Presunção de inocência: uma terminologia adequada

Conforme salienta Souza Netto em obra especializada a respeito de Sistemas e Princípios do Processo Penal, sempre houve certa discordância doutrinária acerca da nomenclatura do “Princípio da Presunção de Inocência” constitucionalmente previsto no artigo 5º., LVII, CF. Considerável parcela dos estudiosos critica a expressão “Presunção de Inocência”, considerando-a imprópria e inapropriada mesmo, isso porque se o investigado ou réu fosse presumido inocente não se poderia contra ele proceder durante a “persecutio criminis”, seja na fase investigatória, seja na fase processual. O presumido inocente estaria blindado contra o aparato repressivo estatal de forma absoluta, de modo que autores como Manzini, Damásio Evangelista de Jesus, Julio Fabbrini Mirabete, entre outros, propõem como mais adequada a expressão “Estado de Inocência”, já que nesse caso o suspeito de cometer infração penal apenas não seria considerado culpado até sentença transitada em julgado, mas não presumido inocente. Esse “Estado de Inocência” permitiria a investigação a seu respeito, o processo criminal e, por fim, a alteração do “estado de inocência” para outro “estado” de condenado sempre que fosse comprovada sua culpabilidade mediante um devido processo legal. [1]  


Enfim, para tal corrente de pensamento a chamada “Presunção de Inocência” significaria uma condição estática em que o eventual suspeito de infração penal se tornaria intocável, vez que presumido inocente e contra um inocente nada se pode fazer. A presunção teria então o efeito de cristalizar a condição de inocência, tornando-a imutável e intocável pelo Estado.  Por outro lado a expressão “Estado de Inocência” teria caráter dinâmico suficiente para permitir a dialética investigatória e processual, capaz de ratificar a inocência ou mesmo de contradizê-la mediante a produção de provas suficientemente robustas para dirimirem qualquer dúvida. Afinal tratar-se-ia apenas de um “estado” que pode se alterar com o tempo e com a atividade persecutória estatal informada pelo devido processo legal.


Com o devido respeito é de se discordar de tal entendimento, defendendo-se a tese de que a nomenclatura “Presunção de Inocência” é tão adequada quanto “Estado de Inocência”. Na verdade a crítica acima mencionada decorre de certa falta de reflexão que leva a um equívoco quanto ao sentido da palavra “presunção”, seja no âmbito semântico, filosófico ou jurídico. Não obstante, tal concepção equivocada é frequentemente repetida e exerce atração nos meios acadêmicos, o que justifica a abordagem do tema neste trabalho, visando superar aquilo que Hilary Putnam descreveu como “o fascínio que todas as ideias incoerentes parecem exercer”. [2]   


Somente uma errônea compreensão da palavra “presunção” poderia levar alguém a crer que quando esta é utilizada pode petrificar uma condição e torná-la imune a alterações ou comprovações em contrário.


No vernáculo “presunção” tem duas acepções: primeiro pode significar a vaidade exagerada. É nesse sentido que se diz que “Fulano é um presunçoso”. Trata-se do autoengano daquele que se supervaloriza. [3] Note-se que já aqui a palavra “presunção” não tem força de impor uma verdade intocável, muito ao reverso, denota uma situação em que o presunçoso se autoengana e a presunção desmente a imagem falsa e supervalorizada que ele tem de si mesmo. Mas, não é esse o sentido em que a palavra é utilizada na expressão jurídica “Presunção de Inocência”.  Ali se trata de “conjecturar; supor; imaginar; entender, baseando-se em certas probabilidades; prever; pressupor; suspeitar”. [4] Dessa forma quando digo que “Presumo que haja alguém naquele quarto”, não estou afirmando nada com certeza e se a porta for aberta e não houver ninguém contradição alguma haverá com a minha frase inicial. Eu apenas pressupunha haver alguém ali, podendo haver ou não. A presunção não se confunde com a certeza e muito menos com a verdade. É apenas e nada mais do que um juízo de probabilidade.


Mas, é típico do mundo contemporâneo e seus relativismos, confundir, mesmo na seara ético – filosófica, presunção, certeza e verdade. Tudo acaba se mesclando numa miscelânea que produz insegurança e erro. Conforme aduz  Popper:


“O relativismo é um dos muitos crimes dos intelectuais. É uma traição à razão, e à humanidade. Suponho que o relativismo da verdade defendido por certos filósofos é uma consequência  da mistura das ideias de verdade e de certeza; pois, no que concerne à certeza, podemos, de fato, dizer que há graus de certeza, ou seja, mais ou menos certeza. A certeza também é relativa no sentido de que ela sempre depende do que está em jogo. Suponho, portanto, que ocorre aqui uma confusão entre verdade e certeza; e em vários casos isso também pode ser demonstrado”. [5]  Por isso dizer que há várias verdades, que há a sua verdade e a minha verdade é um absurdo lógico. O que pode variar são as certezas, que nada mais são do que estados de espírito mutáveis e variáveis. A verdade, por seu turno, é objetiva e absoluta; somente a certeza é subjetiva e relativa. [6]


Transpondo a questão para o campo jurídico, pode-se afirmar que é reconhecendo essa distinção entre certeza e verdade que se pode superar a falsa dogmática dicotômica da verdade formal e verdade real no processo. Atualmente assume-se que “a verdade almejada pelo processo é uma ‘verdade processual’, ou seja, ‘uma verdade judicial, obtida por um método processualmente legítimo’ e que ‘nada mais é  do que o estágio mais próximo possível da certeza’”. [7]


Pois bem, se a certeza é um conceito de natureza relativo – subjetiva, comportando alterações e refutações e, portanto, encontrando-se muito aquém do conceito de verdade (objetivo e absoluto) para o qual pode ser tão somente e no máximo um caminho de busca eterna [8], a presunção, que não se confunde com a certeza nem com a verdade, está ainda abaixo da primeira. A presunção, conforme já dito, sequer pode equiparar-se à certeza, muito menos à verdade incontestável. Ela não passa de um mero juízo de probabilidade encontrado na experiência daquilo que normalmente ocorre, daquilo que em regra acontece ou é. Na presunção nada mais se faz a não ser um raciocínio dedutivo em que se conclui do geral para o particular. Por isso, se a certeza é relativa, muito mais o é a presunção.


Em sua origem filosófica a presunção somente se concebe de forma relativa, podendo ser conceituada como um “juízo antecipado e provisório, que se considera válido até prova em contrário”. [9]


É somente no mundo do Direito, com sua faceta autopoiética revelada por Willke e Luhmann, que se apropriaram do conceito biológico de Maturana (autopoiese) [10] que se edifica a divisão das presunções em absolutas (“jure et de jure”) e relativas (“juris tantum”). Realmente no mundo jurídico se concebe a presunção absoluta como aquela que não admite contestação e a relativa como um “conceito antecipado, válido até prova em contrário”. [11] Mas, isso somente é possível porque o Direito tem realmente uma característica autopoiética. O Direito define e produz o próprio Direito e por isso pode se valer de ficções e presunções absolutas inviáveis em outros campos do saber como as ciências naturais ou exatas. [12] Por isso pode haver uma presunção legal absoluta de imputabilidade para os maiores de 18 anos mentalmente capazes e de inimputabilidade para os menores.  Isso não é verdade e nem sequer certeza, mas apenas uma presunção a que a lei dá força absoluta, inadmitindo prova em contrário. Mas, isso é um fenômeno que somente pode se conceber no mundo jurídico devido à conjunção entre Direito e Poder através da qual a normatividade impõe um dever ser, algumas vezes em conflito com o ser. Enfim, o Direito, por meio da norma, tem a faculdade de edificar um dever ser conveniente e oportuno a seus fins.  


É nesse mundo jurídico que se conforma o Princípio da Presunção de Inocência e em sua ereção não se emprega certamente qualquer ficção ou presunção absoluta. A Presunção de Inocência constitucionalmente fundada não foge do sentido vernacular e filosófico da palavra e, portanto, somente pode ser uma presunção relativa. Nessa qualidade ela obviamente permite prova em contrário e não veda ou blinda o imputado de investigações criminais, processos, medidas cautelares, prisões provisórias etc., desde que haja justa causa e proporcionalidade para tanto. Assim, havendo suspeita do cometimento de infrações penais, qualquer pessoa, embora acobertada pela Presunção de Inocência, pode e deve ser investigada e até processada criminalmente acaso haja substrato para tanto. Pode ser inclusive submetida a medidas invasivas de direitos fundamentais, sempre com  equilíbrio e respeito ao devido processo legal .


Conforme leciona Malatesta, a presunção se refere ao que é “ordinário” e o ordinário nos homens é a inocência, sendo o crime a exceção. Portanto, a Presunção de Inocência é naturalmente deduzida da vida real, já que a presunção diz respeito ao “ordinário” e não ao certo ou necessário. [13] Entretanto, não se confunde com a certeza e muito menos com a verdade intocável, conforme erroneamente alguns entendem ao rechaçar a terminologia “Presunção de Inocência”.  O raciocínio presuntivo é afeto à probabilidade, “partindo da premissa do ordinário modo de ser das coisas” e chegando “apenas a conclusões prováveis”. É somente na certeza que parte da “premissa do constante modo de ser das coisas”, chegando-se a “deduções certas”. [14]


Assim sendo, toda crítica à expressão “Presunção de Inocência” é produto de uma falta de reflexão adequada sobre a natureza da presunção em geral (no âmbito semântico e filosófico) e especificamente da Presunção de Inocência em sua aplicação jurídica que se faz em consonância interdisciplinar com os demais campos do conhecimento antes mencionados, de modo que somente pode se conformar como uma presunção relativa ou “juris tantum”, afastando qualquer possibilidade de blindagem absoluta do indivíduo suspeito de cometimento de infração penal ou impropriedade terminológica na denominação do princípio constitucional em destaque.


Finalmente deve-se salientar que embora o termo “Estado de Inocência” não seja de todo inapropriado, é, na verdade, bastante preferível a terminologia usual da “Presunção de Inocência”, na medida em que a presunção faz com que o ônus da prova se coadune com o sistema processual penal em que o acusado ou investigado nada tem que provar, cabendo ao Estado, por meio do órgão persecutor, comprovar a culpabilidade. Isso porque há realmente, militando a favor do réu ou investigado, uma presunção legal de inocência, que o libera do ônus probatório e o favorece com a regra do “in dubio pro reo” (Princípio do “Favor Rei”). A presunção legal, ainda que “juris tantum”, tem essa propriedade de liberar aquele por ela beneficiado do “onus probandi”, que é exatamente o que ocorre com a “Presunção de Inocência” em absoluta consonância com as regras garantistas de um devido processo legal democrático. Note-se que um mero “estado”, comporta muitas vezes a necessidade de prova, como ocorre com o estado civil das pessoas, com a condição, por exemplo, de idoso para se beneficiar de garantias especiais, entre outros. Por isso a palavra “presunção”, longe de ser inadequada, é totalmente coerente com a conformação de um Processo Penal Democrático e Garantista, sendo oportuna a lembrança da visão de Binder quanto à real finalidade do Processo Penal e do Direito em geral, que é a de garantia do indivíduo em relação ao Poder Estatal, surgindo o Direito, e em seu seio o Princípio da Presunção de Inocência, sempre como um limite a um Poder arbitrário. [15]


 


Referências bibliográficas:

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Ivone Castilho Benedetti. 4ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

BINDER, Alberto M. O descumprimento das formas processuais. Trad. Ângela Nogueira Pessôa e  Fauzi Hassan Choukr.. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2003.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa.  8ª. ed.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1949. 

GOYARD – FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurídica. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal. Trad. Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1996.

NAGEL, Thomas. A última palavra. Trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Unesp, 2001.

NUNES JÚNIOR, Flávio Martins Alves. Princípios do Processo e outros temas processuais. Volume I. Taubaté: Cabral, 2003.

POPPER, Karl Raimund. Em busca de um mundo melhor. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

PUTNAM, Hilary. Realism and Reason: Philosophical Papers. Volume 3.  Cambridge: Cambridge University Press, 1983.

SIDOU, J. M. Othon (org.). Dicionário Jurídico da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.  9ª. ed.  Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.

SOUZA NETTO, José Laurindo de. Processo Pneal Sistemas e Princípios. Curitiba: Juruá, 2004.

 

Notas:

[1] SOUZA NETTO, José Laurindo de. Processo Pneal Sistemas e Princípios. Curitiba: Juruá, 2004, p. 159 – 160.

[2] Apud, NAGEL, Thomas. A última palavra. Trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Unesp, 2001, p. 23. Ver também no original: PUTNAM, Hilary. Why reason can’t be naturalized. In: IDEM, Realism and Reason: Philosophical Papers. Volume 3.  Cambridge: Cambridge University Press, 1983, p. 194.

[3] FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa.  8ª. ed.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1949, p. 1003. 

[4] Op. Cit., p. 1003.

[5] POPPER, Karl Raimund. Em busca de um mundo melhor. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 16 – 17.

[6] Op. Cit., p. 17.

[7] NUNES JÚNIOR, Flávio Martins Alves. Princípios do Processo e outros temas processuais. Volume I. Taubaté: Cabral, 2003, p. 109. O autor ainda traz à colação o escólio no mesmo diapasão de Ada Pellegrini Grinover.

[8] POPPER, Karl Raimund. Op. Cit., p. 14 – 15.  No campo científico em geral, por exemplo.

[9] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Ivone Castilho Benedetti. 4ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 790.

[10] GOYARD – FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurídica. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 220 – 221.

[11] SIDOU, J. M. Othon (org.). Dicionário Jurídico da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.  9ª. ed.  Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 679.

[12] GOYARD – FABRE, Simone. Op. Cit., p. 221. É claro que a autopoiese do Direito não pode ser acatada de forma absoluta e acrítica, tornando esse campo imune a valores e influências externas e concebendo a criação jurídica como algo pasteurizado, hermético, meramente operacional, formalista e funcional. No entanto, é inegável que Willke e Luhmann expuseram um problema epistemológico da ciência normativa que é o Direito, qual seja, que seu objeto de estudo  é produto de sua própria criação.

[13] MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal. Trad. Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1996, p. 133 – 134.

[14] Op. Cit., p. 178.

[15] BINDER, Alberto M. O descumprimento das formas processuais. Trad. Ângela Nogueira Pessôa e  Fauzi Hassan Choukr.. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2003, p. 41.


Informações Sobre o Autor

Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.


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