O fenômeno do dolo e a embriaguez nos delitos de trânsito. Uma análise crítica da Lei 13.546/2017

Resumo: O presente trabalho tem por escopo examinar o impacto jurídico advindo da embriaguez nos delitos de trânsito e se destina à análise da relação porventura existente entre a ingestão de bebida alcoólica e o elemento subjetivo do injusto penal cometido, analisando criticamente a Lei n.º 13.546/2017.

Palavras-chave: Embriaguez; delitos de trânsito; elemento subjetivo; dolo ou culpa.

Abstract: This study aims to examine the legal impact of drunkenness in traffic offenses and intend to analyze the relationship between drinking alcohol and the subjective element of the criminal wrong committed, analyzing critically the law 13.546/2017.

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Keywords: Drunknness; transit crimes; subjective element; malice or fault.

Sumário: 1. Introdução. 2. Os crimes de trânsito e a inaptidão do dolo psicológico. 2.1. Dolo eventual x culpa consciente: uma visão tradicional. 2.2.dolo eventual x culpa consciente: novas tendências. 3. Os parâmetros normativos da vontade e os crimes de trânsito. Conclusão. Referências.

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por escopo examinar o impacto jurídico advindo da embriaguez nos delitos de trânsito e se destina à análise da relação porventura existente entre a ingestão de bebida alcoólica e o elemento subjetivo do injusto penal cometido.

Trata-se de matéria fecunda, envolta por controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais, cuja análise implica repercussões tanto teóricas, por servir de contributo à estipulação de balizas para a diferenciação de crimes dolosos e culposos de trânsito, quanto práticas, na medida em que, de acordo com a posição adotada, pode haver sensível alteração na reprimenda imposta pelas infrações penais cometidas.

Para a consecução deste objetivo, o artigo percorrerá um itinerário em que, no primeiro tópico, demonstrar-se-á que os parâmetros comumente utilizados para distinguir se o autor do fato agiu com culpa ou dolo são inábeis para a consolidação de decisões judiciais uniformes e suscetíveis de controle racional.

A partir desta abordagem, o presente trabalho exporá os principais critérios tradicionalmente eleitos para diferenciar o dolo eventual e a culpa consciente; bem como a forma como os Tribunais pátrios e diversos penalistas estão se posicionando sobre a aplicabilidade das lições acima na esfera dos crimes de trânsito praticados por motoristas embriagados; explicitando as deficiências encontradas.

Na sequência, buscar-se-á propor critérios menos infensos a arbitrariedades, com vistas a alcançar mais objetividade e segurança jurídica nesta seara.

Ao final, conclui-se que, independentemente do advento da Lei 13.546/2017, a embriaguez do motorista envolvido na prática de um delito de trânsito não é determinante para o reconhecimento da conduta dele como sendo dolosa ou culposa; merecendo ser sopesada com outros elementos de prova, todos voltados para a aferição objetiva e racional da vontade do autor do fato.

2. OS CRIMES DE TRÂNSITO E A INAPTIDÃO DO DOLO PSICOLÓGICO

O trânsito constitui uma circunstância indelével à sociedade moderna. Hodiernamente, independentemente do porte da cidade, a frota de veículos automotores em circulação é deveras significativa. Com efeito, é natural um aumento no número de acidentes automobilísticos.

O incremento no número de acidentes assume especial gravidade em virtude da falta de qualquer medida tendente ao aperfeiçoamento da infraestrutura viária e da carência de programas de conscientização e fiscalização efetivos.

Independentemente disso, é incontroverso que um dos principais fatores subjacentes aos acidentes automobilísticos é a embriaguez.

Entretanto, permanece absolutamente indefinido o impacto jurídico advindo da embriaguez nos crimes de trânsito.

Esta indefinição é alvo de críticas, sob o fundamento de que ela enseja a proliferação de decisões manifestamente antagônicas: ora se imputando resultados lesivos a motoristas embriagados a título de dolo (eventual), ora se imputando os mesmos resultados a condutores igualmente embriagados a título de culpa (consciente).

Contudo, concessa venia, causaria perplexidade exatamente o oposto, isto é, a absoluta identidade de decisões para todo e qualquer caso penal envolvendo a prática de delitos de trânsito por motoristas embriagados.

Exegese contrária implicaria uma estandardização insustentável do Direito Penal, mediante o abandono do real valor de todos os aspectos fáticos inerentes ao caso sob julgamento.

Destarte, a embriaguez, por si só, sem outros elementos do caso concreto, não pode induzir a qualquer presunção sobre o estado intencional do infrator na consecução do crime de trânsito.

Isto não significa que a diversidade de tratamento jurídico a situações fáticas similares não pode ser objeto de questionamento. Porém, o cerne da indagação deve ostentar natureza diversa, destinando-se à busca da racionalidade da decisão.

Em outros termos, a cizânia existente em torno da catalogação da embriaguez como pressuposto indicativo de culpa ou dolo é estéril. Isso porque enquanto o operador do direito almejar a descoberta da vontade psicológica do autor fato, sua tarefa está fadada ao insucesso.

A maior parte dos estudos em torno da temática em tela busca a identificação de critérios capazes de fornecer dados de índole interna do infrator. Todavia, tais parâmetros, independentemente do esforço do hermeneuta, são incapazes de impedir arbitrariedades, pois são insuscetíveis de controle e demonstração.

Afinal, a mente humana permanece sendo uma barreira intransponível ao operador do direito.

Os meios de prova existentes são incapazes de diferenciar um individuo embriagado que assume a direção de um veículo, pouco se importando com as conseqüências daí advindas; de outro, que acredita sinceramente na ausência de provocação de qualquer acidente.

Com efeito, o elemento anímico do autor do fato fica à mercê da crença do julgador, sem qualquer possibilidade de controle e em absoluto descompasso com o Estado Democrático de Direito.

Em suma, os critérios tradicionalmente adotados para distinguir o dolo da culpa são incapazes de garantir segurança no processo de diferenciação de conduta do motorista embriagado responsável pela prática de um crime de trânsito.

2.1. DOLO EVENTUAL X CULPA CONSCIENTE: UMA VISÃO TRADICIONAL

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É amplamente dominante o entendimento de que, no sistema jurídico brasileiro, o critério determinante de diferenciação entre o dolo eventual e a culpa consciente é o volitivo.

A maior parte dos penalistas tradicionais sustenta a tese de que o art. 18 do Código Penal pátrio[1] incorporou a teoria do consentimento ou da assunção do resultado.

Segundo Rogério Greco, o dolo eventual se perfaz mediante a aceitação do resultado danoso, in verbis:

“(…) fala-se em dolo eventual quando o agente, embora não querendo diretamente praticar a infração penal, não se abstém de agir e, com isso, assume o risco de produzir o resultado que por ele já havia sido previsto e aceito”. (GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral: Volume I. 10.ed. Niterói: Impetus, 2008, p. 190)

Na mesma ordem de idéias, leciona Damásio de Jesus o seguinte:

“Ocorre dolo eventual quando o sujeito assume o risco de produzir o resultado, isto é, admite e aceita o risco de produzi-lo. Ele não quer o resultado, pois se assim fosse haveria dolo direto. Ele antevê o resultado e age. A vontade não se dirige ao resultado (o agente não quer o evento), mas sim à conduta, prevendo que esta pode produzir aquele. Percebe que é possível causar o resultado e, não obstante, realiza o comportamento. Entre desistir da conduta e causar o resultado, prefere que este se produza.” (JESUS, Damásio. Direito Penal: Parte Geral. 30.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 290/291)

Paulo José da Costa Jr. perfilha o mesmo entendimento. Senão vejamos:
"(…) o agente assume o risco da realização do evento. Ao representar mentalmente o evento, o autor aquiesce, tendo uma antevisão duvidosa de sua realização. Ao prever como possível a realização do evento, não se detém. Age, mesmo à custa de produzir o evento previsto como possível." (COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Direito penal: curso completo. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 83)

Partindo da mesma premissa metodológica dos demais autores acima mencionados, Cezar Roberto Bitencourt estabelece a distinção entre os institutos do dolo eventual e da culpa consciente nos seguintes termos:

"Na hipótese de dolo eventual, a importância negativa da previsão do resultado é, para o agente, menos importante do que o valor positivo que atribui à prática da ação. Por isso, entre desistir da ação ou praticá-la, mesmo correndo o risco da produção do resultado, opta pela segunda alternativa valorando sobremodo sua conduta. Já na culpa consciente, o valor negativo do resultado possível é, para o agente, mais forte do que o valor positivo que atribui à prática da ação. Por isso, se estivesse convencido de que o resultado poderia ocorrer, sem dúvida, desistiria da ação. Não estando convencido dessa possibilidade, calcula mal e age." (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral, 1, 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 377-378).

Seguindo esta lógica, é remansoso o número de julgados referendando o entendimento acima, ora reconhecendo o dolo eventual, ora rechaçando sua ocorrência. Nesse sentido:

“RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. HOMICÍDIOS DOLOSOS NO TRÂNSITO. AUSÊNCIA CONFIGURAÇÃO DOLO. DESCLASSIFICAÇÃO PARA CRIMES ALHEIOS À COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI. POSSIBILIDADE. RECURSO IMPROVIDO. 
Não havendo, no caso dos autos, sequer indícios que permitam aferir que o réu agiu egoisticamente, anuindo com o resultado, ou seja, de que agiu com dolo eventual, é de rigor que se desclassifique os crimes dolosos contra a vida para outros alheios à competência do Tribunal do Júri. (TJMG – Rec em Sentido Estrito 1.0024.12.172004-9/001, Relator(a): Des.(a) Paulo Cézar Dias , 3ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 22/07/2014, publicação da súmula em 29/07/2014).

PENAL – DELITO DE TRÂNSITO – EMBRIAGUEZ – EXCESSO DE VELOCIDADE – CONDUÇÃO NA CONTRA-MÃO DIRECIONAL – EVENTO MORTE IMPUTADO AO AGENTE A TÍTULO DE DOLO EVENTUAL – IMPOSSIBILIDADE – JULGAMENTO – COMPETÊNCIA – JUÍZO SINGULAR. Em tema de delitos de trânsito, não se coaduna com o entendimento de que possa estar o agente imbuído do elemento subjetivo relativo ao dolo eventual, se este não assumiu o risco da produção do resultado, por mais reprovável e imprudente tenha sido a conduta por si desenvolvida, conforme se verifica nas situações de embriaguez ao volante, excesso de velocidade e condução na contramão direcional, admitindo-se, neste caso, a hipótese de culpa consciente. Recurso provido.(TJMG. RSE 1.0024.02.836699-5/001. Rel. Des. Reynaldo Ximenes Carneiro. Julgamento: 16/02/2006).

APELAÇÃO CRIMINAL – LESÕES CORPORAIS GRAVE E GRAVISSIMA – ART. 129, §1º, II E ART. 129, §2º, I E II, AMBOS DO CP – ATROPELAMENTO DE DUAS VÍTIMAS NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR – DOLO EVENTUAL CONFIGURADO – ASSUNÇÃO DO RISCO – RÉU QUE, APÓS INGERIR BEBIDA ALCOÓLICA, CONDUZIU SEU VEÍCULO IMPRIMINDO VELOCIDADE ACIMA DA PERMITIDA EM VIA OCUPADA POR TRANSEUNTES – ABSOLVIÇÃO – IMPERTINÊNCIA – CONDENAÇÃO MANTIDA – REDUÇÃO DA PENA-BASE – NECESSIDADE – INÍCIO IMEDIATO DA EXECUÇÃO DA PENA DIANTE DA CONFIRMAÇÃO DA SENTENÇA CONDENATÓRIA PELO ÓRGÃO COLEGIADO – POSSIBILIDADE – DESNECESSIDADE DE TRÂNSITO EM JULGADO DA CONDENAÇÃO – DECISÃO DO STF PELO JULGAMENTO DO ARE 964246.
Se há provas contundentes de que o acusado conduzia veículo automotor em velocidade incompatível com a via, após ter feito a ingestão de bebida alcoólica e em local ocupado por muitos transeuntes, assumindo, pois, os riscos dos resultados, de forma a evidenciar a ocorrência do dolo eventual, imperiosa se faz a sua condenação pelos delitos de lesão corporal em razão do atropelamento das vítimas.

– Havendo ligeiro excesso condenatório na fixação da pena-base, aderindo a padrões aritméticos sugeridos pela mais abalizada doutrina, imperioso se reduzi-la.
– Conforme determinação do Supremo Tribunal Federal no recente julgamento do ARE nº. 964246, há de ser adotado o entendimento de que, assim que exauridas as possibilidades de recurso em Segunda Instância (embargos declaratórios e infringentes), é possível o início da execução da pena condenatória confirmada pelo órgão colegiado, sendo prescindível o trânsito em julgado da aludida decisão.
V.V. A expedição de mandado de prisão e de guia de execução, após a prolação de Acórdão Condenatório por este Egrégio Tribunal de Justiça, com a finalidade de iniciar a execução da pena imposta, não fere o princípio constitucional da presunção de inocência, uma vez que, neste momento processual, encerrada está a p ossibilidade de reexame da matéria fático-probatória, encontrando-se formada a culpa do agente.”
 (TJMG –  Apelação Criminal  1.0151.12.000807-4/001, Relator(a): Des.(a) Jaubert Carneiro Jaques , 6ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 06/06/2017, publicação da súmula em 23/06/2017)

Outra parcela da doutrina sustenta a relevância da assunção do resultado lesivo, mas, a exemplo de Luis Flávio Gomes, agrega nova exigência para a caracterização do dolo eventual, exigindo que o autor do fato atue com indiferença em relação à produção do dano hostilizado pelo ordenamento jurídico[2].

Nessa direção, o Superior Tribunal de Justiça já prolatou aresto, enfatizando a relação entre o estado de indiferença entre o autor do fato e o reconhecimento do dolo eventual. Senão vejamos:

“RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. ELEMENTO PSÍQUICO. CIRCUNSTÂNCIAS DO FATO EXTERNO. INGESTÃO DE ÁLCOOL. EXCESSO DE VELOCIDADE. INDIFERENÇA ANTE O RESULTADO DANOSO.

DOLO EVENTUAL RECONHECIDO. CONDENAÇÃO. PROVA JUDICIALIZADA. PENA-BASE. QUANTUM. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.

1. O elemento psíquico do agente é extraído dos elementos e das circunstâncias do fato externo. Não há como afastar o decisum que reconheceu o dolo eventual em crime de homicídio na direção de veículo automotor, de forma fundamentada e com base nas provas dos autos, ao apontar sinais concretos do agir doloso, a saber, a ingestão de álcool, o excesso de velocidade e a indiferença do recorrente ante o resultado danoso.

2. A investigação conclusiva sobre a alegada ausência do elemento subjetivo do tipo demandaria incursão vertical sobre o extenso material probatório produzido sob o crivo do contraditório, vedada pela Súmula n. 7 do STJ.

3. Não se admite, no ordenamento jurídico pátrio, a prolação de decreto condenatório fundado exclusivamente em elementos informativos colhidos durante o inquérito policial. Sem embargo, o magistrado pode deles se utilizar para reforçar seu convencimento, desde que corroborados por provas produzidas durante a instrução processual, ou desde que essas provas sejam repetidas em juízo, exatamente como na espécie.

4. A morte prematura da vítima, que, aos 44 anos, deixou, especialmente, filhos órfãos, justifica a conclusão pela valoração negativa das consequências do delito.

5. Muito embora a ponderação das circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal não seja uma operação aritmética, com pesos determinados a cada uma delas, extraídos de simples cálculo matemático, o patamar utilizado pelo Tribunal de origem está bem superior às balizas fomentadas por esta Corte, que admite o acréscimo em até 1/6 da pena-base para cada circunstância judicial desfavorável, salvo peculiaridade que justifique incremento maior.

6. Recurso especial conhecido e parcialmente provido para reduzir a reprimenda imposta ao recorrente.” (REsp 1358116/RN, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 20/09/2016, DJe 10/10/2016)

Sob o ponto de vista eminentemente prático, a diferença entre os posicionamentos acima explorados é muito sutil, pois ambas conservam a principal fonte de problemas aqui hostilizada: a tentativa fracassada de buscar elementos de índole interna do agente criminoso.

É salutar a advertência de Cleber Masson no sentido de que a extração do dolo ou da culpa é derivada de circunstâncias fáticas, in verbis:

“[…] o dolo eventual, assim como o dolo direto, não tem a sua comprovação limitada ao psiquismo interno do agente. Extrai-se, ao contrário, das circunstâncias do caso concreto, tais como os meios empregados, a apreciação da situação precedente, o comportamento do agente posteriormente ao crime e sua personalidade, entre tantos outros que somente a vida real pode esgotar.” (MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado: Parte Geral: Volume I. 3.ed. São Paulo: Método, 2010, p. 282).

Ainda assim, enquanto mantidas as premissas destinadas à busca do elemento anímico do autor do fato, restará resguardado o risco de tradução da vontade à mercê do julgador.

A insegurança jurídica se agrava na medida em que aos poucos está se consolidando o entendimento de que cabe ao Tribunal do Júri dirimir controvérsia acerca do reconhecimento do dolo eventual ou da culpa consciente.  Nesse azimute:

“PENAL.  AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ACIDENTE DE TRANSITO.  MOTOCICLETA. MORTE E LESÃO CORPORAL GRAVÍSSIMA. MOTORISTA EM  ESTADO  DE  EMBRIAGUEZ. MOVIMENTOS EM ZIGUE-ZAGUE NA PISTA. DOLO EVENTUAL  OU  CULPA  CONSCIENTE.  APRECIAÇÃO DO TRIBUNAL DO JURI. IN DUBIO PRO SOCIETA. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.

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1.  Concluiu, o Tribunal a quo, que o ora agravante teria assumido o risco  de produzir a morte da vítima, devendo ser o réu pronunciado, cabendo, ao Tribunal do Júri, decidir se houve animus necandi ou não no  cometimento  dos crimes (dolo eventual versus culpa consciente).Precedentes.

2. Agravo regimental desprovido.” (AgRg no AREsp 1073734/MG, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 03/08/2017, DJe 16/08/2017)

“EMENTA: APELAÇÃO – HOMICÍDIO TENTADO NO TRÂNSITO – JULGAMENTO PELO TRIBUNAL DO JÚRI – PRELIMINAR – ALEGAÇÃO DE MENÇÃO AO SILÊNCIO DO RÉU PELA ACUSAÇÃO EM PLENÁRIO – AUSÊNCIA DE AUTOINCRIMINAÇÃO OU ARGUMENTO DE AUTORIDADE – REJEITA-SE – REEXAME DE PROVAS – ALEGAÇÃO DE CONTRARIEDADE À PROVA QUANTO À ADMISSÃO DE DOLO EVENTUAL – PLEITO DE RECONHECIMENTO DA CULPA CONSCIENTE – QUESTÃO A SER EXAMINADA PELOS JURADOS – ENTENDIMENTO QUE NÃO SE MOSTRA TOTALMENTE DISSOCIADO DA PROVA – APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SOBERANIA DOS VEREDICTOS – MANUTENÇÃO. 
– Se a menção ao silêncio do réu, feita pela acusação em Plenário, não teve conotação de autoincriminação ou argumento de autoridade, não se verifica a alegada ofensa ao disposto no art. 478, II, do CPP. 

A circunstância do agente, em estado de embriaguez, praticar tentativa de homicídio na condução de veículo automotor, não implica, por si só, tenha agido mediante dolo eventual, devendo ser analisada a totalidade das circunstâncias do caso, cabendo ao Tribunal do Júri o acolhimento ou não da tese desclassificatória

– Havendo nos autos indícios de que o réu praticou o crime sob efeito de álcool, em período noturno, sem possuir habilitação, não se mostra totalmente dissociada da prova a conclusão da ocorrência de dolo eventual na conduta. 

– Somente a decisão manifestamente contrária à prova pode ser desconstituída em segundo grau, e não aquela que encontra amparo no conjunto probatório, sob pena de ofensa ao princípio da soberania dos veredictos.”  (TJMG –  Apelação Criminal  1.0322.10.000649-1/002, Relator(a): Des.(a) Herbert Carneiro , 4ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 27/04/2016, publicação da súmula em 04/05/2016)

Isso não quer significar que o Tribunal do Júri não é dotado de aptidão para distinguir apropriadamente casos de dolo eventual de culpa consciente. Ao revés disso, não raras vezes, o jurado leigo alcança resultados muito mais coerentes com o ordenamento jurídico e as circunstâncias concretas.

Nada obstante, a tônica da discussão aqui travada é de natureza diversa, pois o objeto da crítica do presente ensaio é o procedimento eleito para a distinção travada entre os institutos do dolo eventual e da culpa consciente, independentemente do resultado do julgamento.

Malgrado discorde das conclusões de Rogério Greco, uma vez enfrentada a temática em tela a partir das premissas tradicionalmente empregadas pela doutrina pátria, revelam-se pertinentes os questionamentos apresentados pelo renomado penalista, in verbis:

"Não se pode partir do princípio de que todos aqueles que dirigem embriagados e com velocidade excessiva não se importam em causar a morte e mesmo lesões em outras pessoas. O dolo eventual, como visto, reside no fato de não se importar o agente com a ocorrência do resultado por ele antecipado mentalmente, ao contrário da culpa consciente, onde este mesmo agente, tendo a previsão de que poderia acontecer, acredita, sinceramente, que o resultado lesivo não venha a ocorrer. No dolo eventual, o agente não se preocupa com o resultado por ele previsto porque o aceita. Para ele tanto faz. Na culpa consciente, ao contrário, o agente não quer e nem assume o risco de produzir o resultado porque se importa com a sua ocorrência. O agente confia que, mesmo atuando, o resultado previsto será evitado.(…)

O clamor social no sentido de que os motoristas que dirigem embriagados e/ou em velocidade excessiva devem ser punidos severamente, quando tiram a vida ou causam lesões irreversíveis em pessoas inocentes, não pode ter o condão de modificar toda a estrutura jurídico-penal. Não podemos, simplesmente, condenar o motorista com dolo eventual quando, na verdade, cometeu a infração culposamente.". (Curso de Direito Penal – Parte Geral, Rogério Greco, Ed. Impetus, 10ª ed., 2008, páginas 208/209). 

Em suma, a orientação psicológica do autor do fato é intangível e, portanto, toda teoria fundada na descoberta do ânimo do infrator está fadada ao insucesso.

2.2. DOLO EVENTUAL X CULPA CONSCIENTE: NOVAS TENDÊNCIAS

Uma das principais expoentes da doutrina alienígena que critica o tratamento tradicional dispensado à temática sob estudo é Ingeborg Puppe, segundo quem as teorias volitivas facultam a manipulação arbitrária de conceitos e enseja a produção de decisões desiguais.

Segundo a autora, parafraseando Enéias Xavier Gomes, “o elemento volitivo é normativizado (…) tendo como base critérios de racionalidade e abandonando completamente o querer em sentido psicológico” (GOMES, Enéias Xavier. Dolo sem vontade psicológica: perspectivas de aplicação no Brasil. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017).

Destarte, para Puppe, o critério determinante de aferição do dolo funda-se na criação de um perigo qualificado, independentemente da vontade psicológica.

Eis interessante caso hipotético inteligentemente concebido pela jurista para expor as fragilidades das teorias volitivas, in verbis:

“Se o médico que realiza a única operação que pode salvar a vida do paciente, a qual porém é altamente perigosa, quer essa morte “eventualmente, caso ela ocorra”, ou “assumiu o risco de que ocorra, aprovando-a”, não faz nenhuma diferença para a licitude de seu agir. Desde que ele opere segundo os cuidados devidos, pode ele pensar e sentir o que bem quiser. O desejo de que o paciente não sobreviva à operação é, no máximo, uma expressão irrelevante de uma má disposição interna, e sequer tal será o caso, se o médico está, p. ex., convencido de que morrer seria o melhor para o paciente” (PUPPE, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. Tradução, introdução e notas de Luís Greco. São Paulo: Manole, 2004, p. 110).

Perfilhando a mesma linha de raciocínio de Puppe, Luís Greco, a partir do delineamento da vontade por um viés normativo, sustenta que o decisivo para o dolo é o sentido atribuído a ela pelo ordenamento jurídico a partir da exteriorização de uma conduta. Senão vejamos:

“É possível usar o termo vontade também num segundo sentido, não mais psicológico-descritivo, e sim atributivo-normativo. Aqui, vontade não é mais uma entidade interna à psique de alguém, mas uma atribuição, isto é, uma forma de interpretar um comportamento, com ampla independência da situação psíquica do autor. Dizer “a vontade do autor estava dirigida a X” significa, com base neste segundo entendimento, não a existência, em algum momento, de algo dentro da cabeça do autor suscetível de ser designado pelo termo vontade, mas sim que a melhor maneira de compreender o comportamento do autor é aquela que, de alguma forma, o aproxima daquilo que ele veio a realizar e o considera plenamente responsável por isso” (GRECO, Luis. Algumas observações introdutórias à “Distinção entre dolo e culpa Tradução, introdução e notas de Luís Greco. São Paulo: Manole, 2004 p.887)

Seguindo a mesma linha de pensamento, Enéias Gomes Xavier afirma o seguinte:

“(…) o elemento volitivo é alcançado por parâmetros normativos, com base em dados e critérios da racionalidade humana, das circunstâncias fáticas. (…) O elemento volitivo passa a ser analisado com base em valorações sociais e não em presunções intangíveis de realidades psicológicas” (GOMES, Enéias Xavier. Dolo sem vontade psicológica: perspectivas de aplicação no Brasil. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017, p. 116).

Neste panorama, o decisivo, ao invés de ser a vontade psíquica do agente, é o comportamento externado visto sob a ótica social e normativa.

Isto não significa que a lei possui liberdade irrestrita para traduzir o sentido da vontade subjacente ao delito.

Tanto é assim que a revogação do §2º do artigo 306 do CTB, adiante transcrito, representou um correto ajuste normativo, in verbis:

“§ 2o  Se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente: (Incluído pela Lei nº 12.971, de 2014)    (Vigência) (Revogado pela Lei nº 13. 281, de 2016) (Vigência)

Penas – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.”   (Incluído pela Lei nº 12.971, de 2014) (Vigência) (Revogado pela Lei nº 13.281, de 2016)

Afinal, é defeso a qualquer previsão legal buscar resolver controvérsias penais sem levar em consideração elementos fáticos e particulares do caso sob julgamento.

Nada obstante, recentemente, o legislador, por meio da Lei 13.546/2017, no afã de solver os problemas em torno da temática sob análise, revigorou a legislação outrora revogada, voltando a positivar os delitos de lesão corporal culposa e homicídio igualmente culposo na condução de veículo automotor sob os efeitos de bebida alcoólica. Senão vejamos:

Art. 3o  O art. 302 da Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997 (Código de Trânsito Brasileiro), passa a vigorar acrescido do seguinte § 3o:  

“Art. 302.  

§ 3o  Se o agente conduz veículo automotor sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:  

Penas – reclusão, de cinco a oito anos, e suspensão ou proibição do direito de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.” (NR)  

Art. 4o  O art. 303 da Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997 (Código de Trânsito Brasileiro), passa a vigorar acrescido do seguinte § 2o, numerando-se o atual parágrafo único como § 1o:

“Art. 303.  

§ 2o  A pena privativa de liberdade é de reclusão de dois a cinco anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo, se o agente conduz o veículo com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, e se do crime resultar lesão corporal de natureza grave ou gravíssima.” (NR)  

A principal novidade da legislação atual foi o endurecimento das penas, sob o pretexto de que o cometimento de crimes culposos derivados do consumo de bebida alcoólica são mais graves e, por conseguinte, merecem repressão mais rigorosa.

Nada obstante, conforme retro denotado, a circunstância acima explorada, embora atenda aos anseios da população, permanece sendo cientificamente incapaz de distinguir comportamentos dolosos e culposos.

Afinal, os critérios delimitadores do dolo, além de possuírem assento normativo, devem ostentar valor científico e se sujeitarem a uma análise individualizada e racional.

3. OS PARÂMETROS NORMATIVOS DA VONTADE E OS CRIMES DE TRÂNSITO

A principal pretensão almejada pela substituição da busca da vontade psicológica – intangível – pela descoberta da vontade normativa é o combate à formação de juízos arbitrários.

Em quaisquer das hipóteses, existe a possibilidade de falhas de julgamento. Todavia, a proposta em tela é eminentemente mais segura, pois se pauta na enumeração de critérios básicos de imputação sujeitos à demonstração probatória.

Muitas vezes, independentemente da posição adotada, haverá uma identidade de tratamento, sobretudo porque as regras de experiência regularmente empregadas nos julgamentos e a própria qualidade dos magistrados enseja a produção de decisões justas.

Entretanto, o posicionamento ora defendido fomenta maior probabilidade científica de produção de tratamentos uniformes, bem como resguarda maior aptidão para controle probatório.

Neste contexto, a vontade é interpretada a partir de uma compreensão social, compartilhada pela comunidade em que está inserido o autor do fato.

Com efeito, é relevante a intensa política encampada pelo Poder Público e a mídia para reprimir o consumo de bebida alcoólica por motoristas para a aferição do dolo.

Da mesma forma, é defeso ao infrator se furtar à responsabilização de sua conduta a título doloso sob o pretexto de que sua conduta exteriorizada é incongruente com seu desejo íntimo.

O autor do fato, ao criar um perigo intenso e idôneo para a produção de um resultado lesivo, atribui-se a si a vontade de produzi-lo, sob pena de desprezo às regras básicas de convivência social.

Com efeito, o volume de bebida alcoólica ingerido, o estado de embriaguez do autor do fato; associado à velocidade empregada no veículo automotor, à dinâmica do acidente e a todas as outras circunstâncias em torno do caso penal são fundamentais para explicitar o dolo ou não do suposto infrator.

Assim sendo, embora se repudie qualquer análise tendente à averiguação da subjetividade do autor do fato, a individualidade do sujeito não é desconsiderada, devendo as características pessoais dele serem contextualizadas dentro da órbita de julgamento.

CONCLUSÃO

A criminalidade no trânsito constitui uma faceta incontestável da vida moderna, especialmente em virtude da expansão da frota de veículos automotores associado à péssima infraestrutura viária.

A embriaguez no trânsito, outrora tolerada, é atualmente repudiada violentamente pelos principais meios de comunicação e incriminada pela legislação vigente.

Todavia, permanece indefinido o impacto jurídico advindo da embriaguez nos crimes trânsito, notadamente nos delitos dos quais resultam lesões ou a morte de vítimas.

É natural que acidentes automobilísticos de gravidade acentuada provocados por motoristas embriagados sensibilizem os julgadores e fomentem a aplicação de penas mais severas (a título de dolo).

Da mesma forma, é racionalmente complicado estabelecer associações subjetivas entre o resultado lesivo e a atitude interna do autor do fato.

Neste contexto, instaura-se um verdadeiro vácuo entre o pensamento do infrator no momento da conduta e o que o julgador intuiu que ele pensou na execução do ato.

O querer psicológico do autor do fato é intangível e toda tentativa de desvelá-la está fadada ao insucesso, pois não é suscetível de demonstração probatória, com base em elementos normativos.

Com efeito, em busca de mitigar o subjetivismo no corpo de decisões judiciais, mediante a criação de balizas mais transparentes de julgamento, sustenta-se a delimitação do dolo através de lentes normativas, a partir de uma análise individualizada do comportamento exteriorizado do autor fato cujo efeito foi a criação de um risco qualificado a um bem jurídico penalmente tutelado.

Logo, o estado intencional do infrator – embriagado ou não – na consecução do crime de trânsito torna-se indiferente.

O decisivo, pois, é a análise da embriaguez, associada a todas as outras circunstâncias em que se deu o delito de trânsito como elementos fáticos sujeitos a uma análise racional do risco produzido pelo infrator, fundada em critérios sociais, científicos e normativos.

Destarte, a Lei 13.546/2017 configura apenas um fator – normativo – para análise do impacto da embriaguez nos crimes de trânsito; e, apesar do recrudescimento das penas resultante dela, o novo diploma, por si só, é incapaz de resolver toda a problemática envolvendo o consumo de bebida alcoólica no processo de avaliação da natureza dolosa ou culposa da conduta praticada.

 

Referências
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______. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. TJMG –  Rec em Sentido Estrito 1.0024.12.172004-9/001, Relator(a): Des.(a) Paulo Cézar Dias , 3ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 22/07/2014, publicação da súmula em 29/07/2014. Disponível no sítio eletrônico < http://www.tjmg.jus.br/portal-tjmg/>. Acesso em 01 de outubro de 2017.
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Notas
[1] Art. 18 – Diz-se o crime: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Crime doloso (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;(Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Crime culposo (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
II – culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Parágrafo único – Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

[2] GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal: Parte Geral: Volume I.  São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 379.


Informações Sobre o Autor

Carlos Eduardo Fernandes Neves Ribeiro

Graduado em Direito pela UFJF. Pós-graduado em Ciências Penais pela UFJF. Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais. Ex-Procurador Federal. Ex-Analista Judiciário do TRE-RJ. Ex-Técnico Superior Processual do MPRJ


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