Redução da maioridade penal: o Brasil numa encruzilhada ética

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“Nós dizemos não. Nós nos negamos a aceitar essa mediocridade como destino”(Eduardo Galeno)

Introdução

Todo fumante inveterado sabe que um dia poderá encontrar-se com seu câncer. Todo bebedor desregrado está sujeito à sua cirrose. Todo que planta, alguma colheita aguarda.

Por isso é que se, como advertiu ORTEGA Y GASSET[1], todo homem é produto da sua circunstância, nenhum país escapará de ser condicionado por sua história. Perceber as origens das muitas mazelas da atual crise brasileira é fundamental para a melhor terapêutica, que não diz respeito apenas à ciência jurídica ou à política criminal, mas à vida, vista da forma mais ampla e integral, com seus saberes e práticas.

Em busca de solução fácil, rotineiramente, confunde-se conseqüência e causa. O fato é que a sociedade brasileira não está doente porque os adolescentes delinqüem. Porque a sociedade está doente é que crianças e adolescentes, com freqüência – patologias à parte – se tornam infratores. Adolescentes infratores são apenas um dos vários sintomas, da mesma forma que tremores não são a doença de Parkinson, em si, mas uma das suas formas de exteriorização.

Neste trabalho falaremos de um assunto momentoso que constrange as consciências onde ainda sobra a centelha humanitária de autonomia não abafada pela enxurrada de dados e factóides da indústria de manipuladores da caverna de Platão.

O Brasil nu em sua verdade crua

Somos produto da nossa história acidentada e de ética tormentosa. De um país inaugurado a partir de um acidente de comércio internacional, e depois paradisíaco abrigo de ‘náufragos, traficantes e degredados’ no título bem sacado por EDUARDO BUENO[2], devemos a Napoleão Bonaparte – quando, invadindo Portugal, obriga o deslocamento da família real – a efetiva fundação do país. E seguimos, com os muitos artificialismos que marcaram nossa biografia. Independência como acordo de família. Golpe da maioridade entregando o país ao comando de um nobre menor abandonado. Abolição da escravatura sem libertação efetiva e sem reparação devida. República de quartelada e ‘café com leite’. Federação de cima pra baixo, com estados sempre em beija-mão na sala do trono nunca desativada. Entrada no século XX por força da ditadura do Estado Novo. Redemocratização sob comando militar. Golpe militar que se traveste em Revolução Redentora. ‘Democracia relativa’ tanto quanto a mulher ligeiramente grávida. ‘Nova República’ com os velhos republicanos de sempre. ‘Constituição cidadã’ boicotada pelo Centrão prorrogado e favorecido pela emergência do neoliberalismo exterminador de direitos e solidariedade. E, last but not least, a chance de efetiva virada perdida na ascensão do presidente operário que optou por pragmatismo conformista e assistencialista em vez da ruptura conseqüente, ainda que tópica, que coroaria décadas de construção das lutas sociais numa refundação do país sobre bases mais fraternas.

Em paralelo, determinadas mitologias cheias de auto-estima ufanista como as do “brasileiro cordial”, “democracia racial”, “país sem terremotos”, “patropi”, “país do jeitinho”, onde além de tudo, agora “operário chega ao poder”, e, mesmo, a carnavalização da cultura brasileira, facilitando o amortecimento consentido pelo oprimido ao verdadeiro apartheid social em que se organiza, com grades invisíveis, a nossa sociedade campeã – ou vice, como queiram – em desigualdade[3].

As ‘casas-grandes’ dos luxuosos condomínios da Barra da Tijuca e Zona Sul cariocas ou dos Jardins paulistanos aprenderam a conviver com os negros e pobres das senzalas somente transferidas à distância segura das periferias insalubres ou aos morros tão próximos quanto precários. Durante o ano, os miseráveis, sem saúde ou assistência, seres invisíveis e sem biografia, carpindo na solidão seus anônimos ‘joão-hélio’, descem para limpar-lhes os banheiros. No Carnaval, os poucos que conseguem desfilar nas agremiações de suas comunidades, nobreza coberta de dourado e lantejoula, dividem o mesmo samba-enredo com os senhores de engenho. Tudo entre cerveja, tamborins e suor igualitário terminando numa apoteose de ilusão.

É por isso que o Brasil parece uma eterna quarta-feira de cinzas. Ou seja, o lusco-fusco entre a realidade que se pretende adiar e o sonho que se espera eternizar. No dia seguinte, volta a circular a 2ª maior frota de helicópteros particulares do mundo, as socialites vão às Daslus adquirir por 10 ou 15 mil reais não um produto, mas os dois centímetros quadrados de etiqueta que ele carrega. No caminho, de seus carros blindados, aromatizados e climatizados, contemplarão, com um sorriso de quem faz um safári, os malabaristas de sinal bisando seu show famélico. Talvez amanhã participem de uma ONG para distribuir sopas e camisetas aos desempregados e descamisados pela lógica perversa do sistema que seus maridos administram.

Que país é este? É a pergunta que não pára de ecoar da garganta aberta do poeta morto. O contrato social de Rousseau se pretende um acordo entre iguais para estabelecimento da vontade geral que guiará a todos no gozo das suas liberdades. Entretanto, nas bases excludentes em que a coisa está posta no Brasil, onde desde sempre alguns são mais iguais que outros, e não pactuam com todos mas contra todos, uma sociedade como esta, não tem como dar certo, posto que não pode ser verdadeiramente livre.

Por isso é que a discussão sobre a redução da maioridade penal embora passe por dentro de um cipoal vasto de questões como política criminal, interpretações constitucionais e legais, dados psicológicos, dentre outros, não poderá fugir – preliminarmente – do encontro que o país precisa fazer com sua própria verdade.

Questões jurídicas e questões práticas

Sou dos que partilha o entendimento de ser a maioridade aos dezoito anos, estabelecida no Art. 228, um direito constitucional que têm os adolescentes frente ao Estado repressor, que se afina com o direito fundamental à liberdade, eis que pode ser tido como condição de seu exercício, exigindo abstenção punitiva penal por parte do poder estatal. Logo, recebe status de cláusula pétrea. É que, como já é bem conhecido de todos os que se preocuparam com o tema, não se limitam os direitos garantidos pela Carta Constitucional ao elenco do art. 5º, conforme clarifica seu parágrafo 2º, sendo que o parágrafo 4º, IV do artigo 60 veda a possibilidade de proposta tendente a abolir ou restringir direito ou garantia, a não ser por Constituinte originária. Posição esta já manifestada pelo Supremo Tribunal Federal em julgado em que tratou-se de construção técnica similar[4].

Data venia, não parece valer nem mesmo o recente raciocínio[5], de que se petrificou a garantia sem que o mesmo se dê com seu marco de contagem. Em nossa formulação constitucional, a maioridade penal confunde-se com a demarcação temporal que a expressa. No caso, o adjetivo é inerente ao substantivo e o determina.

Fico em boa companhia ao entender também impossível o rebaixamento da maioridade penal em função de ditame constitucional que incorpora ao nosso ordenamento os tratados internacionais firmados pelo Brasil. Aí se inscreve a Convenção dos Direitos da Criança, onde 180 países signatários definiram ‘criança’, genericamente, como sendo todo aquele com menos de 18 anos de idade. O art. 41 desta Convenção, aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 1989, veda o agravamento de suas legislações internas em desfavor do menor de 18 anos.

Somo igualmente na visão de se estar atirando em alvo errado, ao buscar-se, em sanha persecutória, atingir-se o adolescente, artificialmente erigido a origem de todas as mazelas da nossa dura realidade. Os números estão dados. Não é justo que se trate como bode expiatório segmento de população estimado em 15% de adolescentes, se responde por apenas 1% do total de crimes violentos praticados no país[6]. Ou o equívoco é sincero e aí, cumpre acordar o incauto, ou é mera manobra diversionista. Até porque, ao contrário, o Brasil é campeão em mortalidade infanto-juvenil por meios violentos. Em texto constante do sítio da Sociedade Brasileira de Pediatria se firma: “Não existe Nação, entre as 65 comparadas, onde os jovens morram mais vitimados por armas de fogo do que no Brasil”.

Os números gritam. Em São Paulo, em 1940, a cada 100 jovens com idade entre 15 e 24 anos, apenas 1,2 morria de homicídio doloso. Em 1989 esta taxa alcança 35 em 100, sendo que o maior coeficiente está compreendido entre adolescentes de 15 a 19 anos[7]. O IBGE informa que entre 1980 e 2000 as taxas masculinas de mortalidade por homicídios saltaram de 21,2 para 49,7[8]. Na cidade do Rio de Janeiro, em 2005, ocorreu o recorde de óbitos violentos de jovens à surpreendente taxa de 227,4 por 100 mil habitantes. Aliás, a relação adolescente vítima de violência x adolescente autor de violência é de 10 para 1[9]. A pesquisadora MIRIAM MESQUITA PUGLIESE DE CASTRO, citada por Sylvia Leser de Mello sugere duas teses: “que se pode configurar no Brasil, uma situação próxima do extermínio, no que tange às mortes de jovens; que se pode configurar, também, a quase absoluta impunidade dos matadores[10].

Entendo também – como vem insistentemente aclarando autoridades no tema, como o Promotor de Justiça paranaense MURILO JOSÉ DIGIÁCOMO e o destacado magistrado gaúcho, Dr. JOÃO BATISTA SARAIVA[11] – que há muita confusão na exposição dos números e dados de outros países. Não é verdade que a maioria adote responsabilização penal plena em idade inferior à da lei brasileira. Há confusão de terminologia e interpretação dos critérios para qualificação de alguém como adulto, bem como para responsabilização criminal efetiva, que difere da responsabilização penal juvenil. Esta, por mais discordâncias filosóficas ou terminológicas que ainda prevaleçam – talvez mais entre operadores do que entre estudiosos – adotou-se no Brasil, sob a expressão do que se tem denominado de ‘responsabilização estatutária’.

Acho que a saída por baixo, tentando modificar-se o ECA, como forma de implantar por lei ordinária algum subterfúgio que drible a vedação constitucional, também é desairosa e mascara com remédio errado diagnóstico conhecido mas não revelado. O antitérmico que mitiga a febre pode matar, se impede a descoberta da causa. Não resolve aumentar o tempo das medidas. Mudanças no ECA? Não existe construção humana perfeita, logo, é possível que o ECA precise de escoras e reparos[12]. Mas, neste clima, rascunhando sobre a perna, com os apressados fuzis da opinião pública manipulada, com seus canos em nossos ouvidos, como pensar em mudar lei à qual sequer se deu chance de ação ampla e aplicação efetiva? Até porque se o ECA precisar, precisa de apertos de parafuso, e não de que lhe derrubem as paredes.

Acho que o problema da criminalidade pode se agravar com o acesso precoce de secundaristas do crime à pós-graduação dos presídios adultos, inscrevendo-nos numa cápsula do tempo de retorno às trevas da penalização indiferenciada, igualando desiguais. Com os cárceres desumanos, odiosos e superlotados que viraram depósitos de gente-lixo (que é como os tratamos), com déficit de 140.000 vagas, não se recupera ninguém. São ‘navios negreiros’ no arguto dizer de CLÁUDIO BALDINO MACIEL, quando Presidente da Associação de Magistrados Brasileiros[13]. Navios negreiros, não esqueçamos, que atiravam ao mar, na mesma vassourada, cadáveres infectos e excrementos.

Os jovens que sobreviverem a tamanha prova de doutorado do mal, apenas voltarão, como oficiais, desta feita para assumir o comando de tropas de infantes recrutas cada vez mais jovens. É evidente que disso pode-se ter agravamento da crise e, a seguir-se o raciocínio atual, a prisão de recém-nascidos. Basta que sejam pretos. Basta que sejam pobres. Basta que nasçam. Ou então, como já se acinzenta no horizonte, que venha o aborto, não o supostamente progressista, mas sim o eugênico, que ‘mata o mal na raiz’. Como povos remotos, ou como gregos e romanos puristas, atiremos os defeituosos, que maculam a paisagem e a raça, do alto dos abismos ao fundo dos rios, já que o banho-maria dos nossos Auschwitz ou bantustões não tem sido o bastante para isolá-los.

Ponto relevante a verificar é, também, a ineficácia do agravamento da legislação penal. O Marquês de BECCARIA já alertara para o fato de que o que intimida o criminoso não é a dureza da pena prescrita, mas a certeza da punição. RICHARD D. SCHWARTZ e SONYA ORLEANS em ensaio denominado “Sobre Sanções Legais”, afirmam que a história, a análise de casos e a experimentação não autorizam afirmar que penas mais graves inibem o comportamento ilícito. Citam experimentos psicológicos:

“Em geral, psicólogos estudando a aprendizagem animal concordam em que a punição somente reduz a probabilidade da ocorrência do comportamento punido quando contribui para a aprendizagem de respostas alternativas. Se o indivíduo punido por alguma razão repete a resposta punida após a punição (R>Pun>R), aquela resposta pode, subseqüentemente, tornar-se mais provável como resultado. Sob outras condições, a punição pode temporariamente inibir a resposta que se segue, mas a resposta aumenta em freqüência em seguida à cessação da punição. Quanto mais severa a punição sob tais circunstâncias, maior a motivação para a resposta punida. Mesmo quando uma alternativa socialmente aprovada está disponível, a ameaça severa pode não ser o meio mais eficiente de promover sua adoção. Isto foi sugerido por Janis e Feshbach em um experimento que mostra que a mudança comportamental pode ser maior sob ameaça moderada do que sob ameaça extrema. Experimentos subseqüentes modificam esta descoberta, mas não eliminam a possibilidade tomada como hipótese na pesquisa original[14]”.

Como exemplo da ineficácia apontada, temos a Lei de Crimes Hediondos, de 1990, que não fez baixar os índices de criminalidade, ao contrário.

Outro componente que não pode ser esquecido é o que se refere ao nítido patrimonialismo que regeu a edição de leis no Brasil de orientação positivista. No Brasil que se construiu para poucos, é evidente que o direito penal serviu a propósitos classistas. Virou máxima popular que “cadeia é para preto, pobre e prostituta”.

Exemplo dos pesos e medidas diferenciados é a questão do uso de algemas pelas forças de segurança. O art. 199 (– “o emprego de algemas será disciplinado por decreto federal”) da Lei de Execução Penal (7.210/84) ainda está pendente de regulamentação. As algemas foram usadas, inclusive em crianças e adolescentes, sem grandes reclamos. Bastou que começassem a algemar políticos e empresários para que a regulamentação fosse requerida em caráter de urgência.

Logo, sob pena de aprofundar o fosso da disparidade social brasileira é bom estarmos alertas para o real significado do Direito Penal. Segundo FOUCAULT:

“… seria hipocrisia ou ingenuidade acreditar que a lei é feita para todo mundo em nome de todo mundo; que é mais prudente reconhecer que ela é feita para alguns e se aplica a outros; que em princípio ela obriga a todos os cidadãos, mas se dirige principalmente às classes mais numerosas e menos esclarecidas; que, ao contrário do que acontece com as leis políticas ou civis, sua aplicação não se refere a todos da mesma forma; que nos tribunais não é a sociedade inteira que julga um dos seus membros, mas uma categoria social encarregada da ordem sanciona outra fadada à desordem. (…) A lei e a justiça não hesitam proclamar sua necessária dissimetria de classe”[15].   

A falácia da maturidade adolescente

Nessa discussão não se pode deixar de pensar sobre as peculiaridades da fase bio-psicológica vivida pelo jovem. Sabe-se que em muitas sociedades primitivas a transição da infância à idade adulta é brusca, passando pelo rito de iniciação guerreira, pelas marcas de sangue e pelo confinamento na cabana dos adultos até a primeira caçada. Tão logo o infante alcance a puberdade, com a iniciação, mágica e simbólica, tem-se por pronto o adulto.

Logo, se a infância demorou até o pós-Iluminismo para ser percebida como período especial, merecedor de tratamento diferenciado, muito mais recente é a conceituação da adolescência como fase de transição entre a infância e a idade adulta. Produto da evolução dos estudos da psiquiatria e da pedagogia, bem como, do acúmulo material das sociedades ocidentais, estudiosos datam a emergência do ‘adolescente’ como ente autônomo, objeto de estudo e cuidados, no entre-guerras, com culminância e protagonismo exacerbando-se gradativamente depois da Segunda Grande Guerra. Não por acaso, período que conheceu Elvis, chicletes, beats e beatles.

Tal percepção foi um avanço científico e humanitário. Por isso é que será retrocesso, nesta fase em que os hormônios estão à flor da pele, em que o cérebro elabora suas sinapses, em que o córtex pré-frontal está super-ativado, com áreas de refreamento crítico ainda em formação, em que a identidade é um canteiro de obras[16], e o espelho um companheiro de mutações, pretender-se possível que o adolescente compreenda como um adulto. Não compreende! A maturidade juvenil é uma falácia que faz lembrar a resposta mordaz de NELSON RODRIGUES referindo-se a si próprio aos 18 anos: “Eu era um perfeito idiota”, para emendar, quando solicitado a dar um conselho aos jovens: “Envelheçam, meus filhos, envelheçam…”.

Adolescentes não são efetivamente ‘maduros’. Não podem sê-lo. É até saudável que não sejam, já que, nesta fase, certas ousadias que um dia a maturidade amortecerá são como o essencial 1º módulo de foguete espacial, ou seja, necessário ao ‘start’ da construção do ser que decola. Adolescentes alternam, como é típico de qualquer troca de penugem, períodos de beleza e lago dos cisnes, com períodos de patinho-feio, peixe fora d’água, não raro, estabano e desconcerto. São ‘hulks’, ‘wolverines’, ‘homens-aranha’, belos e esplêndidos mutantes, revezando poesia e avidez, vivenciando profunda melancolia e extrema euforia. Ousadia e medo. Não há jovem “maduro” que resista aos apelos dos hormônios e de um cérebro em convulsão, precisando desesperadamente de uma identidade. Uma espinha na ponta do nariz, num sábado à noite, desaba todas as filosofias de qualquer jovem precoce e segura.

Não esqueçamos que imputabilidade decorre de uma construção técnica composta de dois segmentos discursivos: – compreender a natureza do ilícito e determinar-se de acordo com este entendimento[17]. E aí é que digo que o jovem é capaz, sim de compreender ilícitos. Mas nem sempre é capaz, vulcão em erupção, química e emocional, de determinar-se conforme tal entendimento. A psiquiatria e a neurociência[18] tem se ocupado de tais estudos e vem demonstrando tal realidade. ARISTÓTELES, na Ética a Nicômaco, ao falar da questão da continência e da limitação dos apetites, menciona:

“(…) nada impede que uma pessoa haja contrariando o seu próprio conhecimento (…) esta a condição dos que agem sob a influência de paixões, pois é evidente que as explosões de cólera, de apetite sexual e outras paixões semelhantes alteram efetivamente a condição do corpo, e em alguns casos chegam até a produzir acessos de loucura. É claro, então, que podemos considerar que os incontinentes se encontram em um estado semelhante ao dos homens adormecidos, loucos ou embriagados. O fato de estes homens usarem a linguagem própria do conhecimento não prova que eles o têm, já que até os homens que estão sob a influência dessas paixões podem repetir demonstrações científicas e declamar versos de Empédocles, e as pessoas que apenas estão começando a aprender uma ciência podem recitar suas proposições sem contudo conhecê-la, pois para isso, é preciso que o conhecimento se torne uma parte delas, e isso demanda tempo. (…)”[19]

Em outro trecho da mesma obra o sábio estagirita refere-se a características da juventude, típicas da incontinência antes citada em geral:

“Por outro lado, a amizade dos jovens parece visar ao prazer, pois eles são guiados pela emoção e buscam acima de tudo o que lhes é agradável e as coisas imediatas (…) Eis porque fazem e desfazem amizades rapidamente; sua amizade muda de acordo com o objeto que lhes parece agradável, e tal prazer se altera bem depressa. (…) por isso se apaixonam tão rapidamente quanto esquecem sua paixão, mudando, com frequência, no espaço de um só dia.”[20]

Não nos esqueçamos que toda essa discussão também já se travou em torno da questão da possibilidade de adolescentes dirigirem automóveis. E, na ocasião, assim disse a psicóloga especialista em Trânsito, IARA THIELEN:

“Os adolescentes dos 16 aos 18 anos encontram-se numa fase caracterizada pelo desafio, pela necessidade de testar seus próprios limites, suas capacidades, de se autoafirmar. E o trânsito não é lugar de autoafirmação. Quando isso acontece inevitavelmente teremos um conflito que pode resultar em mutilações.” [21]

Também MARCELO ARAÚJO opina sobre a maturidade adolescente para direção no trânsito:

“‘É inegável que ele tem habilidade para tal. Hoje, uma criança de 12, 14 anos já manipula muito bem um computador, destaca-se em competições de kart, dirige motocicletas, mas maturidade para assumir as conseqüências de seus atos no trânsito ele não tem”’[22]

Achando ainda, aquele especialista que, mesmo a idade mínima de 18 anos para a habilitação já é questionável, visto que muitos jovens desta faixa etária ainda são imaturos.

Por isso faz bem a lei em dizer que adolescente não comete crime, mas ato infracional. Faltar-lhe-á um segmento da construção lógico-técnica que define ‘crime’, ou seja, a capacidade de determinar-se conforme o entendimento que eventualmente possua.

Informação não significa conhecimento. E conhecimento não é sabedoria. E mesmo esta, não é automaticamente maturidade. Por isso é que pouco importa o grau de informação que recebem nossas crianças e adolescentes, massacrados por Internet, TV e todo tido de mídia. Não nos esqueçamos, ainda, de que o excesso de informação é, na verdade, desinformação. Principalmente pela ausência do espírito crítico indispensável à seleção e processamento.

Por isso também é que pouco importa, na verdade, o voto facultativo ao jovem, a partir dos 16 anos; ou a possibilidade de ocupação profissional a partir dos 14; casamento (CC art. 1.517), emancipação (CC art. 5º par. único, I), capacidade para testemunhar em Juízo (CC art. 228) e de testar (CC 1. 860), aos dezesseis anos. A leitura dessas idades tem de ser feita de maneira harmônica ao todo do ordenamento. A Constituição Federal consigna (art. 14, § 3º) que qualquer jovem pode se candidatar a vereador aos 18 anos, o que, por si, já significa falta de plenitude de direitos políticos ao jovem que opte por votar aos 16. Mas estabelece que só pode ser deputado ou prefeito quem tiver 21 anos, governador o adulto de 30 anos, e presidente ou senador o de 35 anos.

É que, claramente, se pretende instituir liberdades conforme se admita o incremento na capacidade de cumprir responsabilidades. Tal gradação ajuda a construção de maturidade efetiva, conforme bem sabe qualquer pai que responsavelmente exercite boa pedagogia familiar. É o efeito escada, que se observa, inclusive em legislações de outros países. Em vários estados dos Estados Unidos da América, há idades diferenciadas para dirigir (16 anos), outra diferente para comprar cigarros (18) e outra ainda para adquirir e consumir bebidas alcoólicas (21).

Portanto, se a idade de 18 anos, ou de 16, ou de 14 operasse magicamente um pleno adquirir de maturidade e consciência, não haveria porque ocorrer tal gradação. Logo, não é só o ECA ou o art. 228 da Constituição Federal que trabalham com a consciência de graus diferentes de amadurecimento no desenvolvimento do ser. A legislação não desconhece a realidade psicológica. E não o faz porque – devemos sempre recordar – o Brasil se organiza em República e Estado Democrático de Direito não por mero prazer arquitetônico. Há uma finalidade a alcançar. O Estado não é edifício, é ponte. Todo o aparato do ordenamento visa a chegar à fraternidade. Assim deixa claro o preâmbulo da Carta Maior:

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”. (grifei)

Para que tais objetivos sejam alcançados, necessário que cada um seja tratado conforme suas capacidades e respeitado em suas peculiaridades.

Muito se tem falado, também sobre a ressurreição da teoria do discernimento. Ou seja, o juiz, assessorado tecnicamente, avaliaria a possibilidade de que o adolescente infrator tivesse pleno conhecimento do caráter ilícito da sua conduta e estivesse em condições de assim determinar-se. Lembremos que a legislação brasileira já passou por esse caminho.

O Código Penal de 1830 só considerava como “não criminosos” os menores de 14 anos. Inimputabilidade apenas relativa, já que abria a possibilidade de que destes fosse aferido o discernimento. No ensaio “Menores e Loucos” TOBIAS BARRETO tratou criticamente da matéria. Questionou a palavra “discernimento” e seu uso como critério capaz de separar os menores impuníveis dos puníveis. Na sua avaliação, isto poderia “abrir caminho a muito abuso e dar lugar a mais de um espetáculo doloroso“, afinal o conceito de “discernimento, de dificílima apreciação“, tornaria “possível, na falta de qualquer restrição legal, ser descoberto pelo juiz até em uma criança de 5 anos...”[23].

O Código de 1890, já Republicano, editado após a Abolição da Escravatura, com todos os problemas sociais decorrentes da sua implementação equivocada, volta à tese, admitindo a inimputabilidade absoluta apenas aos 09 anos, e a aferição do discernimento entre os 09 e os 14 anos de idade. Além da questão da escravatura, não se deve esquecer, como bem lembra CARLOS ALBERTO MENEZES em seu trabalho “Os limites da idade penal”, o dado contextual em que:

“no jurídico, o realismo, ligado à escola positiva, rasgou as fantasias da escola clássica do Direito Penal (isso criou o ambiente intelectual que permitiu, por exemplo, a Lombroso desenvolver a teoria segundo a qual toda criança já trazia embutido o germe da loucura moral e da delinqüência) A conjunção desses fatores repercutiu na nova legalidade referida aos menores infratores.”

Não será difícil deduzir que, com tais condicionantes políticas, sociais e doutrinárias, a teoria do discernimento terá sido mais um instrumento de opressão sócio-racial.

A adoção da teoria biológica simples, ou teoria da atividade, foi um avanço na legislação pátria, quando se incorpora ao ordenamento a partir do Código Penal de 1940. E aí, a doutrina da delinqüência juvenil muda de fundamentos:

‘(…) É o que deixa claro Nelson Hungria (principal autor do projeto de que resultou o Código de 40) nos comentários que faz acerca do tema. Para ele, em torno da menoridade nada mais deve subsistir que lembre Lombroso e sua teoria de que “todas as tendências para o crime têm o seu começo na primeira infância”; nada mais ainda com a idéia de “condenação penal” que pode arruinar uma “existência inteira”. É preciso renunciar à crença “no fatalismo da delinqüência” e assumir o ponto de vista de que a criança “é corrigível por métodos pedagógicos” (…)’.[24]

Pois bem, tal visão humanitária do grande jurista, vem se consolidar no ordenamento com a Constituição Federal de 1988, e na Lei 8.069/90.

É, portanto, uma conquista. Rebaixar a idade é retrocesso. Querer, pelas exceções que representam os casos patológicos multiplicados pela mídia, adotar a teoria do discernimento é retrocesso. Até pela impossibilidade de que, no atual estado de precariedade do Estado brasileiro, no que concerne ao aparato sócio-educativo, haja equipes técnicas suficientes e habilitadas a tais exames. Portanto, abrir-se-á novamente a comporta da discrição e do arbítrio.

O estatuto da criança e do adolescente

Por isso é que ao adolescente dá o ordenamento um tratamento diferenciado, através da Lei 8.069/90, conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente, ou ECA, simplesmente. Lei modelar, fruto de mobilizações, buscada, conquistada.

Como tem se dito (Dr. LEOBERTO BRANCHER, Juiz da Infância em Porto Alegre-RS, por exemplo[25]), a solução não é modificar o ECA para torná-lo mais ‘penal’ ou penalizante. A solução, ao contrário, é dar ao Código Penal sua porção de ECA, poção ‘milagrosa’ que, se corretamente preparada e ingerida, produz cura. Ou seja, a resposta não é menos ECA e, sim, mais ECA.

Claro que aqui estamos a nos reportar ao ECA em seu maior vigor e plenitude, coisa rara desde sempre. Além da efetivação de políticas sociais básicas de saúde, educação e cia, é preciso que as instituições que acolhem menores em cumprimento de medidas sócio-educativas sejam organizadas conforme orienta o CONANDA (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), ou seja, com lotação máxima de quarenta jovens por unidade e implementos adequados, oficinas e corpos funcionais preparados, ao invés dos presídios juvenis superlotados como as ex-Febems (hoje Fundação Casa) e Instituto Padre Severino, por exemplo. É preciso que sejam implementados o SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Sócio-Educativo) e aprovada a Lei de Execução de Medidas Sócio-Educativas. É preciso que o governo pare de engordar banqueiros credores da dívida de 1 trilhão de reais e passe a cumprir a Constituição e a Lei 8.069/90 que determinam prioridade absoluta à infância e à juventude, inclusive com primícia orçamentária. Assim não cometeria o crime de lesa-pátria de rubricar em parcos 18 milhões a verba destinada ao SINASE no atual orçamento, quando o CONANDA estima em 300 milhões as necessidades do sistema.[26]

Quando a Lei especial é efetivamente aplicada, as estatísticas de reincidência muito menor sob o ECA (em torno de 30%)[27] do que sob o Código Penal (em torno de 70%), autorizam a informar: o ECA – quando aplicado ‘à vera’ – recupera! O adolescente infrator de hoje, sob corretas doses de ECA, pode ser o líder comunitário de amanhã.

Claro que isso acontece porque existe uma inteligência no ECA que faz da medida sócio-educativa uma construção modelar. Ela embute um conteúdo de reprovação social muito firme. Mas privilegia a pedagogia necessária. Por isso é que é um erro grave falar-se da Lei 8.069/90 como uma coletânea de branduras. A esta altura estamos familiarizados – todos os que se interessaram responsavelmente pelo tema – com as severidades representadas pela impossibilidade da fiança, pela não cabimento do princípio da bagatela, pela internação provisória de 45 dias (contra o similar passo inicial de 05 dias no Direito Penal), com a desnecessidade de prova material para a aplicação da sentença (bastando seu indício), com a ausência de prazo certo para a medida sócio-educativa (ao contrário da pena criminal), etc.

Muito das confusões atuais se deve à questão terminológica. Entretanto, ‘ato infracional’, ‘internação’, ‘medida sócio-educativa’, ao invés de ‘crime’, ‘prisão’ e ‘pena’, são termos pelos quais se deve lutar pois possuem conteúdo valorativo e ênfase diferenciada e a idéia correta precisa de verbalização correta. Mas precisam ser melhor divulgados e compreendidos. Da mesma forma, as restrições à divulgação de resultados obtidos pela aplicação do ECA, para inibir a exposição pública dos adolescentes, embora positivas, atrapalham a disseminação dos bons frutos. Nem os profissionais da área, a bem da verdade, se preocuparam adequadamente com isto[28].

Portanto, o ECA não é lei branda, é lei eficaz, e quer sócio-educar, ou seja, resolver.

Só que o ECA é homeopatia, terapêutica restaurativa e visão holística. O Direito Penal é alopatia, tratamento de choque e visão segmentada. As terapêuticas da pressa, muitas vezes curam a doença, mas matam o doente.

E, além disso, assim como bom pai não trabalha condicionado à hipótese da palmada, o ECA não é só maioridade penal ou medida sócio-educativa. É mais. Como qualquer construção que se preze, começa com pedra rija e cimento duro nos ferros da boa fundação. Políticas sociais: direitos fundamentais, educação, saúde, cultura, lazer, família. Caso, mesmo com isso, os objetivos não sejam alcançados e se descubra criança ou adolescente em risco, o ECA prevê a aplicação de medidas protetivas e corretivas. Inserção em programas sociais e terapêuticos, medidas direcionadas às famílias e ao disciplinamento dos genitores omissos, etc. Caso tudo isso ainda não dê certo, aí, – e só aí! – viria a medida sócio-educativa, com seu evidente viés de reprovação, mas acima de tudo, e esta a sua marca, com proposta pedagógica. Registrando-se, por essencial, que todo o ECA prevê participação e instâncias democráticas, sob o princípio da rede solidária. Famílias, governos, sociedade, juízes, promotores de justiça, conselhos, escolas, e quem mais vier, igrejas, ONG’s, clubes de futebol, escolas de samba, bem vindos axés, afroreggaes e cufas. Todos têm sua cota e, infelizmente, a maioria se tem omitido.

Mas só se fala em criminalização de condutas, direito penal e medida sócio-educativa ampliada e mais rígida. É como se, para enfrentar a ferocidade do oceano da criminalidade estivéssemos cientes da necessidade do barco de bom casco e musculoso motor. Mas como não os providenciamos com os necessários predicados, buscamos a tranqüilidade enganosa de, afinal, em caso de urgência, termos botes salva-vidas. Só que percebemos que estes sofrem com alguns remendos mal alinhavados. Mas, ainda assim, mesmo temerosos, orgulhamo-nos das nossas bóias, essas sim!, de material firme, borracha resistente, aprovada pela NASA! Frente a mares em fúria, você embarcaria em tal viagem? É o que fazemos, ao imaginar enfrentar o problema que nos naufraga apenas com a ‘bóia’ precária da medida sócio-educativa.

É necessário fazer a construção por seu princípio. Nos começos, os princípios, diria.

E aqui é que ingresso no tema principal deste trabalho. A encruzilhada ética em que hoje nos encontramos.

O problema ético

Quando o Brasil é achado, desembarca em nossas praias um conceito de civilização. Dá-se o encontro cuja descrição parafraseio de DARCY RIBEIRO[29]. Lá vinha nos porões do navio o grumete escravizado, vendido pela família para os trabalhos mais penosos da viagem. Sujo, maltrapilho, ele se encontra na praia com ‘Tainá’ a indiazinha de bronze, de exuberante saúde, preservada e criada por toda a taba como um ente coletivo e solidário, que não permitia menor abandonado. Do choque entre estas duas éticas, o estranhamento. A indiazinha logo definhou e foi-se, com a mera varíola, então alienígena. O grumete ficou e cresceu, logo capitão do mato ou dono de capitania, aplicando a única ética que aprendera. Exploração e violência. Do encontro de ambos, o mestiço na origem do bravo caboclo e do sertanejo forte e de cabeça grande, exterminados em Canudos e outros eventos similares.

Logo depois, tal ética abençoada pela Igreja[30], consolida a escravatura como modo base de estruturação da economia brasileira. Com o sangue da escravatura manchando as páginas de nossa história, não tem jeito, pagamos até hoje o preço dessa mácula, desse passivo ético, contaminando todas as relações travadas em nossa sociedade. Os africanos seqüestrados, vilipendiados, usados e abusados, reduzidos ao estereótipo, com identidade esmagada, resistiram como puderam, nas senzalas e nos quilombos. Abandonados por uma abolição capenga, estão por aí, amorenando a pele dos pobres que se espalham pelas favelas e periferias. Quando são vitoriosos ‘pelés’ ou engraçados ‘grande-otelos’ são aceitos e incluídos no nicho próprio da copa-cozinha, ao alcance de um estalar de dedos que os ponha em ação na sala para o circo da burguesia. Afora isso, a criminologia da esquina e os lombrosianos de boteco consolidam o preconceito. Preto = bandido. Qualquer ‘zumbi dos palmares’ de quintal que passe com a ousadia de não baixar os olhos e se encaixar no estereótipo, é logo visto como ameaça. Portanto, maioridade penal aos 09 anos! Voltemos ao Código Penal de 1890! Não por acaso, a idade de imputabilidade adotada logo após a Abolição!

E a este pobre negro ou pardo ou moreno miscigenado, criado sem amamentação adequada, sob maus-tratos e alcoolismo de pais desempregados, que pretendemos apenas elemento de uma cultura carnavalesca e maracanaizante, ofertamos o abuso psicológico de ter sua auto-estima cotidianamente esmagada pela rejeição da escola autoritária que não está preparada para o diferente, pelo padrão de beleza ‘Malhação’, pela sociedade de consumo em que ‘ter’ Daslu ou Nike é ‘ser’ alguém, pela idiotização big-brotheriana que ensina fraternidades de conveniência e éticas de competição excludente.

Para alimentar tal superficialidade, louvamos a pressa, ao invés da reflexão. Buscamos o resumo, em lugar do livro. Fazemos o aniversário no fast-food, em prejuízo do bolo caseiro na garagem. O comer a quilo (cacófato proposital) ao invés da família em torno da mesa de domingo. A provisoriedade do ‘ficar’, ao invés do romance e do compromisso. A urgência da auto-ajuda, ao invés da religião. E quando há religião, é a de barganha e milagre ou ‘trabalho’ urgente ao invés da religião de cura interior.

Uma palavra sobre mídia e manipulação

A liberdade de expressão e a imprensa autônoma são tidas por sustentáculos da construção democrática. Entretanto, vai longe o tempo em que jornais eram impressos em oficinas de quintal por tipógrafos idealistas, mendicantes de anúncios miúdos, assim podendo expressar contrariedades contra o status quo e pagando o preço da ousadia com empastelamentos e cárcere.

Hoje a grande imprensa nacional, em todos os veículos, dominada por grupos familiares que se contam numa das mãos, virou um business como qualquer outro, com evidentes compromissos e comprometimentos. Ganha-se dinheiro, antes de tudo. Aqui e ali, um arroubo saudosista, geralmente consentido, de imprensa livre. No atacado, o grande capital, que anuncia, determina pautas e conteúdos ideológicos.

Embora concessão pública, as redes televisivas em particular, exercitam papel determinante de adestramento, contra os interesses públicos. Os mesmos que aparelharam o Estado que devia ser res-publica usam os veículos não em favor do interesse comum e do bem estar geral, mas do favorecimento a seus negócios.

Por isso é que nessa discussão não se pode olvidar aqui o vomitório cotidiano de uma mídia irresponsável, que se vale da defesa da livre expressão para conspurcar mentes indenes com publicidade condicionadora dos comportamentos desejados pelos patrocinadores.

O adestramento da subserviência conta com bem produzidos artefatos de lazer. Games, desenhos, seriados e filmes, são inoculações cerebrais de uma subliminar cultura de consumismo e violência. Os desenhos paradisíacos da Disney são depois transformados em grifes de bonecos, enfeites, colchas e mochilas, que transportam a criança ‘para dentro’ daquele mundo de sonho… e consumo.

Na outra ponta, os desenhos e filmes violentos que – afinal “eu tenho a força!”, não? – banalizam a força e a violência como forma sumária de resolução de conflitos. ELLEN WARTELLA, ADRIANA OLIVAREZ E NANCY JENNINGS, conforme MARILENE ANDRADE FERREIRA BORGES[31], comentam que uma criança norte-americana comum terá visto mais de 8 mil assassinatos e mais de 100 mil outros atos de violência ao concluir o primeiro grau. Apontam também uma relação entre a exposição na mídia e o comportamento agressivo. Claro que a isto se soma a multiplicação desenfreada de tais mecanismos de influência através das novas mídias. A internet, por exemplo, ainda é uma terra de ninguém, onde maximiza-se o que a televisão apenas prenuncia.

A violência banalizada provoca diversas conseqüências. Primeiro, o embrutecimento da consciência. Como qualquer droga, passam a ser necessárias doses cada vez maiores de tiroteios, mutilações e cadáveres para provocar alguma reação. Basta lembrar que “Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrick, que chegou a ser proibido nos anos 70 por sua denúncia política, mas também por excesso de violência, chega a ser pueril perto das produções atuais.

Segundo, o ímpeto da reprodução do comportamento sugerido. Embora ainda haja os que resistem à evidência, cada vez mais se prova o efeito negativo da violência midiática no comportamento humano, especialmente em menores de idade. A UNESCO tem patrocinado estudos sobre o tema[32]. Num deles, crianças foram submetidas a sessões de filmes e desenhos corriqueiros em nossas Tv’s, mas violentos na sua essência. Depois iam brincar. Na comparação com o grupo de controle, que assistiu a produtos mais brandos, tinham propensão acentuada a comportamentos de conflito e agressividade. Estudos nos Estados Unidos, no Canadá e na África do Sul, demonstram o aumento da criminalidade depois da massificação da TV como centro do lazer familiar. No Brasil tivemos o episódio de um matador muito jovem que invadiu um cinema em São Paulo atirando a esmo, trajado e comportando-se como ocorria nos jogos de computador que praticava. O caso recente do matador sul-coreano numa universidade americana confirma a tese. Nas fotos e vídeos que divulgou presta tributo aos que chamou de “mártires de Columbine”, os matadores adolescentes que o precederam em massacre terrível, e ainda reproduz, nas fotos, poses que replicam cenas de um violento e perturbador filme sul-coreano (Oldboy).

Como terceira hipótese de reação temos a possibilidade do pânico. Ansiedade, depressão, agorafobia, tendência a evitar conflitos, surgem como respostas psicológicas à hiper-exposição diária às doses de violência televisiva. Obviamente fica prejudicado o senso crítico e o cérebro mobiliza o organismo em suas primitivas defesas, que podem ser tanto o ataque-resposta da fera acuada, quanto a fuga urgente. Assim se comportam várias crianças com seus pesadelos e muitos adultos, inchando os lucros das indústrias farmacêuticas de tranqüilizantes e antidepressivos. Um dos sub-produtos desse quadro é o medo da sombra. Enxergar no vulto, o monstro. E, como hoje, em qualquer adolescente pobre, um Fernandinho Beira-mar ou um Elias Maluco. Não nos esqueçamos de que MAQUIAVEL já lembrava a’O Príncipe’ a impossibilidade de um povo com medo ser capaz de conquistas ou defesas. O medo só deve subsistir na medida certa a ativar adrenalina para defesa e celeridade de raciocínio. O pânico decorrente do excesso é mau conselheiro. Faz eleger Hitler e, por tal via, eleger o ódio racial, o extermínio e a guerra. Faz bombardear escolas e hospitais no Iraque, em suposta guerra de ‘libertação’. Faz ser mais carrasco que o pior carrasco jamais teria sido.

Não menos importante é a sofisticação da manipulação publicitária. Hoje esta se vale de todos os recursos subliminares possíveis. A começar pelo direcionamento imoral de publicidade direta às crianças, condicionando-as primeiro como máquinas pedintes, nas quais se consolida o futuro consumidor. As propagandas não anunciam apenas bens de boa qualidade, utilidade e resistência. No vácuo da crise de valores, buscam incorporar valores imateriais a seus produtos, inaugurando quase religiosidades de consumo. Marcas são cultuadas, como agentes de bem-estar pelo simples ato de portá-las ou consumi-las. Há ainda a novidade do neuromarketing, que estuda meticulosamente apetites, reações hormonais, anseios e condicionamentos biológicos, para melhor estimular a compulsão da compra. Shoppings centers são organizados como granjas. Luz contínua, ambiente controlado, cores e aromas estudados, temperatura estável, previsibilidade, padronização. Tudo isso atirando os compradores à gastança, como as aves à hiper-alimentação de engorda. Logo logo, aqui e ali, o abate.

Portanto, não pode ser subestimado nesta discussão o lixo moral e cultural em que somos diariamente chafurdados. Adestram-nos para a falta de reflexão, o embrutecimento, para o entendimento da violência como atalho para solução de problemas e para o medo constante. Educam-nos, ainda, para que nos tornemos, desde a mais tenra infância, insaciáveis máquinas de consumo do supérfluo.

Por isso é que é pouco honesta a campanha das Tv’s contra as novas regras de classificação de produtos audiovisuais, querendo fazer crer que os pais – também estes, manipulados detentores de um esquálido e residual poder familiar – seriam fiscais suficientes para as toneladas de joio que oferecem, apenas douradas por alguns grãos de trigo. É necessário que o Estado seja mais célere na regulamentação e controle da produção audiovisual. Para isso lhe estão dadas os mecanismos constitucionais do art. 220, II que exige defesa à pessoa e à família contra programas e publicidades, que não cumpram os ditames do art. 221 que estabelece que as TVs e rádios devem promover e divulgar educação, arte e cultura; destacando a cultura nacional e regional; estimulando a produção independente e regional e, respeitando os valores éticos e sociais da pessoa e da família.

Recentemente o novelista Manoel Carlos, em entrevista à Revista da TV, do Jornal O Globo, se disse impressionado com a intensidade com que as pessoas se violentam sob a influência da televisão, das novelas, em particular, abandonando códigos de conduta social com velocidade e introduzindo outros, até então desconhecidos por elas, sem qualquer mediação. Teria sido bom se a declaração traduzisse um mea-culpa e uma tomada de consciência de quem presta tanto desserviço sob o pretexto de entreter. Mas, infelizmente, era apenas um comentário.

É óbvio que a crise ética nacional é agravada, de diversas formas pela manipulação midiática. E é evidente que tudo isso se reflete na psique do adolescente.

Falta de perspectivas

E, além de tudo, castramos destes jovens a possibilidade utópica. Se historicamente os jovens cerraram fileiras nas principais mobilizações sociais e revoluções que resultaram em progresso humano, assim bem direcionando seus ímpetos de rebeldia juvenil, hoje falta-lhes a liderança, a bandeira e a esperança. O pertencimento que se fazia nos coletivos de organizações de luta política e social, de grupamentos religiosos ou comunitários, hoje se faz pela participação em tribos de consumo ou delinqüência. Aos pobres, a mera luta pela sobrevivência. Aos ricos, o vazio do consumo. Nada de utopias. Só competição. Só que o potencial de energia juvenil é o mesmo, apenas aguardando comando. Na falta de opção meritória, por que não portar uma fálica e imponente AK47, poder puro, metálico e fascinante, como um cetro que dá poderes de vida e morte sobre o outro? Por que não tornar-se um incendiador de mendigos, um pitboy espancador de homossexuais, distribuindo queimaduras, ossos quebrados e hematomas, marcando o desprezível outro com as insígnias de tal raso poder? Num caso, tamanho poder de delinqüência visa alcançar possibilidades de consumo. No outro, o consumo supérfluo leva à delinqüência. Ao fim da viagem, ambos os jovens se encontram na encruzilhada do vazio. E, muitas vezes, temos presenciado, nas salas de espera de audiência dos Juízos da Infância e da Juventude.

Como perigosa válvula de escape, as drogas, as raves, o prazer miúdo e rápido, por isso insatisfatório e avidamente repetido. Tudo temperado pela erotização precoce que incentivamos, via tolerância e publicidade, abreviando o tempo de maturação da pulsão sexual, e provocando, além do habitat propício à difusão da exploração sexual infanto-juvenil, o triste universo de crianças-mãe cuidando de crianças-filho[33]. Depois distribuímos camisinhas como se pudéssemos com elas conter a explosão da falta de consciência e perspectivas que faz do sexo precoce seu escape. Daí, além da difusão de doenças sexualmente transmissíveis, os elevados índices de gravidez adolescente. O IBGE informa na “Síntese dos indicadores sociais de 2003” que 20% das crianças nascidas em 2002 eram de mães de 15 a 19 anos de idade.

Mas não é só. Pior, a este jovem já assim massacrado, falta também o emprego, o trabalho, fonte de dignidade e direito social inscrito no Art. 6º da Constituição Federal. Outro contra-senso. Abreviar a maioridade penal, quando estamos tornando mais distante a maioridade laboral, a autonomia do adulto, que consiste na capacidade de se manter, ganhar seu dinheiro, ter profissão e constituir família. O mercado de trabalho cada vez mais encolhido não cabe todos os jovens que precisam de emprego, submetendo-os a viver de expedientes e ilicitudes dominados pelo medo do futuro e pela baixa-auto-estima.

Portanto, é assim. Damos a todos os jovens um presente vazio e vadio e um horizonte sem amanhãs. Se ele é bem nascido, entregaremos a ele máquinas de extermínio como as gerências empresariais ou as feitorias multinacionais. Se dormiu em caixote ou chão de barro, uma arma que dispare 300 tiros por minuto. E dizemos: matem-se. Suicidem-se.

Dura cena foi, no documentário ‘Falcão – Meninos do Tráfico’ do rapper MV-Bill e de Celso Athayde, em transmissão histórica num domingo à noite pela Rede Globo, assistir a um menino de uns 10 anos, morando num buraco numa favela, acompanhado apenas por um toco de vela e uma arma de grosso calibre, quando perguntado se aquela vida não o levaria à morte dizer não como desafio, mas com pungente tristeza e resignação: “-Se morrer, descanso.” Sendo que não falava ali um ancião centenário e doente terminal. Falava uma criança de seus 10 anos, um abortado pela sociedade.

Claramente, temos sido uma sociedade violentamente herodiana, ou das primitivas que sacrificavam suas virgens e mancebos à fúria de divindades egoístas e irascíveis. Em tempos de inédita exacerbação do conceito marxista de ‘reificação’ da mercadoria, coisificação do humano, ‘endeusamento’ do mercado, a ele sacrificamos nossos filhos e nossas filhas.

Há uma batalha ética a ser travada por trás das manchetes de jornais.

A nossa crise paga o bem estar dos outros

Um elemento que não pode ser esquecido nesta discussão é aquele que nos faz identificar claramente o aumento da nossa crise social e, por conseqüência, da crise de violência, como sub-produto da divisão internacional do trabalho que nos coloca na periferia do capitalismo desde sempre.

Financiamos o bem estar do primeiro mundo desde que os vários ciclos produtivos do Brasil Colônia encheram de ouro as burras de Portugal para dali rapidamente partirem a entupir os cofres ingleses e financiarem, a um só tempo, tanto suas belas instituições democráticas e os vapores que moveram a Revolução Industrial, quanto a opressão internacionalizada via Companhia das Índias Orientais. Assim, o poderio europeu serviu-se do que, sob nossa escravatura, nos foi extorquido.

Todos os que admiram a civilização européia, seus bons modos e belos castelos, desdenhando de nosso povo e de nossa arte e costumes, deviam recordar-se sempre de tal verdade. Toda aquela finesse é, em muito, fruto da violência contra nós praticada. A Inglaterra chega a guerrear contra a China para garantir que os chineses permanecessem viciados no ópio que lhes vendiam a partir de plantações indianas.[34] Claro que a ‘carne de canhão’ nessa guerra, pelo lado inglês, eram indianos sob a bandeira da Rainha!

E assim continua. Os países periféricos recebem as tarefas que o primeiro mundo desdenha. A China chega a comprar o lixo americano, para reciclá-lo. Há países miseráveis que se oferecem para receber dejetos radioativos. Plantas industriais poluentes são transferidas para regiões de mão de obra abundante, cordata e famélica. O “exército de reserva” previsto pelo marxismo hoje é o mundo inteiro.

Tudo isso se agravou com a atual predominância do capital financeiro sobre o capital produtivo. O grande cassino internacional decide quem ganha e quem perde no jogo dos mercados de câmbio, ações e títulos das dividas dos países reféns dos fartos empréstimos imprudentemente contraídos nos anos 70 e 80.

Crítico ferrenho de tal sistema, o professor NOAM CHOMSKY, em livro de entrevistas intitulado “A Minoria Próspera e a Multidão Inquieta” (UNB, 1999), assim afirma:

“Até você chegar à fonte do poder – que, em última análise, são as decisões de investimento – qualquer outra mudança seria cosmética e iria ocorrer apenas de forma limitada. Se forem longe demais, os investidores simplesmente farão outras escolhas e não há muito a fazer quanto a isso.

Desafiar o direito dos investidores de determinar quem vive e quem morre, e como vivem ou morrem – esse seria um avanço significativo rumo aos ideais do Iluminismo (na verdade, o ideal liberal clássico). Seria algo revolucionário”[35].

Este raciocínio deixa evidente que é subproduto das decisões dos investidores internacionais “quem vive e quem morre”. Não é difícil concluir que da forma como interfere nos assuntos econômicos, jurídicos e legais dos países – inclusive com o Banco Mundial financiando nossa Reforma do Judiciário -, buscando sempre ambientes mais dóceis a seus capitais, está dado ao mercado financeiro internacional decidir também quem terá ou não emprego, quem ficará confinado à opção do crime ou da miséria, e, por óbvio, ainda que indiretamente, com que idade infratores podem ser punidos.

VIVIANE FORRESTER, escritora francesa, produziu um trabalho sobre os efeitos do neoliberalismo e da globalização sobre a população mundial. Não por acaso, intitulou-o “O Horror Econômico” (UNESP, 1997). Estudando especialmente o impacto da nova realidade de predominância do capital financeiro e de ausência de empregos sobre a juventude das periferias francesas afirmou sobre o seu comportamento:

“Nesse contexto, que se chamaria mais propriamente de ‘inqualificável’, suas brutalidades, suas violências são inegáveis. Mas e as devastações de que eles são vítimas? Destinos anulados, juventude deteriorada. Futuro abolido.

Eles são criticados por reagir, por atacar. Na verdade, apesar da delinqüência – mas por causa dela também -, eles estão em posição de fraqueza absoluta, isolados, obrigados à aceitação total, se não ao consentimento. Seus sobressaltos são iguais aos de animais caçados, antecipadamente vencidos e que sabem disso, às vezes por experiência. Não possuem qualquer ‘meio’, pressionados dentro de um sistema todo-poderoso onde não há lugar para eles, mas do qual também não têm a capacidade de afastar-se, mais arraigados do que todos os outros no meio daqueles que queriam vê-los no inferno e que não escondem isso. Eles sabem por si próprios que estão sem trabalho, sem dinheiro, sem futuro. Tanta energia perdida. Vítimas, por essa razão, de uma dor subterrânea, efervescente, que provoca raiva e abatimento ao mesmo tempo[36]”.

Anos depois da publicação deste texto, em 2006, a França foi sacudida pelas revoltas violentas e incendiárias da juventude de suas periferias. Não por acaso surgiram propostas de redução da maioridade penal, agravamento das penas criminais e, até, com Nicolai Sarkozy, a proposta de cadastramento de crianças desde a pré-escola, com relatórios de acompanhamento comportamental – ‘diários de saúde mental’ -, de forma a identificar no infante o criminoso do futuro.

Qualquer semelhança com o Brasil de hoje, não é mera coincidência.

Por isso, repito, há uma escolha ética a ser feita.

O ECA é nossa arma do bem

Fruto de grandes mobilizações internas, resultado do acúmulo de lutas. o ECA é tributário dos mais avançados movimentos internacionais em prol dos direitos infanto-juvenis. Nasce sob o signo da fraternidade, do igualitarismo, do garantismo, da participação e da democracia. Assim, também, grande parte da Constituição que se quis cidadã.

Mas, não nos percamos na História. A Constituição é de 1988. O ECA, de 1990. Entre um e outro, cai o Muro de Berlim, o neoliberalismo se consolida com a ferramenta da globalização. E, daí, Estado Mínimo, individualismo, redução do nível de emprego, etc. Ou seja, quando o ECA chega à cena, já nasce sob boicote e má vontade da nova realidade. Fica ali, como uma ‘Bíblia’ incômoda, a apontar pecados.

Pois bem, é hora de brandir essa ‘bíblia incômoda’ e apontar os pecados da construção sócio-estatal que produzimos. Ou assumimos logo que queremos o extermínio dos negros que pensamos ter libertado em 1888 – registrando-se que a grande maioria dos adolescentes em cumprimento de medidas de internação são negros ou mestiços[37] -, ou produzimos uma sociedade que recupere o tempo perdido. E aí, cota racial sim. E aí, refreamento do capital selvagem. E aí, outra política econômica. E aí, recuperação de valores espirituais e éticos. E aí, revalorização da autoridade familiar. E aí, ECA!

Tratamos longamente de todas as vicissitudes que envolvem nossa população infanto-juvenil. Mas ainda cabe uma última constatação. FREUD ensina que dos mamíferos, o homem é o que nasce mais despreparado para os enfrentamentos da vida, carecendo por mais largo tempo de um útero externo representado pelo seio e pelo colo materno. Este útero se alarga com a interferência do pai, que, auxiliando na construção da identidade, faz a criança perceber este tertius que, amorosamente demonstra não ser o corpo da mãe mero prolongamento do seu corpo de criança. E este útero amoroso ainda será necessário e enlarguecido na família, na escola e na comunidade solidária como a da taba indígena já mencionada. Pois bem, crianças que, por suas condições de miséria, não contam com o seio materno, nem com o pai amoroso, e ainda por cima convivem com as mazelas do desemprego, como alcoolismo e maus tratos, são como seres abortados, em incompletude, que chegam à vida em grande desvantagem, com sinapses desatentas, muitas vezes com seqüelas neurais de espancamentos e distúrbios de aprendizagem. Foram abortadas pela sociedade que não lhes proveu e às suas famílias adequadas condições de subsistência.

O problema é que está demonstrada na história que a criança abandonada precocemente recebe como pai e mãe quem lhe adota como filho. São muitos os episódios das crianças-fera. Crianças-lobo, crianças-urso. Crianças que, como as irmãs Amala e Kamala[38], na Índia, no século passado, foram achadas como pequenos quadrúpedes de uma matilha, comendo carne crua, caçando e se portando como lobos, e não sobrevivendo à tentativa de readaptação civilizatória. Achadas por lobos ainda bebês, por eles cuidadas, lobas se tornaram.

Pois, bem, crianças podem ser monstros. Sim, podem. Basta que sejam adotadas por um. Daí teremos as crianças militarizadas à força pelo Khmer Vermelho de Pol Pot que se tornavam refinadas assassinas, como ocorre hoje em Uganda, na Birmânia, como ocorreu com o Japão de adolescentes kamikaze, com os exércitos do nazismo terminal, no massacre de Ruanda. E, portanto, as nossas crianças soldados do tráfico, apenas, abortadas socialmente, se tornam as feras espelho das feras que os criaram.

É por isso, repito, que toda essa discussão trata, antes de política criminal ou debate jurídico, de uma escolha ética. É uma escolha urgente. Pode ser a escolha principal. Pode ser a última trincheira.

Conclusão

Há um grande livro de JARED DIAMOND, sobre a questão ambiental, chamado “Colapso” (Record, 2005). Estudando casos de fracassos históricos (Haiti, Ruanda, etc), ele demonstra o peso da opção ecológica equivocada ou irrefletida no futuro de vários países. Por isso, a obra tem o seguinte e pertinente subtítulo “Como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso”. Lembrando que, tal como na questão ambiental, na questão infanto-juvenil há uma escolha nítida entre solidariedade e egoísmo, devemos ter claro que o país está prestes a fazer sua própria opção entre fracasso e sucesso.

BETINHO falava ao Brasil, em suas Campanhas contra a Fome, da solidariedade necessária nem tanto por bondade, mas por inteligência. Ao menos, sejamos inteligentes.

Crianças e adolescentes são o lado mais fraco da sociedade. As primeiras vítimas de suas guerras, fomes, endemias, tsunamis e violência. E, como ensina o ditado: ‘nenhuma sociedade é mais forte que seu elo mais fraco’. Sejamos fortes.

Sejamos éticos.

Nesta encruzilhada do drama brasileiro, sendo o próprio Brasil um país adolescente, temos no centro dos debates uma Lei que, ela mesma não atingiu maioridade (O ECA vai completar ainda 17 anos), mas que nos fornece a possibilidade da escolha virtuosa, dos valores que nos guiarão à conduta correta, à existência feliz, ao bem comum. A escolha da esperança. A escolha que nos faça entender, com ARISTÓTELES que “ética é felicidade” [39], e que “o melhor governo é aquele em que cada um encontra aquilo de que necessita para ser feliz”[40]. Isso significa sociedade fraterna e comunitária. Como prescreve a Constituição Brasileira.

Isso implica em dizer com firmeza o ‘não’ de Galeano. Isso implica em perceber que este momento dramático pode até vir a ser uma boa lembrança, quando se cumprirem as palavras de Darcy Ribeiro, grande visionário e educador:

“Estamos nos construindo na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra”.[41]

Que estas sejam somente as dores do parto.

Que venham belos os nascimentos.

Notas:

[1] Discurso da Circunstânciain “100 Discursos Históricos” (Editora Leitura, 2002)

[2] Assim o jornalista intitulou obra lançada em 1998 como Volume II da Coleção Terra Brasilis, da Editora Objetiva.

[3] Num ranking de 130 nações o Brasil só tinha melhor distribuição de renda (segundo o índice Gini) do que Serra Leoa, na África. Em 2003, 1% dos brasileiros mais ricos (1,7 milhão de pessoas) respondia por 13% do total da renda. Os 50% mais pobres (86,9 milhões de pessoas) detinham 13,3% – Cfe. Radar Social – divulgado Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)” em “Ipea: só ganhamos de Serra Leoa” – reportagem de Luciano Pires – Correio Braziliense – 02/06/05 – Outro dado, divulgado em 07/09/2005 – em reportagem da Folha de São Paulo – “Brasil é oitavo país em desigualdade social, diz pesquisa”, esta com dados do PNUD da ONU, o Brasil era o oitavo país em desigualdade social, na frente apenas de Guatemala, Suazilândia, República Centro-Africana, Serra Leoa, Botsuana, Lesoto e Namíbia.

[4] Interpretação do STF no julgamento da ADIN 939-7 (que instituiu o IPMF), que entendeu ser direito individual do contribuinte a garantia do princípio da anterioridade tributária (Art. 150, III, ‘b’ da CF).

[5] A menção é ao trabalho de: ANDRADE FILHO, Arício da Silva. A constitucionalidade da redução do termo inicial da maioridade penal.– disponível em <jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9749>

[6] Cfe dados em “Redução da Maioridade Penal – Reflexões Importantes”, na página da Sociedade Brasileira de Pediatria. ttp://www.sbp.com.br/show_item2.cfm?id_categoria=52&id_detalhe=1368&tipo=D>

[7] ADORNO, Sérgio – em “Crime, Justiça Penal e Desigualdade Jurídica”, ensaio constante de “Sociologia & Direito”, de CLÁUDIO SOUTO e JOAQUIM FALCÃO (Pioneira, 1999 – pp 316)

[8] Síntese dos indicadores sociais 2003.

[9] Estes dois últimos dados, extraídos de textos de SIRO DARLAN publicados na seção opinião do sítio do TJ-RJ (“Genocídio consentido”, de 06/12/2006 e “Como fabricar um bandido”, de 20/04/2007)

[10] in “Estatuto da Criança e do Adolescente, é possível torná-lo uma realidade psicológica?” – em www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-65641999000200010&ing=pt&nrm=iso&ting=pt#7

[11] DIGIÁCOMO, em “Redução da Idade Penal – solução ou ilusão”: “A fixação da idade penal em 18 anos ou mais, critério adotado por 59% dos países do mundo, se deve não apenas a questões de ‘política criminal’ (…), citado no sítio da Sociedade Brasileira de Pediatria. E SARAIVA, em diversos textos, dos quais, cito o trecho “A imputabilidade penal, o tratamento igualitário ao adulto e as mesmas sujeições, é fixado em dezoito anos na maioria absoluta dos países ocidentais – até mesmo em muitos estados americanos, onde em alguns a imputabilidade penal dá-se aos 21 anos, outros aos 20 e outros ainda aos 19 anos”. in “Sobre a Redução da Idade Penal”.em http://jij.tj.rs.gov.br/jij_site/docs/DOUTRINA – Sendo que SARAIVA possui ainda divulgado na Rede, seu importante “Desconstruindo o Mito da Impunidade – Um Ensaio de Direito (Penal) Juvenil” – em http://jij.tj.rs.gov.br/jij_site/docs/

[12] Acho que pode haver lacuna na questão da medida de segurança, acho que precisa ser melhor aclarado o papel fundamental do Juiz da Infância, inclusive com melhor explicitação de seus poderes em caso de Conselho Tutelar inoperante, já que já se prevê atuação alternativa – em caso de ausência do Conselho – no Art. 262 da Lei 8.069/90. Mas a hora da discussão madura não é esta.

[13] Em debate nos Extras do Documentário ‘Justiça’, da diretora Maria Ramos.

[14] Em “Sociologia & Direito” de Cláudio Souto e Joaquim Falcão (pp 183/184 – Pioneira, 1999)

[15] Conforme citado por Sérgio ADORNO em “Crime, Justiça Penal e Desigualdade Jurídica”, ensaio inscrito em “Sociologia & Direito” – Claudio Souto e Joaquim Falcão (pp 328 – Pioneira, 1999)

[16]Cabeça de Porco’, obra conjunta de LUÍS EDUARDO SOARES, MV BILL E CELSO ATHAYDE (Objetiva, 2005) tem dois capítulos sobre o tema, intitulados “Identidade em obras”.

[17] Cfe, por exemplo, ‘Dicionário Compacto do Direito’, de Sérgio SÉRVULO DA CUNHA. Saraiva. 2005.

[18] Na revista ‘Mente e Cérebro nº 9 – Edição Especial’ – a reportagem “Mentes Instáveis”, assinada por LESLIE SABBAGH descreve experiência na qual adultos e adolescentes forma igualmente orientados a não responderem a determinado estímulo visual que ocorreria. Na seqüência, os adolescentes conseguiram obedecer à solicitação, enquanto os adolescentes, embora tivessem tentando não conseguiram deixar de olhar para o impulso visual, em atitude reflexa. Medições demonstraram hiperatividade na região do córtex pré-frontal dos adolescentes, na comparação com a mesma região cerebral dos adultos. Considerram os pesquisadores que os adultos já teriam desenvolvido mecanismos cerebrais compensatórios, refreadores do impulso reflexo.

[19] pp. 150 – Martin Claret, 2001

[20] pp. 175 – Martin Claret, 2001.

[21] Na página do Detran-PR (www.detran.pr.gov.br/arquivos/file/revistadetrânsito/2006/mai06/mai06.pdf)

[22] Idem

[23] apud CARLOS ALBERTO MENEZES em “Os limites da idade penal” – disponível em http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?pid=MSC0000000082005000200051&script=sci_arttext

[24] idem.

[25]O ECA traz uma concepção de Justiça Penal que pode servir de modelo penal para adultos, e não ao contrário” – como afirma em ‘IDADE PENAL: MELHOR AMPLIAR DO QUE REDUZIR’ disponível em <http://jij.tj.rs.gov.br/jij_site/docs/…>

[26] Cfe. JULIA DEPTULSKI – Vice-Presidente do CONANDA citada na matéria “Mais recursos para medidas sócio-educativas” – no sítio da ANDI

[27] Tais números variam, conforme a fonte, mas sempre demonstrativos das vantagens do ECA. O sítio da Sociedade Brasileira de Pediatria, em texto aqui muito citado, chega a mencionar 5% de reincidência. Já em Teresópolis (RJ), pesquisa feita pelo Cartório da Vara especializada, dirigida com empenho de sacerdócio por sua Juíza Drª Inês Joaquina Sant’Ana Santos Coutinho, demonstrou reincidência de 20%.

[28] Exceção honrosa são os “Causos do ECA”, concurso promovido anualmente pela ‘Pro-menino Rede Solidária’ (Portal mantido pela Fundação Telefônica).

[29] No capítulo 2 de Viva o Povo Brasileiro – Cia das Letras, 1995

[30] Pelas bulas papais Romanus Pontifex (1454) e Inter Coetera (1493) o Vaticano permitia aos navegadores portugueses e depois também aos espanhóis, escravizar sarracenos, negros e habitantes das novas terras, ‘a pretexto de convertê-los à fé cristã’ pois eram ‘inimigos de Cristo’.

[31] Em “Interfaces da violência televisiva no processo de socialização da criança: agressividade” – em http://www.unimontes.br/unimontescientifica/revistas/Anexos/artigos/revista_v5_n2/13_artigos_interfaces.htm

[32]A Criança e a Violência na Mídia’ – em unesdoc.unesco.org/images/0013/001308/130873por.pdf

[33] Na ‘Síntese dos Indicadores Sociais 2003’ o IBGE informa que “cerca de 20% das crianças nascidas em 2002 eram de mães de 15 a 19 anos de idade” – conforme consta do sitio do Instituto na rede.

[34] Bem se vê que há muito tempo estamos às voltas com atos de traficantes: de ópio, de escravos, e agora, de drogas, todos causando mazelas de mesma estirpe e sempre com bons pretextos. Há tanta diferença assim entre aquela Inglaterra que assim financiou sua democracia, e os traficantes cariocas? Afinal em muitos morros, por certo período, o mais remoto Comando Vermelho, fiel a seus dogmas de “Paz, Justiça e Liberdade” não promoveu a paz social e exerceu controles e auxílios que seriam encargos do Estado ausente?

[35] Pp 29/30.

[36] Pp 61/62

[37] No texto já citado, constante do sítio da Sociedade Brasileira de Pediatria : “Uma pesquisa realizada em 2002 pelo Ministério da Justiça e pelo IPEA traçou o perfil dos jovens que estavam em unidades de internação (…): 63% não eram brancos (e, destes, 97% eram afrodescendentes)…”.

[38] A história das meninas e de outras ‘crianças-fera’ consta de qualquer enciclopédia e em vários sítios na Internet, inclusive na Wikipedia. Aqui destaco trecho constante de artigo do pedagogo LUCA RISCHBIETER, intitulado “A triste história das crianças lobo ou Nem só de genes e cérebro vive o homem”: “O comportamento das duas crianças causou espanto, pois “quando foram encontradas, as meninas não sabiam andar sobre os pés, mas se moviam rapidamente de quatro. É claro que não falavam, e seus rostos eram inexpressivos. Queriam apenas comer carne crua, tinham hábitos noturnos, repeliam o contato dos seres humanos e preferiam a companhia de cachorros e lobos”. Amala, a menina mais nova, parecia ter um ano e meio e morreu pouco menos de um ano depois. Kamala, a outra irmã, tinha mais de oito anos quando foi encontrada e sobreviveu por nove anos, morrendo em novembro de 1929.
A evolução de Kamala, registrada pelo casal de missionários que cuidava dela em um orfanato, foi significativa, porém limitada. Ela conseguiu aprender a caminhar só com as pernas e mudar seus hábitos alimentares, aprendeu muitas palavras e sabia usá-las, embora nunca tenha chegado a falar com fluência. Apesar dos progressos de Kamala, “a família do missionário anglicano que cuidou dela, bem como outras pessoas que a conheceram intimamente, nunca sentiu que fosse verdadeiramente humana”
. Em http://www.educacional.com.br/articulistas/luca_bd.asp?codtexto=220

[39] cfe leciona na Ética a Nicômaco.

[40] Tratado de Política, pp. 45.

[41] Em O Povo Brasileiro, pp. 449.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Denilson Cardoso de Araújo

 

Serventuário do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

 


 

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