter não penal com função administrativa (PRADO, 2010, p. 631).

Entretanto, corroboramos com o entendimento de Fernando Pedroso, pois não há como negar o caráter penal contido em tal medida, sob o risco de admitirmos um poder paralelo ao judiciário, com o poder de impô-las, o que seria uma violação as garantias individuais. Dessa forma, a medida de segurança condiciona-se a uma série de requisitos jurídico-formais que eliminam a insegurança jurídica por exigirem, para a sua aplicação, a ocorrência de um ilícito penal, sem a possibilidade de segregação do doente mental pela sua própria condição e cuja imposição deve ser apreciada pelo poder judiciário. As medidas de segurança, tais quais as penas, são espécies do gênero sanção penal.

Uma vez compreendido o conceito e a natureza jurídica, fica fácil notar que a medida de segurança aplica-se àquelas pessoas que cometeram injusto penal, isto é, fato típico e ilícito, e que possuem alguma doença mental que afeta sua faculdade intelectiva e volitiva, afastando, dessa forma, a culpabilidade. Assim, a medida de segurança não é aplicada aos imputáveis, vez que a estes caberá pena, enquanto aos inimputáveis aplicar-se-á medida de segurança.

No que diz respeito à finalidade do instituto penal em tela, resta claro que são sanções penais que possuem natureza preventiva, baseada na periculosidade do indivíduo, com fulcro em coibir que um sujeito que cometeu um injusto penal venha a reincidir. Para que isso não ocorra, o sujeito deve passar por um tratamento curativo que possa tratar o seu distúrbio mental, bem como cessar a sua periculosidade. Nesse diapasão, Basileu Garcia ensina que “as medidas de segurança têm uma finalidade diversa da pena, pois se destinam à cura, ou pelo menos, ao tratamento daquele que praticou um fato típico e ilícito.” (GRECO, 2011, p. 658)

Importante ressaltar que o art. 99 do CP prevê que o “internado será recolhido a estabelecimento dotado de características hospitalares e será submetido a tratamento.” Isso demonstra que a finalidade precípua da medida de segurança é o tratamento médico dos sujeitos submetidos a essa sanção.

Assim, pelo que se nota, podemos sustentar, preliminarmente, que a medida de segurança possui caráter preventivo, que superficialmente tende a demonstrar que o fim retributivo inexiste na aplicação dessa medida. E é esse ponto que, para alguns juristas, constitui uma das principais diferenças da medida de segurança e da pena.

Há doutrinadores como Juan Carlos Ferré Olivé, Miguel Ângel Núñez Paz, Wiliam Terra de Oliveira e Alexis Couto de Brito, que afirmam ter a medida de segurança também um caráter punitivo, “alguns autores consideram que as medidas, diferentemente das penas, não implicam em nenhum castigo, mas simplesmente um tratamento ou uma terapia para o indivíduo. Contudo, acreditamos que não é possível negar o caráter aflitivo das medidas de segurança, porquanto esse tratamento ou essa terapia se impõem coercitivamente e, na maioria dos casos, acompanhados da perda de liberdade ambulatorial (função de assegurar). Estes postulados que apresentam as medidas como soluções benéficas só contribuem para encobrir seu autêntico caráter punitivo.” (CUNHA, 2013, p. 488)

Pactuamos com esse entendimento, basta fazer uma visita ao Centro Psiquiátrico Judiciário Pedro Marinho Suruagy na cidade de Maceió, estado de Alagoas, onde será observada a situação precária que impossibilita a execução de um tratamento adequado, em razão da carência de profissionais capacitados e comprometidos, bem como da falta de medicamentos e ferramentas necessárias para um tratamento eficaz aos pacientes.[4]

Assim, entendemos que a medida de segurança foi criada visando evitar que o sujeito volte a delinquir, conseguindo isso por meio de um tratamento médico adequado ao paciente e fazendo com que ele consiga controlar seus impulsos e apetites causados pelo distúrbio mental. Todavia, não é isso o que ocorre. A medida de segurança acaba sendo, na prática, muito mais maléfica que a própria pena aplicada aos imputáveis, tendo em vista a ausência de tratamento médico eficaz, fazendo dos manicômios judiciários verdadeiros depósitos humanos[5].

E ai é que se encontra o problema aqui tratado: se não há tratamento eficaz e adequado aos indivíduos acometidos por doença mental que praticaram injusto penal como é que cessará a sua periculosidade e finalmente conseguirão retornar ao convívio social?

Essa pergunta é fácil de responder diante da atual situação dos hospitais judiciários brasileiros: NUNCA! Dependendo da gravidade do distúrbio psíquico o indivíduo jamais voltará a conviver em sociedade. É aí que se vê a existência da pena perpétua, expressamente vedada pela Magna Carta de 1988.

4. INÍCIO DA EXECUÇÃO DA MEDIDA DE SEGURANÇA E SEU PRAZO MÍNIMO DE CUMPRIMENTO

Conforme preceitua o art. 149 do Código de Processo Penal, para que a sanidade mental do autor do delito possa ser aferida, faz-se necessário que o magistrado determine de ofício ou atenda a requerimento do Ministério Público, do defensor, do curador, ascendente, descendente, irmão ou cônjuge do acusado que este seja submetido a exame médico-legal, podendo tal exame ser realizado na fase do inquérito policial, mediante representação da autoridade policial ao juiz competente. Nesse momento, tem-se início o incidente de insanidade mental do acusado, mediante a nomeação de curador, suspendendo-se o processo caso este já tenha iniciado, salvo em relação às diligências que podem ser prejudicadas pelo adiamento.

No laudo médico do exame de sanidade mental, os peritos dirão se o acusado é portador de alguma patologia de ordem psiquiátrica, qual a patologia, qual o tratamento adequado e qual o grau de periculosidade do agente. Vale lembrar que a inimputabilidade deve ser aferida no momento da ação ou omissão. Isso porque pode o agente, por exemplo, ser possuidor de transtornos mentais e à época do fato ter tido consciência da ilicitude do mesmo, bem como poderia se determinar conforme o ordenamento jurídico.

Concluídas as averiguações dos peritos, caso o acusado seja considerado inimputável à época do delito, o juiz proferirá sentença absolutória imprópria e após o trânsito em julgado da decisão aplicará a medida de segurança adequada, consistente em internação hospitalar ou tratamento ambulatorial (BITENCOURT, 2010, p. 787). Pois bem. Cumpridos todos os trâmites necessários, inicia-se a execução da medida de segurança.

O prazo mínimo de cumprimento da medida de segurança está previsto no §1° do art. 97 do CP e é de 1 (um) a 3 (três) anos. Esse prazo se destina à realização do exame de cessação da periculosidade do paciente. Conforme dispõe o §2° desse mesmo artigo do Código Penal, superado o prazo mínimo, a perícia médica deverá ser realizada de ano em ano ou a qualquer tempo a fim de averiguar o estado psicológico do paciente, bem como se houve a cessação da sua periculosidade.

Cessada a periculosidade o paciente é desinternado e, caso o juiz entenda necessário, determina o tratamento ambulatorial. Caso não haja ainda sobrestada a periculosidade do paciente, este permanece internado até que esteja apto ao retorno social.

5. AUSÊNCIA DE LIMITE MÁXIMO AO CUMPRIMENTO DA MEDIDA DE SEGURANÇA

Entre as inúmeras disposições acerca da medida de segurança, uma exige maior atenção e estudo, qual seja, o que preceitua o art. 97 do Código Penal, mais precisamente seu parágrafo primeiro, quando indetermina o tempo de duração do instituto penal em comento.

Conforme dispositivo citado acima, o legislador quantifica apenas o prazo mínimo do cumprimento da medida de segurança, sendo este de um a três anos, como já vimos anteriormente. Todavia, quanto ao prazo máximo da execução, tem-se que tal medida perdura-se por tempo indeterminado até que, através de laudo médico, verifique-se a cessação da periculosidade do paciente. Assim, entende-se que enquanto o indivíduo for diagnosticado perigoso, o recolhimento dele deve permanecer.

É aí que se encontra o entrave: a medida de segurança deve obedecer ao que prevê o § 1º do art. 97 ou, como afirmam Zaffaroni e Pierangeli, “é o intérprete que tem obrigação de limitá-la, já que a lei não o faz?” (GRECO, 2011, p. 661), haja vista a vedação a pena perpétua constante na Constituição Federal.

Pois bem. Há os que defendam que a medida de segurança seja aplicada pelo tempo que for necessário à cessação de sua periculosidade, não importando quanto tempo isso dure. Por outro lado, há doutrinadores que dissertam que deve haver limite máximo para o seu cumprimento, devendo-se restringir à pena máxima abstrata cominada ao tipo penal cometido ou defendendo que a medida em comento não pode ultrapassar os 30 (trinta) anos previstos no art. 75 do CP.

Pela defesa da manutenção da indeterminação da duração do cumprimento das medidas de segurança, Fernando Capez entende que seu prazo será por tempo não determinado, enquanto não constatada, por meio de exame médico, a cessação da periculosidade do agente (CAPEZ, 2010, p. 321).

Compartilhando desse entendimento, Guilherme de Souza Nucci afirma que medida de segurança não é pena e defende uma interpretação restritiva dos dispositivos legais relacionados à matéria, em especial ao art. 75 do CP, que prevê que o tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não podem superar 30 anos. Para ele, o artigo citado abrange apenas e tão somente as penas privativas de liberdade, não englobando a medida de segurança (NUCCI, 2010, p. 462). Assim, o autor combate os que sustentam uma interpretação sistemática e teleológica, não estendendo o que prevê tal dispositivo para a medida de segurança.

Ademais, Nucci completa que, “apesar de seu caráter de sanção penal, a medida de segurança não deixa de ter o propósito curativo e terapêutico. Ora, enquanto não for devidamente curado, deve o sujeito submetido à internação permanecer em tratamento, sob custódia do Estado” (NUCCI, 2009, p. 564). Assim, para o jurista, a medida de segurança, por ter função terapêutica, deve ter sua duração não fixada, visto que depende do resultado do tratamento (se cessou ou não a periculosidade) e caso o paciente fosse desinternado por ter atingido o prazo máximo e não tivesse cessado sua periculosidade, não haveria como falar que a medida de segurança atingiu seu fim curativo. No mesmo raciocínio disserta Luiz Regis Prado que o caráter indeterminado da medida de segurança é fruto da sua própria função, diz o autor que “Em sentido oposto, salienta-se que a indeterminação é inerente à própria finalidade das medidas de segurança, cuja duração não pode ser fixada. A medida de segurança deve, por conseguinte, ser indeterminada no tempo, não excluída a hipótese de se prolongar por toda a vida do condenado (…). Como as medidas de segurança buscam eliminar a periculosidade do agente, enquanto esta persistir subsistirá também o perigo de prática de novos delitos e, consequentemente, a necessidade da medida imposta. Em síntese, sendo a periculosidade um estado do agente que perdurará por um tempo maior ou menor, sem que sua duração possa ser previamente fixada, também a duração da medida de segurança será, a princípio, indeterminada ainda que submetida a rígido controle periódico.” (PRADO, 2010, p. 637)

Nota-se que o argumento utilizado para defender a manutenção da indeterminação da duração da medida de segurança é que se deve fazer uma interpretação restritiva do art. 75 do CP, justamente por este se referir exclusivamente as penas privativas de liberdade, não sendo possível estender tal disposição às medidas de segurança. Além disso, por tal medida ser distinta da pena, no sentido daquela ter finalidade curativa e terapêutica, o legislador não pode fixar um limite máximo para duração, pois além de não prever quando irá cessar a periculosidade do paciente, corre o risco de não atingir o seu propósito preventivo. Outrossim, tais defensores se pautam na periculosidade para justificar a permanência da medida de segurança de forma indeterminada, enquanto não cessado o estado de periculosidade do agente.

Conforme alhures demonstrado, há quem defenda o fato das medidas de segurança serem impostas por tempo indeterminado. Com a devida vênia, diga-se, desde já, que não parece ser essa a melhor posição a ser seguida, como doravante se dissertará.

Parte da doutrina entende que o prazo de duração da medida de segurança não pode ser completamente indeterminado, sob pena de violar o que preceitua a Carta Magna em seu art. 5°, inciso XLVII, alínea “b”, o qual veda expressamente as penas de caráter perpétuo, principalmente tratando-se de medida de segurança detentiva (GRECO, 2011, p. 661). Para Greco, “como pena e medida de segurança não se distinguem ontologicamente, é lícito sustentar que essa previsão legal – vigência por prazo indeterminado da medida de segurança – não foi recepcionada pelo atual texto constitucional.” (2011, p. 661).

No mesmo sentido, Basileu Garcia ensina que, “a esse respeito, que existe harmonia entre a externação prática das penas e a das medidas de segurança. Tanto aquelas como estas se endereçam às mesmas espécies de bens jurídicos. Quando se impõe uma pena, atinge-se o delinquente na sua liberdade ou no seu patrimônio. O mesmo acontece com a medida de segurança.” (GARCIA, 2008, p. 240)

Assim, para o autor, há proximidade entre os dois institutos sancionatórios, entendendo que ambas se propõem a punir o sujeito por um injusto penal cometido ao tirar-lhe a liberdade. Todavia, também é certo que nenhum castigo, e as penas e medidas de segurança podem assim ser consideradas, pode ser aplicado eternamente, ante ao dispositivo constitucional que veda tal perpetuidade.

Tendo a medida de segurança, principalmente a detentiva, caráter aflitivo, isto é, privação de liberdade, nota-se que na essência, não se pode diferenciar a pena de prisão da internação, uma vez que ambas privam o sujeito de sua liberdade em razão do cometimento de um fato típico e ilícito, bem como possuem a mesma finalidade retributiva e preventiva. Assim, constitucionalmente falando, é plausível se admitir que os limites constitucionais e legais previstos à pena também incidam nas medidas de segurança, sob pena de configuração de inconstitucionalidade, considerando o fato da Carta Magna vedar a pena de caráter perpétuo.

Outrossim, embora a medida de segurança não seja pena, tem caráter de pena,154 mostrando que existe uma proximidade entre os dois institutos. Assim, não se deve fazer uma interpretação restritiva do art. 5°, inciso XLVII, alínea “b” da Constituição Federal, bem como de outros dispositivos legais, devendo-se fazer uma interpretação sistemática e teleológica, afim se assegurar garantias constitucionais e atender aos princípios que lastreiam o Estado Democrático de Direito.

Além da violação ao dispositivo que veda a pena perpétua, os que condenam a indeterminação do prazo da medida de segurança, dissertam ser clarividente a transgressão, também, aos princípios constitucionais como o da proporcionalidade, da legalidade, da intervenção mínima e da igualdade, bem como da dignidade da pessoa humana.

Luiz Regis Prado entende que o fato de não se determinar o tempo de duração da medida de segurança infringe o princípio da legalidade, “o direito de um condenado saber a duração da sanção que lhe será imposta, sustenta-se, é inerente ao próprio princípio da legalidade dos delitos e das penas.” (PRADO, 2010, p. 637)

Da mesma forma aduz Paulo Queiroz quando afirma que “tal indeterminação do prazo máximo é francamente abusiva, visto ofender os princípios de proporcionalidade, de não perpetuação da pena e igualdade. Com efeito, não é razoável, por exemplo, que alguém que responda por lesão corporal leve (CP, art. 129, caput), cuja pena máxima é um ano de detenção, possa ficar sujeito à medida de segurança superior a esse prazo, indefinida ou desproporcionalmente.” (QUEIROZ, 2011, p. 390)

Destarte, para o autor supramencionado, fere o princípio da proporcionalidade o inimputável cumprir medida de segurança em tempo superior a de um imputável que cometera o mesmo crime.

Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que viola o princípio da isonomia o fato de a lei não determinar o prazo máximo de cumprimento da pena para o inimputável, pela prática de um injusto penal, determinando que este cumpra medida de segurança por prazo não fixado, condicionando o seu término à cessação da periculosidade. Em razão dessa indeterminação, está, para o STJ, se tratando de forma mais gravosa o inimputável, em que pese a lei limitar o tempo de duração da pena ao imputável (MASSON, 2011, p. 947).

Leciona Salo de Carvalho que “absurdamente se concebe a possibilidade de agravamento da punição pela circunstância do indivíduo ser doente. Aquilo que a princípio seria motivo de maior clemência (a doença) se torna a razão da supressão de direitos: como se, para além do delito cometido, o fato de ser doente mental pudesse também ser elemento criminógeno. […] A doença passa ser elemento justificador da prolongação do sofrimento do cidadão encarcerado, como se ela fosse circunstância elementar do crime: até mesmo capaz de eternizar a punição do cidadão.” (SOUTO, 2007, p. 585)

Nesta toada, é razoável o entendimento de que o princípio da legalidade obriga que o sujeito submetido à medida de segurança conheça o período de duração máxima de sua internação sob pena de violação deste princípio, além da dignidade da pessoa humana, proporcionalidade, dentre outros. Do contrário, ao se admitir o prolongamento do constrangimento de modo indeterminado, não se conformaria com o Estado Democrático de Direito nem tão pouco se coadunaria com os direitos fundamentais, eternamente defendidos neste modelo de Estado.

Para isso, em obediência à proibição feita pela Constituição Federal em relação à prisão perpétua, em atendimento aos princípios constitucionais, bem como à garantia dos direitos humanos, defendem alguns juristas que o prazo de duração da medida de segurança não pode ser superior a 30 (trinta) anos, conforme prevê o art. 75 do CP.

Nesse sentido, tem-se alguns importantes julgados do STF (HC 97.621, de 2009 e HC 84.219 de 2005) que fortaleceram, junto com a edição da Lei n° 10.216/2001, o movimento que se iniciava a favor da fixação de limite máximo para cumprimento da medida de segurança. Em uma dessas decisões o Ministro Sepúlveda Pertence aduziu que embora a medida de segurança não seja pena, tem caráter de pena, motivo pelo qual não poderia durar mais de 30 (trinta) anos, que é o prazo máximo permitido pela legislação pátria para penas privativas de liberdade.159 Mister transcrever, ainda, a ementa da decisão do HC 84219 de 2005: “MEDIDA DE SEGURANÇA – PROJEÇÃO NO TEMPO – LIMITE. A interpretação sistemática e teleológica dos artigos 75, 97 e 183, os dois primeiros do Código Penal e o último da Lei de Execuções Penais, deve fazer-se considerada a garantia constitucional abolidora das prisões perpétuas. A medida de segurança fica jungida ao período máximo de trinta anos.” (grifos nossos).

Por outro lado, mas ainda na defesa da determinação do tempo de duração da medida de segurança, Luiz Regis Prado sugere, “como alternativa à indeterminação, a imposição de medida de segurança somente pelo prazo do máximo da pena abstratamente cominada ao delito para os inimputáveis.” (PRADO, 2010, p. 637). Corroborando a mesma opinião, Cezar Bitencourt leciona que “Começa-se a sustentar, atualmente, que a medida de segurança não pode ultrapassar o limite máximo da pena abstratamente cominada ao delito (v.g., crime de furto, quatro anos; roubo, dez anos), pois esse seria o limite “da intervenção estatal, seja a título de pena, seja a título de medida”, na liberdade do indivíduo, embora não prevista expressamente no Código Penal, adequando-se à proibição constitucional do uso da prisão perpétua.” (BITENCOURT, 2010, p. 786)

Para fortalecer tal posicionamento, o STJ julgou o HC 208336/SP, entendendo que a medida de segurança não pode ultrapassar tempo máximo da pena abstratamente cominada ao crime cometido: ‘HABEAS CORPUS. PENAL. INIMPUTÁVEL. APLICAÇÃO DE MEDIDA DE SEGURANÇA. PRAZO INDETERMINADO. PERSISTÊNCIA DA PERICULOSIDADE. IMPROPRIEDADEDO WRIT. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. DECRETO N.º 7.648/2011. VERIFICAÇÃO DE INCIDÊNCIA. NECESSIDADE. VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL DE PENAS PERPÉTUAS. LIMITAÇÃO DO TEMPO DE CUMPRIMENTO AO MÁXIMO DA PENAABSTRATAMENTE COMINADA. ORDEM CONCEDIDA, DE OFÍCIO, PARA DETERMINARO RETORNO DOS AUTOS AO JUÍZO DAS EXECUÇÕES.

1. Na hipótese, o Tribunal de origem, após exame do conjunto fático-probatório dos autos, concluiu pela necessidade de prorrogação da internação do Paciente em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, por não restar evidenciada a cessação de sua periculosidade, embora tenham os peritos opinado pela desinternação condicional do Paciente. Assim, para se entender de modo diverso, de modo a determinar que o Paciente seja submetido a tratamento em Hospital Psiquiátrico Comum da Rede Pública, e não em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, seria inevitável a reapreciação da matéria fático-probatória, sendo imprópria sua análise na via do habeas corpus.

2. Por outro lado, nos termos do atual posicionamento desta Corte, o art. 97, § 1.º, do Código Penal, deve ser interpretado em consonância com os princípios da isonomia, proporcionalidade e razoabilidade. Assim, o tempo de cumprimento da medida de segurança, na modalidade internação ou tratamento ambulatorial, deve ser limitado ao máximo da pena abstratamente cominada ao delito perpetrado e não pode ser superior a 30 (trinta) anos.

3. Além disso, o art. 1.º, inciso XI, do Decreto n.º 7.648/2011, concede indulto às pessoas, nacionais e estrangeiras "submetidas à medida de segurança, independentemente da cessação da periculosidade que, até 25 de dezembro de 2011, tenham suportado privação de liberdade, internação ou tratamento ambulatorial por período igualou superior ao máximo da pena cominada à infração penal correspondente à conduta praticada ou, nos casos de substituição prevista no art. 183 da Lei de Execução Penal, por período igual ao tempo da condenação".

4. Habeas corpus não conhecido. Writ concedido, de ofício, para determinar que o Juízo das Execuções analise a situação do Paciente, à luz do que dispõe o art. 1.º, inciso XI, do Decreto n.º 7.648/2011. (grifos nossos)

Para ajudar na resolução da matéria em comento, o STJ editou a Súmula n° 527 que enuncia: “o tempo de duração da medida de segurança não deve ultrapassar o limite máximo da pena abstratamente cominada ao delito praticado.”[6] (grifos nossos).

Assim, não há dúvidas em relação ao entendimento do Superior Tribunal de Justiça, em que pese adotar a corrente de determinação da duração da medida de segurança no prazo da pena máxima abstratamente cominada ao crime.

Bitencourt, foi feliz ao afirmar que passando-se o tempo da pena máxima abstratamente cominada ao crime finda-se a intervenção do sistema penal, dessa forma alude que “assim, superado o lapso temporal correspondente à pena cominada à infração imputada, se o agente ainda apresentar sintomas de sua enfermidade mental, não será mais objeto do sistema penal, mas um problema de saúde pública, devendo ser removido e tratado em hospitais da rede pública, como qualquer outro cidadão normal.” (BITENCOURT, 2010, p. 786). Do mesmo raciocínio vislumbra Luiz Regis Prado quando afirma que “Muito embora transcorrido esse lapso temporal (prazo máximo abstrato do crime cometido) ainda persiste o estado de periculosidade, nada obstaria a libertação do paciente, pois o poder de punir não se pode estender indefinidamente no tempo.” (PRADO, 2010. P. 638)

Entende-se, destarte, que a solução vislumbrada pelo autor é viável e sólida, haja vista o sistema penal ter um limite para sua ingerência, não devendo ultrapassar sua seara. O dever do sistema penal foi cumprido, após o fim do prazo e persistindo os sintomas da doença mental, resta ao Estado cumprir a sua obrigação sanitária. O que não se pode admitir é o Direito Penal ficar responsável por um imbróglio que não é mais objeto da sua ciência. Como afirma Salo de Carvalho, a doença mental deve ser tratada como doença, como patologia, e isso não é objeto da Ciência Jurídica.

6. CASO “ZEFINHA” E AS POLÍTICAS ANTIMANICOMIAIS

Com a evolução da natureza da loucura passou-se a tratar o louco como um doente que necessitava de tratamento médico e cuidados especiais. Diante disso, Pinel fez com que as Casas de Internação do século XIX não fossem mais destinadas ao simples depósito humano, mas, a partir de então, vinculadas ao objetivo terapêutico.

Com o avanço da psiquiatria, a criminologia passa a ter importante papel, especialmente no âmbito do Direito Penal. Assim, a ciência começa a tentar entender o porquê de o indivíduo delinquir, especialmente o insano. Diante disto, começou-se a perceber a necessidade de tratar o doente mental que cometeu injusto penal de forma especial e individualizada, aplicando-se uma sanção distinta da aplicada ao indivíduo dito normal.

Repensando o sistema até então aplicado, concluiu-se pela importância de aplicar métodos preventivos representados no tratamento do delinquente, como resposta jurídico-penal, em substituição às ideias retributivas aplicadas naquela época. Primava-se agora pela prevenção da reincidência, através de tratamento médico e curativo ao inimputável.

Neste diapasão, a medida de segurança ganha um cunho terapêutico, aplicada com o fim de tratar o doente para que cesse sua periculosidade e, com isso, não volte a delinquir, caracterizando sua função preventiva especial. O que, todavia, não constitui seu único propósito. Alguns juristas entendem que existe, também, um propósito punitivo na sua execução, visto ser imposta coercitivamente e com a consequente perda de liberdade (no caso da medida de segurança detentiva). Aliás, basta fazer uma visita ao Manicômio Judiciário de Alagoas para constatar que nada de terapêutico tem a medida de segurança. As celas possuem grades nas janelas e portas cuja tranca é externa, além de agentes penitenciários por todo o prédio, semelhante a um presídio comum. Ademais, não há profissionais da saúde suficientes, muito menos tratamento adequado.

Cientes de que o Estado não fornece o tratamento adequado aos pacientes, devemos deixar de lado o pensamento teórico e utópico de que a medida de segurança vai, efetivamente, ajudar o sujeito na sua cura. Muitas vezes o regime de internação piora a condição do doente. É o que se constata no artigo “Ela, Zefinha, o nome do abandono” em que a autora Débora Diniz narra a história de Josefa da Silva, a mais longa habitante mulher de um manicômio judiciário no Brasil. (DINIZ, 2015, p. 01)

Zefinha[7] há 38 anos vive em regime de prisão terapêutica por medida de segurança no Centro Psiquiátrico Judiciário Pedro Marinho Suruagy em Maceió. Segundo documentos, ela responde por lesão corporal.[8] Foram recuperados doze laudos psiquiátricos e dois laudos sociais, realizados durante os 38 anos de internamento da paciente. Em 1978[9], quando iniciou o cumprimento de tal medida detentiva, seu estado mental foi adjetivado como normal pela psiquiatria.176 Vejamos um trecho do primeiro exame realizado: “Atende de maneira gentil ao convite de ser entrevistada. Apresentou-se com bom asseio corporal, cabelos e unhas bem tratados. Responde prontamente às perguntas formuladas. Lúcida e coerente. Psicomotricidade aumentada. Inquietação motora. Linguagem e curso de pensamento normais. Paciente orientada no tempo e no espaço. Humor adequado. Memória, inteligência e julgamento normais. Atenção adequada. Bom rapport (primeiro laudo, 1978).”

Pela descrição supratranscrita, observa-se que a loucura não é tema do laudo realizado. A paciente ainda afirma que “furei ela porque ela queria me matar. […] Me arrependo muito do que fiz e não tenho coragem de fazer novamente.” (DINIZ, 2015, p. 09) Isso demonstra que ela reconhece o crime, justifica-se como legítima defesa e ainda arrepende-se.

Quatro anos depois é realizado novo laudo e agora a paciente relata “por causa de uma macumba que uma mulher botou em mim eu nunca mais tive alegria em minha vida”. 179 Antes ela havia justificado seu ato como legítima defesa, agora usa uma gênese paranormal. Agora, Zefinha é periciada como portadora de esquizofrenia paranóide, não tendo condições de retornar ao convívio social.

No quarto laudo, é citado que ela possui periculosidade, o que em exames anteriores não foi mencionado. Com o passar do tempo e laudos psiquiátricos realizados, a situação mental de Zefinha piora: no sexto laudo foi discriminado que “apesar da medicação antipsicótica que lhe é administrada, se mantém maior parte do tempo em surto psicótico,” no nono laudo ela é uma “doente crônica e seus delírios são persistentes.” (DINIZ, 2015, p. 09-12)

Nesse mesmo nono laudo, realizado em 2004, o médico responsável discorre sobre a importância da família para a ordem psiquiátrica. E a autora do artigo afirma que o lugar de Zefinha não é mais no manicômio, mas no asilo. (DINIZ, 2015, p. 19-20)

Diante dos relatos dos psiquiatras responsáveis pela elaboração dos laudos médicos durante os 38 anos de internação, demonstra-se que ela se tornou doente e perigosa, além de estar em uma situação de abandono. Dessa forma, conclui-se que a internação pode ser maléfica para o indivíduo, como foi para Zefinha. E foi exatamente isso que defendeu a Reforma Psiquiátrica.

Em meados da década de 1970, houve grandes manifestações de vários setores da sociedade no sentido de reduzir o cerceamento da liberdade individual nos manicômios judiciários. Com isso, foi promulgada no Brasil a Lei n° 10.216 de 2001, a qual dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Com a lei em comento, o doente mental passou a ter direito a um tratamento adequado, realizado com humanidade e respeito, tendo assegurados alguns direitos tais como: ser tratado em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis, bem como ser tratado, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.

A lei acima descrita assevera que a finalidade permanente da internação é a reinserção social do paciente. De acordo com esse entendimento, não se permite que tal medida se perpetue no tempo, sem perspectiva alguma de alta. Em casos mais críticos de pacientes internados há muito tempo, a mencionada lei assegura sua alta planejada, nos seguintes termos: “Art. 5º. O paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize situação de grave dependência institucional, decorrente de seu quadro clínico ou de ausência de suporte social, será objeto de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida, sob a responsabilidade da autoridade sanitária competente e supervisão de instância a ser definida pelo Poder Executivo, assegurada a continuidade do tratamento, quando necessário.”

Assim, em obediência ao artigo supratranscrito, o paciente há longo tempo internado e cuja enfermidade mental persista, deverá ser objeto de política específica e reabilitação psicossocial assistida de responsabilidade da autoridade sanitária competente e não mais do sistema penal.

Neste contexto, a realidade dos manicômios judiciários e a necessária reorientação das medidas de segurança a partir da Reforma Psiquiátrica têm sido alvo de várias normas e recomendações publicadas pelos órgãos relacionados à Justiça, como a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), bem como foi tema deliberado pela IV Conferência Nacional de Saúde Mental realizada em agosto de 2010 (PREVE, 2012, p. 49)

Logo após essa Conferência, o CNPCP editou resolução em que reforça os termos da Lei n° 10.216/2001, recomendando a adoção das diretrizes antimanicomiais no que tange à atenção aos pacientes judiciários e à execução da medida de segurança detentiva. Para esse Conselho, o atendimento dessas pessoas deve ser multidisciplinar, com acompanhamento psicossocial contínuo e inserção social (PREVE, 2012, p. 49).

No mesmo sentido, o CNJ aprovou a recomendação para que as pessoas submetidas à medida de segurança cumpram seu tratamento em meio aberto. Da mesma forma que o CNPCP, o Conselho Nacional de Justiça defende a política antimanicomial na execução de tal medida, consistindo essa política na criação de um núcleo interdisciplinar para auxiliar o juiz, bem como a permissão, sempre que possível, para que o tratamento ocorra sem que a pessoa se afaste do meio social.

CONCLUSÃO

Foi fundado na finalidade terapêutica e preventiva especial que o legislador não fixou limite máximo ao cumprimento da medida de segurança, conforme previsto §1° do art. 97 do CP, contrariando notoriamente o que veda o art. 5°, inciso XLVII da CF/88.

Destarte, em decorrência da vedação à pena de caráter perpétuo, não de pode afirmar que a norma que indetermina a duração da medida de segurança foi recepcionada pela Carta Magna de 1988. Isso porque o constituinte ao prever a vedação às penas de caráter perene incluiu todas as sanções penais, inclusive a medida de segurança. Dessa forma, não se pode fazer uma interpretação restritiva de tal dispositivo constitucional, mas sim uma interpretação sistemática e teleológica, observando qual a real intenção do constituinte.

Não obstante existam correntes contrárias, sustenta-se o raciocínio de que a imposição de medida de segurança por prazo indeterminado configura nítida inconstitucionalidade, porquanto violadora de princípios e garantias fundamentais, sobretudo a legalidade, a igualdade, a proporcionalidade, a dignidade da pessoa humana e, especialmente, o princípio da limitação da pena, considerada cláusula pétrea em nosso ordenamento jurídico.

Não se pode castigar uma pessoa eternamente. Terminado o prazo da pena máxima abstrata cominada ao delito, termina-se também o poder de punir do Estado. O fim desse lapso temporal seria o limite da intervenção estatal, seja a título de pena, seja a título de medida de segurança.

Outrossim, superado o prazo máximo, se o paciente ainda apresentar sintomas da sua doença mental, não será mais objeto do sistema penal, mas sim questão de saúde pública, por tratar-se de doença, patologia. Para tanto, o Estado dispõe tanto de hospitais da rede pública, tanto de projetos eficientes como o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), CERSAM (Centro de Referência de Saúde Mental) e PAI PJ (Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário). Cada um com sua peculiaridade, mas todos com o mesmo intuito: a ressocialização/reintegração aos indivíduos submetidos à medida de segurança, bem como o acompanhamento e tratamento médico dos portadores de doença mental.

Diante de tudo o que foi exposto e em obediência a vedação à pena perpétua, bem como aos princípios constitucionais e aos direitos e garantias fundamentais, acreditamos que se a lei foi omissa, o intérprete tem obrigação de limitar tal duração, como bem assinalou Zaffaroni e Pierangeli (GRECO, 2010, p. 661). Indeterminar o cumprimento da medida de segurança é regredir no tempo, é excluir novamente os loucos, como se fizera durante toda a história. Longa e árdua foi e continua sendo a luta pela garantia dos direitos humanos, dentre eles o pilar do Estado Democrático de Direito, o princípio da dignidade da pessoa humana. Assim, é inadmissível, no presente momento, retrocesso da monta daquele consubstanciado na manutenção da duração indeterminada do cumprimento da medida de segurança no sistema jurídico brasileiro.

 

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Notas
[1]Indivíduo portador de doença mental que ao tempo do crime não tinha consciência da ilicitude do fato nem como determinar-se de acordo com o ordenamento jurídico.

[2] Fala-se em injusto penal e não em crime tendo em vista que não há o elemento culpabilidade, e tão somente fato típico e ilícito.

[3] Sistema que não permite a acumulação de pena com medida de segurança, devendo ser aplicada uma ou outra.

[4] Notícia disponível em: <http://gazetaweb.globo.com/noticia.php?c=367666&e=6>

[5] Em visita ao Centro Psiquiátrico Judiciário de Maceió/AL, observou-se que os pacientes encontram-se dopados por medicamentos que muitas vezes não são os adequados para seu tratamento. Na verdade é muito mais fácil para o Estado dopar o indivíduo para que ele não tenha crises dentro do estabelecimento do que dar-lhe um tratamento terapêutico que trate de fato seu distúrbio psíquico e, com isso, ele fique apto para o retorno a sociedade.

[6] Notícia disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/noticias/noticias/STJ-edita-mais-tr%C3%AAs-s%C3%BAmulas-na-%C3%A1rea-penal>

[7] Chamaremos a paciente de “Zefinha” uma vez que a autora do artigo em comento assim o fez, para, inclusive, fazê-la conhecida e não mais uma estatística.

[8] Ainda não se sabe ao certo se ela responde por lesão corporal ou por tentativa de homicídio, pois há laudos médicos que descrevem, também, o segundo tipo penal.

[9] Pasmem! Mesmo ano da inauguração do Centro Psiquiátrico Judiciário Pedro Marinho Suruagy.


Informações Sobre o Autor

Suzany Pedrosa de Melo Gonçalves

Graduada em Direito pela Universidade Federal de Alagoas. Advogada Criminal e Eleitoral


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