Resumo: O presente artigo tem como objetivo demonstrar a necessidade ou não de se criar uma espécie independente de responsabilização penal voltada em específico para as pessoas jurídicas. Para isso, toma como base o trabalho de José Luis de La Cuesta, intitulado “Uma nova linha de intervenção penal: o Direito Penal das Pessoas Jurídicas”, e se utiliza de outros doutrinadores do assunto para fundamentar a sugestão aventada, tais como Zulgadía Espinar, H. J. Hirsch, G. Heine, K. Tiedemann e S. Bacigalupo. Utiliza o método indutivo e tem como metodologia a revisão bibliográfica a fim de tentar solucionar o problema apresentado, cujo resultado apontou para uma real necessidade em se criar um viés independente de responsabilização penal, devido às necessidades específicas destes entes coletivos.
Palavras-Chave: Responsabilidade Penal. Pessoa Jurídica. De La Cuesta.
Abstract: This presentations aims to demonstrate the necessity of creating an independent species of penal responsibility to regulate legal entities. For this, it is based on José Luis de La Cuesta’s paper: “Uma Nueva Línea de Intervencción Penal: El Derecho Penal de las Personas Jurídicas”, and resorts other authors as Zulgadía Espinar, H. J. Hirsch, G. Heine, K. Tiedemann e S. Bacigalupo. It uses the inductive method and the literature review as its methodology in order to try to solve the presented problem, which results pointed to a real need of an independent discipline of penal responsibility, since the mentioned entities have specific and special needs.
Keywords: Penal Responsibility. Legal Entities. De La Cuesta.
Sumário: Introdução. 1. Linhas de Pensamento (Correntes Doutrinárias). 2. Podem as pessoas jurídicas ser sujeitos ativos de delitos? 3. Previsões Legais do Código Penal Espanhol e Natureza Jurídica. 4. O que diz a prática penal? 5. Critérios de Imputação. Conclusão.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo demonstrar a necessidade ou não de se criar uma espécie independente de responsabilização penal voltada em específico para as pessoas jurídicas. Para isso, toma como base o trabalho de José Luis de La cuesta, intitulado “Uma nova linha de intervenção penal: o Direito Penal das Pessoas Jurídicas”.
Utilizando-se do método indutivo bibliográfico, a atual pesquisa cita algumas das diferentes correntes hoje existentes, no debate sobre o tema, e quais as opiniões suscitadas por cada uma delas, sinalizando qual aparenta ser a mais adequada para a discussão em comento.
Justifica-se o debate sobre tais questões, tendo em vista os Diplomas Penais utilizados na contemporaneidade mostrarem-se obsoletos, quando analisados às lentes das atuais sociedades (o Código Penal utilizado atualmente na Espanha, por exemplo, tanto quanto o brasileiro, é o mesmo produzido no século passado, o que culmina em um Diploma Legal com mudanças pontuais ou de caráter emergencial que tentam – muitas vezes de maneira frustrada – adequar-se às novas situações que se apresentam na práxis jurídica: uma colcha de retalhos fundada em princípios ultrapassados e que deveria estar constituída com base em um olhar mais adequado, atual e necessário).
Dentre os pontos suscitados no trabalho, têm-se – ainda que indiretamente – (1) a questão da autorregulação (fiscalização interna do ente coletivo como definidor da sua perigosidade criminal, ou da sua “tendência” em cometer ilícitos – tal observação se baseia no fato de que, quando uma pessoa jurídica não demonstra interesse se manter dentro dos níveis de segurança e qualidade, abre espaço para o cometimento de ilícitos –); (2) do incremento do risco pela atividade empresarial decorrente de uma gestão defeituosa ou omissa; (3) do princípio da estrita necessidade para a aplicação da responsabilização penal sobre os entes coletivos (as sanções penais devem mostrar-se necessárias para regular as condutas praticadas – como é o caso das situações em que a não-fiscalização interna da pessoa jurídica se mostra causadora de riscos não inerentes à atividade, tais como perturbações sociais graves ou atentados ao meio ambiente (“morte ou lesões graves de uma quantidade indeterminada de pessoas, perigo comum não usual (incêndios, explosões, graves danos materiais em edificações) ou atentados especialmente graves para o ambiente, irreversíveis ou de recuperação muito custosa ou de longo prazo”, etc.)) –; (4) bem como do enriquecimento ilícito originado da gestão propositadamente defeituosa ou omissa, dentre outros.
1. LINHAS DE PENSAMENTO (CORRENTES DOUTRINÁRIAS)
De acordo com J.L de La Cuesta (2001, p. 65):
“Quase todos os ramos do Direito consideram as pessoas jurídicas como verdadeiros titulares de direitos e obrigações (…). Na qualidade de tais, as pessoas jurídicas podem chegar a ser plenamente responsáveis, quando seus atos derivarem do não cumprimento de seus deveres ou da realização de feitos irregulares ou proibidos”.
De la Cuesta (2001, p. 76) expõe, em seu trabalho, três linhas de pensamento mais comuns sobre o quesito da responsabilidade penal das pessoas jurídicas: (1) há aqueles adeptos da construção de um Direito Penal novo, com critérios específicos de imputação e sanções próprias (como é o caso do próprio autor e dos demais posteriormente citados); (2) há quem entenda que basta uma ampliação ou reformulação das categorias tradicionais da teoria do delito, “para dar pleno cabimento aos feitos procedentes de pessoas jurídicas”; e (3) há aqueles que prefiram acreditar na suficiência das medidas administrativas para tratar do assunto (corrente da intervenção acessória).
Tanto quanto o autor, sou da posição de que ampliar ou reformular categorias tradicionais da teoria do delito se mostraria ineficaz, tendo em vista que o próprio Direito Penal tradicional não comporta e nem vislumbra a possibilidade de uma regulação penal sobre entes coletivos: o Direito Penal tradicional foi pensado exclusivamente para pessoas físicas, visto que um dos seus princípios basilares é o da Pessoalidade (as penas não podem ultrapassar a pessoa do transgressor).
Igualmente, deixar as sanções das pessoas jurídicas a cargo do Direito Administrativo seria não reconhecer a gravidade dos delitos por estes entes cometidos, visto que quando vislumbrados, em geral possuem efeitos devastadores ou dizem respeito à falta de ética para com uma coletividade contundente: agressões graves ao meio ambiente; crimes de corrupção ativa ou passiva; tráfico de influência; dentre outros.
Visto isso, José Luis de la Costa inicia o seu trabalho defendendo a criação não de um direito penal acessório para as pessoas jurídicas em conflito com a legalidade, mas de um direito penal independente, tal qual o direito penal que se aplica sobre as crianças e adolescentes.
2. PODEM AS PESSOAS JURÍDICAS SER SUJEITOS ATIVOS DE DELITOS?
Não obstante Sinibaldo de Fieschi (Inocêncio IV), em sua obra intitulada “Persona Juridica y ficcion”, negar a possibilidade “de que as pessoas jurídicas possam ser sujeitos ativos de alguns delitos e sujeitos passivos de algumas sanções penais” (J. L. DE LA CUESTA, 2001, p. 66), fundado na máxima do Direito Penal tradicional de que a responsabilidade penal é personalíssima – o que impossibilitaria as pessoas jurídicas de figurarem como sujeitos ativos de tal, visto carecerem de uma característica básica ao princípio da pessoalidade que é justamente o elemento subjetivo –, José Luis de La Cuesta aponta um rol de motivos pelos quais a sua posição se mostra contrária.
Uma das justificativas utilizadas pelos teóricos da linha tradicional é a de que “a responsabilidade penal é essencialmente pessoal” (J. L. DE LA CUESTA, 2001, p.66), daí porque aplicar sanções penais a pessoas jurídicas seria não apenas violar esta prerrogativa, mas, permitir também que pessoas físicas representantes destas pessoas jurídicas respondessem por situações penais sobre as quais não necessariamente teriam responsabilidade direta.
Paralelamente, tentar incorporar as pessoas jurídicas a um direito penal moldado para pessoas físicas, seria criar uma impossibilidade formal e material, na qual estes entes coletivos careceriam de determinados requisitos básicos da responsabilização penal, tal como a capacidade de agir e a culpabilidade (igualmente, na fase de execução, se mostraria impossível aplicar penas privativas de liberdade, bem como analisar caracteres tais como conduta do condenado no ambiente carcerário, ou ainda, na fase de sentença, avaliar a “personalidade do indivíduo” ou a sua “conduta social”).
Quanto a estes argumentos, J. L. aponta soluções simples. O autor, sabiamente, aventa que não basta incluir as pessoas jurídicas no rol de sujeitos passivos de sanções penais, é necessário que se crie um direito penal novo, independente, que compreenda unicamente estas situações “excepcionais”, o que exigiria um rol de requisitos e circunstâncias específicos que garantiriam a legitimidade de tal responsabilização.
De La Cuesta (2001, p. 67) defende que as pessoas jurídicas podem “assumir diretamente sua responsabilidade para além das margens de seus membros individuais. Estes (…) não são diretamente abarcados por esta responsabilidade nem são objeto de sanção”.
3. PREVISÕES LEGAIS DO CÓDIGO PENAL ESPANHOL E NATUREZA JURÍDICA
Zulgadía Espinar (1997, pp. 329 e 331) aponta a absoluta insuficiência da regulação atualmente existente, na Espanha, sobre as situações de responsabilidade penal das pessoas jurídicas. O autor destaca que tal regulamentação se deu através do CP/95, mediante um único artigo o qual, por si só, não teria capacidade de tratar sobre um tema tão vasto como o suscitado.
Por esta razão, propõe, tanto quanto Heine (1995, p. 202), Tiedemann (1998, pp. 1169 e ss.) e De la Cuesta (2001, p. 72), a criação de uma “teoria jurídica do delito da pessoa jurídica”, a qual (1) permitiria o “estrito respeito ao princípio da necessidade”, no que tange à participação ou não da pessoa jurídica no processo penal; e (2) “estabeleceria com clareza os pressupostos de imputação”, os quais seriam, no plano subjetivo, a existência de dolo ou culpa in vigilando – decorrente da falta de atenção com o procedimento de outrem / in eligendo – decorrente da má escolha do responsável por praticar aquele ato, “tão só relevante se o delito de que trata é suscetível de comissão imprudente” [1].
Outra observação feita por Zulgadía (1997, p. 330) diz respeito à total possibilidade de existirem, simultaneamente, dois processos penais correntes apurando o mesmo fato, mas por óticas diferentes, visto que as sanções teriam naturezas penais distintas: enquanto a pessoa física responderia perante um processo penal comum sobre ato cometido individualmente, a pessoa jurídica seria devidamente sancionada em um processo penal especial, com medidas adequadas à sua qualidade de entidade coletiva (suspensão; dissolução; multa – sobre o patrimônio da pessoa jurídica –; etc.).
Estas sanções mencionadas são as “consequências acessórias” hoje existentes na Espanha para tratar da questão das pessoas jurídicas em conflito com a lei (dissolução da sociedade empresária; suspensão das suas atividades; proibição temporal de realizar, em até cinco anos, atividade empresária similar; intervenção da empresa pelo tempo necessário para salvaguardar os direitos dos seus trabalhadores; dentre outras).
Não obstante parecerem perfeitamente adequáveis enquanto sanções à pessoa jurídica em conflito com a lei, não deveriam tratar-se de meras consequências acessórias, e sim ser elevadas à qualidade de sanções penais especiais, especificamente voltadas para os entes coletivos transgressores da norma penal.
Outra previsão legal do CP Espanhol diz respeito à imprescindibilidade de uma audiência prévia com os titulares e representantes da pessoa jurídica especialmente para discutir o suposto ato ilícito cometido, bem como a previsão de que quaisquer decisões tomadas pelo magistrado, neste aspecto, devem ser devidamente motivadas.
No que concerne à natureza jurídica dessas “consequências penais” previstas no CP Espanhol, a doutrina as define como penas propriamente ditas, mas adverte os operadores jurídicos que as aplique com cautela e prudência, tendo em vista sua escassa regulamentação no instrumento penal adequado (CP), o que acaba gerando uma insegurança jurídica neste aspecto.
Não obstante a escassez regulamentar deste viés acessório que se aplica sobre o direito penal, Zugaldía Espinar (1997, p. 330) assinala que a Espanha reconhece sim, a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, ainda que indiretamente. De la Cuesta (2001, p. 68), a título de complementação, define tratar-se de uma “nova via, que não pode assimilar-se nem às penas nem às medidas de segurança, nem mesmo quando se lhes aplicarem todas as garantias do Direito Penal [tradicional]”.
4. O QUE DIZ A PRÁTICA PENAL?
Sob a ótica da práxis penal, José Luis de la Cuesta (2001, p. 68) destaca que “a expansão da delinquência corporativa (…) [exige] um sistema adequado de reação contra os feitos delitivos procedentes das pessoas jurídicas”. Por este mesmo motivo, assinala como fundamental a superação de um modelo tradicional que restringe a análise penal à “prova de um feito típico, antijurídico e culpável cometido por um sujeito individual” (J. L. DE LA CUESTA, 2001, p. 70).
“Os feitos delitivos que se produzem na atualidade (…) através de entidades legalmente constituídas [pessoas jurídicas] (…) põem em crise a filosofia do direito individual (autoconsciente), tradicional no Direito Penal (…), desbaratando, por exemplo, toda possibilidade de determinação dos verdadeiros donos do processo, quando a execução material, o conhecimento da informação necessária e os centros de decisão estão fragmentados (…), [com o] iter formativo da vontade parcializado no seio de complexas estruturas de variável e emaranhada distribuição de funções” (J. L. de La Cuesta, 2001, p. 69).
O autor destaca a dificuldade em se aceitar esta nova corrente por ele defendida, em que a responsabilidade penal seria analisada sobre um viés majoritariamente novo, distante do âmbito acessório que atualmente se aplica sobre estes casos, no Direito Penal Espanhol. Essa mudança é necessária, todavia, considerando o aumento na incidência de crimes negociais (econômicos – “White collar crimes” – e crimes contra o meio ambiente), os quais possuem gravidade e relevância jurídica tal que nem mesmo o Direito Administrativo, como determinadas correntes defendem, seria suficiente para contê-lo (a persecução penal, com devido processamento e julgamento legais, se mostra imperativa).
5. CRITÉRIOS DE IMPUTAÇÃO
A corrente defendida por de La Cuesta (2001, p. 70), influenciada pelos ensinamentos de H. J. Hirsch, G. Heine, K. Tiedemann e outros, propõe uma “reconfiguração das categorias de ação e culpabilidade”, para que estas se mostrem compatíveis com as pessoas jurídicas, de modo que sua tipificação em abstrato se adeque aos delitos concretamente cometidos
K. Tiedemann (1988, p. 1169) discute a possibilidade de se estruturar o instituto da culpabilidade específica das pessoas jurídicas com base no requisito “defeito de organização”. Este elemento diria respeito, na prática, ao ato de imprudência cometido pelas pessoas jurídicas ao não praticarem uma fiscalização efetiva sobre as atividades empresariais que exerçam, tal como a inobservância do respeito às regras de meio ambiente; desvios de função; dentre outros.
De acordo com o entendimento de Tiedemann, “não há dificuldades para defender que as pessoas jurídicas tenham plena capacidade de ação” (J. L. DE LA CUESTA, 2001, p. 71), daí porque não há o que se questionar quanto ao requisito “ação”, e sim, ao requisito culpabilidade. O autor ressalta que “a categoria dogmática culpabilidade, construída tradicionalmente sobre o modelo normativo (…) [e suas] novas perspectivas preventivas, não parece oferecer suficiente espaço para a culpabilidade das pessoas jurídicas” (J. L. DE LA CUESTA, 2001, p. 70), daí porque o autor surgiu com a ideia de se detectar, para fins de prova da culpabilidade das pessoas jurídicas, se estas praticaram alguma espécie de “defeito de organização consistente na omissão (…) de controle necessário para evitar que no seio de sua atividade social habitual ou estatutária se produzam infrações [penais]”.
Igualmente, G. Heine (1995, p. 202) aduz que:
“a admissão da responsabilidade penal das pessoas jurídicas exige partir da construção de pressupostos específicos de imputação, que não coincidam com os tradicionalmente construídos para os feitos cometidos por pessoas físicas. Assim, se nas pessoas físicas a autoria se rege pelo domínio do feito, no caso das pessoas jurídicas, este conceito deveria ser substituído pelo domínio da organização sistemático-funcional, que obriga a entidade a antecipar-se aos riscos inerentes a seu funcionamento e a preveni-los mediante a adoção de medidas de asseguramento, através da manutenção do nível de segurança exigível, e por meio do estabelecimento de deveres de inspeção internos que garantissem o funcionamento dos controles e o respeito às exigências de qualidade”.
Quanto ao caráter de excepcionalidade anteriormente mencionado sobre a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, Heine (1995, p. 201) assinala que as pessoas jurídicas só seriam responsabilizadas perante situações de extrema gravidade:
“exclusivamente em casos de produção de determinadas perturbações sociais graves [como a] morte ou lesões graves de uma quantidade indeterminada de pessoas, perigo comum não usual (incêndios, explosões, graves danos materiais em edificações) ou atentados especialmente graves para o ambiente, irreversíveis ou de recuperação muito custosa ou em longo prazo (…). Essas perturbações são imputadas tipicamente à pessoa jurídica quando (…) sua ocorrência tenha derivado do incremento de risco produzido por uma gestão defeituosa (dolosa ou imprudente)”.
Nota-se aqui o porquê da necessidade de um direito penal específico para regular tais situações: trata-se de uma matéria que merece tratamento independente, e que necessita deste para que as situações concretas sejam mais bem reguladas, com requisitos adequados e compatíveis com a sua realidade (gestão defeituosa, nexo causal, incremento do risco, etc.).
Quanto aos critérios de imputação para a responsabilidade penal tratada, S. Bacigalupo (1999, p. 18) versa sobre um elemento central para esta, a qual seria a “representação válida” da entidade. Para ele, deve-se oferecer um adequado tratamento, no seio da representação, aos empregados da pessoa jurídica responsável pelo cometimento do ato, bem como não se deve restringir a legitimidade de representação como critério único utilizado na imputação delitiva de pessoas jurídicas.
No que concerne ao tratamento devido aos empregados da pessoa jurídica em conflito com a lei penal, de La Cuesta salienta que o reconhecimento de “uma intervenção penal efetiva e direta (não acessória ou subsidiária) (…) há de ser uma intervenção plenamente compatível com a penal tradicional sobre os indivíduos que foram parte de sua organização e que atuam na execução de seus acordos e estratégias”.
Na visão de Bacigalupo (1999, p. 18):
“Há que se ampliar o círculo de pessoas cujos atos podem ser imputados à pessoa jurídica, para abarcar a todos aqueles sujeitos que se encontram a cargo de uma unidade operativa da empresa; pessoas que contam com uma verdadeira capacidade de representação e decisão dentro do processo de divisão de trabalho da pessoa jurídica”.
Ademais, no que diz respeito à não restrição da representação como único critério de imputação, De la Cuesta (2001, p. 74) admite que “a mera realização de um feito delitivo por uma pessoa pertencente a este círculo não há de bastar para a imputação dos feitos à entidade”. É necessária, para o autor, a prova do nexo causal existente entre a pessoa jurídica e o ato delitivo cometido. Este nexo causal, ainda, deve fundar-se, como ensina Bacigalupo (1999, p. 19): “(1) na infração às obrigações ou deveres gerais ou específicos da pessoa jurídica ou (2) em um enriquecimento real ou potencial que tenha como sua causa geradora o comportamento antijurídico realizado no interesse daquela”.
Outro critério de imputação diria respeito à fixação das bases que devem servir para graduar a sanção. De acordo com J. L. (2001, p.75), a responsabilidade penal da pessoa jurídica “há de estabelecer-se necessariamente a partir de sua atuação”, ou seja, quanto mais gravoso o ato delitivo pela pessoa praticado, tanto mais lhe será penalizado:
“Detectada uma infração (…), a imputação dos feitos à pessoa jurídica obriga [o juiz] a examinar o modo em que se reflete a contribuição desta para [o cometimento] da infração, ponto de partida da imputação típica (…) do mesmo modo, se admite no caso dos sujeitos que atuam meramente de acordo com outros ou em situação de incapacidade de ação” (J. L. DE LA CUESTA, 2001, p. 75) [2].
Os elementos de imputação mais relevantes, portanto, seriam: (1) a prova da ação, junto à existência de um nexo causal entre o ato praticado pela pessoa física e a sua função na empresa; (2) o defeito de organização ou funcionamento, fundamento da culpabilidade; e (3) o incremento do risco – “inobservância do cuidado externo objetivamente devido” [3] (J. L. DE LA CUESTA, 2001, p. 76).
De La Cuesta (2001, p. 76) traz ainda algumas hipóteses de exclusão da tipicidade, tais como a imprevisibilidade ou inevitabilidade do resultado delitivo, bem como a “falta de conexão [nexo causal] entre o defeito de organização e a produção do resultado de lesão ou de perigo”.
Neste espeque, há de se lembrar que a mera consolidação dos requisitos tipicidade e antijuridicidade não são suficientes para a constatação da responsabilidade penal (seja ela sobre pessoas físicas, ou jurídicas). É necessária a prova da culpabilidade (terceiro elemento da responsabilidade jurídica), a qual, para Jose de La Cuesta (2001, p. 76), poderia se caracterizar como a “não ocorrência de uma situação de inexegibilidade”, combinada com uma análise posterior sobre a “perigosidade criminal” da pessoa jurídica (existência ou não de órgão interno de fiscalização).
O autor esclarece que a não ocorrência de situação de inexegibilidade, por si só, não poderia se caracterizar como elemento único para a constatação do requisito culpabilidade, em razão deste elemento permitir apenas a sua exclusão em determinados casos, não esclarecendo “qual o fundamento material da intervenção” (J. L. DE LA CUESTA, 2001, p. 77) – ou em outras palavras, quais justificativas são essas que conseguiriam finalizar a tríade tipicidade, antijuridicade e culpabilidade, capaz de incriminar alguém e fomentar a intervenção penal do Estado.
Quanto ao substrato “perigosidade criminal da pessoa jurídica”, este elemento da culpabilidade da pessoa jurídica corresponderia à existência ou não da prática de intervenção interna na empresa (“compliance”) ante as situações de desvios de conduta: nas palavras de J. L. (2001, p. 77), “intervenção sancionadora dentro dos limites próprios das penas correspondentes à infração cometida”.
O autor salienta que essa ingerência empresarial deveria constituir-se não de poder interno sancionador, mas, de medidas de “conteúdo plural: sancionador, preventivo e reparatório, sem prejuízo de outras diversas respostas penais potencialmente aplicáveis” (J. L. DE LA CUESTA, 2001, p. 77).
Em outros termos, a perigosidade criminal da pessoa jurídica seria constatada com base em uma intervenção anterior (e independente da intervenção penal) realizada por ela mesma (e definidora da existência ou não de potencial risco ou periculosidade excessivamente gravosa decorrente da sua atividade empresarial).
Em resumo, os componentes da responsabilidade penal da pessoa jurídica poderiam ser classificados enquanto (A) materiais: (1) incremento do risco por gestão defeituosa; (2) inobservância do domínio sobre a organização funcional da empresa – análise da perigosidade criminal com base na falta de inspeção interna para a garantia das exigências de qualidade e dos níveis de segurança –; (3) nexo causal entre o ilícito empresarial realizado e a função do agente causador na empresa; (4) ocorrência de enriquecimento ilícito produzido pelo comportamento antijurídico da empresa; e (B) formais: (1) representação válida e (2) estrito respeito ao princípio da necessidade – aplicação excepcional da responsabilização penal da pessoa jurídica, nas hipóteses específicas de Heine (morte, lesão grave à coletividade, atentados ao meio ambiente, etc.)).
Jose de la Cuesta finda o seu trabalho reafirmando a sua opinião sobre a imperiosidade da criação de uma responsabilidade penal independente e que supere as amarras da responsabilização penal tradicional, inadequada aos contornos específicos das pessoas jurídicas:
“[Deve-se] optar pela construção de uma nova via de intervenção penal que (…) estabeleça com claridade os pressupostos e limites desta nova forma de responsabilidade. Em suma, abrir uma linha penal paralela à tradicional (…), com critérios de aplicação e níveis garantistas assimiláveis (…), dirigida a servir de complemento à este [dir. penal tradicional] na defesa da sociedade e das vítimas, frente aos ataques mais graves aos bens jurídicos fundamentais; e , dada sua condição em certo modo “excepcional”, reservada tão somente para os feitos delitivos expressamente determinados por lei [proposições de Heine]” (J. L. DE LA CUESTA, 2001, pp. 77/78).
6. CONCLUSÃO
Nota-se que a opinião do autor é claramente adequável às necessidades do Direito Penal contemporâneo. Em que pese parecer um tanto dificultoso utilizar-se de um instrumento jurídico totalmente novo e independente para tratar de um tema aparentemente tão simples como o da responsabilidade penal das pessoas jurídicas, vê-se que a completude dos elementos apontados pelos doutrinadores demanda um tratamento diferenciado, uma regulamentação específica que comporte e dê o valor necessário ao tema tratado.
Defender a possibilidade de utilizar-se de um direito meramente acessório regulando o conteúdo é o mesmo que não compreender a complexidade da matéria. O presente trabalho teve por escopo analisar brevemente a questão da responsabilidade penal das pessoas jurídicas, partindo dos ensinamentos de J. de La Cuesta, tendo em vista a objetividade do autor em apontar questões básicas para se compreender a temática (a questão do incremento do risco, do defeito de gestão, dentre outras).
Em momento algum se pretendeu, com o presente trabalho, esgotar-se todo o rol de discussões acerca do tema. Em verdade, buscou-se dar uma visão inicial, um ponto de partida para quem pretende adentrar-se nos conhecimentos sobre a responsabilização penal das referidas entidades.
Tendo isso dito, é possível concluir que nunca é demais buscar uma maior profundidade sobre o assunto, bem como não se pode retirar validade de uma opinião condescendente com as correntes do direito penal acessório, visto que há quem entenda que quanto mais direito, menos direito (o próprio princípio penal da intervenção mínima serviria como escopo no caso em questão, e considerando a magnitude do território brasileiro, é coerente afirmar que determinas questões penais se mostram difíceis de controlar na práxis, daí porque mais caberia um aumento no aporte de forças fiscalizatórias do que no direito positivo propriamente dito).
Assim sendo, qualquer que seja a corrente defendida ou os meios utilizados, o que não se deve esquecer, a título de positivação, é de uma análise minuciosa sobre o tema, e preferivelmente considerando, para a constatação da responsabilidade penal de uma pessoa jurídica, que se mostrem presentes os elementos suscitados por J. L. de La Cuesta (excepcionalidade, necessidade, representação válida, não-fiscalização interna, incremento do risco, nexo causal, etc.)
Informações Sobre o Autor
Aglaé Caroline Santos Carneiro
Mestranda em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador. Pós-graduanda em Ciências Criminais pela Universidade Católica do Salvador