Resumo: A Justiça Restaurativa é um modelo não punitivo de resolução de conflitos, que busca, preferencialmente, a restauração dos conflitos sociais experimentados pelo autor, vítima e comunidade afetada pelo crime, oportunizando às partes o protagonismo no que concerne à elaboração de propostas restaurativas a partir de método e escuta qualificados. Através de diferentes técnicas restaurativas, esse modelo proporciona uma esfera de corresponsabilidade entre os sujeitos envolvidos no conflito. Esse sistema, baseado em modelos existentes desde os primórdios da civilização humana, ressurge como alternativa ao paradigmático modelo tradicional de Justiça Penal, empiricamente falho, tendo em vista o aumento vertiginoso da violência e da reincidência em um país marcadamente desigual como o Brasil. A partir de uma análise crítica do modelo de Justiça Restaurativa e de um caso emblemático ocorrido no “Núcleo Bandeirante- DF”, o estudo propõe a extensão das práticas restaurativas para todos os tipos de crimes no Brasil, até mesmo aqueles de maior potencial ofensivo.
Palavras-chave: justiça restaurativa; crimes de maior potencial ofensivo; método alternativo; protagonismo das partes.
Abstract: Restorative justice is a non-punitive model of conflict resolution, which seeks, rather, the restoration of social conflicts experienced by the author, victim and community affected by the crime, providing opportunities to share the role with regard to the development of restorative proposals from method and qualified listening. Through different restorative techniques, this model provides a sphere of responsibility among those involved in the conflict. This system, based on existing models since the dawn of human civilization, resurfaces as paradigmatic alternative to the traditional model of criminal justice, empirically flawed, given the dramatic increase in violence and recidivism in a markedly unequal country like Brazil. From a critical analysis of restorative justice model and an emblematic case occurred in the “Núcleo Bandeirante- DF”, the study proposes the extension of restorative practices for all kinds of crimes in Brazil, even those potentially offensive.
Keywords: restorative justice; crimes potentially offensive; alternative method; role of the parties.
Sumário: Introdução. 2. O olhar punitivo sobre o crime: evoluções históricas e limitações empiricamente demonstradas. 3. Breve excurso sobre a Justiça Restaurativa e seus fundamentos. 4. A Justiça Restaurativa no Brasil: implementação, críticas e aspectos positivos. 5. Novas possibilidades: a extensão da Justiça Restaurativa aos tipos penais de maior potencial ofensivo. 6. As implicações de práticas restaurativas ampliadas a partir de uma experiência ocorrida no Núcleo Bandeirante- DF. Conclusões. Referências.
INTRODUÇÃO
A falibilidade da Justiça Penal Tradicional[1] e os índices crescentes de violência urbana, trazem à tona discussões acerca de outros modelos mais efetivos de Justiça. Nesse contexto, a Justiça Restaurativa ressurge como alternativa ao paradigmático modelo convencional, em uma tentativa promissora de se conciliar as justas expectativas e interesses da vítima, do ofensor e da comunidade afetada pelo crime. Para tanto, o presente artigo irá discorrer acerca da ineficácia do sistema criminal convencional, que estabelece um olhar estritamente punitivo sobre o crime; para, em seguida, analisar os fundamentos, valores,e historicidade da Justiça Restaurativa, já presente em comunidades mais primitivas.
Em continuidade, será abordada a implantação da Justiça Restaurativa no Brasil[2], sem contudo,negligenciar os questionamentos mais recorrentes a esse modelo de Justiça.Ainda nesse panorama geral sobre o tema, propõe-se rebater as principais críticas outrora existentes, baseando-se também em experiências positivas advindas inclusive de outros países, como, por exemplo, a Nova Zelândia[3].
Enfrentadas as premissas mais gerais, o presente estudo segue questionando eventual aplicação da Justiça Restaurativa para além dos crimes considerados de menor potencial ofensivo no Brasil. Isso porque, passados mais de dez anos desde a implantação dos primeiros projetos sobre Justiça Restaurativa no cenário nacional, verifica-se que esse modelo de Justiça continua limitado aos casos de competência dos Juizados Especiais Criminais ou dos Juizados da Infância e Juventude, e, portanto, direcionados quase que exclusivamente aos crimes de menor potencial ofensivo e aos atos infracionais.
A partir dessa realidade constatada no Brasil, e a fim de sustentar a possibilidade de ampliação da Justiça Restaurativa no sistema penal, será utilizado os fundamentos de um caso paradigmático encaminhado ao programa restaurativo do Núcleo Bandeirante- DF em 2007. Em complemento, o trabalho mostrará resultados inovadores advindos de pesquisas empíricas realizadas em países que adotaram a Justiça Restaurativa em uma perspectiva mais ampla.
Em resumo, o trabalho pretende demonstrar que a ampliação da Justiça Restaurativa aos crimes mais graves é juridicamente possível e socialmente necessária no Brasil, a despeito de todos os óbices existentes a seu adequado funcionamento. A partir dessa ampliação, a Justiça Restaurativa estaria apta a cumprir sua função inovadora de transformação social.
2. O olhar punitivo sobre o crime: evoluções históricas e limitações empiricamente demonstradas
O homem tem a “propensão para viver junto com os outros e comunicar-se com eles, torná-los participantes das próprias experiências e dos próprios desejos (…)”, fato que o torna um ser social(MONDIN, 1986, p.154).Segundo Mondin (1986), ele também é um ser político, sendo que a politicidade pode ser entendida como o conjunto de relações que o indivíduo mantém com os demais, enquanto parte integrante de um grupo social.Dessa forma, as interações sociais, presentes até mesmo nas comunidades mais primitivas, podem ser compreendidas a partir de três formas: cooperação, competição e conflito (NADER, 2007).
Sobre essas formas, Nader explica que:
“Na cooperação, as pessoas estão movidas por um mesmo objetivo e valor e por isso conjugam o seu esforço. Na competição há uma disputa, uma concorrência, em que as partes procuram obter o que almejam, uma visando à exclusão da outra. (…) O conflito se faz presente a partir do impasse, quando os interesses em jogo não logram uma solução pelo diálogo e as partes recorrem à luta, moral ou física, ou buscam a mediação da justiça” (2007, p.25).
Assim, o conflitopode ser considerado um dos elementos intrínsecos a qualquer sociedade, sendo que seu modo de solução depende do contexto em que o mesmo se insere. Em uma breve análise histórica, partindo das comunidades primitivas pré-estatais, “verifica-se que nessas sociedades não havia um sistema normativo que regia a vida em sociedade, nem concepções científicas centradas em princípios racionais, mas sim um ambiente de religião e magia” (FERREIRA, 2000, p.434-435).Para estes grupos, os fenômenos naturais maléficos (seca, enchentes, pestes) eram considerados como castigos divinos, e, portanto, as penas aplicadas aos infratores eram cruéis, severas e desumanas, podendo chegar até mesmo ao sacrifício da vida do transgressor (MIRABETE, 2004).
Com o passar dos tempos, os povos primitivos começaram a resolver seus conflitos a partir da vingança privada[4], que representava uma reação quase instintiva à prática delituosa. O exercício da vingança privada era costumeiramente exercido pela vítima, seus familiares ou mesmo pelo grupo social a queaquela pertencia, guardando certo teor de vingança pessoal, com penas muitas vezes degradantes, e cruéis (MIRABETE, 2004).Jána Idade Média, as penas eram verdadeiros espetáculos públicos, em que predominava o arbítrio judicial do soberano, sendo que a tortura, a pena de morte e o suplício[5] expressavam a força simbólica do castigo exemplar (FILHO, 2001).
No decorrer do Iluminismo[6], precisamente no fim do século XVIII (Século das Luzes), Beccaria, influenciado por autores como Rousseau, Montesquieu, Locke, Voltaire, já defendia a humanização da pena, devendo ser esta “(…) pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstancias dadas, proporcionada ao delito e determinada pela lei” (BECCARIA, 2002, p.107).Foi a partir desse movimento de humanização da pena que o Estado Moderno avocou para si o jus puniendi, ou seja, possui o poder-dever de punir os indivíduos que violam as normas de direito penal. O monopólio estatal na persecução criminaljustifica-se pela teoria do contrato social[7],que preconiza que os indivíduos livres, no momento da formação do pacto social, concederam ao ente estatal o poder legítimo do uso da força, e é este poder que mantém os homens dentro dos limites consentidos e osobriga, por temor a uma sanção, a cumprir com os seus compromissos e a observar as leis previamente estabelecidas. O ente estatal, em contrapartida, teria o dever de assegurar a coesão e harmonia do grupo social, confiscando dos indivíduos o direito a exercer a justiça privada (DALLARI, 2007).
Esse modelo de justiça criminal tradicional, em que o Estado é o detentor único e exclusivo do jus puniendi, é,ainda nos dias de hoje, o modelo predominante para a solução dos conflitos sociais. Ocorre que, a despeito de clamar por penas mais humanas, o sistema penal adotado em pleno século XXI é essencialmente punitivo, na medida em que retribui a ofensa ao violador de determinado bem jurídico em exame, ainda que isso represente flagrante violação a direitos humanos fundamentais (ZEHR, 2008). Nessa perspectiva, o modelo penal tradicional visa precipuamente a subsunção do fato à norma, ao julgamento e posterior condenação do ofensor, desconsiderando, em grande medida, as reais necessidades e interesses das vítimas[8], assim como dos sujeitos envolvidos no conflito (ZEHR, 2008).
A lógica de funcionamento do sistema penal tradicional foi detalhadamente descrita por Dos Santos, conforme se pode verificar a seguir:
“As partes não são escutadas no processo criminal, a dignidade da pessoa humana não é respeitada, o ofensor é desumanizado e tratado como um marginal, independente do histórico de vida, das violações de direitos já sofridas por ele e dos motivos que o levaram a determinado comportamento. A vítima só é questionada a respeito do fato, o judiciário não se preocupa com seus sentimentos e necessidades. Quanto à reparação do dano, esta inexiste, visto que a pena é apenas uma punição para o comportamento do ofensor, nada representando para a vítima” (2012, p.25).
O que se percebe, desse modo, é uma evidente preocupação em se julgar processos, mas não a lide propriamente dita; eis que o conflito, seus motivos, consequências e soluções não são ao menos questionados nos deslindes da causa penal (ZEHR, 2008).O crime é visto através da lente estritamente retributiva, sendo que este configura apenas “uma violação contra o Estado, definida pela desobediência à lei e pela culpa. A justiça determina a culpa e inflige dor no contexto de uma disputa entre ofensor e Estado, regida por regras sistemáticas” (ZEHR, 2008, p.170).
A partir desse ideal repressivo, a punição rigorosa e o encarceramento são apresentados como as possíveis soluções ao problema da violência e da criminalidade, seja através de reiteradas condenações a penas privativas de liberdade, chanceladas pelo próprio Judiciário[9], seja pela incitação da mídia, através de discursos superficiais e tendenciosamente espetacularizados[10].Sobre essas possíveis soluções, Lopes Junior adverte que:
“A ideia de que a repressão total vai sanar o problema é totalmente ideológica e mistificadora. Sacrificam-se direitos fundamentais em nome da incompetência estatal em resolver os problemas que realmente geram a violência” (2006, p. 16).
Em verdade, o sistema penal posto atualmente é indubitavelmente falho, já que responde ao crime de maneira tão ou ainda mais violenta quanto fora sua prática, incrementando um círculo de violência, que parece não ter fim. Utilizando-se das palavras de Marcos Rolim,“a estrutura do sistema penal encontra-se falida, pois não é capaz de prevenir futuros delitos, não ressocializa, bem como não funciona para a responsabilização de infratores, não produz justiça e tampouco constitui um verdadeiro sistema” (ROLIM, 2006, p.10).
Nesse contexto de ineficácia do sistema penal tradicional, inúmeras mudanças ocorreram na legislação brasileira,visando-se principalmente a contenção de medidas punitivas rígidas e a própria violência em si. Ocorre que, em que pese a previsão das penas alternativas ao cárcere pelo legislador pátrio, notadamente através das penas restritivas de direito e dos benefícios constantes da lei 9099/95 (Lei do Juizado Especial Criminal), estas se mostraram mais como um remendo à crise de legitimidade e de eficácia do sistema penal convencional do que propriamente como uma solução capaz de superar o paradigma punitivo. Em outras palavras, a busca de alternativas à privação da liberdade cria apenas novas formas de punição menos dispendiosas e mais atrativas do que o cárcere, sem, contudo, questionar os pressupostos que sustentam o modelo de punição em si (ZEHR, 2008).
Zehr ainda elucida que:
“As populações carcerárias continuam a crescer ao mesmo tempo em que as ‘alternativas’ também crescem, aumentando o número de pessoas sob o controle e supervisão do Estado. A rede de controle e intervenção se ampliou, aprofundou e estendeu, mas sem efeito perceptível sobre o crime e sem atender as necessidades essenciais da vítima e ofensor” (2008, p.62).
Nesse mesmo sentido, discorrendo acerca da falência da prisão e do fracasso das medidas alternativas, Leonardo Sica (2007) alega que, apesar do discurso e da implantação das penas alternativas, as taxas gerais de encarceramento subiram vertiginosamente em todo o mundo, o que inevitavelmente indica que algo está equivocado na transposição prática de todo o ideal de diminuição da pena de prisão.
Essa realidade fática pode também ser comprovada no Brasil, a teor dos dados transcritos por De Vitto, em Coletânea de Artigos, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD:
“Se no plano da elaboração legislativa, vivemos no Brasil, nas últimas décadas, um movimento pendular entre o garantismo penal e a doutrina da lei e da ordem, os números referentes ao sistema prisional preocupam: em 1995, ano de edição da alvissareira Lei 9.099/95, a população prisional equivalia a 148.760. Em 2003, esse número mais que dobrou, atingindo 308.304 encarcerados. Nesse mesmo período, triplicamos o número de vagas do sistema prisional e quadruplicamos o número de estabelecimentos prisionais, mas o déficit de vagas subiu em 50%” (2005, pp. 41-42).
De acordo com os dados apresentados, pode-se concluir que o encarceramento massivo é uma realidade gritante no cenário nacional, apesar dea superlotação carcerária ser caracterizada pelas Nações Unidas como um tratamento degradante, inumano e cruel[11], em nada condizente com o Princípio da dignidade humana, assegurado pela Constituição Federal Brasileira em seu art.1º, inciso.III[12]. Além disso, esse encarceramento em massa, resultado de um olhar estritamente punitivo sobre o crime, não contribui em nada para a ressocialização do infrator, ao revés, o insere em um contexto de maior criminalidade, negando-lhe direitos e garantias fundamentais. Para Foucault (2007) a própria estruturada prisão fabrica delinquentes, seja por intermédio do isolamento, seja por intermédio da imposição de trabalhos inúteis[13].A prisão também fabrica delinquentes impondo aos detentos limitações violentas; ela se destina a aplicar as leis e a ensinar o respeito por elas; ora, todo o seu funcionamento se desenrola no sentido do abuso de poder (…) (FOUCAULT, 2007, p.252).
Em corroboração a esse entendimento, Vera Andrade (1996) afirma que a pena privativa de liberdade não apresenta nenhum efeito terapêutico ou reeducativo. Ao contrário, ela incrementa os índices de reincidência, criando verdadeiros agentes criminosos cada vez mais inclinados à ‘carreira delituosa’;a saber:
“A intervenção do sistema penal, em especial as penas privativas de liberdade, ao invés de exercerem um efeito reeducativo sobre o delinquente, determinam, na maior parte dos casos, uma consolidação de uma verdadeira e própria carreira criminal, lançando luz sobre os efeitos criminógenos do tratamento penal e sobre o problema não resolvido da reincidência”(1996, p.282).
Assim, diante desse quadro de ineficácia total do sistema penal tradicional, é preciso trocar as lentes pelas quais enxergamos o crime e a justiça (ZEHR, 2008). É o que propõe a Justiça Restaurativa; um modelo que busca superar, ou ao menos flexibilizar, o paradigma crime-punição convencionalmente estabelecido, e que será objeto de análise no decorrer do presente artigo.
3. Breve excurso sobre a Justiça Restaurativa e seus fundamentos
A Justiça Restaurativa nasce com as práticas restaurativas desenvolvidas pelo psicólogo americano Albert Eglash, em meados do ano de 1950,conforme aduz a pesquisadora Laura Misky (2003. p. 1), em seu artigo “Albert Eglash and Creative Restitution: A Precursor to Restorative Practices”. O referido psicólogo, considerado por grandes estudiosos do tema como o precursor do modelo restaurativo na contemporaneidade[14], já defendia àquela época a adoção de um sistema em que o próprio ofensor, com ajuda e apoio profissional, deveria encontrar a melhor maneira de amenizar os efeitos danosos de sua conduta delitiva.Importante ressaltar, entretanto, que para muitos pesquisadores, as práticas restaurativas remontam aos tempos primitivos, podendo ser encontradas nos códigos de Hamurabi, Ur-Nammu e Lipit-Ishtar há cerca de dois mil anos antes de Cristo, conforme se pode verificar a seguir:
“Os vestígios dessas práticas restaurativas, reintegradoras, e negociáveis se encontram em muitos códigos decretados antes da era cristã. Por exemplo, o código de Hammurabi (1.700 a.C) e de Lipit- Ishtar (1875 a.C) prescreviam medidas de restituição para os crimes contra os bens. O Código sumeriano (2050 a.C) e o Eshunna (1.700 a.C) previam a restituição nos casos de crimes de violência (Van Ness e Strong, 1997). Elas podem ser observadas também entre os povos colonizados da África, da Nova Zelândia, da Áustria, da América do Norte e do Sul, bem como entre as sociedades pré- estatais da Europa” (JACCOUD, 2005, p.164).
Essas formas de negociações primitivas representavam um modelo de comunidade pautado por valores essencialmente coletivos, que buscavam manter a coesão e harmonia social, restabelecendo o equilíbrio rompido mediante a prática do delito. Desse modo, mesmo não tendo excluído formas de punição como a vingança e a morte, as sociedades comunais tendiam a utilizar mecanismos capazes de conter toda a desestabilização do grupo social (JACCOUD, 2005, p.164). A administração da justiça era, portanto, um processo de mediação e negociação mais do que um processo de aplicação de regras e imposição de decisões, assumindo, daí, mais um caráter de justiça comunitária do que justiça estatal (WAQUIM, 2011, p.56).
É a partir de meados de 1990que o modelo restaurativo, já presente nessas comunidades primitivas, passa a ser resgatado por vários países, como Nova Zelândia, Canadá, Colômbia,África do Sul, Alemanha, Argentina, Chile,Austrália, Áustria, Bélgica, Escócia, Estados Unidos, Finlândia, França, Portugal, Noruega. Esse ressurgimento internacional do interesse sobre o movimento restaurativo deveu-se a uma reação à situação de ineficiência e altos custos, tanto financeiros como humanos, do sistema de justiça tradicional e ao fracasso deste sistema quanto à responsabilização dos infratores e à atenção dada às necessidades e interesses das vítimas (MORRIS, 2005, p.440-441).Atualmente, encontra previsão normativa em documentos da ONU e da União Europeia, bem como na Resolução nº 2002 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas de 2012[15], que traz os princípios básicos sobre Justiça Restaurativa.
O conceito[16] relacionado à justiça restaurativa foi bem estruturado por Ramirez que a seguir se expõe:
“(…) se trata de uma variedade de práticas que buscam responder ao crime de uma maneira mais construtiva que as respostas dadas pelo sistema punitivo tradicional, seja o retributivo, seja o terapêutico. Correndo o risco de simplificação excessiva, poderia-se dizer que a filosofia deste modelo se resume nos três ‘R’: Responsibility, Restoration and Reintegrations (responsabilidade, restauração e reintegração). Responsabilidade do autor, desde que cada um deve responder pelas condutas que assume livremente; restauração da vítima, que deve ser reparada, e deste modo sair de sua posição de vítima; reintegração do infrator, restabelecendo-se os vínculos com a sociedade que ele também danificou com o ilícito”[17](2005, p. 199).
Nesse sentido, trata-se, a rigor, de um procedimento necessariamente consensual, em que as partes optam, de maneira consciente e voluntária, por aderir ao modelo restaurativo; informal, fugindo-se do formalismo exacerbado do processo penal tradicional; sigiloso, a fim de se resguardar a intimidade e privacidade dos sujeitos envolvidos, e essencialmente democrático e participativo, já que ofensor, vítima e a própria comunidade retomam o protagonismo do conflito e deixam de figurar como meros coadjuvantes.O ambiente participativo se dá usualmente nos chamados círculos restaurativos[18], ocasiões em que todos são igualmente ouvidos, e onde se busca conjuntamente a melhor solução ao alcance do caso concreto (PALLAMOLLA, 2009).
Sendo assim, a Justiça Restaurativa foca sua atenção nos danos efetivamente sofridos pela vítima, na conduta do ofensor, na representação daquele delito para a comunidade concretamente considerada, bem como nas possíveis soluções para o caso, criando-se uma atmosfera de corresponsabilidade entre os sujeitos afetados pelo crime. Ao revés, aJustiça Punitiva procura estritamente estabelecer a culpa do ofensor, o enquadramento típico de sua conduta e a punição a que se submeterá conforme a violação ao preceito normativo.Zehr (2008, p.64) salienta que“(…) culpa e punição são os fulcros gêmeos do sistema judicial. As pessoas devem sofrer por causa do sofrimento que provocam. Somente pela dor terão sido acertadas as contas”, o que definitivamente demonstra a ótica exclusivamente punitiva adotada pelo modelo vigente.
Ainda no que se refere ao modelo restaurativo, ressalta-se que este parte do pressuposto de que o conflito precisa ser tratado de maneira humanizada, dando às partes a oportunidade de se apropriar inteiramente do processo decisório. Só assim se é capaz de mergulhar fundo na lide sociológica, atravessando a superficialidade dos autos do processo comumente julgados pela justiça criminal punitiva. Nada mais arbitrário do que se conceder indistintamente ao Estado a titularidade e o protagonismo máximo da ação penal; ainda mais quando este usualmente se mostra desconectado da realidade fática e dos anseios concretos e reais do grupo de indivíduos envolvidos no conflito (MORRIS, 2005).
A humanização do conflito se dá na medida em que o crime passa a ser visto não somente como uma violação abstrata e formal em face do Estado, mas como “uma violação a pessoas concretas e seus relacionamentos. Ele cria obrigações de corrigir erros” (ZEHR, 2008, p.170).A partir dessa concepção de crime, a Justiça Restaurativa seria capaz de preencher as necessidades emocionais e de relacionamento advindas da prática delituosa, sendo o ponto chave para a obtenção e manutenção de uma sociedade civil saudável(MCCOLD, 2003). Para tanto, sendo o delito entendido como uma ofensa ou uma lesão a outras pessoas e relacionamentos, a justiça deve atuar para restaurar a situação e não apenas para retribuir com mais violência (SICA, 2007, p. 459).
Nesses termos, as características e fundamentos principais da Justiça Restaurativa foram descritos resumidamente por Damásio de Jesus (2006) em seu artigo intitulado como “Organizações das Nações Unidas (ONU) recomenda a adoção da Justiça Restaurativa”, a seguir expostos:
“1.ª) os princípios da Justiça Restaurativa devem obedecer às regras legais da Justiça Criminal;
2.ª) pode ser aplicada em qualquer fase do procedimento penal;
3.ª) é empregada quando presentes elementos seguros da prática de uma infração penal;
4.ª) depende do consentimento do ofensor e da vítima;
5.ª) a participação do ofensor num processo restaurativo não pode ser usada como prova de confissão da sua culpabilidade num procedimento acusatório regular;
6.ª) nenhuma das partes, ofensor e vítima, pode ser coagida a aceitar a apreciação do fato pela Justiça Restaurativa;
7.ª) quando, na Justiça Restaurativa, não for possível a solução do caso, o procedimento deverá ser remetido à Justiça Criminal comum” (JESUS, 2006, p.1).
Baseando-se nessas diretrizes, é possível concluir que o modelo restaurativo possui valores fundamentais que lhe são inerentes; estes, por sua vez, objetivam precipuamente a restauração dos prejuízos sofridos pelas vítimas e/ou pela comunidade, a assunção da responsabilidade pelo infrator, bem como a criação de um ambiente democrático e participativo, que não se restringe à atuação do Judiciário. É essencial que seja dada às partes e à comunidade, esta última ainda que indiretamente atingida pela conduta delituosa, a oportunidade de se manifestar, compartilhar suas histórias, vivências e sentimentos durante os encontros. A partir daí, surge um campo fértil à reparação dos danos, que para a justiça restaurativa representa um valor fundante e estrutural, na medida em que corresponde à manifestação expressa de aceitação da responsabilidade pelo ofensor. Insta salientar que a reparação pode ocorrer de diversas maneiras; ora simbólica, através de arrependimentos, pedidos de desculpas, remorso; ora material, seja via compensação econômica ou trabalhos à comunidade (PALLAMOLLA, 2009). Morris adverte também que “(…) qualquer resultado pode ser efetivamente restaurativo, desde que assim tenha sido acordado e considerado apropriado pelas partes principais” (2005, p. 442), o que se coaduna com o princípio da informalidade da Justiça Restaurativa, que adequa o procedimento às necessidades reais e concretas dos sujeitos do conflito.
Por fim,busca-se ainda a reintegração das partes à sociedade, seja vítima ou ofensor, já que ambos experimentaram o efeito perverso da estigmatização; que para o ofensor representa a vergonha e a culpa pela prática do crime, e para a vítima o sentimento de vitimização ou até mesmo a culpabilização pelo ocorrido[19], ventilados pela opinião pública (ZEHR, 2008).Ainda que não seja um processo simples, é possível obter a tão almejada transformação se as forças e energias forem canalizadas adequadamente, corroborando-se para a construção de valores como solidariedade e interdependência entre os sujeitos pertencentes à comunidade (ZEHR, 2008).
Por óbvio que a implementação do modelo restaurativo implica em uma mudança estrutural significativa, e esbarra em óbices de toda sorte, sendo “(…) necessário mais tempo para que seus valores essenciais sejam traduzidos em boas práticas contemporâneas” (MORRIS, 2005, p. 456).
4. A Justiça Restaurativa no Brasil: implementação, críticas e aspectos positivos
A partir das inovações insculpidas pela Constituição Federal de 1988[20], dos institutos despenalizadores previstos pela Lei 9099/95 (Lei do Juizado Especial Criminal)[21], da Resolução nº 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça- CNJ[22] eda Resolução do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas de 2002[23], o sistema jurídico brasileiro passa a adotar, ainda que restritiva e timidamente,o método consensual de resolução de conflitos também no campo penal,precipuamente para as infrações consideradas de menor potencial ofensivo[24].
Em 2003, a Justiça Restaurativa ganhou força nacional com a criação da Secretaria da Reforma do Judiciário (órgão do Ministério da Justiça), que teve como objetivo primordial a ampliação do acesso à justiça e a efetivação das garantias constitucionais relacionadas ao devido processo legal, em sua concepção material[25].A parceria cooperativa entre o órgão do Ministério da Justiça e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD viabilizou a execução de três projetos pilotos sobre Justiça Restaurativa no país, quais sejam, o de Brasília,no Juizado Especial Criminal, o de Porto Alegre-RS, intitulado Justiça do Século XXI,voltado para a justiça da infância e juventude, e o de São Caetano do Sul-SP, também direcionado para esta mesma área (LARA; ORSINI, 2013).
A partir de então, a política restaurativa passou a ser discutida e implementada em outras regiões e cidades do território nacional, sendo que em 2005 e 2006 foram realizados respectivamente o I e II Simpósio Brasileiro de Justiça Restaurativa, visando a adequação do instituto à realidade brasileira, ainda que baseado em diretrizes e experiências positivas advindas de outros países. Acerca dessa adaptação ao direito comparado, importante a lição de Pinho (2009, p. 246), que afirma que, “(…) como a justiça restaurativa é um processo de constante adaptação, é de bom alvitre sempre a adequação necessária à realidade brasileira”.
Ocorre que a referida implementação da Justiça Restaurativa ao sistema penal brasileiro ainda desafia resistências e críticas ferozes, especialmente por se tratar de um método que rompe com o paradigma essencialmente punitivo.Além dos óbices de caráter econômico, social, cultural e político, surgem questionamentos críticos quanto à sua viabilidade (PALLAMOLA, 2009).
Para muitos doutrinadores e juristas, a Justiça Restaurativa nada mais é do que um retrocesso histórico, um retorno aos tempos primordiais em que a vingança privada era exercida de maneira desproporcional e desequilibrada. De acordo com essa concepção, a avocação do jus puniendi pelo Estado, instrumentalizada pelo processo penal, foi uma grande conquista histórica, que estaria, portanto, esvaziada, ao se permitir que as partes retomem o protagonismo na solução do conflito (SICA, 2007). Entretanto, essa perspectiva é generalista e carece de consistência, uma vez que nem toda justiça privada, aqui entendida como justiça exercida pelas partes, pode ser considerada como atividade ilegítima e vingativa. Zehr (2008), ao estudar a evolução histórica das práticas restaurativas desde os tempos mais remotos, mostra que muitas das práticas comunitárias de justiça exercidas em comunidades aborígenes e indígenas não representavam atitudes bestiais de vingança privada. A justiça restaurativa aqui defendida procuraria resgatar unicamente as práticas consideradas idôneas e consentâneas com os fundamentos e princípios de um Estado Democrático de Direito.
A defesa do monopólio estatal no que tange ao exercício do jus puniendi também é defendida pelo doutrinador espanhol Silva-Sánchez (2002), que visualiza o processo penal como instrumento de concretização de princípios e garantias constitucionais, até então inexistentes. Para o referido autor, a legalidade e o formalismo observados na dinâmica penal tradicional são imprescindíveis, e, portanto, não passíveis de qualquer procedimento de mediação. A preocupação de Sánchez com a “informalização do direito penal”, embora digna de consideração, precisa ser analisada com maior prudência e cautela.
Conforme bem salienta Martins da Costa (2001), em um profundo estudo acerca da igualdade no Direito Processual Penal brasileiro, a estrita observância da legalidade e do formalismo no processo penal não tem nos tem levado, na prática,à concretização de garantias e princípios basilares ao processo penal constitucional. A Constituição Federal brasileira tem sido “relativizada por leis penais e processuais penais, bem como pela jurisprudência” (MARTINS COSTA, 2001, p. 74)[26], esta última cada vez mais vulnerável aos discursos populistas de segurança pública, típicos do Estado de Polícia (SICA, 2007).Diante de tais fatos e observações, conclui-se que o protagonismo estatal no que concerne à condução do processo penal nem sempre contribui para a concretização de princípios e garantias mínimas ao acusado. Sendo assim, a aversão, ao menos a priori,a qualquer procedimento conciliatório no processo penal[27],é, no mínimo, desarrazoada (MARTINS COSTA, 2001).Ainda, ressalta-se que o método restaurativo também se sujeita a limitações e a controle, seja pelo Judiciário, seja pela comunidade, e não importa em nenhum momento violação à lei (SICA, 2007).
Outra crítica bastante recorrente em relação à Justiça Restaurativa perpassa pela convicção de que ela não seria capaz de restaurar a ordem jurídica lesada pela prática do delito.Referida crítica também não merece prosperar.Primeiramente, a Justiça Restaurativa deve ser compreendida como um método complementar[28], que não pretende substituir por completo o sistema tradicional penal, já que aquela só será aplicada quando as partes voluntariamente aderirem a seu procedimento, e, ainda assim, quando este se apresentar compatível com todo o ordenamento jurídico. Nesse sentido,Sica (2007) defende que deveria haver uma complementariedade funcional entre os dois sistemas, na medida em que um deve aproveitar o que de melhor há no outro. E é justamente a partir dessa interconexão entre os dois modelos de Justiça que a relação jurídica violada terá melhores chances de ser restaurada. Isso porque, de acordo com a maior parte das pesquisas empíricas, o olhar restaurativo sobre o crimetraz melhores resultados práticos, uma vez que facilita a reparação do dano à vítima,contribui para que o ofensor se responsabilize pela prática do delito e entenda o impacto negativo de sua conduta, e, por fim, gera um sentimento mais contundente de justiça (ZEHR, 2008).
Sobre os resultados positivos oferecidos pela Justiça Restaurativa,uma pesquisa empírica realizada em várias regiões da Nova Zelândia indicou duas conclusões importantes:os programas restaurativos não aumentaram as taxas de reincidência; e, ainda, o nível de satisfação dos participantes é enorme,visto também ter aumentando a percepção de justiça (numa região 95% das pessoas disseram-se satisfeitas com a oportunidade do encontro; 83% ficaram satisfeitas com o acordo e 90% dos ofensores cumpriram o acordo) (SICA, 2008, p.175). Na visão de Sica (2008), ainda que se trate de pesquisas incipientes e recentes, a Justiça Restaurativa vem apresentando resultados concretos de diminuição da reincidência em vários países, o que denota uma maior satisfação quanto ao acesso a uma ordem jurídica justa, que, para Kazuo Watanabe (1988, p.128), “não pode ser estudada nos acanhados limites do acesso aos órgãos judiciais já existentes”.
Questiona-se ainda se a Justiça Restaurativa não levaria à privatização do Direito Penal, sujeitando-se o infrator ao julgamento por pessoas ilegítimas e não investidas de múnus público[29]. Esse é um questionamento também descabido.As práticas restaurativas não traduzem atividade meramente privada, mas sim atividade comunitária, em que há participação e diálogo entre diversos sujeitos pertencentes à comunidade, buscando-se a restauração do conflito e não o julgamento do ofensor (ZEHR, 2008). A par dessa análise, é preciso considerar que o supracitado procedimento restaurativo deve estar em fina consonância com a Constituição Federal brasileira e com todo o ordenamento jurídico pátrio, sob pena de ser manifestamente nulo. É dizer: o Poder Judiciário, seja na figura do juiz, do membro do Ministério Público, e até mesmo do advogado[30], deverá exercer o juízo de legalidade e de validade do acordo outrora realizado (SICA, 2008). Sendo assim, não resta procedente o argumento por alguns utilizado de que a Justiça Restaurativa levaria à privatização do Sistema Criminal.
A mais recorrente crítica ao modelo restaurativo, entretanto, relaciona-se com a equivocada ideia de que a Justiça Restaurativa beneficiaria o infrator, devido a seu caráter não punitivo. Essa posição evidentemente reverbera um conceito de justiça nitidamente conservador e autoritário, que acredita ser o castigo, principalmente o cárcere, o meio idôneo para se reprimir a prática de delitos, e para preveni-los. Esse é um ideal já exaustivamente rechaçado por diversas ciências (antropologia, criminologia, psicologia, sociologia, direito) sob diferentes ângulos, tendo o determinado “castigo corporal” contribuído muito mais para o incremento da violência e da criminalidade do que para sua contenção (SICA, 2008, p.162).Nesse sentido, Zaffaroni e Batista (2003) sustentam ainda que as sociedades contemporâneas reproduzem discursos falaciosos acerca da necessidade indisponível de se punir. Para os referidos autores, essa construção político-institucional cria apenas o hábito de se punir, que em última instância, contribui para a instrumentalização e seletividade do direito penal. Nas palavras de Nilo Batista, “seletividade, repressividade e estigmatização são algumas características centrais de sistemas penais como o brasileiro” (2001, p. 26)[31].
A esse fato, acrescenta-se a total ineficácia das teorias que justificam a atribuição da pena (sanção penal) ao criminoso. Seja a vertente retributiva, que vê o crime como um mal, que deve ser sanado com outro mal necessário (pena); sejam as vertentes preventivas, que acreditam ter a pena a função de ressocializar o infrator (prevenção especial), ou ainda servir como contra-estímulo ao crime (prevenção geral), Sica (2007) afirma que nenhuma delas conseguiu alcançar os resultados esperados, levando-se a conclusão óbvia de que a punição em si não constitui nem esboço para o que poderia ser a solução para a criminalidade.Contraditoriamente, vive-se em um sistema de punições extremas, indignas, subumanas; que nada previne, tão somente ilude (SICA, 2007).
Assim, superadas as críticas mais recorrentes à Justiça Restaurativa,é possível constatar que, passados mais de dez anos desde a implantação em 2005 dos projetos-pilotos de práticas restaurativas no Brasil, esse modelo de justiça vem sendo progressivamente expandido para várias regiões brasileiras, obtendo inclusive resultados muito satisfatórios (PALLAMOLLA, 2009). Passa-se, então, a analisar a amplitude dessa extensão no cenário nacional.
5. Novas possibilidades: a extensão da Justiça Restaurativa aos tipos penais de maior potencial ofensivo
Os projetos restaurativos até então implementados no Brasil direcionam-se quase que exclusivamente aos atos infracionais praticados por crianças e adolescentes, puníveis de acordo com o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e aos crimes considerados de menor potencial ofensivo quando cometidos por adultos, estes plenamente imputáveis conforme o Código Penal brasileiro[32]. Essa constatação é preocupante, pois, apesar de se reconhecer a importância da prática restaurativa para a recomposição de relações interpessoais, revela-se uma subestimação do papel inovador da justiça restaurativa (WAQUIM, 2011, p.96).
Ao analisar a estrutura punitiva do Brasil, De Vitto (2008) questiona se as instituições e a própria sociedade brasileira estariam preparadas para aceitar o modelo restaurativo em uma acepção mais ampla, inclusive para os tipos penais mais graves existentes no ordenamento jurídico pátrio. Para o autor, a resposta a essa indagação pode ser positiva a depender da aplicação adequada do instituto, já que “as práticas restaurativas de qualidade apresentadas em outros países funcionaram como fio condutor para a desconstrução da barreira cultural que se opõe ao movimento restaurativo” (2008, p.203).A essa conclusão, acrescenta-se a falibilidade e o descrédito da sociedade em relação ao sistema penal tradicional, que contribuem, ao menos de forma pontual,para a aceitação de que existem outras formas de resolução de conflitos alternativas ao modelo punitivo e com resultados mais satisfatórios (DE VITTO, 2008).
Os resultados práticos também podem representar uma boa estratégia para que a cultura restaurativa ganhe força nacional, principalmente ao se analisar os índices elevados de reincidência no Brasil, que, a teor dos dados da CPI carcerária “giram em torno de 70% a 85%” (RELATÓRIO FINAL, 2008, p.461). Em sentido manifestamente oposto, ainda que de maneira incipiente, a quase totalidade das pesquisas empíricas acerca das práticas restaurativas mostra resultados positivos, como a diminuição das taxas de reincidência, inclusive nos casos de crimes mais violentos. O estudo mais significativo realizado nessa seara ocorreu na Austrália, e mostrou que jovens envolvidos apenas em crimes violentos e submetidos às práticas restaurativas reincidiram 38% menos do que os jovens que praticaram o mesmo crime e foram submetidos à justiça penal. Essa queda nos níveis de reincidência ocorreu apenas nos crimes mais violentos, não sendo aferida, por exemplo, nos crimes de trânsito (SICA, 2008, p.175). Esse resultado inovador vai de encontro à tendência brasileira de se restringir a aplicação da Justiça Restaurativa aos crimes menos graves previstos no ordenamento jurídico (JACCOUD, 2005).
Pode-se citar também os resultados positivos da Justiça Restaurativa ocorridos na Colômbia, que inclusive reconheceu as práticas restaurativas em sua Constituição e em seu Código de Processo Penal, diferentemente do Brasil. Naquele, “as práticas estão sendo avaliadas positivamente tanto para a sociedade quanto para o sistema jurídico como um todo, inclusive, tendo sido a elas atribuída a diminuição de 30% nas taxas de homicídios” (ORTEGAL, 2006, p. 15). Esse estudo demonstrado na Colômbia é ainda mais promissor à realidade brasileira, tendo em vista serem ambos países latino-americanos, envoltos em problemas sérios como a desigualdade social e a violência estrutural (WAQUIM, 2011).
Os Estados latino-americanos[33], por exemplo,possuem taxas elevadas de crimes contra o patrimônio e a ordem econômica: fruto de estruturas sociais desiguais, e da escassez de políticas públicas adequadas e garantidoras de direitos fundamentais mínimos aos indivíduos. Nesse sentido, Shecaria (2011, p.376)[34] afirma que, “no que tange aos tipos penais que levam à prisão, furtos e roubos são os responsáveis pela superlotação carcerária, pois ambos correspondem a 45% da superlotação carcerária”.A partir desse cenário, pesquisas concluem que “em crimes patrimoniais as vítimas não registram o caso ou desistem do seu prosseguimento por saberem que o sistema não lhe oferecerá possibilidade de obter reparação”(SICA, 2008, p.184), o que demonstra que a resposta essencialmente punitiva apresentada pelo sistema penal convencional é, em regra,insuficiente para esses delitos. Assim,a Justiça Restaurativa pode ser o ponto chave não apenas para a diminuição da criminalidade, como para a redução dos impactos negativos advindos até de crimes patrimoniais mais graves (WAQUIM, 2011).
Os resultados positivos da Justiça Restaurativa aos crimes de maior potencial ofensivo são tão expressivos que,durante o Fórum Europeu para Mediação Vítima- Ofensor e Justiça Restaurativa ocorrido em 2002, firmou-se posição no sentido de que o modelo restaurativo deve se direcionar a esses crimes mais graves, e não aos crimes menores, que usualmente apresentam pouca ou nenhuma relevância penal. Os estudiosos do tema costumam afirmar que a vinculação estreita e restritiva da Justiça Restaurativa aos crimes de bagatela[35] pode gerar um efeito contrário, resultando na expansão das redes de controle penal- efeito net- widening. Isto porque, a institucionalização rigorosa de práticas restaurativas aos crimes insignificantes pode levar à repristinação de uma série de delitos e contravenções que já tinham perdido sua importância penal, contribuindo assim para a expansão do controle e para a sobrecarga do Judiciário (SICA, 2007). Para se evitar essa situação perversa, países como a Áustria e a Nova Zelândia estabeleceram que a Justiça Restaurativa só tem aplicabilidade aos crimes de gravidade média a alta, proibindo-se os casos bagatelares (SICA, 2008).
Esse efeito colateral advindo de uma Justiça Restaurativa adstrita a crimes de pouca ou nenhuma relevância penal é um risco presente e concreto à realidade brasileira, já que são poucos os casos que recepcionam amplamente as práticas restaurativas no Brasil (WAQUIM, 2011).
6. As implicações de práticas restaurativas ampliadas a partir de uma experiência ocorrida no Núcleo Bandeirante- DF
A fim de analisar as implicações práticas da Justiça Restaurativa aos crimes de maior potencial ofensivo no Brasil, importante mencionar um caso ocorrido em 2007 envolvendo a conduta típica prevista, à época dos fatos, pelo art.213, p. único do Código Penal (estupro presumido)[36], encaminhado pela 2ª Vara Criminal de Samambaia ao Núcleo Bandeirante- DF de Justiça Restaurativa. Em 2007o delito de estupro presumido já era considerado crime hediondo, constando do rol previsto pela lei 8072/90, vindo a ser alterado posteriormente pela lei 12.015/2009[37].
Conforme expõe uma das facilitadoras responsáveis pela condução do caso, ressalta-se que:
“(…). Este caso foi um passo dado pelo Programa de Justiça Restaurativa do Núcleo Bandeirante- DF, no sentido de ampliar a atuação dessa nova forma de lidar com os crimes de grande potencial ofensivo. Esse é o próximo desafio. Este caso demonstra que vale a pena aceitá-lo” (COSTA; MOURA, 2007, p.624-625)[38].
Esse caso pode ser considerado um marco para a ampliação da Justiça Restaurativa aos crimes mais graves ocorridos no Brasil, uma vez que,em uma situação envolvendo violência sexual presumida, conseguiu alcançar resultados satisfatórios através do programa restaurativo. Waquim (2011), ao analisar profundamente esse paradigma, descreve que a situação envolveu três jovens autores, dois maiores de 18 anos e um menor de idade- este último encaminhado à Vara da Infância e Juventude- e a vítima, de 13 anos de idade. Apenas um deles manteve relação sexual com a menor, enquanto os demais ficaram observando. Em complemento, a referida pesquisadora conta que os autores do crime afirmaram que a vítima concordou com todos os atos sexuais realizados, não demonstrando em nenhum momento qualquer tipo de resistência. Nesse contexto, os jovens se diziam inocentes (WAQUIM, 2011).
Considerando a gravidade do crime hediondo praticado, bem como o Princípio da Indisponibilidade da Ação Penal Pública,a magistrada relatou a impossibilidade de se anular total e formalmente o processo penal tradicional no referido caso. Porém, em decisão inovadora, reconhecendo a limitação da Justiça Penal para alcançar a restauração dos conflitos sociais, consentiu pelo encaminhamento do caso ao núcleo restaurativo, principalmente diante do manifesto desejo das partes. É o que se expõe a seguir:
“Diante da manifestação do desejo da mãe da vítima, e após consulta às partes, em especial ao advogado de defesa e do Ministério Público, os quais unanimemente anuíram, foi deferida a instauração de procedimento restaurativo, nos moldes implantados no projeto piloto do Núcleo Bandeirante, oportunidade em que houve advertência expressa por parte deste Juízo sobre a natureza extraprocessual dos encontros, que ocorreriam sem afetar o curso da ação penal. Na mesma oportunidade, foi esclarecido ainda que os encontros seriam realizados, primordialmente, com a finalidade de restaurar as relações afetadas pelo ocorrido, em especial naqueles aspectos que não são alcançados pela Justiça Penal, portanto, sem o condão de anular o processo penal, sobretudo, em razão da indisponibilidade da ação penal” (TRECHO DO RELATÓRIO DA SENTENÇA apud WAQUIM, 2011, p.91).
Assim, o processo penal foi suspenso e os procedimentos restaurativos foram iniciados com o apoio de uma equipe disciplinar. Após a realização de todas as etapas referentes ao procedimento restaurativo (acolhimento, encontros privados e restaurativos), inclusive com visitas domiciliares, os autores do delito aceitaram a proposta dos pais da vítima, e se comprometeram a trabalhar voluntariamente numa instituição que amparasse mulheres vítimas de violência sexual, doméstica, ou mães solteiras grávidas, por um período de três meses (WAQUIM, 2011).
Ao final de todo o procedimento restaurativo, as partes se disseram satisfeitas com o resultado. Os ofensores expressaram estar verdadeiramente arrependidos com o ato e seus pais acreditaram que eles tiveram um crescimento “pessoal” com a experiência. A vítima declarou ter se sentido mais segura, e pôde, com as suas palavras, falar sobre o trauma sofrido (WAQUIM, 2011, p.92).Ainda, considerando que o crime gerou um clima de insegurança e medo na comunidade,importante a constatação de uma das facilitadoras do caso em análise, que concluiu que “o caminho da justiça restaurativo foi adequado e permitiu a recomposição do tecido social e impediu que comentários promotores de violência encontrassem ouvidos atentos” (COSTA; MOURA, 2008, p.624).
Retomado o processo criminal, o procedimento restaurativo e seus resultados positivos tiveram profundo impacto naquele, sendo inclusive determinantes para a fundamentação da pena dos acusados e para a fixação de regime mais favorável, conforme demonstrado a partir de um trecho da parte dispositiva da sentença:
“Ao final, (…), fixando- a DEFINITIVA e CONCRETA, em 07 (SETE) ANOS DE RECLUSÃO.Embora o §1º do art. 2º, da Lei 8072/90[39], tenha mantido o regime inicialmente fechado para os crimes considerados hediondos, entre os quais, os de natureza sexual, a aplicação do referido regime para o caso em comento não encontra sustentação diante da especificidade do caso, senão vejamos. Depreende-se das informações dos autos que a situação foi especialmente tratada pelas partes nos encontros restaurativos, no sentido de recomporem as relações por ela afetadas, o que sem dúvida contribui para a pacificação social, um dos objetivos que se espera da justiça penal. Nesse aspecto, importa observar que a resposta penal deve guardar razoabilidade, à luz dos critérios da necessidade e suficiência de pena para o caso concreto, sob o risco de se atentar o princípio da individualização da reprimenda, previsto no inc. XLVI do art. 5º da Constituição Federal. Assim, diante das ponderações acima e levando em conta as diretrizes expostas no art. 33, § 2º, “b”[40] e § 3º[41] do CPB, tenho como suficiente para o caso em comento a fixação tão somente do regime semiabertopara o cumprimento da pena” (TRECHO DA PARTE DISPOSITIVA DA SENTENÇA apud WAQUIM, 2011, p.94).
A partir da decisão apresentada, percebe-se que a análise jurídica do caso se mostrou afinada com princípios maiores do direito, tais como a razoabilidade e a proporcionalidade no tocante à aplicação da pena, assim como ao alcance da paz social. Desse modo, conforme se pôde verificar nesse caso emblemático, a Justiça Restaurativa, conjugada ao processo penal,criou um campo fértil à melhor promoção de direitos fundamentais a todos,“consistindo em uma forma mais justa de tratar infratores e vítimas” (MORRIS, 2005, p.455).
Não se pode olvidar, entretanto, que diante da ausência de previsão legal[42] acerca da Justiça Restaurativa, o ordenamento jurídico brasileiro ainda se mostra fechado e resistente à aplicação das práticas restaurativas, principalmente aos crimes de maior potencial ofensivo (PALLAMOLLA, 2009).Ocorre que, mesmo diante de um sistema fechado como o ordenamento jurídico brasileiro, os resultados obtidos pela Justiça Restaurativa podem repercutir diversamente no processo penal:
“(…)o mais interessante para o sistema brasileiro, no momento, enquanto não se mudam as leis, é que a justiça restaurativa seja trabalhada como uma forma diferente de auferir responsabilidade penal à pessoa, através da qual se pode chegar a diversas respostas, desde evitar o processo penal, atenuar ou eximir a pena, ou ainda reduzir a duração da pena privativa de liberdade, diferentemente, portanto, do processo penal que está invariavelmente adstrito a uma decisão que deva condenar ou absolver o réu” (WAQUIM, 2011, pp.103-104).
Sendo assim, considerando o forte caráter principiológico da Constituição Federal brasileira, é plenamente possível a aplicação da Justiça Restaurativa aos casos de maior potencial ofensivo no Brasil, principalmente a partir de uma interpretação abrangente do art. 3º do Código de Processo Penal[43]. No referido caso, ainda que a Justiça Restaurativa não tenha levadoà anulação do processo penal tradicional, o acordo realizado e devidamente cumprido serviu como atenuante da pena[44], o que reforça a estreita complementariedade funcional entre ambos os sistema de Justiça, já defendida por Sica (2007).
Nesse sentido, e, a partir desse caso analisado, abre-se no Brasil a possibilidade de a justiça restaurativa ser aplicada para além dos crimes de menor potencial ofensivo; hipótese em que verdadeiramente poderá cumprir seu ideal de transformação social.
CONCLUSÃO
Diante da incapacidade do sistema penal tradicional em cumprir com a ressocialização do infrator e com a prevenção do crime, a Justiça Restaurativa, a partir de um olhar diferenciado sobre o delito e a justiça, apresenta-se como uma possibilidade mais equânime e justa de tratamento da questão criminal. A despeito de todas as críticas e desconfianças acerca do modelo de justiça restaurativo, as práticas restaurativas experimentadas em vários lugares do mundo nos mostram resultados satisfatórios, tais como, maior acesso à justiça, maior satisfação dos envolvidos no conflito, efetiva participação comunitária, a responsabilização e não estigmatização do infrator,a efetiva reparação do dano à vítima e a redução dos níveis de reincidência e prisionalização.
Partindo dessas considerações, em 2005, o Ministério da Justiça do Brasil, em parceria com outras instituições, iniciou a implantação de projetos-pilotos de Justiça Restaurativa no território nacional. No entanto, passados mais de dez anos desde a iniciativa, verifica-se que referidos projetos ainda se encontram estritamente vinculados ao âmbito de aplicação dos Juizados Especiais Criminais, e, portanto, aos crimes de menor potencial ofensivo ditados pela lei nº 9099/95. Essa limitação à aplicação da Justiça Restaurativa, em referência a tudo quanto foi exposto no presente trabalho, levanta sérias preocupações, como o risco de extensão do controle penal e a perda de todo o potencial inovador da Justiça Restaurativa.
Sendo assim, a partir de experiências positivas advindas de outros países, e de um caso ocorrido no Núcleo Bandeirante- DF, foi-se possível vislumbrar a possibilidade de extensão da Justiça Restaurativa para além dos crimes de menor potencial ofensivo no Brasil, principalmente diante do forte caráter principiológico da Constituição Federal Brasileira. Essa ampliação, mesmo diante de um sistema fechado como o sistema jurídico brasileiro, se mostra afinada com os ideais de uma nação mais justa, já que, não há que se falar em justiça quando os conflitos sociais são resolvidos com violência, repressão e desigualdade.
Informações Sobre o Autor
Bárbara Lara Garcia
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora- UFJF.