A exclusão do menor sob guarda do rol de dependentes da previdência social

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Antes de detalharmos a solução jurídica da questão, são necessárias algumas breves explanações sobre alguns aspectos teóricos essenciais.

No âmbito da teoria geral do direito e à luz da doutrina de Norberto Bobbio, existem três critérios para solução de conflito de leis no tempo: o cronológico, o hierárquico e o da especialidade.

O critério cronológico é aquele com base no qual, entre duas normas incompatíveis, prevalece a norma posterior: Lex posterior derogat priori.

Segundo o critério hierárquico, entre duas normas incompatíveis, prevalece a norma hierarquicamente superior: Lex superior derogat inferiori.

Finalmente, o critério da especialidade é aquele pelo qual, de duas normas incompatíveis, uma geral e uma especial (ou excepcionais), prevalece a segunda[1]. Consiste na diversificação do desigual: tratar desigualmente o que é desigual, fazendo as diferenciações exigidas fática e axiologicamente, apelando para isso à ratio legis[2].

Voltando à análise da questão, tracemos um paralelo entre as disposições legais: a Lei n. 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) e a Medida Provisória n. 1.523/96, posteriormente convertida na Lei n. 9.528/97[3].

Segundo o parágrafo 3º do artigo 33 da Lei n. 8.069/90, a guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários. De outro lado, a Lei n. 9.528/97, ao conferir nova redação ao parágrafo 2º do artigo 16 da Lei de Benefícios da Previdência Social (Lei n. 8.213/91), suprimiu o menor sob guarda do rol de dependentes do segurado. Resta saber qual espécie normativa prevalece.

A questão não é solucionada pelo critério hierárquico, já que ambas as leis são ordinárias, possuindo igual nível de hierarquia.

Pelo critério cronológico, não há dúvida de que a Lei n. 9.528/97 prevalece sobre a Lei n. 8.069/90, por ser cronologicamente superior. 

Com relação à aplicação do critério da especialidade, é preciso identificar qual das leis em conflito é a especial (Estatuto da Criança e do Adolescente ou a Lei de Benefícios da Previdência Social).

Maria Helena Diniz entende que “uma norma é especial se possuir em sua definição legal todos os elementos típicos da norma geral e mais alguns de natureza objetiva ou subjetiva, denominados especializantes. A norma especial acresce um elemento próprio à descrição legal do tipo previsto na norma geral, tendo prevalência sobre esta, afastando-se assim o bis in idem, pois o comportamento só se enquadrará na norma especial, embora também esteja previsto na norma geral.”[4]

Contudo, o critério desenvolvido pela jurista esbarra na seguinte constatação: a priori, tanto a Lei Previdenciária quanto o Estatuto da Criança e do Adolescente possuem, em sua definição legal, elementos tipicamente genéricos e elementos especializantes.

 

Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que ambas as leis instituem um dado tratamento normativo. O ponto é que enquanto a Lei n. 8.213/91 regula a proteção previdenciária genericamente, trazendo disposições especiais referentes a determinadas situações (como é o caso da proteção previdenciária do menor), a Lei n. 8.069/90 dispõe genericamente sobre a proteção da criança e do adolescente, disciplinando determinadas questões jurídicas especiais (direito previdenciário do menor sob guarda).  Vale dizer: sob a ótica do direito previdenciário, a Lei n. 8.213/91 é especial em relação à Lei n. 8.069/90; de outro lado, sob a ótica do direito do menor, a Lei n. 8.069/90 é especial em relação à Lei n. 8.213/91.

Percebe-se, pois, que o ponto de interseção entre as leis mencionadas (direito previdenciário do menor sob guarda) impossibilita, pelo menos a priori, a identificação da norma especial.

 

Sem embargo, a definição do ponto de interseção evidencia um traço diferencial. O caráter especial da Lei n. 8.213/91 decorre da natureza especial da matéria (direito previdenciário). Ao contrário, o caráter especial da Lei n. 8.069/90 tem como elemento nuclear o titular dos direitos nela previstos: o menor. Está-se, dessa maneira, diante de duas leis de instituição. Só que enquanto uma institui objetivamente um determinado regime previdenciário, a outra institui a proteção jurídica de um determinado sujeito: o menor.

O art. 5º da Constituição da República estabelece o princípio da isonomia, segundo o qual a lei deverá tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. Sendo assim, não há dúvida de que o critério da especialidade deve priorizar não propriamente a natureza do direito envolvido, mas sim os titulares dos direitos envolvidos.

Destarte, pelo fato de o Estatuto da Criança e do Adolescente dispor sobre os direitos de proteção do menor (titular do direito envolvido), ele ostenta prioridade normativa sobre a Lei n. 8.213/91, afinal a lei de instituição vinculada à especificidade do titular de um direito prevalece sobre a lei de instituição vinculada à natureza especial matéria.

 

Contudo, não obstante o caráter especial da Lei n. 8.069/90 em relação à Lei de Benefícios da Previdência Social, ainda é necessário discutir outro aspecto.

A redação original da Lei n. 8.213/91 estava de acordo com o disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente. O conflito só passou a existir após a edição da Medida Provisória n. 1.523/96, posteriormente convertida na Lei n. 9.528/97, quando então o menor sob guarda deixou de figurar entre os dependentes para fins previdenciários.

A Lei n. 9.528/97 alterou dispositivos das Leis n. 8.212/91 e n. 8.213/91 (Planos de Custeio e de Benefícios). Trata-se, portanto, de uma lei que deu continuidade ao interminável processo de reforma do sistema previdenciário, indispensável para garantir a saúde financeira e atuarial do sistema. 

A questão avulta-se de complexidade, considerando o fato de que a Lei n. 9.528/97 (que é posterior às leis n. 8.213/91 e n. 8.069/90 e possui idêntico grau de hierarquia) tem natureza especificamente reformadora, ou seja, não por escopo instituir um diploma normativo sobre determinada matéria, mas reformar leis anteriores.

Ora, se a Lei n. 9.528/97 ostenta força normativa suficiente para alterar outra lei ordinária (como é o caso da Lei n. 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente), pode-se dizer que se trata de uma questão meramente tópica, solucionável de acordo com o parágrafo 1º do art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, verbis: “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.”

Com efeito. O critério da especialidade apenas pode ser aplicado diante de duas normas de instituição, nunca entre uma norma de instituição e outra de reforma.

A lei de reforma, desde que válida (isto é, se estiver de acordo com a Constituição da República), tende a sempre prevalecer, se o conflito der-se entre normas de igual hierarquia. Isso não significa reproduzir a idéia sobre a qual repousa o critério cronológico. Explique-se. Se originariamente a Lei n. 8.213/91, que instituiu o regime geral de previdência social, conflitasse com o disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90), esta deveria prevalecer, mesmo sendo anterior, por apresentar-se como norma especial em relação àquela, considerando a sua finalidade: regular os direitos do menor (titular).

Na verdade, o critério cronológico apenas é efetivamente aplicado quando presentes os seguintes requisitos:

 

Isso significa dizer que a norma de reforma é dotada do poder normativo de revogar, expressa ou tacitamente, todas as normas de igual hierarquia que lhe forem contrárias, sejam elas gerais ou especiais.

Por consectário, a despeito da natureza especial da Lei n. 8.069/90 frente à Lei n. 8.213/91, deverá prevalecer o disposto na Lei Previdenciária, considerando o fato de que a sua disposição conflitante proveio de uma norma de reforma, a Lei n. 9.528/97.

Notas:
[1] BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, p. 92-94.
[2] DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 482.
[3] Doravante, faremos referência exclusiva à lei de conversão: Lei n. 9.528/97.
[4] DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 40.

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Andre Studart Leitão

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