Movimento dos trabalhadores rurais Sem-Terra: Justiça e punição

Resumo (artigo extraído de dissertação de mestrado defendida pela autora): Intenta desvelar alguns dos comos e dos por quês onde se assinalam descontinuidades e rupturas em relação a práticas discursivas inseridas em decisões judiciais, capazes de criminalizar o MST, desviando a atenção para questões reais: o medo de a classe dominante perder seu poder e controle sobre as terras e sobre a massa trabalhadora.


Desde muito cedo, as questões sociais e a falta de atenção a elas por parte dos governantes, sempre me afligiram, razão pela qual inseri-me em lutas e reivindicações por uma sociedade mais justa e fraterna. Assim, apreendi a importância que os movimentos sociais exercem sobre as conquistas populares e quão essencial é a mobilização da sociedade civil, em todos seus níveis e formas, na busca por uma vida digna com justiça social. Por trilhar este caminho, a investigação sobre a criminalização dos movimentos sociais se materializa, passando a ser o tema por mim escolhido. Ou, será que foi ele que me escolheu? Dúvida que me assalta pela força com que as problematizações surgem e se consolidam como caminho a seguir


O presente artigo traz por eixo central de investigação a problematização dos mecanismos de poderes e saberes que dão consistência à criminalização dos movimentos sociais, tomando como recorte de estudo e análise, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), na sua luta pelos direitos constitucionalmente garantidos de cidadania e dignidade da pessoa humana, tendo, pois, os seguintes objetivos: Por que razão se insiste na desqualificação do MST, utilizando-se práticas discursivas que não só o criminalizam, como se faz estender aos demais movimentos sociais de luta contra hegemônica? O que se esconde por trás disso, quais são os não-ditos existentes no discurso da criminalização que vem servir aos interesses de um modo de produção da existência humana que se pauta pelo ter e não pelo ser, pelo lucro e acumulação e não pelo homem, sua vida e sua humanidade? Quem ganha com isso, como ganha e por quê ganha?


Para tanto, trago como fundamento teórico basilar as teses foucaultianas de entendimento das políticas sociais que se constroem no interior do capitalismo como discursos e enunciações de controle, disciplinação e sujeição das populações oprimidas. Outros eixos teóricos são de suma importância à consecução desse trabalho investigativo, entre eles, o pensamento de Marx e Engels, Zygmunt Bauman e de Rusche & Kirchheimer, entre outros que testemunham com suas teses as análises aqui produzidas.


Assim, para melhor análise do tema proposto, entrelaço atividades de revisão bibliográfica, utilizando-me de teorias consistentes, tais como as elaborações e teses dos autores já citados às análises dos discursos inseridos em algumas decisões judiciais, mais especificadamente as proferidas pelo MM. Juiz de Direito, Dr. Átis de Araújo Oliveira, lotado na Vara Criminal do Pontal do Paranapanema (São Paulo), bem como os acórdãos que as revogaram, e, ainda, o discurso inserido na Lei n.º 8.629, de 25/02/93, perscrutando entre as enunciações e discursos os ditos e não-ditos que se encarregaram de criar os mecanismos de controle e disciplinação social que desemboca na criminalização dos movimentos sociais que estudo.


Assim, faço, ainda, a gênese histórica da distribuição e as lutas camponesas pela terra, com suporte nas práticas que conduzem à criminalização da luta pela terra em sua relação com os grupos hegemônicos capitalistas que investem no crime e na punição radical dos movimentos, utilizando-se de saberes e poderes jurídicos. Enveredo-me, finalmente, ainda que brevemente, pelos discursos da Mídia sobre o tema, recomendando o aprofundamento de seus estudos, uma vez que a mesma, mantida pelos grupos dominantes contribuem de forma efetiva na construção de imagens sobre os movimentos sociais e suas lutas.


Conforme assinala Gómez (2000), a partir da correlação de forças entre capital e trabalho, as reformas neoliberais implicaram um incremento do poder econômico, social e político dos setores e grupos mais internacionalizados do capital, beneficiários diretos de processos de concentração e centralização, que ganharam recursos através das privatizações, dívidas públicas, isenções, subsídios, financiamento das multinacionais com recursos públicos, guerra fiscal entre Estados, drástica abertura do mercado, alterações nas legislações previdenciárias e trabalhistas etc., sendo bem conhecido o elevado custo social.


Tais indicadores, em conjunto com a redução da sindicalização e do poder de barganha dos sindicatos e com a crise de modelos históricos de uma sociedade mais inclusiva, minaram as bases econômicas, organizacionais e “ideológicas” das classes subalternas, além de atingir negativamente sua capacidade mobilizadora-participativa e no apoio aos partidos políticos comprometidos com uma política social redistributiva.


O problema da má distribuição de terra tem uma causa remota que nos remete ao período do Brasil Colônia. O primeiro instituto de distribuição de terras brasileiras foi com as sesmarias, em 1530, sendo, após, introduzido o sistema de capitanias hereditárias, em 1532, nas quais as sesmarias eram reafirmadas. Em ambos os métodos, a Corte portuguesa determinava que quem as adquirisse deveria aproveitá-las.


Por meio do Regimento de 17 de dezembro de 1548, foram concedidas amplas terras para a construção de engenhos de açúcares e similares, sendo este o momento do nascimento dos latifúndios. Durante três séculos, a economia brasileira foi calcada em três pilares: grandes propriedades; mão-de-obra escrava e monocultura de cana-de-açúcar, direcionada ao mercado externo.


A condição de aproveitamento das terras cedidas, em regra, era desrespeitada, cabendo relembrar que quem recebia as mesmas eram homens de posse, amigos do rei. Este é o marco do surgimento da família sem-terra, pois os pobres não tinham acesso às terras e nem podiam ficar, salvo temporariamente, naquelas em que os senhores de engenho recebiam graciosamente.


Paralelamente às sesmarias e após sua extinção em 1822, a posse de terras devolutas também se fez presente como meio de aquisição territorial. Com o fim do tráfico negreiro (Lei Euzébio de Queiroz, de 1850), passou-se a ser importante a diferenciação entre propriedade e posse, outrora desnecessária. A Lei n.º601/1850 extinguiu a posse como modo de acesso à terra, sendo válida somente a compra e venda. Ampliou-se, assim, o poder dos latifundiários.


As reformas de base propostas durante o governo de João Goulart (1961-1964), indispensáveis ao desenvolvimento econômico e social do país, tinham em sua pauta a reforma agrária, mas não tiveram tempo de ser implementadas, de os militares tomarem o poder. Durante a ditadura militar, o Estatuto da Terra (Lei n.º4.504) foi criado, mas não visando sua concretização, mas sim o engessamento da luta pela reforma agrária visto não se ter sequer arranhado a estrutura latifundiária existente no país. Em vez de dividir a propriedade, o capitalismo impulsionado pelo regime militar brasileiro (1964-1984) promoveu a modernização do latifúndio, por meio do crédito rural fortemente subsidiado e abundante. O dinheiro farto e barato, aliado ao estímulo da cultura da soja – para gerar grandes excedentes exportáveis – propiciou a incorporação das pequenas propriedades rurais pelas médias e grandes: a soja exigia maiores propriedades e o crédito facilitava a aquisição de terra. Assim, quanto mais terra tivesse o proprietário, mais crédito recebia e mais terra podia comprar.


Durante o Governo Fernando Collor, a repressão contra os movimentos aumentou e iniciou-se o processo de criminalização dos sem-terra, por meio do Judiciário. A partir daí, todos os governos continuaram a tomar os movimentos sociais agrários como caso de polícia. Conforme esclarece Baldez (1997), com o fim do regime militar, o controle sobre a terra e o monopólio dela, historicamente constituído em beneficio das classes dominantes, transferiu-se da área militar para o campo jurídico (p. 108).


É neste cenário que nasce embrião do Movimento Dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, contando com grande apoio de militantes da Igreja Católica, principalmente da Comissão Pastoral da Terra, pretendendo-se unificar varias mobilizações esparsas no campo. A intensa mecanização da agricultura introduzida durante a ditadura militar expulsou assalariados, arrendatários e parceiros do campo, mas alguns trabalhadores rurais acreditavam que podiam se organizar e resistir obrando na terra. Assim, em 07 de outubro de 1979, agricultores sem terra do Rio Grande do Sul ocupam a gleba Macali, em Ronda Alta. As terras da Macali eram remanescentes das lutas pela terra da década de sessenta, quando o MASTER organizara os acampamentos na região. Simultaneamente, surgiam ocupações de trabalhadores rurais nos demais estados do Sul, Mato Grosso e em São Paulo.


O MST surge oficialmente em 1984, durante o 1º Encontro dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em Cascavel (PR), sendo, no ano seguinte, organizado nacionalmente, momento em que se realizou o 1º Congresso Nacional dos Sem Terra, realizado de 29 a 31 de janeiro de 1985, em Curitiba, Paraná, com 1500 delegados representando 23 estados brasileiros.


Ao amadurecer, o Movimento percebeu que a luta, única e exclusivamente, pelo acesso e permanência na terra era insuficiente. Percebeu-se que era necessário também lutar por crédito, moradia, assistência técnica, escolas, atendimento à saúde e outras necessidades da família sem-terra que, assim como para todos os brasileiros, precisam ser supridas. Enfim, descobriu-se que a luta não é apenas contra o latifúndio, mas também contra o modelo econômico neoliberal vigente nos dias atuais. A luta do MST é pela Reforma Agrária e pela transformação social, representando uma nova forma de articulação social compreendendo aquilo que se convencionou chamar de novos movimentos sociais.


O MST não é o primeiro movimento a lutar pela terra no Brasil. Muito antes, as famílias agricultoras já se organizavam em busca de terra e melhores condições de trabalho e vida. Podemos citar como exemplo as Ligas Camponesas e o Master (Movimento dos Agricultores Sem Terra) entre 1950 e 1964; bem como Canudos no final do século 19.


O tratamento dispensado ao movimento pelo discurso dominante não difere essencialmente daquele dirigido aos negros dos quilombos ou aos rebeldes de Canudos, aos caboclos do Contestado e às lideranças das Ligas e ao Master. Estes movimentos sociais igualmente receberam o rótulo de criminosos, sendo lhes atribuídos o cometimento de vários crimes, tendo como finalidade precípua a desqualificação destes movimentos sociais, verificando-se, assim, a permanência discursiva dominante. A diferença do MST em relação aos seus predecessores, é que aquele é mais organizado, mais numeroso, mais descentralizado e seu discurso e atuação tem mais visibilidade.


Conforme observado por Garcia, há uma evolução na forma de atuação do MST que passa da luta pela distribuição de terra e créditos agrícolas, centrando suas atividades em acampamentos, caminhadas e atos públicos, para uma postura de resistência às desocupações como resposta ao aumento da repressão policial e dos fazendeiros, ampliando suas relações com outros trabalhadores, tanto rurais quanto urbanos, até chegar ao momento presente de luta pela democratização da titularidade, bem como da estrutura fundiária no Brasil.


A violência contra os movimentos sociais existe e é notória, não precisando chegar ao ponto dos massacres ocorridos em Corumbiara e em Eldorado dos Carajás. Entretanto, ainda, assim, a tentativa de criminalizar os integrantes do MST é constante. Conforme Andrade (2003), a construção social da criminalidade agrária é seletiva porque reproduz a lógica estrutural de funcionamento do sistema penal, na medida em que criminaliza os socialmente excluídos e mantêm impunes os latifundiários.


A violência contra os movimentos sociais existe e é notória, não precisando chegar ao ponto dos massacres ocorridos em Corumbiara e em Eldorado dos Carajás. Entretanto, ainda, assim, a tentativa de criminalizar os integrantes do MST é constante. Conforme Andrade (2003), a construção social da criminalidade agrária é seletiva porque reproduz a lógica estrutural de funcionamento do sistema penal, na medida em que criminaliza os socialmente excluídos e mantêm impunes os latifundiários.


Os discursos dominantes, seja por meio da mídia, seja utilizando-se do Poder Judiciário para cumprir seu intento, sempre buscam qualificar o Movimento tomando suas condutas como baderna, vandalismo e chegando a rotular seus membros como criminosos. Entretanto, devemos frisar que as ocupações realizadas em terras ou mesmo em prédios públicos ou privados abertos ao público são atos políticos que visam pressionar o Poder Público para a realização da reforma agrária e na busca por financiamento agrícola. Identifica-se, assim, as condutas do MST com atos de desobediência civil, que representa uma forma legítima de reação dos membros da sociedade em face das injustiças advindas do próprio funcionamento do regime democrático[1].


Andrade (2003) afirma que a atividade de ocupação realizada pelo MST aparentemente denota ilegalidade, mas na verdade é realizada com o fim de levantar o debate, de publicizar e politizar o problema que o campo enfrenta, pressionando, assim, a União para que concretize a reforma agrária. O MST exerce, na verdade, segundo Pinto (1992), um controle informal de constitucionalidade, pois atua com base nos princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito brasileiro com o fim de lhes dar efetividade.


Enfim, o que o MST exige é o cumprimento da lei, afirmando Andrade (2003) que o Estado não tem legitimidade para acusar o descumprimento da lei e muito menos para, em nome dela, erguer o braço armado do controle penal (punir). Esta é a face constitucional da crise de legitimidade do poder punitivo  (2003:10).


Afirmam os detentores do poder que o MST somente ocupa terras que cumprem sua função social. Gustavo Tepedino[2] salienta que a função social da propriedade rural não se confunde com seu aproveitamento econômico, sendo este apenas um dos requisitos para que a propriedade alcance sua função social, desde que associada à promoção de valores existenciais, consagrados pela Lei Maior.


“A mera produtividade econômica não resguarda a propriedade, se não restarem atendidos os valores extra-patrimoniais que compõem a tábua axiológica da Constituição. O latifúndio utilizado para fins especulativos, ainda que produtor de alguma riqueza, estará descumprindo sua função social, por desrespeitar as situações jurídicas existenciais e sociais nas quais se insere. Não merecerá, por conseguinte, a tutela jurídica, devendo ser desapropriado, em caráter prioritário, para fins de reforma agrária


Não obstante, nosso constituinte permitiu a desapropriação para fins de reforma agrária da propriedade que não cumpre sua função social, mas, ao mesmo tempo, condicionou esta desapropriação à não produtividade da terra. Desta forma, fica claro que o legislador nenhuma intenção tem de que a função social seja cumprida, pois esta é muito mais ampla que seu mero aproveitamento econômico, cabendo ressaltar que segundo Baldez (2003), exclui-se do conceito de terra improdutiva aquela que, ainda assim sendo, estiver incluída em projetos elaborados tendentes à produção. Mais uma vez, consegue-se inviabilizar os anseios do Movimento na luta por uma reforma fundiária.


Conforme Foucault (2003), o direito é um instrumento utilizado pelos dominantes para o exercício desta subjugação, identificando-se tal estrutura desde os idos medievais, onde o pensamento jurídico serviu ao rei para amparo de suas decisões.


Seguindo Foucault (2003), os discursos inseridos nas decisões judiciais que trago devem ser analisadas “como jogos (games), jogos estratégicos, de ação e reação, de pergunta e de resposta, de dominação e de esquiva, como também de luta”.(p.09). Para este filósofo, “o poder se manifesta, completa seu ciclo, mantém sua unidade graças a este jogo de pequenos fragmentos, separados uns dos outros, de um mesmo conjunto, de um único objeto, cuja configuração geral é a forma manifesta de poder” (p.38).


Assim como o próprio Estado Brasileiro, o Poder Judiciário também tem pouca tradição democrática, com sua atuação marcadamente repressora sobre as camadas populares, bem como suas íntimas ligações com as grandes oligarquias. O MST sofre diretamente este processo histórico de dominação e repressão, notadamente nos órgãos jurisdicionais de primeira instância das áreas de conflito, pois não raras vezes respaldam as posições dos latifundiários, até mesmo, descuidando de algumas exigências ou cautelas legais para a concessão de liminares de reintegração de posse[3].


Neste sentido, pode-se observar a decisão de 11 de julho de 2002, proferida pelo MM. Juiz Átis de Araújo Oliveira, da Comarca de Teodoro Sampaio, conhecida área de conflito da região do Pontal do Paranapanema (São Paulo), no processo n.º 196/1999, onde Valmir Rodrigues Chaves, integrante do MST, foi denunciado por co-autoria em furto qualificado de duas cabeças de gado, ocorrido em março de 1999, na Fazenda Nova Esperança III, município de Euclides da Cunha Paulista, comarca de Teodoro Sampaio. Na referida decisão, acolhendo a manifestação do parquet, o MM. Juiz Átis decretou a prisão preventiva de Valmir, sob o argumento de que o mesmo estava foragido, pois não se conseguia localizá-lo. Em 07 de maio de 2003, a referida prisão foi revogada, por meio do Habeas Corpus n.º 439.012/0, impetrado perante o Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, sob a alegação de falta de motivação para decretação da prisão preventiva:


“Com o devido respeito, a circunstância de não se conseguir localizar o réu para intimação pessoal, e mesmo sua eventual evasão do distrito da culpa, não se mostram por si sós, isoladamente, suficientes para a medida extrema.


(…)


Fosse a garantia de aplicação da lei penal, por si só, motivo bastante à prisão preventiva, esta haveria de ser decretada em todo e qualquer caso no qual citado o réu por edital e se fizesse revel, ou – como na espécie – em que não fosse localizado após a citação para ser intimado de atos processuais”.


O Poder Judiciário reproduz o discurso dominante e, não raras vezes, respaldam os interesses daqueles que detém o poder, proferindo decisões ao largo das normas materiais e processuais. Seguindo o pensamento de Rousseau, criminoso é aquele que rompe o pacto social. Dentro desta lógica, se o Poder Judiciário identifica os membros do MST como desordeiros e perturbadores da paz, conseqüentemente são criminosos e, portanto, inimigos de toda a sociedade, merecedores, pois, de encarceramento.


Com o advento do Mercantilismo, o corpo humano tornou-se força produtiva. Assim, toda força que não pudesse ser utilizada como força de trabalho era e continua sendo banida, reprimida. Foucault (1999) nos ensina que a burguesia sempre se interessou pelas técnicas e pelos próprios procedimentos de exclusão, denominadas pelo filósofo de micromecânica do poder. Foram estes mecanismos que criaram, que produziram, certo lucro econômico, certa utilidade política, que solidificaram o sistema e o fizeram funcionar no conjunto. Do conjunto dos mecanismos pelos quais o delinqüente (ou aquele ao qual se atribui o rótulo de delinqüente) é controlado, seguido, punido, reformado, resulta para a burguesia um interesse que funciona no interior do sistema econômico-político geral. O aprisionamento como pena surge no início do século XIX, como instituição de fato e muda de enfoque: A prisão passa a visar mais a reforma psicológica e moral das atitudes e do comportamento dos indivíduos e menos a defesa geral da sociedade.


“Toda a penalidade do século XIX passa a ser um controle, não tanto sobre se o que fizeram os indivíduos está em conformidade ou não com a lei, mas ao nível do que podem fazer, do que são capazes de fazer, do que estão sujeitos a fazer, do que estão na iminência de fazer” (Foucault, 2003:85)


 


O aprisionamento tornou-se um instrumento de controle sobre o que os indivíduos, tidos como criminosos, poderiam fazer; a prisão passou a ser cabível pela simples potencialidade de cometimento de infrações penais por aquele já previamente definido como criminoso. Neste sentido, Foucault, em sua obra A verdade e as formas jurídicas, afirma que a noção de periculosidade significa que o indivíduo deve ser considerado não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam. (p. 85)


Tal tese se confirma pelas decisões trazidas à análise deste trabalho investigativo, nas quais o juiz de primeira instância decreta prisões preventivas contra lideranças do MST pelo simples fato de serem integrantes do Movimento, na suposição de que por esta razão novos crimes serão cometidos. Para ilustrar, trago, a seguir, algumas decisões do MM. Juiz Átis, da Comarca de Teodoro Sampaio, na região do Pontal. A primeira é a decisão de 23 de maio de 2002, proferida no processo n.º 229/2002, no qual Edenilton Henrique Batista, José Lauro dos Santos, Ismael Vidal, Edison Lourenço de Souza, José Guilherme dos Santos, Alcides Gonçalves e Rosalina Rodrigues de Oliveira Acorsi, todos integrantes do MST, foram denunciados pelos crimes de quadrilha, furto, dano e incêndio, tendo o técnico do Itesp (Instituto de Terras do Estado de São Paulo) noticiado no Boletim de Ocorrência que os mesmos impediram a realização de trabalhos de topografia para divisão da área em lotes, e em seguida deram início ao furto de cerca da Fazenda Guaná-Mirim (já anteriormente citada), que havia sido arrendada pelo Estado para fins de reforma agrária.


O MM. Juiz Átis, na sua decisão de decreto de prisão preventiva dos líderes do Movimento, proferida em 23 de maio de 2002 e tendo por motivação a perturbação da ordem pública na região do Pontal do Paranapanema, afirma que “os responsáveis por tais ações são as pessoas componentes da liderança do MST, dentre eles os representados. Liderança essa, que a teor dos depoimentos, não quer que outras pessoas[4] sejam assentadas na área arrecada pelo Estado, exceto àquelas vinculadas ao MST.”


Em 10 de fevereiro de 2003, as referidas prisões foram revogadas, por meio do Habeas Corpus n.º 386.660-3/9, impetrado perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, sob a alegação de a conduta de cada um dos pacientes não fora individualizada quando do decreto de prisão preventiva. O Eminente Relator, Dr. Canguçu de Almeida, identifica na decisão o forte estigma que os membros do Movimento carregam, ou seja, inerente aos discursos a tese de que bastaria participar do MST para ser criminoso e merecer a prisão, até perpétua, caso nosso ordenamento admitisse.


“Mas, ao assim decidir, o magistrado esqueceu-se da exigência induvidosa, que lhe era trazida pelo dever de bem fundamentar, de ressaltar de que forma, em que circunstâncias, a partir de quando e mercê de quais gestos, os pacientes, especificadamente, não o grupo, em seu todo, colocaram em risco a ordem pública, a paz social, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal.


Aceitou a autoridade judiciária, em nome de todo o agrupamento, a responsabilidade dos acusados, admitindo que eles, tão somente por serem ‘sem-terra’ e por integrarem o movimento, estavam a aperfeiçoar as circunstâncias a que alude o art. 312 da lei penal adjetiva.


A todos imputou-se comportamento anárquico, sem que fosse posto em destaque, no despacho que lhes custou a prisão preventiva, o que tenham feito uns a outros. Fossem dez, quinze, vinte ou cem, os denunciados, todos acabariam presos preventivamente, desprezadas quaisquer indagações ou pesquisa a propósito do efetivo agir comprometedor da ordem pública”. (Grifos meus)


Em outro processo (n.º 46/1997), em decisão proferida em 25 de junho de 2003, o MM. Juiz Átis decreta a prisão provisória de Marcio Barreto, membro do MST. Ao proferi-la, o Juiz, mais uma vez demonstra sua antipatia pelo Movimento, rotulando seus participantes como criminosos, como se verifica a seguir, garantindo assim, a ordem do discurso ou o discurso da ordem no sentido da manutenção do status quo vigente:


“Necessária, portanto, a custódia cautelar não só para a oitiva do sentenciado (pessoa que não tem destino certo e sempre mudando seu endereço, já que ligado ao MST), mas também para que a ordem pública não seja atacada com novos crimes”.


Interessante notar que diversos e múltiplos discursos rotulam o trabalhador rural em questão como criminoso como se pode verificar em diferentes outros processos. O primeiro item a se ressaltar é quando o Juiz afirma que o sr. Marcio não possui destino certo, já que ligado ao MST, deixa implícito a noção subjetiva de alguém desnorteado e não a noção de ausência de domicílio como lugar aonde se dirige alguém[5]. Tal inversão associada ao conjunto ligado ao MST, deixa antever à população o grau de periculosidade imposto ao réu. Não obstante o mau uso terminológico da palavra, o pior veio em seguida, ao afirmar que a prisão preventiva se fazia necessária para assegurar que a sociedade estaria livre da ocorrência de novos crimes. Trata-se de segregação social límpida e cristalina, partindo-se do pressuposto de que o sr. Marcio, por integrar o MST, irá certamente cometer novos delitos, e por certo é perigoso, sendo ainda discursos que reafirmam discursos da ordem e, conseqüentemente, relacionados ao poder vigente.


Como se observa das decisões trazidas, o encarceramento realmente se dá em razão de quem é o indivíduo, de sua classe, do grupo ao qual pertence, sendo assim determinada a capacidade e a probabilidade de cometimento de crimes.


Podemos identificar aqui um tipo de poder inserido nestas decisões. O panoptismo[6], o poder panóptico. Esta forma de poder, segundo Foucault tem por base o exame, sendo esta vigilância exercida de modo permanente, cabendo ressaltar, ainda, que aquele que vigia[7] constitui sobre o vigiado um saber, um saber que tem agora por característica não mais determinar se alguma coisa se passou ou não, mas determinar se um indivíduo se conduz ou não como deve, conforme ou não a regra. (2003:88). No panoptismo, a vigilância sobre os indivíduos se dá ao nível não do que se faz, mas do que se é; não do que se faz, mas do que se pode fazer (Idem, ibdem, p. 104)


Nos séculos XVI e XVII, a fortuna era essencialmente constituída por terras, espécies monetárias e letras de câmbio; já no século XVIII a riqueza era investida em mercadorias, estoques, máquinas, matérias-primas etc. Conclui Foucault que a partir deste momento, com esta nova forma assumida pela produção, todos estes bens passaram a estar em linha de depredação, de ataque. Toda essa população de gente pobre, de desempregados, de pessoas que procuram trabalho tem agora uma espécie de contato direto, físico com a fortuna, com a riqueza. (p.101) Por esta razão, principalmente em razão de este contato direto com a riqueza por parte das camadas populares ter sido freqüente, os donos do poder resolveram instaurar mecanismos de controle desta população. Este foi o primeiro motivo fornecido por Foucault: a necessidade de a classe abastada proteger sua riqueza industrial. O segundo motivo refere-se a mudança de forma das propriedades agrícolas, deixando os trabalhadores rurais sem terra para plantar, sem comida para comer, sem nada.


Fica claro perceber, assim, que o que está em questão é o poder (do Estado, dos latifundiários) e é isso que faz com que se sintam ameaçados. É o medo de perder o poder econômico, político que faz com que os detentores do poder lutem contra os movimentos sociais agrários, utilizando-se para tanto, mas não exclusivamente, do poder judiciário, para assim criminalizá-los e, portanto, enfraquece-los para derrota-los.


Para melhor compreendermos a problematização, ou seja, os por quês e os comos da criminalização dos movimentos sociais colocada por esta dissertação, não poderíamos deixar de trazer ao debate, o entendimento de Marx sobre algumas das questões ligadas à estrutura do modo de existência capitalista, dentre elas as concepções de ideologia, classes sociais em conflito, sociedade civil e o direito.


Os homens, além de procurar fixar seu modo de sociabilidade através de certas instituições, produzem idéias ou representações pelas quais procuram explicar e compreender sua própria vida individual, social, suas relações com a natureza. Essas idéias ou representações, entretanto, tendem a esconder dos homens o modo real como suas relações sociais foram produzidas, bem como a origem das formas sociais de exploração econômica e de dominação política. É esse ocultamento da realidade que se chama ideologia, sendo através dela é que os homens legitimam as condições sociais de exploração e de dominação, fazendo com que pareçam verdadeiras e justas.


As idéias dominantes em uma sociedade numa certa época correspondem apenas às idéias da classe dominante dessa época, ditando, assim, o modo como todos os membros dessa sociedade irão pensar. A ideologia é o processo pelo qual as idéias da classe dominante se tornam idéias de todas as classes sociais, pois as trazem como universais e importantes para todos.


Marx critica radicalmente todo o idealismo hegeliano, que acredita ser a sociedade civil a negação da família, vindo o Estado para resolver a contradição entre ambas. A sociedade civil concebida como um indivíduo coletivo é uma das grandes idéias da ideologia burguesa para ocultar que a sociedade civil é a produção e reprodução da divisão de classes e é luta de classes. Assim, a sociedade não pode ser sujeito da história. Enfim, o sujeito da história são as classes sociais.


Marx conserva, entretanto, o conceito hegeliano de alienação, mas o modifica, afirmando ser a alienação do trabalho a sua principal forma. Para Marx, trabalho alienado é aquele em que o produtor não pode se reconhecer no produto de seu trabalho, pois as condições desse trabalho, suas finalidades reais e seu valor, não dependem do próprio trabalhador, mas do proprietário das condições do trabalho. Em conseqüência, o produto surge como poder separado do produtor e como um poder que o domina e ameaça. O conceito de alienação nos permite compreender uma série de fenômenos sociais. Um dos pontos mais altos na elaboração de Marx é em O Capital, na qual traz o conceito de fetichismo da mercadoria, devendo-se entender por mercadoria o trabalho concentrado e não pago.


Desta forma, as relações sociais de trabalho aparecem como relações materiais entre sujeitos humanos e como relações sociais entre coisas. O trabalhador passa a ser uma coisa, que recebe outra coisa, que se chama salário. O produto trabalho passa a ser uma coisa chamada mercadoria, que se relaciona a outra: o preço. Desta forma, os seres humanos desaparecem, passando a existir sob a forma de coisas (daqui, Lukács tira o termo reificação, que significa coisa). Por outro lado, as coisas produzidas e as relações entre elas (produção, distribuição, circulação, consumo) se humanizam e passam a ter relações sociais. Todas essas atividades econômicas passam a funcionar sozinhas, independentemente dos homens que as realizam, que se tornam, na verdade, instrumentos delas.


Sob a rubrica Intercâmbio e força produtiva, em A Ideologia Alemã, nosso pensador alemão nos traz a idéia de que a maior divisão entre o trabalho material e o intelectual é a separação entre a cidade e o campo, que se inicia com a transição da barbárie à civilização, da localização à nação e persiste até a atualidade. Na cidade, verifica-se uma concentração de pessoas, dos instrumentos de produção, do capital, dos prazeres, da necessidade, enquanto no campo evidencia-se o oposto, isto é, o isolamento e a separação, fato que toma proporções gigantescas nos dias atuais, quando a qualidade de vida no campo se reduz ao mínimo desejado de insalubridade, falta quase completa de subsistência de seus moradores e onde a terra é propriedade de uns poucos. A superação da oposição entre a cidade e o campo é uma das primeiras condições da coletividade como meio de subversão das condições desumanas encontradas.


A classe dominante tenta de qualquer modo criminalizar o Movimento porque tem receio de perder seu poderio econômico e político. Enfim, o que está em jogo é o poder e para não perde-lo, utiliza-se do aparato do Judiciário, que reafirma sua dominação, bem como de instrumentos legais, como é o caso da Lei n.º 8.629, de 25/02/93, com a alteração trazida pela MP 2.183-56/2001, que determina uma série de restrições às terras que são objeto de ocupações.


Dando continuidade, ainda que brevemente, às análises dos discursos e enunciações que se pautam pela criminalização dos movimentos sociais, retomo a Lei n.º 8.629, de 25/02/93, agora para discutir e analisar os discursos nela inseridos, mais especificamente nos parágrafos 6º a 8º do artigo 2º, que delimitam a parte final do parágrafo 5º, do artigo 9º. Assim, vejamos:


Art. 9º (…)


§ 5º A exploração que favorece o bem-estar dos proprietários e trabalhadores rurais é a que objetiva o atendimento das necessidades básicas dos que trabalham a terra, observa as normas de segurança do trabalho e não provoca conflitos e tensões sociais no imóvel.” (grifos meus)


Da redação do parágrafo acima transcrito, percebe-se que o texto se dirige ao proprietário da terra, inclusive quanto à não provocação de conflito e tensão social, visto que o legislador utilizou-se da conjunção aditiva e. Entretanto, ao identificar o agente provocador do conflito social, verifica-se uma ruptura no discurso. Este agente passa a ser tanto o trabalhador rural, membro do Movimento, quanto o próprio movimento social. Vejamos, in verbis, a redação dos parágrafos inseridos no artigo 2º da Lei em questão por força da MP 2.183-56/2001, cabendo ressaltar que a edição desta medida provisória se deu em razão da ocupação pelo MST às terras de parente do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso:


Art.2º (…)


§ 6o O imóvel rural de domínio público ou particular objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse prazo, em caso de reincidência; e deverá ser apurada a responsabilidade civil e administrativa de quem concorra com qualquer ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas vedações.


§ 7o Será excluído do Programa de Reforma Agrária do Governo Federal quem, já estando beneficiado com lote em Projeto de Assentamento, ou sendo pretendente desse benefício na condição de inscrito em processo de cadastramento e seleção de candidatos ao acesso à terra, for efetivamente identificado como participante direto ou indireto em conflito fundiário que se caracterize por invasão ou esbulho de imóvel rural de domínio público ou privado em fase de processo administrativo de vistoria ou avaliação para fins de reforma agrária, ou que esteja sendo objeto de processo judicial de desapropriação em vias de imissão de posse ao ente expropriante; e bem assim quem for efetivamente identificado como participante de invasão de prédio público, de atos de ameaça, seqüestro ou manutenção de servidores públicos e outros cidadãos em cárcere privado, ou de quaisquer outros atos de violência real ou pessoal praticados em tais situações.


§ 8o A entidade, a organização, a pessoa jurídica, o movimento ou a sociedade de fato que, de qualquer forma, direta ou indiretamente, auxiliar, colaborar, incentivar, incitar, induzir ou participar de invasão de imóveis rurais ou de bens públicos, ou em conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo, não receberá, a qualquer título, recursos públicos.” (grifos meus)


As ocupações de terra e prédios públicos são, como já reiteradas vezes e por diversas vozes afirmado, atos políticos que intencionam pressionar o Poder Público a agir, isto é, realizar, em sentido estrito, a reforma agrária, bem como garantir subsídios agrícolas. Assim, verifica-se que o objetivo da referida Lei, com as alterações introduzidas pela MP citada tem o objetivo único de desestruturar e inviabilizar a luta dos movimentos sociais que lutam pelo acesso e permanência na terra, como é o caso do MST.


Analisando-se o texto da lei, sob o emblema dos não-ditos, como apreciava Foucault, pode-se bem depreender que um recado é transmitido: O povo não deve instrumentalizar-se e organiza-se para reivindicar o que necessita, sendo-lhe negado pelo poder Publico. O discurso subterrâneo ao enunciado legal supracitado pode ser entendido no sentido, colocada as lentes aos olhos míopes desveladores das profundidades por poucos alcançadas, de que devemos aceitar passivamente tudo que nos é imposto e nos resignarmos, pois a cada atividade e ato de pressão popular, haverá uma resposta mais dura e enérgica por parte das autoridades, utilizando-se para tanto uma arma, tão poderosa e engessadora quanto àquelas que acusam o Movimento de se utilizar: a lei.


Segundo Chauí, o papel do Direito é fazer com que a dominação não seja tida como violência, mas como legal e, portanto, legítima. Se o Estado e o Direito fossem percebidos em sua realidade, isto é, como instrumentos para o exercício consentido da violência, evidentemente ambos não seriam respeitados e os dominados se revoltariam. A função da ideologia é substituir a realidade do Estado pela idéia do Estado, assim, como pela idéia do Direito. Desta forma, a dominação de uma classe por meio das leis é substituída pela representação ou idéias dessas leis como legítimas, justas, boas e válidas para todos!


Devemos mencionar, ainda que brevemente, o papel que os meios de comunicação exercem enquanto instituição de controle, pois, segundo Nilo Batista (2002), a ligação entre a mídia e o sistema penal é uma importante característica dos sistemas penais do capitalismo tardio, sem, contudo, pretender afirmar que a legitimação do sistema penal pela imprensa seja algo exclusivo da conjuntura econômica e política que vivemos (p.271).


A Mídia, ao noticiar temas ligados à criminalidade, utiliza uma linguagem popular, com o fim de dramatizar o evento, de modo que a realidade cotidiana vem conceituada e confirmada como se fosse consenso. Ela surge como representante da opinião pública, quando, na verdade, reciprocamente se condicionam. A função de legitimação do status quo realizada pela imagem da criminalidade se realiza através do reforço da mentalidade da lei e da ordem (Baratta,1994).


Existe na Mídia, também, construções de imagens sobre o Outro, tentando reproduzir imagens positivas e normalizadoras da ordem. Todo aquele que “sair do script”, aquele que é diferente, é demonizado e, assim, justifica-se todo ato de violência contra ele praticado. O diferente serve para demonstrar, a contrário sensu, os traços constitutivos de uma identidade social normatizada.


Há alguns anos atrás tive em minhas mãos uma revista de grande circulação – a revista VEJA, que trazia na capa a chamada para a matéria central. A fotografia espetacular, indicativa de um confronto, referia-se ao Movimento Sem-Terra (MST), colocando de um lado os trabalhadores rurais com foices em punho e de outro os capangas do fazendeiro que teve sua terra ocupada. O que mais se destacava era a coloração vermelha-fogo, de ponta a ponta, colocada no lado em que a foto representava os trabalhadores, enquanto a outra face da mesma fotografia vinha colorida de azul. Nítida estava a mensagem subliminar: o céu e o inferno com seus respectivos anjos e demônios. Enfim, lá estava a noção de bandido e mocinho, de ordem e desordem, tudo colocado em uma só imagem, mas com muito conteúdo e já, por si só, formadora de opinião.


Se a notícia constrói a realidade social e o primeiro elemento para construí-la é o poder, que opera com base em grandes princípios de disciplinação, ela passa a produzir como efeito fundamental a dicotomia entre os bons e os maus. Se uma notícia não argumenta, explicitamente, quem são estes bons e quem são estes maus, ela traz em si, ao associar-se ao poder, que seleciona e classifica, o que vai ser publicado, noções coletivas de público e de privado que, se por um lado, ocultam realidades, por outro, as revelam em sua materialidade.

A dicotomia bom/mau gera o estereótipo, que se traduz na consolidação de noções de pertencimento e identidade. Se a norma é ser branco, homem, bonito, inteligente, cristão, de boa classe social e proprietário de bens, os maus serão os que se desviam deste padrão. Aqui, uma das funções do estereótipo é recortar e redefinir a sociedade em termos de oposições e diferenças de forma a permitir que se desenvolva o medo, ampliando-se o sentimento de insegurança e os discursos que criminalizam e penalizam aqueles que não se encaixam nas normas padrões estabelecidas, onde se incluem todos aqueles que lutam por seus direitos e que são considerados como desviantes– são os que subvertem a lei e a ordem.


Enquanto o MST passa para práticas mais incisivas utilizando a estratégia das ocupações, o Estado se lança contra o movimento utilizando-se do controle penal para deslegitimá-lo, rotulando-o não apenas de ilegal, mais, sobretudo como criminosos. É a deslegitimação pela criminalização e este processo tem dois enfoques, um pelo sistema penal, na qual a conduta dos integrantes do MST, especialmente de seus líderes, são tipificadas criminalmente, e outro processo, que ocorre em paralelo, é a construção de uma opinião pública, que se dá através da Mídia, um dos elos da criminalização do Movimento. Há, assim, uma interação entre o controle penal formal e informal.


A ideologia dominante oculta a realidade dos homens, encobrindo a verdadeira face da produção de suas relações sociais, bem como a exploração econômica e dominação política exercida sobre eles. É neste sentido que a classe dominante é, no dizer de Gramsci, hegemônica, o sendo não só pelo fato de que detém os meios de produção e o poder do Estado, mas porque fazem crer a todos que seus interesses são de todos, reafirmando, assim, a ideologia dominante.


Como reação à hegemonia dos grupos dominantes, surgem movimentos contra-hegemônicos, entre os quais o MST se insere. Gómez corrobora com esta tese ao afirmar que ao se analisar as lutas políticas de oposição e resistência explícita à globalização neoliberal, percebe-se que elas se inscrevem no que poderia ser caracterizado como movimentos contra-hegemônicos amplos, multiformes e tematicamente diversificados de globalização ‘a partir de baixo’. (p. 137)


Sendo, pois, o MST um movimento contra-hegemônico, no sentido de desvendar o véu da ocultação referida, é, portanto, tão combatido e tanto se vê seus membros rotulados de criminosos. Utiliza-se de discursos desqualificadores para, assim, retirar o apoio da população e neste campo, a mídia tem peso decisivo.


Para não ficarmos desesperançosos quanto ao nosso Judiciário, vale a pena ler a decisão do Ministro da 6ª Turma do STJ, juiz Luiz Vicente Cernicchiaro:


“Movimento popular visando implantar a reforma agrária não caracteriza crime contra o Patrimônio. Configura direito coletivo, expressão da cidadania, visando implantar programa constante da Constituição da República. A pressão popular é própria do Estado de Direito Democrático.


(…)


A Constituição da República dedica o Capítulo III do Título VII à Política Agrícola e Fundiária e à Reforma Agrária. Configura, portanto, obrigação do Estado. Correspondentemente, direito público, subjetivo de exigência de sua concretização.


No amplo arco dos Direitos de Cidadania, situa-se o direito de reivindicar a realização dos princípios e normas constitucionais.


A Carta política não é mero conjunto de intenções. De um lado, expressa o perfil político da sociedade e, de outro, gera direitos.


É, pois, direito reclamar a implantação da reforma agrária. Legítima a pressão aos órgãos competentes para que aconteça, manifeste-se historicamente.


Reivindicar por reivindicar, insista-se, é direito. O Estado não pode impedi-lo. O modus faciendi, sem dúvida, também é relevante. Urge, contudo, não olvidar o princípio da proporcionalidade – tão ao gosto dos doutrinadores alemães.


A postulação da reforma agrária, manifestei em Habeas Corpus anterior, não pode ser confundida, identificada com esbulho possessório, ou a alteração de limites. Não se volta para usurpar a propriedade alheia. A finalidade é outra. Ajusta-se ao Direito. Sabido, dispensa prova, por notório, que o Estado, há anos, vem remetendo a implantação da reforma agrária.


Os conflitos resultantes, evidente, precisam ser dimensionados na devida expressão. Insista-se. Não se está diante de crimes contra o Patrimônio. Indispensável a sensibilidade do magistrado para não colocar, no mesmo diapasão, situações jurídicas distintas.


(…)


Tenho o entendimento, e este Tribunal já o proclamou, não é de confundir-se ataque ao direito de patrimônio com o direito de reclamar a eficácia e efetivação de direitos, cujo programa está colocado na Constituição. Isso não é crime; é expressão do direito de cidadania”.


Assim, alguns resultados podem ser auferidos ao final desta dissertação: (a) o MST é um movimento social que luta pela efetividade da Constituição Federal vigente, por meio da realização da reforma agrária, por parte do poder público, pela concessão de insumos, bem como reivindicações gerais de cidadania e qualidade de vida; (b) o discurso do Poder Judiciário legitima o poder dominante apresentando descontinuidades profundas em suas contradições, onde as condutas do Movimento são sempre identificadas como criminosas e tratadas não como questão política, mais sim como caso de polícia; (c) as estratégias de disciplinação e a sujeição das camadas populares se acentuam na medida em que os movimentos sociais crescem em organização e luta; (d) discursos alternativos vêem contribuindo para saídas jurídicas, identificando as atividades do MST como ato desobediência civil.


Encerro aqui com a fala de Gilmar Mauro, coordenador nacional do MST, em seminário realizado no dia 26 de junho de 2002, promovido pelo Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, em comemoração pelo Dia Internacional Das Nações Unidas De Luta Contra A Tortura, quando afirmou que eles batem no Movimento Sem Terra porque é um grupo de gente, de povo, de pobre organizado e pobre organizado é um perigo para a elite brasileira.


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Notas:

[1] Afirmam ainda ser também ( a desobediência civil) a chava para a manutenção das utopias nas sociedades contemporâneas.

[2] Op.cit. p. 42

[3] Garcia (1999:84) cita Varella que afirma que são comuns os desatendimentos a requisitos legais para a concessão de liminares desta natureza, ou ilegalidades em seu cumprimento. Muitas vezes, os requerentes sequer comprovam a turbação da posse ou sua posse anterior; são raras as audiências de justificação da posse envolvendo militantes do MST; e algumas ordens para desocupação foram ‘cumpridas’ em plena madrugada, como no caso do massacre de Corumbiara, em agosto de 1995.

[4] Referência a disputa entre o MST e o MAST, cuja análise excede aos limites deste trabalho.

[5] Novo Dicionário Aurélio. Editora Nova Fronteira. Verbete destino. Pág. 577

[6] Para saber mais sobre o panoptismo, remeto à leitura de duas obras de Foucault: Vigiar e Punir e A verdade e as formas jurídicas.

[7] A vigilância não cabe exclusivamente ao poder judiciário. Ao contrário, surgiu uma série de instituições que tinham e tem a finalidade de controle social, como por exemplo a escola, o hospital, o asilo, a polícia etc.


Informações Sobre o Autor

Cristiane de Souza Reis

advogada, Mestre em Ciências Criminais pela Universidade Cândido Mendes (Rio de Janeiro/Brasil) e Doutora em “Direito, Justiça e Cidadania” pela Universidade de Coimbra (FEUC/FDUC- Portugal) . Foi professora de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Cândido Mendes e foi assessora da presidência da Junta Comercial do Estado do Rio de Janeiro. É, ainda, Membro do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto (IJI/FDUP)


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