Resumo: O presente trabalho tem por objetivo registrar quais foram as influências que o Direito Penal do Inimigo, desenvolvido por Gunter Jakobs, teve no ordenamento jurídico brasileiro. Será analisada se as referidas influências possuem validade e amparo constitucional. Todavia, tal reflexão não se aterá apenas aos aspectos da dogmática penal, mas também analisará o Direito Penal do Inimigo sob um ótima multidisciplinar, seus aspectos ligados a algumas teorias criminológicas, com movimentos do direito constitucional e até mesmo com as convenções e tratados que versem sobre direitos humanos.
Palavras-chave: Direito Penal do Inimigo, Gunter Jakobs, Direito Internacional, Direitos Humanos, neoconstitucionalismo, criminologia, teoria das janelas quebras, movimento lei e ordem, teoria da bomba relógio, inconstitucionalidade, dogmática penal, Lombroso, criminoso nato, teoria da labelling aproach, teoria do etiquetamento, teoria da rotulação, atentado de 11 de setembro, crimes hediondos, porte de arma desmuniciada, lei de execução penal, regime disciplinar diferenciado.
Sumário: 1. Introdução. 2. O Direito penal do inimigo: seus aspectos e fundamentos. 2.1. Influências do Direito Penal do Inimigo no ordenamento jurídico brasileiro. 2.1.1. Da Lei dos Crimes Hediondos. 2.1.2. Da lei de Drogas. 2.1.3. Do regime disciplinar diferenciado. 2.1.4. Da Associação Criminosa. 2.1.5. Do porte de arma desmuniciada. 3. Analise da validade e constitucionalidade do Direito Penal do Inimigo. 3.1. O Fenômeno do Neoconstitucionalismo. 3.2. Direitos Humanos, tratados e convenções e a “Teoria do Cenário da Bomba-relógio”. 3.3. O Direito Penal do Inimigo e alguns aspectos ligados à Criminologia. 3.4. A ordem constitucional e o Direito Penal do Inimigo. 5. Conclusão. Referências.
1. Introdução.
O Direito Penal do Inimigo foi desenvolvido em meados dos anos 80 pelo alemão Gunter Jackobs, como uma reposta à crescente onda de criminalidade que se observava no panorama mundial da época.
Em termos gerais, a referida teoria defende a aplicação de normas mais severas, bem como de restrições ou mesmo a eliminação das garantias fundamentais para aqueles que são considerados inimigo.
O inimigo é um subversor da norma penal, aquele que age em total descompasso com as expectativas da sociedade e da norma e por isso deve ser tratado de forma excepcional, não sendo considerado um cidadão, mas tão somente como um inimigo, sendo este o fundamento que justifica a aplicação de um direito penal excepcional, que não observa as garantias fundamentais.
Jakobs defende a coexistência de dois ordenamentos jurídicos dentro de um mesmo sistema legal: um que se aplica ao cidadão e outro que se aplica ao inimigo.
O Direito Penal do Inimigo ganhou forças no ordenamento jurídico brasileiro, tendo como seu marco histórico, a edição da lei dos crimes hediondos (lei 8.072/1990), que teve origem através de um projeto de lei elaborado pela escritora Glória Perez, após o assassinato brutal de sua filha Daniela Perez.
A presente pesquisa terá por objeto analisar o direito penal dentro do contexto histórico em que ele foi elaborado, bem como sob a ótica do ordenamento jurídico brasileiro, interno e externo, utilizando-se como parâmetro a Constituição Federal de 1988, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos e as diversas teorias que de algum modo tenham relação com a Teoria em análise. Obsta ressaltar que o autor não se utilizará unicamente da dogmática penal na exploração de sua tese, tendo em vista que o tema reflete um problema de politica criminal, o que torna necessário analisar a referida teoria sob uma ótica multidisciplinar.
Não se proporá, aqui, uma solução unidirecional, mas chamar-se-á atenção do leitor para questões relevantes que permeiam o ordenamento jurídico brasileiro, bem como sobre os reflexos diretos e indiretos, presentes e futuros que a influência do Direito Penal do Inimigo tem na sociedade.
2. O Direito penal Do inimigo: seus aspectos e fundamentos.
Jakobs, nascido no ano de 1.937, é um doutrinador alemão, graduado pela Universidade de Bohn, no ano de 1.967, que escreveu sobre políticas públicas de combate à criminalidade, no ano de 1.985, sustentando um maior rigor no tratamento do agente criminoso.
Jakobs defende a tese de que a função do direito penal é proteger a própria norma e que para se alcançar a pacificação social seria necessário um direito penal de exceção, o qual serviria para proteger a norma e o reestabelecimento de sua vigência.
A Teoria do Direito Penal do Inimigo teve como ponto de partida, o pensamento de alguns filósofos, que serviram para justificar a relação entre a sociedade e o Estado, tal como ROSSEAU[1], que defende que qualquer malfeitor que ataque o direito social deixa de ser membro do Estado, posto que se encontra em guerra com este. Nesse mesmo sentido, assevera Fichte que “quem abandona o contrato cidadão em um ponto em que no contrato se contava com sua prudência, seja de modo voluntario ou por imprevisão, em sentido estrito perde todos os seus direitos como cidadão e como ser humano, e passa a um estado de ausência completa de direitos.[2] Ele ainda sustenta que a execução do criminoso “não [é uma] pena, mas só instrumento de segurança”[3], desta forma, ao inimigo não se aplica pena, mas sim, medida de segurança.
HOBBES[4] defende que quando se tratar de crime de rebelião ou alta traição, os agentes delituosos não devem ser castigados como súditos, mas como inimigos.
Dessa forma, percebe-se que Rosseau e Fichte defendem que todos os delinquentes são inimigos, enquanto que para Hobbes, apenas o réu de alta traição, ou lideres de rebelião são inimigos, havendo certa divergência nos pensamentos dos filósofos.
Ainda na mesma linha de fundamentação, KANT[5] sustenta que “aquele ser humano ou povo que se encontra em um mero estado de natureza, priva… [da] segurança [necessária], e lesiona, já por esse estado, aquele que está ao meu lado, embora não de maneira ativa (ato) mas sim pela ausência de legalidade de seu estado (statu iniusto), que ameaça constantemente; por isso, posso obrigar que, ou entre comigo em um estado comunitário-legal ou abandone minha vizinhança.” Ou seja, aquele que não participa na vida de um “estado comunitário-legal” deve se amoldar a ele ou retirar-se, não sendo, neste ultimo caso, tratado como pessoa, mas apenas como inimigo.[6]
A presença de um ordenamento jurídico faz com que surja um sentimento de confiança coletiva, ao menos em tese, por isso, aquele que subverte a ordem quebra esse sentimento de confiança e segurança que existia anteriormente, como um ato de traição à sociedade, por isso, não deve o agente ser tratado como cidadão, mas como inimigo, razão pela qual “um individuo que não admite ser obrigado a entrar em um estado de cidadania não pode participar dos benefícios do conceito de pessoa.”[7]
A Teoria do Direito Penal do Inimigo admite a existência de dois ordenamentos jurídicos distintos dentro de um mesmo sistema legal, um aplicado ao cidadão e outro aplicado ao inimigo (Direito Penal de Exceção). O Direito Penal do inimigo restringe as garantias fundamentais, tanto materiais quanto processuais, isso porque, o Estado “declara guerra” ao inimigo, e o modo com que ele irá exercê-la, é através de um devido processo legal penal mitigado, restringindo as garantias da ampla defesa, do contraditório, flexibilizando os requisitos para aplicação das medidas cautelares e sendo possível a prática da tortura para se obter a confissão do agente.
JAKOBS (2003) defende que o inimigo não é considerado ser humano, e por isso, não lhe é aplicado os direitos fundamentais, a ele não se aplica a pena, mas tão somente medida de segurança, pois aquele que não age como pessoa, não deve ser tratado como pessoa.
A pena é um instituto que se aplica apenas às pessoas, isso porque, pessoas (cidadãos) cometem crimes eventualmente ou por descuido, e a pena servirá para lhes ressocializarem, diferente do inimigo que é um criminoso por tendência, e para este, deve ser aplicada medida de segurança, tendo em vista que a pena não conseguirá lhe regenerar, pois o seu caráter criminoso é imodificável.
Em face desse pensamento, Jakobs enumerou alguns crimes que, pela sua natureza, revela que o agente não possui condições de ser ressocializado, como no caso dos crimes sexuais, terroristas, criminosos econômicos e outras infrações consideradas de maior potencial ofensivo.
Sob este enfoque, cabe destacar que, conforme ensinamentos da doutrina majoritária, o Direito Penal do Inimigo trata-se de um direito Direito Penal do Autor, o qual criminaliza condutas levando-se em consideração o estilo de vida adotado pelo Autor, “extirpa os cidadãos que aparentemente lhe sejam prejudiciais apenas por suposições sem conteúdo fático”[8]. Para JACKOBS (2003), a referida tese é justificável em face da função do direito penal, a qual, para ele, consiste na proteção da própria norma, na garantia da vigência da norma penal e não sobre a finalidade de proteção de bens jurídicos.
Através desse pensamento, Jackobs justifica a punição de atos preparatórios e meras cogitações, punindo crimes mesmo antes de iniciado sua execução, para que o agente sequer venha pensar em cometer o delito. Em verdade, a culpabilidade do agente não é levada em consideração no Direito Penal do Inimigo, bastando, para se cometer o crime, que a sua personalidade adeque-se ao padrão de inimigo, conforme ensina ROXIN (2009, 59):
“O desaparecimento da lesão do bem jurídico, que nos delitos consumados seria possível só numa forma muito artificial, mediante uma alteração de sentido da lesão por uma condição de significância da infração da norma, retoma em Jakobs vigência de uma forma expressiva na explicação da tentativa. Para ele, o <<fundamento da punição da tentativa>> radica na <<evidência de uma infração da norma>>. <<Como o delito… não é basicamente uma causação de lesões de bens, senão uma lesão da vigência da norma, mesmo assim a tentativa de delito não se deve compreender primariamente sobre a base de uma colocação em perigo de bens, senão através da lesão da vigência da norma>>, tal como entende Jakobs, para quem, ademais, <<o fundamento da punição da tentativa… [é] o mesmo que o da consumação>>.”
Dessa forma, evidencia-se que a intenção do Direito Penal do Inimigo é impedir a violação da norma penal, independentemente da relevância da conduta ou bem jurídico a ser protegido.
A títulos didáticos pode-se estabelecer, de forma resumida, como sendo as principais características do direito penal do inimigo[9]:
“1. Antecipação da punibilidade com a tipificação de atos preparatórios;
2. Criação de tipos de mera conduta;
3. Previsão de crimes de perigo abstrato;
4. Flexibilização do princípio da legalidade;
5. Inobservância do princípio da ofensividade e da exteriorização do fato;
6. Preponderância do Direito Penal do Autor;
7. Desproporcionalidade das penas;
8. Endurecimento da execução penal;
9. Restrição das garantias penais e processuais;”
Elencadas as principais características do Direito Penal do Inimigo, analisar-se-á quais foram as influencias mais significativas dessa teoria no ordenamento jurídico brasileiro.
2.1 As influências do Direito Penal do Inimigo no ordenamento jurídico Brasileiro.
Inicialmente, registre-se que o autor, ao analisar os reflexos do Direito Penal do Inimigo no ordenamento jurídico, não possui a finalidade de trazer comentários exaurientes sobre as características penais das leis que serão analisadas, mas tão somente observar os principais reflexos do direito penal do Inimigo nelas, a fim de demonstrar a influência e presença dessa teoria no ordenamento jurídico pátrio.
Cabe, neste momento, ainda, a titulo de uma visão global sobre o tema, registrar que o Direito Penal do Inimigo teve repercussões no contexto histórico mesmo antes dele ter sido desenvolvido por Jakobs.
Na período definido pela doutrina como o da “a vingança privada”, o homem primitivo regulava sua conduta pelo “temor religioso ou mágico, sobretudo em relação com o culto dos antepassados, cumpridores das normas, e com certas instituições de fundo magico ou religioso”[10]. O infrator enfurecia os deuses quando cometiam crimes, e por isso, para desagravar a divindade, o puniam. Regista o professor MASSON (2011) que “uma das reações contra o criminoso era a expulsão do grupo (desterro), medida que se destinava, além de eliminar aquele que se tornara um inimigo da comunidade e dos seus deuses e forças mágicas, a evitar que a classe social fosse contagiada pela mácula que impregnava o agente, bem como as reações vingativas dos seres sobrenaturais a que o grupo estava submetido.”
Em tempos mais atuais, pôde-se observar que por volta de 1933, através do movimento nazista, “Hitler assumiu o poder e com suas tropas instalaram o terror na Alemanha e nos países que ocupavam. Racismo, totalitarismo e nacionalismo foram alguns ideais seguidos pelos nazistas. Muitos opositores, juntamente com comunistas e judeus, foram levados para os campos de concentração. O nazismo levou milhares de pessoas, entre judeus, homossexuais e ciganos à morte. Muitos, inclusive, foram usados em terríveis experiências médicas. As pessoas eram sumariamente executadas em falsos quartos de banhos, que eram as câmaras de gás”.[11]
No período acima descrito, os judeus eram considerados o inimigo do Estado, culpados pela sua origem, pela sua raça, por sua opção sexual, sem dispor de qualquer direito de defesa, foram executados, sem sequer ter direito a um julgamento, ainda que simbólico.
Outro momento marcante na história sobre a grande repercussão do Direito Penal do Inimigo se deu com o ataque do 11 de setembro, de 2001, quando:
“…terroristas derrubaram as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York e parte do prédio do Pentágono, em Washington D.C.. Após o fatídico 11 de setembro, o Presidente George W. Bush adotou medidas excepcionais de urgência, reagindo de maneira desproporcional aos ataques. O Patriot Act, é um controverso ato do Congresso dos Estados Unidos da América que o então presidente Bush, assinou tornando-o lei em 26 de outubro de 2001. O acrônimo significa "Uniting and Strengthening America by Providing Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism Act of 2001" (algo como Ato de Unir e Fortalecer a América Providenciando Ferramentas Apropriadas Necessárias para Interceptar e Obstruir o Terrorismo, de 2001). Entre as medidas impostas pela lei, estavam a invasão de lares, espionagem de cidadãos, interrogatórios e torturas de possíveis suspeitos de espionagem ou terrorismo, sem direito a defesa ou julgamento. As liberdades civis com esse ato foram removidas do cidadão. Detenções ilegais e outros tratamentos desumanos eram permitidos no Afeganistão, no Iraque, na prisão de Abu Ghraib, em Bagdá, e na base naval norte-americana de Guantánamo, em Cuba. Figurando como desrespeito absoluto à dignidade da pessoa humana, contraditório, ampla defesa e devido processo legal daqueles que se enquadravam como inimigos. Os presos muitas vezes não possuíam os direitos de consultar advogados, visitas ou até mesmo de um julgamento. Existiam evidências de torturas e interrogatórios ilegítimos. As ações terroristas que levaram pânico, morte e destruição, criaram na sociedade um clima de insegurança e medo indiscriminado.”[12]
Após o acontecimento do 11 de setembro, todo aquele que apresentava traços fisionômicos árabes passou a ser suspeito, ou seja, inimigo, passível de ser investigado sem as mesmas garantias que eram observadas às outras pessoas, admitindo-se até mesmo a tortura.
Percebe-se pois, que o Direito Penal do Inimigo não se tratou de uma criação, mas tão apenas de observação e estruturação de fenômenos históricos e dogmáticos e criminológicos, tendo em vista que as características do Direito Penal do Inimigo já eram observadas na sociedade mesmo antes dela ter sido desenvolvida por Jakobs, como na antiguidade, conforme supra mencionado.
Ultrapassados as analise da caraterísticas do Direito Penal do Inimigo na história, passar-se-á a analisar as suas influências dentro do ordenamento jurídico brasileiro.
2.1.1 Da lei dos Crimes hediondos.
A edição da lei dos crimes hediondos (lei 8.072/1990) teve origem através de um projeto de lei elaborado pela escritora Glória Perez, após o assassinato brutal de sua filha Daniela Perez.
Como visto, a referida lei surgiu através de um forte apelo midiático, característica de um “Direito Penal de Emergência”, o que consiste em um Direito Penal “que foge dos padrões tradicionais de tratamento pelo sistema repressivo, constituindo um subsistema de derrogação dos cânones culturais empregados na normalidade. Num certo sentido a criminologia contemporânea dá guarida a esse subsistema, colocando-o na escala mais elevada de gravidade criminosa a justificar a adoção de mecanismos excepcionais a combatê-la, embora sempre defenda o modelo de ‘estado democrático e de direito’ como limite máximo da atividade legiferante nessa seara”[13]. Para García-Pablos de Molina, este tipo de atitude por parte do Estado, reflete uma “política de gestos de encontro à platéia e à opinião pública”.[14]
O nosso ordenamento jurídico adotou o sistema legal para definir quais crimes são hediondos, significa que o legislador é quem decide quais crimes serão os crimes considerados hediondos. Dessa forma, o legislador rotula quais crimes são considerados de maior potencial ofensivo, estabelecendo quem será considerado o inimigo do Estado.
Saliente-se que não havia e nem há óbice legal ou constitucional para que, na criação da lei de crimes hediondos, fosse criado um sistema legal e judicial, o que não se confunde com o sistema misto, tendo em vista que para este ultimo o legislador definiria quais crimes seriam hediondos, em um rol exemplificativo, enquanto que o juiz, estaria livre, par a reconhecer outros crimes como hediondos.
Um sistema legal e judicial consistiria na tipificação de crimes hediondos em um rol exaustivo, pelo legislador, e dentro desse rol, o juiz, em face da sua liberdade de julgar e apreciar os fatos no caso concreto, decidiria se o crime teve caráter hediondo ou não.
A constituição federal estabelece que a lei considerará inafiançável a pratica de tortura, o trafico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos (art. 5º, inciso XLIII). Por isso, quando da edição da lei 8.072/90, em seu art. 2º, II, o legislador vedou a concessão de liberdade provisória para os referidos crimes.
Em face disso, grande parte da doutrina criticou duramente a vedação da concessão da liberdade provisória, alegando sua inconstitucionalidade fundamentando no fato de que a Constituição Federal vedou apenas a concessão de fiança, nada falando sobre a concessão da liberdade provisória.
Não obstante, criticou-se ainda que o legislador infraconstitucional estaria vedando a concessão da liberdade provisória para todos os crimes hediondos, e consequentemente, retirando a liberdade do magistrado em analisar o caso concreto, o que viola a atividade típica do Poder Judiciário.
Com a edição da Lei 11.464/2007, promoveu-se várias modificações na lei dos crimes hediondos, entre ela, a abolição da vedação absoluta da concessão da liberdade provisória, conforme vinha se manifestando grande parte da doutrina. Em face da referida alteração, aquele que comete crime um crime hediondo só será preso preventivamente se estiverem presentes os pressupostos da prisão preventiva, nos moldes do art. 312 e 313 do Código de Processo Penal.
Cumpre também registrar que a lei dos crimes hediondos, em seu art. 2º, estabelece que os condenados por crimes hediondos e equiparados devem cumprir a pena integralmente em regime fechado, vedando-se a progressão de regime. Em face disto, o STF, na apreciação do HC 82.959 reconheceu a inconstitucionalidade do referido artigo, com fundamento na violação do princípio da individualização da pena:
“Sustentávamos que, no caso, não havia que se falar em ofensa ao princípio constitucional da individualização da pena (art. 5º, XLVI), uma vez que o próprio constituinte autorizou o legislador a conferir tratamento mais severo aos crimes definidos como hediondos, ao tráfico ilícito de entorpecentes, ao terrorismo e à tortura, não excluindo desse maior rigor a proibição da progressão de regime. Tratamento mais severo é aquele que implica maior, e não igual, severidade. Tratar-se-ia de mandamento superior específico para esses crimes, que deveria prevalecer sobre o princípio genérico da individualização da pena (CF, art. 5º, XLVI). O condenado pela prática de crime hediondo, terrorismo ou tráfico ilícito de entorpecentes teve direito à individualização na dosimetria penal, nos termos do art. 68 do CP, ficou em estabelecimento penal de acordo com seu sexo e grau de periculosidade e, ainda por cima, tem a possibilidade de obter livramento condicional após o cumprimento de 2/3 da pena. Não se pode, à vista disso, considerar violado referido princípio, principalmente
quando o mesmo é restringido para atendimento de regra mais específica (CF, art. 5º, XLIII), bem como para evitar a proteção insuficiente de bens jurídicos a que o constituinte se obrigou a defender no caput desse mesmo art. 5º, quais sejam, a vida, o patrimônio e a segurança da coletividade. Por outro lado, nem de longe se pode acoimar de “cruel” o cumprimento de uma pena no regime fechado, sem direito a passagem para a colônia penal
agrícola ou a liberdade plena (caso do regime aberto, na forma como se processa na prática), na hipótese de homicidas, sequestradores, estupradores, traficantes de drogas etc. Do mesmo modo, não consta em nenhuma passagem do Texto Constitucional que o legislador inferior não poderia estabelecer regras mais rigorosas para o cumprimento da pena em delitos considerados pelo próprio constituinte como de grande temibilidade social. Finalmente, o princípio da dignidade humana possui uma tamanha amplitude que, levado às últimas consequências, poderia autorizar o juízo de inconstitucionalidade até mesmo do cumprimento de qualquer pena em estabelecimento carcerário no Brasil, o que tornaria necessário impor limites à sua interpretação, bem como balanceá-la com os interesses da vítima e da sociedade.”
Em 2007, com a entrada em vigor da lei 11.464, passou-se a permitir expressamente a progressão do regime nos crimes hediondos e equiparados.
Analisando, de forma especifica, os reflexos do Direito Penal do Inimigo na lei dos crimes hediondos, pode-se perceber que a referida lei tentou rotular os condenados a crimes hediondos como se fosse uma classe determinada de infratores, sendo, todos eles, independente do crime que praticou, tratado de uma forma igual, suprimindo qualquer possibilidade do magistrado analisar o caso concreto e aplicar os institutos possíveis aos outros crimes, invadindo a atividade típica do judiciário, e consequentemente, violando a separação do poder.
A lei dos crimes hediondos não levou em consideração, quando da sua edição, em nenhum dos seus artigos, a natureza ressocializadora que tem a pena e a sua execução, visando apenas o seu aspecto retributivo, pelo qual o condenado deve pagar pelo crime que cometeu.
A referida lei possui nítidas características do Direito Penal do Inimigo, em especial, o etiquetamento do condenado como um inimigo, a violação a direitos fundamentais observado na ausência de caráter ressocializador e a violação aos princípios do direito penal, bem como fora reconhecido pelo STF, no julgamento do HC 82.959, por violação do princípio da individualização da pena.
2.1.2 Da Lei de Drogas (lei 11.343/2006)
No presente capítulo o autor não irá analisar especificamente a lei de drogas em si, em seus aspectos dogmáticos, tendo em vista que muitos dos reflexos do Direito Penal do Inimigo foi abordado na análise dos crimes hediondos, uma vez que o tráfico ilícito de entorpecentes é delito equiparado a hediondo.
Será observado neste tópico dados estatísticos e sociais sobre a condenação de pessoas decorrente de condutas previstas na lei de drogas, para isto, será utilizados os dados da brilhante pesquisa de campo realizada .
Para o estudo deste tópico utilizar-se-á a brilhante pesquisa de campo “Tráfico e Constituição: um estudo sobre a atuação da justiça criminal do Rio de Janeiro e de Brasília no crime de tráfico de drogas” coordenada por Luciana Boiteux[15]. A referida pesquisa de campo “consistiu na coleta e compilação de dados extraídos de sentenças de primeira instância e de jurisprudência dos Tribunais nas condenações com base no artigo 33 da Lei de Drogas, com vistas à obtenção de dados concretos da operacionalidade real do sistema brasileiro de controle de drogas.”[16] e foi realizada no período compreendido entre 7 de outubro de 2006 e 31 de maio de 2008.
Cumpre-se, inicialmente, registrar que a referida lei não faz distinções quanto ao pequeno, médio e grande traficante de drogas, punindo, na maioria das vezes, o chefe da organização criminosa com o mesmo rigorismo que aquele que só obedece as suas “ordens”.
Outro aspecto relevante é de que o art. 33 da referida lei prevê 18 (dezoito) verbos nucleares, nos quais, aquele que comete qualquer um deles responderá pelo delito de trafico de drogas. É necessário observar a existência do etiquetamento e a violação ao princípio da proporcionalidade que o referido artigo comete, isso porque, qualquer um que cometa qualquer das dezoito condutas prevista no tipo de tráfico de drogas é punido da mesma forma.
Segundo BOITEUX, “a única possibilidade legal de moderação da pena está no § 4º do art. 33, que prevê uma causa especial de redução de pena em determinadas hipóteses”. Foi observado, na pesquisa de campo em comento, que houve uma grande polêmica na interpretação dada pelos juízes estaduais sobre a aplicação do privilégio previsto no art. 33, §4º para os acusado como “mulas” (transportadores de drogas), o que não ocorreu com os juízes federais.
Serão elencados, de forma resumida, os principais dados coletados na pesquisa de campo:
1. “Foi detectada a ausência de justificativa por parte do magistrado para denegar a redução da pena em 36,2% dos casos no Rio de Janeiro e em 39,7% dos processos da capital federal. Porém, o que mais chama a atenção é a quantidade de processos nos quais o juiz presume que o réu se dedique a atividades criminosas ou integre organizações criminosas, com base em meras suspeitas, ou seja, presume a sua culpabilidade para o fim de negar a redução das penas. No Rio de Janeiro tal situação ocorreu em quase 40% dos casos, enquanto que no Distrito Federal se deu apenas em 6,3% dos processos, ou seja, houve uma diferença significativa entre as cidades. Diante desses dados, tudo indica que um número significativo de pessoas não tiveram sua pena reduzida, pelo fato de alguns juízes terem rejeitado a aplicação da forma privilegiada do parágrafo 4o. do artigo 33, o que se considera incompatível com a Constituição, pois o juiz está presumindo a culpabilidade dos réus com base em meras conjecturas.”[17]
2. “Na análise qualitativa das sentenças, um dos juízes estaduais cariocas justificou a rejeição à redução da pena dizendo que “quem vende drogas em favelas e/ou comunidades dominadas por facções criminosas não pode fazer jus a tal benefício”16 – em referência ao § 4º do art. 33. Trata-se, portanto, de importante questão a ser investigada: se haveria preconceito dos magistrados cariocas com relação a moradores de favelas e se este fator prejudica o acusado na sentença, como parece ser o caso.”[18]
3. “[…] a incidência da causa especial de diminuição de pena prevista no art. 33, parágrafo 4o., percebe-se que os juízes federais do Rio de Janeiro reduziram as penas em 79,6% dos casos, enquanto que a justiça estadual o fez em apenas em 44,3% dos processos. Já em Brasília, isso ocorreu em 53,3% dos casos. a incidência da causa especial de diminuição de pena prevista no art. 33, parágrafo 4o., percebe-se que os juízes federais do Rio de Janeiro reduziram as penas em 79,6% dos casos, enquanto que a justiça estadual o fez em apenas em 44,3% dos processos. Já em Brasília, isso ocorreu em 53,3% dos casos.”[19]
4. “A atuação das autoridades nas localidades estudadas parecem estar direcionadas às camadas mais desfavorecidas da sociedade.”[20]
A pesquisa de campo supra comentada demonstra evidentes reflexos do Direito Penal do Inimigo não só na lei, mas também, na atuação do magistrado, presente no próprio poder judiciário.
Trata-se do etiquetamento, o que será comentando posteriormente, quando da abordagem das teorias criminológicas. A própria sociedade aprendeu a etiquetar, a criar um rótulo do infrator.
É inegável também que os próprios órgãos de repressão, como a polícia civil e militar está contaminada pelo etiquetamento, as quais, muitas vezes abordam pessoas com determinado fenótipo sob o fundamento de que na grande maioria da vezes pessoas com aqueles traços característicos tendem a cometer determinados crimes. Trata-se de rotular as características dos criminosos, como se faz no Direito Penal do Autor, bem como nos estudos da antropometria, estudada por Lombroso.
2.1.3 Do regime disciplinar diferenciado.
Antes de registrar os comentários significativos sobre os reflexos do Direito Penal do Inimigo, caberá trazer a disciplina legal que trata sobre o instituto, conforme o art. 52, da Lei de Execução Penal (lei 7.210/84):
“Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características:
I – duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada;
II – recolhimento em cela individual;
III – visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas;
IV – o preso terá direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol.
§ 1o O regime disciplinar diferenciado também poderá abrigar presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade.
§ 2o Estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando.”
Observa-se que o condenado pode ser submetido a um sistema de isolamento completo, em cela individual, desde o início da execução.
Um dos grandes problemas do RDD consiste na possibilidade de sua aplicação decorrente da “suspeita de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando”.
É fácil se constatar que o condenado pode ser encaminhado ao RDD apenas pelo fato de se suspeitar da sua participação, a qualquer título, em organização criminosa, quadrilha ou bando. Dessa forma, observa-se que o estado está restringindo as garantias fundamentais pelo simples fato da pessoa integrar organização criminosa, mesmo que ela não represente nenhum perigo para a ordem pública no ambiente do cárcere.
Trata-se, mais uma vez, das influencias do Direito Penal do Inimigo, que restringe as garantias fundamentais daquele que participa de organização criminosa, quadrilha ou bando, ainda que não represente nenhum perigo para o Estado. É uma características notável do direito penal do autor, na qual “não importa o que se faz ou omite (o fato) e sim quem – personalidade, registros e características do autor – faz ou omite (a pessoa do autor)”[21], “trata-se da desconsideração de determinada classe de cidadãos como portadores de direitos iguais aos demais a partir de uma classificação que se impõe desde as instâncias de controle. A adoção do Regime Disciplinar Diferenciado representa o tratamento desumano de determinado tipo de autor de delito, distinguindo evidentemente entre cidadãos e “inimigos”[22]
2.1.4 Da associação e organização criminosa.
Inicialmente, para fins didáticos, cabe elencar as diferenças entre os delitos de organização e associação criminosa, para então, analisar o seu aspecto ligado ao direito penal do inimigo.
O delito de associação criminosa está previsto no art. 288 do Código penal, o qual teve sua redação dada pela lei 12.850/2013. Prevê o referido artigo que constitui crime o ato de:
“Associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes:
Parágrafo único. A pena aumenta-se até a metade se a associação é armada ou se houver a participação de criança ou adolescente.”
Por outro lado, a lei 12.805/2013 (lei de Organização Criminosa), estabeleceu, em seu art. 1º, §1º, que:
“Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.”
Pode-se perceber que o delito de associação criminosa exige, no mínimo, a associação de 3 pessoas, a fim de cometer qualquer crime, cuja pena máxima seja inferior a 4 anos, enquanto que para a configuração do crime de organização criminosa exige a associação de no mínimo de 4 pessoas, para cometimento de crimes de caráter transnacional ou cuja pena máxima seja superior a 4 anos.
Predomina na doutrina que o bem jurídico tutelado pelos crimes sub judice é a chamada “paz publica”[23], ou ainda, segurança pública[24]. Trata-se de um bem jurídico genérico e por isso é atacado ferozmente pela doutrina, por violação aos princípios penais, em especial o da fragmentariedade e da intervenção mínima.
A tutela de bens jurídicos genéricos ou voláteis tem drásticas consequências, isso porque, em decorrência da grande dificuldade de se prever todas as formas agressão ao referido bem tutela, permite-se a intervenção do Estado, na qual ele é quem diz quando ou em quais situações o bem foi agredido, o que lhe permite grande margem de discricionariedade, legalizando-se condutas punitivas arbitrarias.
O meio pelo qual o Estado protege o bem jurídico da segurança publica nos crimes de organização e associação criminosa é através da antecipação de sua punibilidade. Dessa forma, consuma-se os referidos crimes com o simples ato de associarem-se, ainda que não venham, os agentes, a cometer o crime planejado. Trata-se de punir o agente que apenas cogitou ou praticou atos preparatórios como se estivesse consumado o delito.
2.1.5 Do porte de arma desmuniciado.
O Estatuto do Desarmamento (lei 10.826/2003), define, em seu art. 14, que constitui crime de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido o ato de “possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa”.
Desde então, questionou-se, por muito tempo, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, se o ato de portar arma de fogo desmuniciada e devidamente legalizada, constituiria crime ou não.
Passou-se a defender, de forma majoritária, que o bem jurídico tutelado pelo Estatuto do desarmamento seria a segurança publica, revelando-se, como um bem jurídico genérico, conforme comentou-se no tópico acima.
A doutrina e jurisprudência concordavam que se tratavam de um crime de perigo, ou seja, são aqueles que, para sua consumação, exige tão somente a probabilidade da ocorrência de um dano. Contudo, eles divergiam quanto a espécie do perigo, e se dividiam em duas correntes:
1) Defendiam que se tratava de crime de perigo abstrato, e por isso, o crime se configurava com a mera prática da conduta, tendo em vista que o perigo, neste caso, era presumido pela própria lei, independe da sua demonstração no caso concreto.[25]
2) Advogavam a tese de que se tratava de crime de perigo concreto, e por isso, para configuração do delito, devia ser demonstrado, no caso concreto, que houve algum risco de lesão ao bem jurídico tutelado. Para esses, a classificação de crime de perigo abstrato seria inconstitucional por violar o princípio da lesividade e da intervenção mínima.[26]
Levando-se em consideração que uma arma desmuniciada é um potencial para o cometimento de outros crimes, tal como o roubo, o STF resolveu colocar uma “pá de cal” na discussão, sedimentando o entendimento de que não se pode negar que uma arma de fogo, transportada pelo agente na cintura, ainda que desmuniciada, é propícia, por exemplo, à prática do crime de roubo, diante do seu poder de ameaça e de intimidação da vítima.[27]
Dessa forma, constata-se que da mesma forma que ocorreu no caso do delito de associação e organização criminosa, que tutelam bens jurídico genéricos, o Estado pune a mera conduta, presumindo o perigo, desconsiderando o princípio e função da intervenção mínima do Direito Penal, da lesividade e fragmentariedade.
A classificação do delito como de perigo abstrato tira a margem de liberdade do julgador, que fica impedido de analisar, se no caso concreto, houve ou não possibilidade de lesão ao bem jurídico tutelado, sendo uma verdadeira violação aos direitos individuais, sob o fundamento de proteção da sociedade.
3. Analise da validade e constitucionalidade do Direito Penal do Inimigo.
Antes de iniciar a análise da qual se pretende nesse capitulo, cumpre definir qual o conceito de validade do qual irá se utilizar.
Em busca da análise da eficácia do direito penal, Ferrajoli[28] afirma ser necessário a observância dos aspectos formais e substanciais para que uma lei seja considerada valida.
No que se refere aos requisitos formais, deve-se observar o processo legislativo de formação da lei, seguindo todas as suas etapas, e se este for observado corretamente, a lei passa a viger.
No entanto, ele ressalta que além da lei estar em vigência, para que uma lei penal seja considerada válida ela precisa observar o pressuposto substancial ou material, ou seja, ela deve estar em consonância com os direitos fundamentais.
Dessa forma, poderia uma lei estar vigente e não ser válida, desde que ela tenha observado o processo legislativo mas não esteja em consonância com o ordenamento os direitos fundamentais, porém, para ele, esta norma deveria ser expurgada do ordenamento jurídico.
Por outro ângulo, ao tratar de inconstitucionalidade, esta estaria configurada quando uma lei ou ato normativo, ou a interpretação de algum deles, for contraria ao que estabelece a constituição.
Passar-se-á então a analisar alguns aspectos necessários para se chegar a uma conclusão sobre a validade e constitucionalidade do Direito Penal do Inimigo no ordenamento jurídico brasileiro.
3.1. O Fenômeno do Neoconstitucionalismo.
O Constitucionalismo representa uma técnica específica de limitação do poder com fins garantisticos[29], que historicamente é divido em quatro fases:
1) O Constitucionalismo na Antiguidade Clássica, identificado por Karl Loewenstein como um tímido constitucionalismo. Observou-se entre o povo Hebreu que o Estado da época se caracteriza por ser teocrático, assim, o poder politico sofria uma limitação: não extrapolar os limites bíblicos, sua fiscalizada era exercida pelos profetas, os quais detiam tal legitimidade.
2) O Constitucionalismo durante a Idade Média, tratou-se de uma limitação formal do Estado, que se deu com a definição de alguns direitos individuais na Magna Carta de 1215.
3) O Constitucionalismo na Idade Moderna tambem consistiu na defesa dos direitos individuais, e foi marcado pelo Petition of rights, de 1628; o Habeas Corpus Act, de 1689 e o Act of Settlement, de 1701. Um grande marco do referido fenômeno foi a carta de franquia, a qual permitia a participação de súditos ao governo local, embora tenha sido destinada apenas a determinados homens.
4) O Constitucionalismo Norte-Americano foi marcado pelos contratos de colonização, um pacto firmado de mútuo consenso pelos recém chegados à América e que, por não terem encontrado um governo, precisaram definir regras que haveriam de governar-se.
5) O Constitucionalismo Moderno ou Contemporâneo foi marcado pelas constituições escritas, tal como a Constituição norte-americana de 1787 e a Francesa de 1791, que teve como preâmbulo a Declaração Universal dos Direitos dos Homens e do Cidadão de 1789, elegendo o povo como titular do poder.
Ultrapassado o Constitucionalismo, a doutrina construiu o Neoconstitucionalismo, ou o Constitucionalismo Pós-Positivista, no qual consiste, adequando-se para a realidade da constituição brasileira, na supremacia da Constituição, na presunção de constitucionalidade das normas e atos do poder público, na interpretação das leis conforme a Constituição, na sua unidade, razoabilidade e efetividade”.
O Neoconstitucionalismo consiste, de forma resumida e adequada a realidade brasileira, na limitação do poder autoritário do Estado, na prevalência dos direitos humanos, consagrando-se um Estado Democrático de Direito, no qual o povo é quem é o titular do poder, concretizando a soberania popular.
Pode-se notar que, de acordo com fenômeno do Constitucionalismo e sua evolução, a tendência da consolidação do Estado Democrático de Direito é a proteção do povo em face do Estado, vedando-se a violação aos direitos fundamentais, os quais devem ser implementados, ampliados e nunca violados ou reduzidos.
É o que a doutrina francesa designou de “efeito cliquet”, fazendo-se uma analogia com o instrumento utilizado pelos alpinistas, que não permite que eles venham a cair, mas tão somente subir. Defende-se que esse raciocínio deve ser usado da mesma forma para os direitos humanos, eles nunca podem ser reduzidos, somente ampliados, o que também foi designado pela doutrina brasileira de “proibição do retrocesso”.
3.2. Direitos Humanos, tratados e convenções e a Teoria do Cenário da Bomba-relógio.
Com a reforma do judiciário, que se deu com a Emenda Constitucional n. 45/2004, acrescentou-se um §3º ao art. 5º da Constituição Federal, com a seguinte redação: “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.
Dessa forma, o STF se manifestou sobre a natureza dos tratados e convenções internacionais que forem incorporados no ordenamento jurídico brasileiro, afirmando que:
“1) Se o tratado ou convenção versar sobre direitos humanos e ingressar no ordenamento jurídico brasileiro nos termos do art. 5º, §3º da Constituição Federal, ele terá natureza de emenda constitucional.
2) Se o tratado ou convenção versar sobre direitos humanos e ao ingressar no ordenamento jurídico brasileiro não observar o quórum previsto art. 5º, §3º da Constituição Federal, ele terá natureza de norma supralega, ou seja, acima da lei e abaixo da constituição.
3) Se o tratado ou convenção não versar sobre direitos humanos, ao ingressar no ordenamento jurídico brasileiro, ele terá natureza de lei ordinária.”
Com a publicação do Decreto nº.40 de 1991, foi promulgada a convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, a qual ingressou no ordenamento jurídico brasileiro como norma supralega. A referida convenção, traz expressamente, a vedação à tortura.
Neste sentido, Norberto Bobbio afirma que existem apenas dois direitos dentre os humanos que seriam absolutos, trata-se do direito de não ser escravizado e de não ser torturado.[30]
Pode-se perceber que a Constituição Federal brasileira estabeleceu expressamente a vedação da tortura ou tratamento desumano ou degradante, em seu art. 5º, inc. III, como também o fez a convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, supra citada.
Dessa forma, questiona-se se a vedação tortura seria um direito absoluto ou se haveria alguma situação em que ele seria relativizado, seguindo a regra da ponderação quando há confronto entre direitos humanos.
A discussão se torna ainda mais calorosa quando se analisa a “Teoria do Cenário da Bomba-relógio” (defusing the ticking bomb scenario), a qual recebeu grande aceitação após o acontecimento do 11 de setembro de 2001, com o ataque terrorista ocasionando a queda das “torres gêmeas”, como uma nítida característica do Direito Penal do Inimigo.
A “Teoria do Cenário da Bomba-relógio” autoriza a tortura de um terrorista suspeito de saber o local em que uma bomba prestes a explodir está localizada, por ser uma situação justificável em face de um bem maior, ou um mal menor.[31]
Evidentemente, existem argumentos contra e a favor da tortura no caso da teoria sub judice, haja vista que está-se diante da colisão de direitos humanos, motivo pelo qual deve-se utilizar a ponderação para sopesar qual dos direitos humanos em conflito deve prevalecer no caso concreto.
Sem adentrar em questões filosóficas, cumpre trazer interessante solução dada por Christiano Cruz Ambros, em artigo apresentado no 1º Seminário de Pós-Graduação em Relações Internacionais[32]:
“manteríamos a proibição legal e moral absoluta da tortura, utilizaríamos as mãos sujas de Walzer e os mecanismos de autorização ex ante e de responsabilização ex post para tratar de casos extremos no qual seriam possíveis interrogatórios coercitivos. Nesta solução, em um caso de CBR ‘Cenário da Bomba-Relógio’, o Presidente é o único que pode fornecer uma autorização ex ante para a utilização da tortura, todavia, esta autorização deve, necessariamente, ser advertida ao Congresso. Posteriormente ao fato da tortura, o Presidente, e somente ele, deve ser submetido à responsabilização ex post perante uma Corte e um Júri popular, que analisarão sobre a legitimidade e estrita necessidade da utilização da tortura naquela circunstância. Caso seja julgado que a tortura não tenha sido legítima, o Presidente pode sofrer impeachment e ser julgado em processo criminal. Qual a lógica desse mecanismo? Primeiramente, a dificuldade de se conseguir um contato direto com o Presidente já faz com que os interrogadores pensem duplamente sobre a real necessidade da tortura e se estão, de fato, diante um caso extremo. Para não sobrecarregar o Presidente com requisições para tortura, poder-se-ia prever punições administrativas para os oficiais que utilizassem de maneira irresponsável o mecanismo presidencial. Segundo, é imperativo que o Presidente notifique o Congresso caso autorize a utilização da tortura, pois é uma forma de controlar o próprio Poder Executivo e garantir que não haja uma série de autorizações secretas que nunca serão julgadas ex post. Finalmente, a responsabilização ex post pode ter consequências tão pesadas ao Presidente que garante que as autorizações sejam concedidas de maneira bem refletida (mesmo com as restrições de tempo que os casos CBR ‘Cenário da Bomba-Relógio’ impõem). O Presidente não irá arriscar colocar-se em uma situação vulnerável diante de seus adversários políticos se não tiver certeza de que se trata um caso extremo. Além disso, o Júri Popular garantiria que a sociedade mantivesse controle sobre as lógicas internas que o Estado como um todo pode estar envolvido.”
“Qual a falha desta solução? A falha está em não ver a tortura como uma instituição, e somente analisá-la como uma prática. Voltamos aqui à crítica utilitarista para a utilização da tortura. Ao pensar numa situação extrema, precisaríamos dos métodos de tortura mais eficientes para conseguir extrair as informações necessárias, e, portanto, os torturadores mais profissionais disponíveis. Onde se arranjariam estes torturadores profissionais se a prática da tortura é proibida? Poderíamos pensar em um único corpo nacional, diminuto e seleto, responsável pela tortura profissional. Mesmo assim, como iríamos treiná-los e manter suas técnicas atualizadas? Os argumentos consequencialistas-utilitaristas são bastante persuasivos em lidar com estas questões.“
“Mesmo que moralmente o CBR ‘Cenário da Bomba-Relógio’ coloque em xeque a proibição da tortura, as consequências possíveis a partir da utilização desta técnica, mesmo em determinadas circunstâncias extremas, são prejudiciais a qualquer regime democrático liberal. Portanto, nada pode justificar a utilização da tortura como um método de interrogatório.”
Não se pode perder de vista a nítida característica do Direito Penal do Inimigo na “Teoria do Cenário da Bomba-Relógio”, tal como a violação ao devido processo legal, a prática de tortura no interrogatório, a antecipação da punibilidade, a restrição de garantias como ampla defesa, contraditório, tratamento desumano.
A priori, poder-se-ia até pensar em admitir a teoria do cenário da bomba-relógio como exceção a vedação tortura, contudo, analisando-se a história mundial e a dos direitos humanos, é evidente que suas consequências, a longo prazo, admite a possibilidade de violação ao estado democrático de direito, permitindo o retrocesso dos direitos humanos, e até mesmo, um retrocesso do Neoconstitucionalismo, haja vista o grande poder que esta se dando ao Estado em face do Cidadão.
O que não se pode permitir é que a omissão estatal em investimentos na área da segurança pública e em mecanismos de prevenção ao crime cause pânico e medo na população, a fim de que ela própria aceite a violação dos direitos humanos pelo Estado por acreditar que assim ele conseguirá lhe manter segura. Isso porque, de acordo com a história mundial, tal prática apenas permitirá a violação ao estado democrático de direito, abrindo margem para a instituição de uma ditadura, o que não resolverá o problema da criminalidade.
3.3. O Direito Penal do Inimigo e a Criminologia.
Será analisado neste capítulo algumas teorias criminólogicas que possuem relação ou fundamentação com o Direito penal do Inimigo.
Inicialmente, cabe registrar que a criminologia é ciência empírica e interdisciplinar que se ocupa do estudo do crime, do infrator, da vítima e do controle social.
Lombroso foi um dos grandes pensadores da escola positiva da criminologia, considerado o pai da Antropologia Criminal, ele publicou em 1876 o livro O homem delinquente, o qual instaurou um período cientifico de estudos criminológicos.
Lombroso utilizou algumas ideias dos fisionomistas para traçar um perfil dos criminosos, examinando as características fisionômicas, fez uma comparação com dados estatísticos de criminalidade e através dos seus estudos, definiu que pessoas que possuíssem determinadas características fisio-morfologicas estava predestinadas a ser um criminoso.
Ele efetuou estudos sobre as tatuagens, constatando uma tendência à tatuagens nos dementes.
Destacou-se ainda os estudos de frenologia, no qual se buscava compreender o caráter, a personalidade e a criminalidade pelo estudo da forma da cabeça.
Para ele, o criminoso possuía as seguintes características: fronte fugidia, crânio assimétrico, cara larga e chata, grandes maçãs no rosto, lábios finos, canhotismo (na maioria dos casos), barba rala, olhar errante ou duro etc. Ele defendia a existência do “criminoso nato”, aquele que já nasce determinado a ser um criminoso, está intrinsecamente ligado à essência de determinada pessoa ser um criminoso, fundamentada no determinismo biológico, considerando que não havia liberdade de escolha diante de forças biológicas, pois o delinquente era compelido ao delito por forças incontroláveis da natureza.
É necessário registrar que “o método utilizado por Lombroso estava em consonância com o que se fazia numa época em que se necessitava racionalizar as desigualdades sociais e reformular o conceito de liberdade. O desenvolvimento do capitalismo demonstrou as contradições sociais e precisava de novas bases ideológicas para sustentá-las. Para cumprir este objetivo, conforme Rosa Del Olmo, o racismo teve um papel importante: os pobres eram pobres porque eram biologicamente inferiores. E essa afirmação poderia ser feita agora, apoiando-se na ciência. A superioridade – tal qual formulava o evolucionismo – era o resultado da seleção natural transmitida geneticamente. Os seres ‘inferiores’”[33].
Dessa forma, pode-se resumir que o direito penal criado a partir das ideias de Lombroso e da sua respectiva escola (positiva), possuía as seguintes características: “a) defesa Social: o direito penal é legítimo para defender a sociedade contra o crime e os criminosos; b) combate ao crime (diga-se aos criminosos) em defesa da sociedade: esta era a finalidade política do Direito Penal; c) proteger a sociedade afastando os indivíduos perigosos do convívio social: esta seria a tarefa/atividade do direito penal e da Justiça Penal; d) conhecimento que giraria em torno do homem criminoso, tomado como ser diferente, perigoso, anormal, subespécie humana: este era o ponto de partida do conhecimento penal. e) expansão do poder de punir: esta era a consequência deste direito penal.”[34]
É evidente a similaridade da teoria de Lombroso com o Direito Penal do Inimigo, tendo em vista que ambas defendem a existência de um inimigo, predefinido, que subverte a ordem, ambas defendem um direito penal em combate ao criminoso com fundamento na proteção da sociedade, ampliando-se assim, o poder de punir, e reduzido, consequentemente, os direitos humanos.
A teoria de Lombroso ainda é alvo de muitas críticas, haja vista que através dela pode-se “permitir, aos Estados totalitários, mecanismos de controle social punitivos altamente eficazes para a eliminação e exclusão de pessoas, independentemente da prática de algum fato criminoso.”[35].
Os estudos desenvolvidos por Lombroso e pela escola positiva da criminologia serviram para a fundamentação do direito penal do autor, e até mesmo, do Direito Penal do Inimigo. Obviamente embasado em ideias preconceituosas, por não conseguir resolver o problema da criminalidade, precisou-se atribuir a alguém o motivo da criminalidade:
“O enfoque dos estudos criminológicos deixaram de se preocupar com as causas do crime para indagar sobre o processo de criminalização: quem são os criminalizados?
Falar em “estudo científico do homem criminoso”, implica antes de tudo em perguntar “quem é o homem criminoso?” É o condenado por sentença penal condenatória transitada em julgado? A pessoa que pratica um crime e por ele é condenado torna-se “criminoso”? É a sentença então que transforma um homem acusado em um homem criminoso? “Criminoso” é apenas aquele que pratica crimes? Qualquer crime? Só os crimes graves? “Criminoso” é um adjetivo para apenas algumas pessoas? Na sociedade existem criminosos e não criminosos? Os criminosos são diferentes dos não criminosos? Onde está esta diferença? […]
“Criminoso” é um carimbo, uma etiqueta, ou um rótulo que se coloca em determinada pessoa ou grupos de pessoas, em determinado momento histórico e em determinado local.
Assim, ao invés de se falar em Homem Criminoso, melhor dizer: homem criminalizado.
Se o homem criminoso não existe, quando se fala em “homem criminoso” está se falando em quem? Quem são os “criminalizados”? Quem são as pessoas ou grupos de pessoas que historicamente são taxados de criminosos?”[36]
Em que pese alguns defenderem que a teoria de Lombroso não afetou o Direito Penal, sob a justificativa de que o este não tem por fim estudar os motivos do crime ou do infrator, é inegável que os estudos desenvolvidos por Lombroso afetou, ainda que de forma indireta, o Direito Penal brasileiro. Isso porque, por não conseguir conter a crescente onda da criminalidade, o legislador precisou atribuir a alguém a culpa, o que se chama do etiquetamento.
Ao agir dessa forma, o legislador retira toda a atenção da sociedade que estava voltada para si, e transfere para um inimigo, para quem ele indica que é o responsável pela criminalidade. É a criação de um inimigo pelo próprio estado, para que ele próprio não seja considerado como o inimigo da sociedade, tendo em vista a ineficiência em defendê-la.
Dessa forma, em contraponto a teoria desenvolvida por Lombroso, adentrando-se nas teorias sociológicas da criminologia, cabe analisar os aspectos da Teoria do Labelling Approach, surgida em 1960, nos Estados Unidos que teve como seus principais expoentes Erving Goffman e Howard Becker.
A referida teoria defende que a criminalidade não é uma qualidade da conduta humana, mas de consequência de um processo que se atribui tal qualidade, sendo um rótulo criado ao criminoso, através de um processo de estigmatização.[37]
Para os seus defensores, a única diferença entre um homem comum e um criminoso é o rótulo ou etiqueta que ele recebe. Não obstante, sustenta-se ainda que a seleção de quais atos devem ser considerados crimes, o que é realizado pelo legislador (criminalização primaria), produz uma criminalização secundária (reincidência), tendo em vista que o individuo que comete a conduta tida como criminosa, receberá um rótulo, e será visto pela sociedade como um criminoso ou um inimigo. Ainda neste sentido, defende Luiz Flávio Gomes:
“Um Direito penal com essas características carece de legitimidade: manipula o medo do delito e a insegurança, reage com um rigor desnecessário e desproporcionado e se preocupa exclusivamente com certos delitos e determinados infratores. Introduz um exagerado número de disposições excepcionais, sabendo-se do seu inútil ou impossível cumprimento e, a médio prazo, traz descrédito ao próprio ordenamento, minando o poder intimidativo das suas proibições.” [38]
Aquele que recebe o rótulo de criminoso, além de não conseguir ser reintegrado ou ressolcializado, passa a acreditar que ele é realmente aquilo que lhe estão rotulando, um criminoso, e como única opção que lhe resta, pratica novamente outros crimes.
3.4. A ordem constitucional e o Direito Penal do Inimigo.
Como foi demonstrado neste ensaio, o Direito Penal do Inimigo teve repercussões concretas no ordenamento jurídico brasileiro. Mas ele poderia se considerado válido ou constitucional?
Cumpre trazer a baila, para uma rápida análise, alguns dos mais importantes preceitos constitucionais:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III – a dignidade da pessoa humana;
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
II – prevalência dos direitos humanos;
Art. 5º – Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;
XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;
XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;
XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;
XLV – nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido;
XLVII – não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis;
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;
§ 1º – As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
§ 2º – Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
Art. 60, § 4º – Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
IV – os direitos e garantias individuais.”
De acordo com o que fora anteriormente exposto e observando os preceitos acima destacados, sem adentrar ao mérito de cada uma das características do Direito Penal do Inimigo, tratando-se deles como um único instituto, é inegável que o ele não possui amparo constitucional, nem convencional.
O Direito Penal do Inimigo viola os direitos e garantias individuais, direitos humanos, o estado democrático de direito, viola o princípio da igualdade e estimula o preconceito.
Dessa forma, qualquer lei que tenha por influência o Direito Penal do Inimigo, deve ser expurgada do ordenamento jurídico por carecer de validade substancial.
4. Conclusão.
O Direito Penal do Inimigo não se tratou de uma teoria nova e exclusiva, em verdade, ele já foi utilizado há muito tempo atrás, desde a época designada como “fase da vingança divina”, quando aquele que cometesse um ato considerado proibido perturbava os deuses, e por isso era punido e tratado como o inimigo do grupo.
Em várias outras passagens históricas o Direito Penal do Inimigo foi utilizado sob a fundamentação de instrumento de defesa da sociedade em face do criminoso, reduzindo direitos, aplicando-se penas sem sequer haver um julgamento, ainda que seja um julgamento simbólico, como no período do nazismo.
Observando tais fatos, algumas teses, e fundamentando no pacto social, Jakobs estruturou e criou a designação do Direito Penal do Inimigo, defendendo a sua aplicação sob o fundamento da defesa da sociedade.
O Direito Penal do Inimigo teve e ainda têm influências no ordenamento jurídico brasileiro, em especial: na lei dos crimes hediondos, na lei de drogas, no crime de porte de arma desmuniciada e na lei de organização criminosa.
Demonstrou-se que um Direito Penal que não observa o princípio da fragmentariedade, da última ratio, tutelando bens jurídicos que podem ser tutelados por outros ramos do direito, transforma-se em um direito simbólico, que dá margem a um processo de estigmatização, criando rótulos e etiquetas.
O Direito Penal do Inimigo trata-se tão somente de um instrumento utilizado pelo Estado para que ele diga quem é o inimigo dele e dá sociedade, ele aponta um responsável pelo aumento da criminalidade, transferindo a culpa para um inimigo, tipificando condutas que geralmente são praticadas por grupos determináveis de pessoas.
O Direito Penal do Inimigo, tolhe os direitos humanos, reduz as garantias individuais, permite a tortura, a pena de morte, a incomunicabilidade do acusado, bem como fere princípios constitucionais como o a ampla defesa, o devido processo legal, da presunção de inocência.
Não obstante tanta violação a Constituição Federal, a Tratados e Convenções internacionais, este Direito Penal não consegue resolver o problema da criminalidade, transmitindo apenas uma falsa sensação segurança para a sociedade, que acredita estar segura, embora as estatísticas demonstrem que o problema da criminalidade em nada foi reduzido.
A instituição de um Direito Penal do Inimigo implica no retrocesso dos direitos humanos, o que não é admitido em um Estado Democrático de Direito, sendo uma notável violação a Teoria da Neoconstitucionalismo.
Não obstante, a referida teoria carece de constitucionalidade e validade, não possuindo espaço no ordenamento jurídico brasileiro, por evidente violação aos direitos humanos e garantias individuais.
Se realmente existe um inimigo, pode-se afirmar que este inimigo é o próprio Estado, que diante da sua ineficácia no controle da criminalidade atribui a culpa a um terceiro ou para grupos determináveis de pessoas, que na verdade são vítimas do processo de estigmatização,
Dessa forma, além de se eximir de sua responsabilidade, o Estado recebe uma autorização tácita da própria sociedade, que está acuada e amedrontada com o crescimento exacerbado da criminalidade, permitindo-se que se reduza seus direitos individuais, na falsa esperança de que, através de punições mais dura, com aumentos de penas e restrições ao direito de defesa e liberdades individuais, o problema será solucionado, o que se denomina de doutrina do medo.
É evidente que o tolhimento das liberdades individuais implica na legalização do abuso do direito do Estado em face do particular, o que abre margem a instituição de uma ditadura transvestida de um estado democrático de direito.
Informações Sobre o Autor
Edvaldo dos Santos Veiga Junior
Graduado pela Universidade Católica do Salvador especializado em Ciências Criminais pela Universidade Anhanguera UNIDERP